REVISTA ESCRIBA n.6 "Ao Interior do interior"

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TIRO DE LETRAS

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REV ISTA SC ESC RIBA

Tiro de Letras editora apresenta ed.nº6

Ao Interior do Interior poemas, crônicas e outros causos de artistas de Sta. Cruz do Sul e região


Tiro de Letras editora apresenta n.6

Ao Interior do Interior poemas, crônicas e outros causos de artistas de Sta. Cruz do Sul e região

Aidir Parizzi Carlos Renato dos Santos Costa Dilso J. dos Santos Edison Botelho Eduarda Bringmann Gama Bell Gerson Nagel Gil Kipper Jorcenita Alves Vieira Lígia Hertzer Márcio Meyer Marli Silveira Mauro Ulrich Paulo Louzada Rafael Barletta Rosmeri Menzel Sávio Moura 2019


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Editorial Com atuação destacada na composição de sonetos, Esta 6ª edição da Revista Escriba é dedicada a todos versos alexandrinos, decassílabos, métricas complexas e os mestres e professores deste país varonil. rigorosas, resultado de anos de estudos na clausura junto Em especial, presta uma justa homenagem ao aos padres Maristas, publicou inúmeros poemas ao longo “Professor Bellini” (1934 - 2017). Natural de Antônio de sua vida. Em Santa Cruz do Sul escreve o primeiro Prado (RS), dentre outras disciplinas, lecionou Literatura soneto como poeta consolidado, intitulado “Imigrante”, em Brasileira e Língua Portuguesa no ensino fundamental, clara alusão à saga da cultura alemã no estado, poema este médio e superior. incluído em livro didático adotado em 1983 em escolas da Gabriel Maria Bellini ou, simplesmente, Gama Bell, cidade e publicado ao final desta edição. pseudônimo poético por ele usado em inúmeras de suas Gama Bell publicou poesias em quatro coletâneas: publicações, soube transmitir valiosas lições de vida aos Coletânia Literária Santa-cruzense (Org. Miguel Limberger, seus alunos e, por que não dizer, pupilos. Dentre estes, me Ed. Berthier, 1984), Poesias Selecionadas (Org. Cecília incluo, tendo a honra de receber a semente da Poesia desde Maicá, 1986), Mil Poetas Brasileiros (Org. Toni Carré, Ed. cedo, numa das tantas salas de aula do Colégio Marista Carré, 1987), Poetas Brasileiros de Hoje (Ed. Shogun, 1987). São Luís, em Santa Cruz do Sul, no fim da década de 80 e O vate ainda produziu centenas de poesias em diversos início dos anos 90, onde Bellini foi o Mestre e Professor. estilos durante mais de 50 anos dedicados à literatura. Período próspero na elaboração de poemas, jograis, peças Não raro se ouviam dele as seguintes palavras em sala de teatro e cerimoniais. de aula: “Mens sana in corpore sano” (em latim, “mente Em Porto Alegre/ RS, obteve a formação de Bacharelado sã em corpo são”). À gratidão do aluno pelo ensinamento em Geografia e História (PUCRS, 1961), Licenciatura em recebido, como bordão seu predileto, até hoje ecoa em Geografia e História (PUCRS, 1963), Licenciatura em nossos corações: “Não agradeça, você merece!”. Letras (PUCRS, 1966), Especialização em Antropologia Aos verdadeiros heróis deste país, os professores, e a de Sociedades Complexas (UFRGS, 1974) e Especialização Gama Bell é dedicada a 6ª edição da Revista Escriba. em História da Cultura Brasileira (PUCRS, 1980). fonte: www.gamabell.com.br Foi durante o curso de Letras que se especializou em escrever poesias. Gerson Nagel, Poeta e editor da Tiro de Letras Ed.


