Gabriel García Márquez foi um homem afeito a superstições e, na contramão do senso comum, via agosto como um mês de sorte. Foi, por exemplo, o mês em que ele despachou a primeira versão de Cem anos de solidão ao editor do livro. O mês também está no título de um de seus livros favoritos, que ele carregava como um talismã: Luz em agosto, de Faulkner. No seu livro póstumo, Em agosto nos vemos, é o mês que a protagonista escolhe para uma visita anual à ilha onde sua mãe está enterrada.
Neste agosto de 2025, você recebe uma narrativa menos conhecida, mas fundamental, do autor que ganhou o Nobel de Literatura em 1982. Do amor e outros demônios é o livro favorito de Socorro Acioli, a curadora desta caixinha — que fez história no clube em 2023 com uma das obras mais amadas dos taggers, Oração para desaparecer.
A escritora cearense foi aluna de Gabo durante uma oficina de escrita em Cuba, em 2006, e é um dos nomes que trazem com originalidade e força as marcas do realismo mágico para a literatura brasileira contemporânea. O diálogo entre Socorro e Gabo nos lembra que o Brasil é um país latino-americano em sua geografia, em sua formação colonial, racial e religiosa e em sua história política, embora muitas vezes essa identidade possa parecer distante.
Boa leitura!
Experiência do mês
Para inspirar o olhar e as ideias antes, durante e após a leitura
Por que ler este livro
Bons motivos para você abrir as primeiras páginas e não parar mais
A autoria / O livro
Um retrato de quem está por trás dessa história e caminhos para navegar pelo livro do mês
A curadoria
Conheça Socorro Acioli, a escritora brasileira que escolheu o livro que você vai ler
Dois dedos de prosa
De onde veio, do que fala, o que é o livro que você vai ler
Da mesma estante
Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês
Universo do livro
Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês
Leia. Conheça. Descubra.
Um espaço todo seu, para aproximar e celebrar a maior comunidade leitora do Brasil 04 06 08 14 20 22 24 26 29
Silvina Ocampo, o surrealismo e a consolidação da literatura fantástica latino-americana
Espaço da comunidade
Experiência do mês
Seu livro além do livro: para ouvir, guardar, expandir, crescer
Mimo
Há dois itens básicos que não se pode deixar para trás ao sair de casa: as chaves, para abrir as portas materiais, e um bom livro, para abrir todas as outras: da imaginação, da criatividade, das realidades distantes, dos mistérios e emoções que levamos dentro. O mimo do mês foi feito para lembrar você, todos os dias, de levar junto aonde for essas poderosas chaves para uma existência mais plena — os livros.
Projeto gráfico
A “maré de cobre” da cabeleira de uma menina foi a imagem que permaneceu na mente brilhante de Gabriel García Márquez desde que era um menino ouvindo as lendas contadas por sua avó, e que voltou com toda a força ins pirando a criação da protagonista deste livro. Nada mais natural do que essa inspiração se estender para o nosso projeto gráfico, que traz também outros elementos desta história e da tradição do realismo mágico na capa da desig ner Leticia Quintilhano.
Dizem que a gente nunca acaba de ler um clássico, mesmo depois de virar a última página. Aqui na TAG, essa leitura além do livro continua no nosso podcast, que tem sempre um bate-papo exclusivo para você ampliar a experiência do mês.
Considerando que esta é uma história ambientada na América Latina, você pode imaginar a qualidade musical da playlist que a gente preparou para embalar sua leitura, né?
Visite o app para saber mais sobre o livro e participar da comunidade.
“A solidão de García Márquez é habitada, povoada por personagens inesquecíveis, por paisagens exuberantes, por sonhos e fantasias. É uma solidão que nos convida a contemplar o infinito, a mergulhar nas profundezas de nossa própria alma, a encontrar significado na aparente ausência de sentido.”
Le Monde Diplomatique Brasil
“Do amor e outros demônios foi uma leitura muito prazerosa, daquelas que eu não queria largar. Em menos de 200 páginas e se valendo do seu característico realismo mágico, o autor consegue construir uma narrativa intensa e que deixa marcas. Uma escrita econômica, mas bastante rica e impactante.”
Pedro Pacífico (@bookster)
Por que ler este livro
Uma pequena, surpreendente e impactante joia do mestre do realismo mágico latino-americano. Ambientado na Colômbia colonial, Do amor e outros demônios entrelaça lendas e acontecimentos reais em uma narrativa encantadora que convoca nossa reflexão crítica sobre questões como a escravidão, as relações familiares, o colonialismo cristão, o racismo religioso e a moralidade de uma época. O livro indicado por Socorro Acioli é a porta de entrada perfeita para novos leitores de Gabo e também uma oportunidade de conhecer mais a fundo sua prolífica e monumental obra literária.
Gabriel García Márquez e as fronteiras difusas entre o real e o fantástico
Do jornalismo à literatura, o colombiano desafia classificações simplistas do realismo mágico, oferecendo aos leitores uma prosa que transborda encantamento, mas também crítica social, construindo um retrato poderoso e multifacetado da América Latina
Tem autores que acompanham nossa travessia pela vida de um jeito tão especial que conquistam com suas histórias um lugar próximo ao de um amigo ou familiar. Alguns deles alcançam esse lugar com gerações de pessoas, em diferentes países e continentes, presentes no silêncio da intimidade humana e no alarido das transformações da sociedade. Ninguém haverá de discordar que Gabriel García Márquez é um desses autores.
