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Relançar Mais Teatro de Cabo a Rabo [Ano III e Ano IV], é abrir novamente um livro que não termina: um livro feito de vozes, travessias, risos e silêncios. É voltar a um corpo em movimento, o corpo múltiplo do teatro baiano que, desde o interior, inventa mundos mais possíveis, de um teatro que nasce longe dos grandes centros, mas que pulsa com a mesma frequência e vitalidade, ou talvez com ainda mais urgência, nas cidades, distritos e povoados da Bahia. É reconhecer o vigor criativo do interior, onde a cena também se faz com o que se tem à mão: ruas, becos, escolas, estradas, praças, o corpo, a palavra, e acima de tudo, o desejo de estar junto em coletivo.
Ao relançar Mais Teatro de Cabo a Rabo, reafirma-se a necessidade de olhar para esse território com a atenção que merece. O interior não é o “fora” da cena, mas é nele que a teatralidade pulsa, se faz carne, que a arte e a vida voltam a se confundir. Relançar essa obra é reafirmar a importância de descentralizar o olhar e valorizar a potência criadora das cidades do interior, celebrar o teatro como modo de vida, como exercício de imaginação e de pertencimento. E é desse chão do interior, que o livro se ergue outra vez para lembrar que o teatro é sempre encontro. Encontro com o outro, com a terra, com a palavra, com o gesto, corpo contra corpo. Encontro com a própria ideia de comunidade.
Esse livro reúne anos de práticas, de espetáculos, de encontros que se deram em cidades de nomes sonoros e luminosos. Ano III [2004]: Madre de Deus, Valença, Alagoinhas, São Félix. Ano IV [2005]: Rio de Contas, Jacobina, Camaçari, Lauro de Freitas, Salvador e em tantos outros lugares onde o palco se ergue na praça, o figurino é costurado à mão, a iluminação vem do poste, e o público são os vizinhos, amigos, crianças, passantes.
Em suas páginas estão ecos de grupos que marcaram e muitos continuam a marcar o território cultural da Bahia. Ano III [2004]: Grupo Cultural Forró Tradição Chinelão, Companhia de Teatro Nata, Grupo de Teatro Dannemann. Ano IV [2005]: Os Mascarados , Arte e Vida, Os Nômades, Teatro Amador de Camaçari, Sociedade Cultural Távola, entre tantos outros igualmente pulsantes.

O teatro do interior, aqui, não é sinônimo de ausência ou carência. É presença. Modo de ser e estar. Nasce do chão, da terra, do corpo que dança e pensa, do gesto que reinventa o espaço. É um teatro que se mistura à vida, que transforma o cotidiano em fábula e improviso em linguagem. É, como dizia Peter Brook, o teatro essencial, aquele que precisa apenas de um ator, um espectador e um espaço para que o acontecimento se realize e evoca o percurso inteiro, a entrega total. E é isso que o teatro do interior da Bahia tem feito: atravessar o tempo de ponta a ponta, reinventando-se a cada geração, a cada grupo, a cada cidade que decide fazer da cena uma forma de dizer “estamos aqui”. Esse livro é testemunho de como o Teatro Vila Velha tem participado dessa travessia de artistas, que tecem com as próprias mãos as condições de sua arte, e de grupos que criam coletivamente, pesquisam, formam público, formam pessoas.
Há uma sabedoria em tudo isso. O teatro do interior nos ensina que criar é, também, rebelar-se. Que a arte não se faz apenas onde há estrutura, mas onde há vontade, desejo. Que o ensaio é tão importante quanto a estreia, e que a sala improvisada pode conter mais verdades que o palco equipado. Que o riso e o choro são matérias igualmente políticas. Em cada página, a força do fazer coletivo: companhias que se sustentam na partilha, criadores que pesquisam suas memórias, artistas que transformam o cotidiano em matéria poética, crítica e inventiva, ocupando espaços, desafiando as barreiras e transformando o que é limite em matéria de criação.
Depois daqueles primeiros momentos, houve um longo hiato de quase quinze anos, acrescido de um tempo de silêncio imposto pela pandemia de covid 19 em que, de repente, o gesto que sempre foi de encontro precisou recuar, o corpo precisou se afastar. As praças se esvaziaram, os palcos se fecharam, os ensaios foram suspensos. Mas no teatro, esse ofício da presença continuou de outra forma. O intervalo forçado revelou ainda mais o quanto o encontro é vital. Por isso, durante o período da pandemia, em 2021 e em 2022, retomamos o projeto. Retomamos o contato com os grupos que participaram das primeiras edições, conhecemos novos grupos e fizemos juntos uma Mostra Virtual do Teatro de Cabo a Rabo.
2021: As Pelejas de Zezim Siriema e Baltazar na Feira (Grupo de Teatro Mistura/Ibotirama-BA), História de Axé (Terreiro de Asé Terra de Caboclo/Rio de Contas), Dia da Mentira (Companhia de Circo Pétalas ao Vento/Salvador), Zaizá e A História do Tear

(Grupo Vira Toco/Rio de Contas), Músicas Para Amar Demais (Pipa Produções/Juazeiro), Toada Crianceira (Canastra Real: contos em cantos/Salvador), Gota D’Água (CIA. Baiana De Teatro Brasileiro/ Salvador), Revoada (Coletivo Trippé/Juazeiro), Jonas: Dentro do Grande Peixe (Coletivo Duo/Salvador), O Alento Mesmo (CircoLaSom/Vale do Capão), ASAS (O Coletivo 7/Ilhéus), “Quem Somos Nós?” (Vixe Companhia de Teatro/Salvador) e a websérie Memória do Teatro Baiano em Docudrama (Memória do Teatro da Bahia em Docudrama/Salvador) fizeram parte desse modo de fazer no qual não estávamos habituados, mas que era o possível para continuar.
2022: Ação Cênica ASAS/ As Pelejas de Zezim Siriema e Baltazar na Feira/ IntimIDADES/ Músicas Para Amar Demais/ Revoada/ Dia da Mentira/ Toada Crianceira: cancioneiro brincante da infância/ Leitura Dramatizada do texto “Quem Somos Nós?”/ Memória do Teatro da Bahia em Docudrama/ O Alento Mesmo/ Zaizá e a História do Tear.
E foi desse tempo de suspensão e de reencontro virtual que renasceu o impulso. Em 2025, retomamos o projeto Teatro de Cabo a Rabo presencialmente, com o apoio financeiro do Fundo de Cultura do Estado da Bahia, vinte anos depois, com uma mostra e uma homenagem aos 30 anos do Teatro Popular de Ilhéus, coletivo que participou do projeto em seu primeiro ano e que mantém viva a rebeldia e a reinvenção cotidiana de que o teatro se alimenta.
Que este relançamento seja, portanto, mais que uma celebração. Que seja uma reabertura de caminhos. Que inspire novas criações, novos vínculos, novos modos de estar juntos, porque o teatro que nasce do interior é, e sempre foi, um teatro que fala profundamente o que somos: um povo em movimento, em cena contínua, entre breques e arranques, mas continuando em invenção a todo vapor - de cabo a rabo.










































































































































































































