Prefácio A 6ª edição da Revista Escriba traz a face poética ainda pouco conhecida de alguns autores a quem o editor chama de “Artistas do Interior”. É o prenúncio de momentos significativos, mágicos, de muitas incursões ao nosso universo íntimo. A palavra, mais do que registro, se preenche de vida. A palavra a exprimir a vida, os desejos, as memórias dos mais variados tons. A palavra poética permitindo devaneios, sonhos. A palavra a captar sensações profundas e a exprimi-las. A palavra da poesia nos causando êxtase. O que fica depois da imersão nos textos aqui divulgados, é bem mais do que a sensação de ter andado por inúmeros tempos e por vastas amplidões. Fica a experiência do poeta, o desejo de voltar e reviver, o desejo de se perpetuar. O que fica é a vida de cada um compondo muito mais do que vida. “É muito provável que a solidão sofra silenciosamente. Como não sofreria ao ver o campo dormir na sombra da noite? Sim, meu coração dispara a velejar por imensidões inalcançáveis. Busco respostas. Eu sei que os dias são pétalas caídas que enfeitam as calçadas. Isso é reconfortante. Ah, as folhas dos ipês amarelos formando um tapete... A noite vem e abre as cortinas. A noite procura a luz nas janelas do casarão... E ela se põe a sonhar com novas auroras, novos tempos sem cavalos fantasmas galopando à beira-mar. Na terra, as ossadas respiram, e o poeta insiste em desenterrar seu passado. A vida tem um gosto de mistério. Nesse ciclo interminável, um novo broto surge.” Lígia Margaret Hertzer, Professora


Por Paulo Louzada


foto: Renati Bergman (do interior de Venâncio Aires)


Por Rosmeri Menzel

Córrego ... e vem a memória insinuar as reminiscências do tempo... A amplitude, a vastidão do horizonte, a essência da mata, cheiro fresco da flor do campo que invade a alma... E o córrego, tão despretensiosamente, serpenteia trazendo o vigor da renovação e da saciedade. Gélidas, as águas dançantes entre os pedregulhos, tão magníficas e substanciais e generosas. E no tempo, um instante capturado. Um instante. Um sopro. Um regalo. Dádiva da vida.


Por Carlos Renato dos Santos Costa Vida A casa é simples, mista, de tijolo e madeira A sala é pintada de verde, o quarto é branco Nos fundos da casa, um pequeno avanço Ali tem um tanque, ao lado, um pé de laranjeira Em cima do balcão, tem uma caixa de remédios Dentro da primeira gaveta, tem de um tudo O mesmo pode se dizer sobre o criado-mudo Quem olha de fora até imagina que é um tédio Acordam cedo e tomam um chimarrão Ele cultiva uma pequena horta, lindas couves Ela enfeita vasos, orquídeas, belas flores Ao meio-dia, dividem amor, arroz e feijão Os filhos estão criados e se mudaram Ela reclama da saudade, ele a consola Relembram da filha a voltar da escola Dão-se abraços, sempre se amaram... foto: Lisane Wazlawovsky (interior de Venâncio Aires)


Cidades Pequenas Cidades pequenas são belas Vejam que formosura: Paço Municipal, sede da prefeitura Rua do Colégio, Rua do Hospital Praça da Igreja, Casa Episcopal O açougue, a padaria, e pequeno cemitério, com algumas sepulturas pintadas a cal... Bem pertinho, um campinho para brincar de futebol Um matinho de eucaliptos para fazer cabana Riacho limpo, como água mineral Pessoas caminhando distraídas Armazém de secos e bebidas Crianças brincando no quintal

Cidades pequenas, Onde o mundo é pequeno Onde o horizonte é horizontal Quando o sol se deita nas colinas a cidade pequena é pura poesia A fumaça sai pelas chaminés E a vida se desenrola em espiral Cidades pequenas, onde as pessoas se conhecem pelo apelido, onde o político não trama com bandido e os adolescentes vão às missas Cidade pequena, berço da morena que deixei e vivo perdido...