Nascido em Aracataca, em 1927, Gabo transitou entre duas linguagens bem diferentes para simbolizar a realidade: o jornalismo e a literatura. Mas, para esse inquieto, crítico e imaginativo escritor colombiano, as esferas do real e do fantástico não estavam tão distantes assim. Conhecido como uma das maiores referências do realismo mágico latino-americano, ele iniciou sua carreira no jornalismo ainda jovem, antes mesmo de se consagrar como escritor. Trabalhou como repórter, cronista e editor em veículos como o jornal colombiano El Espectador, onde havia publicado seu primeiro conto em 1947, e a agência de notícias cubana Prensa Latina, fundada por Fidel Castro, em que atuou como correspondente internacional em Nova York.
O estilo narrativo que marcaria suas obras literárias já estava presente em seus textos jornalísticos. Uma das histórias que circula sobre o García Márquez repórter é de que certa vez ele teria viajado até uma cidade colombiana para cobrir uma manifestação e, ao encontrar as ruas calmas e desertas, convocou ele mesmo um protesto para não voltar à redação de mãos vazias. Gabo via o jornalismo como uma escola fundamental para o escritor e dizia que era “a melhor profissão do mundo”.
“Nós somos de uma sobrevivência mágica. Porque, se a gente for ver a história do nosso continente, é absolutamente impossível nós termos sobrevivido, e sobrevivemos. Nós somos povos
solitários, massacrados, e sobrevivemos.”
Nepomuceno, principal tradutor de García Márquez no Brasil
García Márquez morou em vários países. Trabalhou como correspondente na Europa, viveu em Paris nos anos 1950, passou temporadas no México e em Cuba, e depois se estabeleceu entre Barcelona, Cartagena e Cidade do México. Essa mobilidade influenciou seu olhar crítico e cosmopolita sobre a realidade latino-americana, além de fortalecer seus vínculos com movimentos políticos e intelectuais que se espalhavam entre a Europa e a América Latina.
Em 1955, publicou seu primeiro romance, A revoada (O enterro do diabo). Em 1961, veio Ninguém escreve ao coronel, e no ano seguinte, O veneno da madrugada (A má hora). Em 1967, lançou o romance pelo qual seria lembrado além de sua vida, Cem anos de solidão, um clássico inesquecível que levou a atmosfera de sua infância em Aracataca para a Macondo ficcional, dialogando com leitores do mundo inteiro. Na época, a América Latina passava por intensas transformações sociopolíticas, enfrentando regimes autoritários e as imposições culturais herdadas da Europa e do passado colonialista. Quinze anos mais tarde, Gabriel García Márquez foi consagrado com o Nobel de Literatura, marcando para sempre seu lugar entre os gigantes da literatura mundial.
Mas as falas do autor sempre recusaram apreensões simplistas sobre esse tal de realismo mágico. “É só realismo. A realidade é que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho imaginação”, chegou a afirmar. Embora possamos discordar de que falte imaginação a Gabo, a declaração é precisa ao sublinhar o fundamental caráter político de sua obra. O que o autor faz é materializar o absurdo e a brutalidade do real em uma linguagem inventiva e impactante, incorporando a diversidade das cosmologias que convivem na vastidão da América Latina.
A rigidez da separação entre jornalismo e literatura é a mesma que afasta fato e ficção, realidade e fantasia, é a mesma que suprime o encantamento do olhar sobre a vida e nos endurece e fragiliza diante da brutalidade do real. Na dimensão que chamamos de real, não há mesmo lugar para o insólito, o absurdo, para aquilo que escapa à lógica? Em algum momento da história, a realidade objetiva de fato bastou para explicar a profundidade da experiência de existir?
A prosa de Gabo é inconfundível e viciante, pois nos conecta com passagens da história da América Latina e com o universal da experiência humana sem desviar de temas duros, usando uma linguagem de tamanha força simbólica que recai como um sopro de ar fresco, que nos impulsiona a atravessar o trágico com graça e lirismo. Reflete de algum modo o milagre existencial latino-americano e tudo o que resiste neste território, contrariando todas as tentativas de apagamento. Segundo Eric Nepomuceno, tradutor responsável pelas edições brasileiras de mais de uma dezena de romances de García Márquez, a grande magia da América Latina não está na literatura. “Nós somos de uma sobrevivência mágica. Porque, se a gente for ver a história do nosso continente, é absolutamente impossível nós termos sobrevivido, e sobrevivemos. Nós somos povos solitários, massacrados, e sobrevivemos.”