Por Gil Kipper


Por Mauro Ulrich

Trote Afago-lhe o pescoço com cuidado longe do alcance dos dentes. Espicha o focinho, me cheira no ar. Das crinas brotam fios finos, dourados, como se nascidos de um trigal maduro, de uma réstia de sol. Um olho longo, oblíquo, aquoso, que cobre toda a extensão do campo. O lombo macio, curvado, é um convite ao trote. Agora sou o xerife perverso da cidadezinha fantasma. Sou o meu próprio fantasma num galope à beira-mar.

Pampa Chia a chaleira fervendo sobre a chama do fogão. Rompe o silêncio da casa o seu úmido grito a vapor. Desespero feito de líquido e de fogo sem dó. Testemunho de que, enfim, não estou assim tão só.


Por Edison Botelho

Na morada do meu amor

Caminho para dentro

Na morada do meu amor Tem um jardim de azaleias E uma borboleta de cada cor Na morada do meu amor Tem uma sinfonia de poesia E um verso para cada flor Na morada do meu amor Tem um arco-íris de canções Com um amor para cada dor

Enquanto piso na areia Junto das espumas do mar Vou caminhando para dentro Encontrando o meu lugar Meu coração vive a velejar Nestes passeios lentos Ouvindo as cantigas do mar Num caminhar para dentro Onde quer que eu esteja Vivo assim a caminhar Minha alma assim veleja Tendo dentro mim o mar


Por Gil Kipper


Por Gerson Nagel Férias escolares Mil novecentos e oitenta e lá vai pedradas Nas férias escolares fazíamos longas viagens em família e para destinos tais parada breve em visita aos patrícios Na cidade onde nasci e cresci aprendi a respeitar as hortênsias de minha avó como canários e as galinhas de meu avô até pés de goiabeiras de tantas brincadeiras Embora hoje não mais tenhamos feito viagens juntos como na infância repleta de boas lembranças Por este único motivo vivo no íntimo a promessa de nunca deixá-los in memoriam

Mato e asfalto somos todos iguais braços dados ou mãos índios brancos negros pardos na via crucis uma multidão ainda somos velhas carcaças bípedes quadrúpedes no chão da escola da vida a duras penas esforços para entender a lição na terra as ossadas respiram como lastro que dá vida a folhas flores mortas caídas o que preenche a vastidão como animais no pasto dizem não à poluição


imagem pĂşblica: internet


Por muitas vezes desejei que a vida tivesse gosto de mistério; que minhas certezas, tão pouco prováveis, soçobrassem aos caprichosos devaneios que nos entregam devedores de respostas. Sei que nada nos impede de sermos açambarcados pelos pasmos dos encontros primeiros, mesmo que cansativamente acontecidos, mas temo que a explicitação absurda das cruezas humanas impossibilite as experiências e nos entregue ainda mais empobrecidos.

imagem pública: internet


Por Marli Silveira Poeta Acredito que algumas pessoas compõem com o mundo, se colocam de tal modo que parecem atender a uma espécie de destinação. É como se ouvissem um clamor próprio e habitassem o mundo em uma proximidade poética. Criam um modo de vida incapaz de provocar o que existe, encantando o tempo para que a crueza dos dias seja menos estúpida. O poeta é um encantador do tempo, sabe acolher o passado, o presente e o futuro, abertos em suas inteirezas, dispondo-se, ouvindo a voz da sua própria condição. “Encantar o tempo, é isso que devemos fazer a todo instante, laçar a vida e ir segurando no exato limite em que ela, ao ir se soltando, não nos deixe com a sensação de que não somos nada”. Quanto mais encantamos o tempo, mais contamos histórias, pois somente as contamos porque, de alguma forma, nos sobramos no tempo. É como se permanecêssemos nas pequenas coisas, por alguns instantes e pudéssemos narrar uma história sobre nós mesmos. Saber ler sem a pressa dos “alfabetizados” que devoram informações; ler como quem compreende menos a palavra e mais o dizer; demorar-se e ao esticar-se no espaço-tempo, experimentar a completude de uma vida singular. Da altura da minha percepção enviesada, desejo encantar o tempo para entregar a cada um dos outros uma história menos difícil de ser vivida. “Meus sonhos estão cá fora do mundo, lugar devido das paradas reais, os outros, heróis de carne, homens simples, príncipes eventuais...”.


Por Eduarda Bringmann

Passado Verde As mĂŁos sujas de terra buscam enterrar o seu passado, enquanto o campo revive toda a sua histĂłria Nesse ciclo de vida e morte um novo broto surge, assim como uma nova vida nasce

Por Rafael Barletta


Por Eduarda Bringmann Capital O gosto amargo na boca o acompanhava já ao acordar No sereno, calçava as suas botas e esvaía-se ao andar Mesmo com o olhar impotente não se colocava a chorar Ele enxergava o cinturão verde prestes a desabar O que eu faço para ajudar? Pensava, às vezes, ao se deitar Quando acordava, por fim, o questionamento já havia se esgueirado Nada podia fazer, aquele homem, cujo mundo obrigava a pensar apenas em angariar


Por Jorcenita Alves Vieira

Sonhos O campo dorme na sombra da noite

Desafinado Gotas de orvalho no pampa, São como lágrimas em Lá Que caem em noites escuras, Quando a maioria dorme E a solidão sofre silenciosa Ansiando por uma nota em Sol

Como acordá-lo? Como despertá-lo? Como desencantá-lo? O galo canta Ao raiar do dia A lua some O O O O O O

galo canta campo acorda galo canta campo desperta galo canta campo desencanta

Se encanta! Se espanta! Num e/terno PuLsAr E nesse canto do mundo Canto meus sonhos E agora, desperto Recomeço a sonhar


Por Sรกvio Moura


Por Paulo Louzada


Por Dilso J. dos Santos A noite abrindo as cortinas O Sol nascendo entre as tetas da colina... O branco algodoando um parto de distância azul... E o azul brotando vida, no canto do galo, e no primeiro choro, concerto bonito de soprano, na estreia da ópera da menina e do cantor. Sou casa Casa eu sou Não fico em terreno Não tenho cercado Moro onde moro Porque o lugar de morada mora comigo em meu interior. Sou casa Casa nômade, paredes soltas, janelas largas, Sou onde fico Sou onde estou. Sou casa...


Por Mรกrcio Meyer


Por Sรกvio Moura


Por Aidir Parizzi Kiev O que eu não esperava era entrar na primeira estação (Olimpyiski) e de forma imediata voltar mentalmente àquela Rússia onde vivi em 1993. O motivo não era tanto pelo visual, mas mais pelo olfato. O cheiro nas estações é exatamente o mesmo de Moscou, com doses bem reduzidas de arenque seco e vodca. Outro fator que me remeteu a Moscou foi ver meninas e mulheres, sempre bem arrumadas, aguardando na saída das estações, em praças, portas de prédios, etc. Parecem aguardar eternamente por amigos(as), namorados, maridos. No olhar há uma certa ternura, melancolia e mais que tudo, esperança. Felizmente, pouco mudou na natureza simples e humilde dos povos eslavos. As principais atrações da cidade são as belas igrejas ortodoxas. Visito a catedral de Santa Sofia, o Monastério de São Miguel e a Catedral de Santo André. Esta última fica no topo da chamada ‘Ladeira de André’, uma rua típica de pedestres e vendedores ambulantes de matrioshkas, relíquias soviéticas e arte local. Na ladeira também fica a casa de Mikhail Bulgakov, um escritor que, tanto quanto Dostoievski, me marcou durante o período que vivi em Moscou. Meu primeiro livro de Bulgakov foi Coração de Cão, um livro inesquecível, em estilo semelhante ao Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, porém com tempero puramente eslavo. Rituais, por mais que pareçam irracionais e sem sentido, nos lembram de quem somos, de onde viemos. São uma forma de nos reencontrarmos com nossos antepassados. Rituais também nos perpetuam como parte de algo maior, muito além da nossa limitada existência e de nossa infinitesimal importância humana. Individuais ou coletivos, os rituais, especialmente os religiosos, nos dão também o combustível maior de uma vida plena: Esperança. Rendermo-nos às tradições é muitas vezes nossa única opção

disponível em um mundo em acelerada transição e de difícil compreensão, que muda de forma e estrutura antes que possamos agarrá-lo e compreendê-lo. Naquela hora penso na minha família, amigos e particularmente em meus pais. Como em um ritual natural, o amor, dedicação, desapego e sacrifício que recebi e recebo deles devem ser retribuídos, porém se realizam e se estendem de forma superior quando os passamos aos filhos e àqueles que amamos. É uma das formas mais concretas de perpetuar nossa vida e fazê-la ter sentido. É quase uma contradição o fato de lutarmos para acumular bens, experiências e satisfação pessoal, e ao mesmo tempo nos darmos conta de que é na doação, no desprendimento, na dor e na alegria da família, amigos e comunidade que nos realizamos, sublimando nossa efêmera existência. Zona de exclusão de Chernobyl 26 de Abril de 1986. Em um desastrado teste de segurança do recém inaugurado − reator 4 da Usina Nuclear de Chernobyl, o engenheiro nuclear Alex Pekabov aciona o botão de parada de emergência do reator (botão AZ-5). A combinação de uma falha de projeto do feixe de barras e da imprudência da equipe da sala de controle causa o início de uma reação descontrolada, não somente na fissão nuclear do feixe de barras de urânio e grafite, mas também na estrutura ultrassecreta da União Soviética. A explosão de Chernobyl é considerada um dos principais catalisadores da transparência política (Perestroika) e econômica (Glasnost) que se iniciou no governo do secretário Mikhail Gorbachev. O desastre acabou acelerando a inevitável dissolução da União Soviética e a queda da cortina de ferro do comunismo, antes mesmo do final daquela década. A tentativa do Kremlin de acobertar os efei-


tos do maior acidente nuclear da história foi frustrada por detectores suecos, que imediatamente alertaram a comunidade mundial. Exatamente 7 anos depois do acidente, no período em que morei em Moscou, entrei pela primeira vez no Kremlin, já em uma Rússia em transição do duro regime comunista para uma eterna indefinição de democracia. Democracia que este povo eslavo jamais teve e que até hoje está longe de ser consolidada. 18 de Agosto de 2018. 32 anos depois da maior catástrofe nuclear que o mundo já viu, embarco em uma pequena van nos arredores da Estação Ferroviária Central Voksalna, em Kiev. O destino é a zona de exclusão de Chernobyl, bem próxima à fronteira com a Bielorússia. Visitas como esta não estavam autorizadas até 2011, e exigem certa burocracia e procedimentos. Após cerca de duas horas de viagem, passo por vários checkpoints onde a documentação, registros e aceitação de risco é formalizada. Próximo à entrada da zona de exclusão, visito um gigantesco radar soviético desativado. Uma secreta parede de antenas de 150 metros de altura e 750 metros de comprimento que tinha o objetivo de interceptar comunicações e lançamentos de mísseis norte-americanos, que em 40 minutos atingiriam o território da URSS. Uma interceptação bem sucedida daria aos soviéticos um aviso prévio para uma reação e possível contra-ataque. O sistema de processamento de sinais do radar Duga-1, do qual ainda resta o longo esqueleto de painéis em centenas de metros de corredores ao longo do radar, deveria processar os sinais em até 8 minutos. Restariam em torno de 32 minutos para avisar o Kremlin e detonar uma hecatombe nuclear entre as duas grandes potências da guerra fria. Em Duga-1 parece que finalmente entendi um ‘jogo etílico’ que testemunhei algumas vezes na Rússia, e que pode ter sido iniciado pelos militares de lá: o jogo dos 32 minutos. Por este curto período, uma garrafa de vodca é consumida em intervalos regulares, garantindo que se fique embriagado o mais rapidamente possível. Era esta a principal preparação para o ataque iminente. O bilionário radar nunca funcionou como previam os camara-

das do Kremlin. Foi descontaminado após o acidente em Chernobyl, e finalmente totalmente desativado em 1989. Usina de Chernobyl – Reator 4, do tipo RBMK (Reator Canalizado de Alta Potência). Gerando em média 1000 megawatts em cada um dos 4 reatores, e com um quinto reator em fase de construção, a usina nuclear de Chernobyl era um dos orgulhos da Engenharia Nuclear Soviética. Com o nome oficial de Usina Vladimir Ilyich Lenin, este orgulho tecnológico se transformou em puro embaraço naquela madrugada de Abril de 1986. A chegada na usina impressiona. Por mais que fotos e filmes da época revelem a grandeza do desastre, nada se compara a estar ao lado do imenso arco de proteção de 100 metros de altura que hoje cobre as ruínas do reator. O Novo Confinamento de Segurança, como é chamado, foi construído recentemente por uma empresa francesa, e substituiu o antigo ‘sarcófago’ de concreto que ameaçava ruir depois de 30 anos de uso. A previsão dos cientistas é que a nova proteção dure 100 anos, na esperança de que até lá se encontre uma solução para acalmar ou eliminar o gigante destruidor ali confinado. Deixando de lado as explicações e histórias do guia que me acompanhava, preferi me isolar um pouco e pensei no delicado equilíbrio entre tecnologia e progresso. Entre a necessidade energética galopante das últimas décadas, sua sustentabilidade e seguranca. Refleti também sobre as muitas vidas ali perdidas e a forma heróica que os primeiros bombeiros e soldados enfrentaram o problema que os levaria à morte certa. Um dos funcionários da usina, morto de forma quase imediata por radiação aguda, permanece no sarcófago até hoje, dada a impossibilidade de resgatar o corpo. A doutrina soviética de coletividade acima de tudo e sufocamento do ego certamente influenciaram estes kamikazes do bem, heróis que possivelmente tenham salvado milhões de vidas que teriam sido abreviadas pelo inimigo invisível ao longo de anos. No Brasil, em fevereiro de 1986, o governo lançou o chamado Plano Cruzado, com medidas tão drásticas quanto ineficientes para controlar a economia e a inflação, que chegava a mais de 70% ao mês.


As medidas de congelamento de preços geraram uma óbvia crise de abastecimento. Entre os produtos que faltavam, estava um que é considerado vital para meus conterrâneos gaúchos: carne bovina. O governo brasileiro, sob a tutela de José Sarney, encontrou uma ‘brilhante’ e barata solução: passou a importar lotes de carne da União Soviética, boa parte contaminada com a radiação de Chernobyl. Toneladas de carne a preços módicos, com o intuito de regular o mercado em crise. Eu mesmo devo ter saboreado alguns churrascos com isótopos radioativos naquela época. Trinta e dois anos depois, meu almoço durante a visita à zona de exclusão é no próprio refeitório (militar) da usina nuclear desativada, a cerca de 200 metros do fatídico reator 4. No cardápio, frango (de Chernobyl?), batatas, pão, salada e suco de maçã. Pripyat Como em um filme do estilo Blade Runner ou Black Mirror, esquadrões de ‘voluntários’ soviéticos foram enviados à cidade de Pripyat logo após a evacuação da população. Sua missão era de aniquilar qualquer ser vivo, domesticado ou selvagem. O principal alvo eram os cães e gatos que os habitantes foram obrigados a deixar em suas casas abandonadas. Estes homens faziam parte de um exército de 600 mil ‘Liquidantes’ ou Exterminadores, contratados para limpar toda a área afetada dentro do raio menor(10 km) da zona de exclusão. A natureza, de forma surpreendentemente acelerada, retoma aos poucos a cidade que tinha 49 mil pessoas. 32 anos mais tarde, temos hoje uma floresta com esqueletos de prédios entre as árvores e arbustos. Uma raposa, apelidada de Samanta, circula tranquilamente pela cidade, acostumada com a convivência com eventuais turistas como eu. Fiquei impressionado com a velocidade do crescimento de árvores de dezenas de metros de altura e da vegetacão em geral, brotando do concreto e asfalto que cobria as movimentadas praças e avenidas de Prypiat. Caminhando no absoluto silêncio das ruas e prédios abandonados, não me sinto como um turista, e sim como uma espécie de médico

legista, dissecando este cadáver de cidade. O silêncio parece amplificar o grito de crianças e a vida que outrora florescia. Alguns letreiros sobre os prédios da cidade ainda são visíveis. Um deles diz: ‘Que o átomo seja um trabalhador, não um soldado’, exaltando a aplicação pacífica da energia nuclear. Outro, na parede de uma escola local, parece ter sido uma indesejada profecia, realizada literalmente naquele 26 de Abril por isótopos de Césio, Iodo e Estrôncio: ‘Deixe o átomo entrar em sua vida’. Já no caminho de volta, passamos em alta velocidade pela Floresta Vermelha, nome dado graças à cor das árvores que ainda estão em pé, mortas pela radiação que o vento trazia naquela direção. A estrada que cruza a floresta não tem limite de velocidade. O dosímetro, detector de radiação que carrego no peito mostra por quê. Passamos ainda pela cidade de Chernobyl, que dava o nome à usina e que hoje conta com uma população de duas centenas de militares que policiam a área em turnos de 2 semanas. Nos checkpoints de saída, os equipamentos detectores de radiação certificam que não estamos levando indesejados souvenirs nos sapatos, roupas e veículos. Esta surreal área permanecerá como uma zona de exclusão, possivelmente por milhares de anos. (Parte do texto originalmente publicado na Gazeta do Sul, em 05.07.2019).

http://www.gaz.com.br/conteudos/variedades/2019/07/05/149426-santa_cruzense_ conta_como_foi_experiencia_em_tchernobil.html.php


Fotos: Arquivo Pessoal do Autor


Por Rosmeri Menzel Casarão Imponente, campo aberto, céu em amplitude... O que guardam as janelas, amplos olhos do casarão... memórias, lembranças ocultas, encerradas no coração... Vastidão de pensamentos, disformes, incrustrados nas paredes, liquefeitos pelo tempo... Guardiã do tempo, águia fiel, de outros tempos, outras auroras, outros sentidos... Vozes... preciosidades embargadas... Olhares imóveis nas telas, como a sonhar tempos novos, como a buscar outros olhos...


Foto: Flávio F. Gomes (Acervo da Família Iserhard), interior da antiga casa do Vô Hugo.


Por Gama Bell Colégio São Luís: 120 anos Imigrante Há muitos anos, levas de imigrantes Pisaram nesta terra, Santa Cruz, Provaram, com trabalhos relevantes, Que ao bem o sacrifício sempre induz. Com suor, terra humosa aqui regada Foi generosa em frutos sazonados, Porque, tenaz, a prole abençoada Viu com amor seus campos cultivados. Hoje, indústria pontilha a sede urbana De chaminés, arautos do progresso, Levando avante a fama alegremente. Parabéns, pois, heróis, é bem humana A mensagem que emana do recesso Do teu ser, operosa e digna gente.

Com único objetivo de educar Nos moldes que o Beato previu, quis, Um prolongamento, eis, de Champagnat: O querido Colégio São Luís. Nele presente a mesma, única linha Desde os idos do século passado, Na senda da modéstia, são, caminha E se vê sempre muito procurado. O que dizer dos seus cento e vinte anos? Nada mais que fiel desde a raiz, Legado que, contentes, sublinhamos. Deus te salve, colégio jubilar, Persegue a tua sina e sê feliz No escopo a que jus fazes: inovar. Santa Cruz do Sul (RS), 09/03/1991 As poesias de Gama Bell estão registradas na Biblioteca Nacional: Registro 579.037, Livro 1.106, Folha 112 www.bn.gov.br


Documento de Registro dos empregados, gentilmente cedido pelo ColĂŠgio Marista SĂŁo Luis, datado de 01.03.1988, Sta. Cruz do Sul.


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