DO AMOR E OUTROS DEMÔNIOS
A infância em Aracataca e a convivência com os avós maternos são inspirações declaradas dos cenários, personagens e enredos de Gabo. Em entrevista à revista New Left Review em 1983, ele comentou a conexão entre o conteúdo político de seus livros e as histórias do avô: “Em vez de me contar contos de fadas quando eu era jovem, ele me contava histórias horríveis da última guerra civil que os pensadores livres e anticlericais travaram contra o governo conservador. Meu avô também me contou sobre o massacre dos trabalhadores da banana que ocorreu em Aracataca no ano em que nasci. Então você vê que minha família me influenciou mais para a rebelião do que para a manutenção da ordem estabelecida”. Por outro lado, ao escrever, a grande referência narrativa de Gabo era sua avó, de quem ouvia histórias contadas com incomparável graça e alguma cara de pau.
A trama que o autor desenvolve em Do amor e outros demônios começou a ser narrada justamente pela avó de García Márquez. Segundo ela, existiu uma marquesinha no Caribe que tinha longuíssimos cabelos ruivos, era venerada por seus milagres e teria morrido de raiva depois de ser mordida por um cachorro. Como o autor relata no começo do livro, em 1949 ele fez uma incursão como repórter durante a abertura de uma cripta no antigo convento de Santa Clara, em Cartagena. Na ocasião, presenciou a retirada de uma ossada cujo crânio ostentava uma volumosa e comprida cabeleira cor de cobre. Seria a menina das lendas de sua avó?
No livro, Sierva María de Todos Los Ángeles é a filha única de um marquês na cidade portuária de Cartagena das Índias, por onde fluía o comércio de negros escravizados e onde se concentrava parte da elite colonial do país. Negligenciada pelos pais e criada no pátio da casa dos escravizados, a menina cresce identificada com as tradições culturais e religiosas de matriz africana, aprende iorubá antes mesmo de aprender espanhol e leva no pescoço as guias do candomblé. No começo da história, ela é mordida por um “cachorro cinzento com uma estrela na testa” e a suspeita de que tenha contraído raiva leva seu pai, induzido por um bispo, a interná-la em um convento para ser submetida ao exorcismo — já que a raiva era então considerada uma possessão demoníaca.
As tensões simbólicas e raciais entre o catolicismo europeu e o que é chamado pela elite branca de “feitiçarias dos negros” constituem o grande impasse que se estende pelo arco narrativo da obra.
Publicado em 1994, Do amor e outros demônios é uma síntese madura das principais obsessões temáticas e estéticas de Gabriel García Márquez. O romance refina o olhar crítico sobre as instituições — Igreja, medicina, poder — e aprofunda sua reflexão sobre as paixões, a morte e a loucura, temas centrais também em obras como Cem anos de solidão e O amor nos tempos do cólera. O realismo mágico da narrativa fica a cargo da ambientação — que circula entre uma casa-grande, uma senzala e um convento com ares manicomiais em uma encantadora paisagem à beira-mar, numa atmosfera de fanatismo religioso com ameaças sórdidas da Santa Inquisição.
Atenção: este parágrafo contém spoilers. Se a discriminação racista às religiões de matriz africana é objeto de reflexão crítica de forma mais explícita na narrativa, há um incômodo incontornável que os leitores precisam assimilar com certa autonomia: o enredo romântico do livro envolve dois personagens com uma perturbadora diferença de idade. Sierva María é uma menina de apenas 12 anos, enquanto o padre Cayetano Delaura é um homem de 36 anos. Quem já se aventurou um pouco pela obra de García Márquez sabe que este está longe de ser o primeiro livro do autor que descreve situações como essa.
Em Cem anos de solidão, por exemplo, as relações incestuosas estão na origem da família, com a união de José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que são primos. Mais adiante na narrativa, um dos filhos do casal, Aureliano, pede a mão de Remedios, uma menina que ainda brinca de boneca, em casamento. Em entrevista concedida à Folha de S. Paulo, os diretores da adaptação audiovisual do clássico de Gabo comentaram a opção de não suprimir da narrativa esses pontos de controvérsia. “Seria letal olhar a obra sob o prisma da correção política. O livro fala de relações quase que de uma tragédia grega, de símbolos trágicos da repetição. Tirar esses elementos seria tirar o coração da obra”, declarou a diretora Laura Mora ao jornal.
“Cresci ouvindo sobre milagres, aparições e situações sem explicação.”
Em entrevista à TAG, Socorro Acioli comentou sobre sua relação com a obra escolhida para enviar aos associados, relembrou a experiência como autora do clube em 2023 e falou sobre a experiência de ter sido aluna de Gabriel García Márquez em uma oficina de escrita há quase 20 anos
Em maio, Socorro Acioli visitou o escritório da TAG em Porto Alegre. Carismática, irreverente e comunicativa, ela contou uma porção de boas histórias e respondeu pessoalmente às perguntas cuidadosamente preparadas para a entrevista que deveria figurar nestas páginas. Enquanto eu a escutava com atenção, deixei o celular gravando nossa conversa, mas fui traída pela tecnologia, descobrindo mais tarde que o microfone não tinha captado um decibel sequer. Da conversa, o único registro que ficou foi a foto ao lado. Nos próximos parágrafos, procuro destrinchar o que guardei na minha humilde memória humana, costurando com declarações diretas da autora em entrevistas concedidas em outras ocasiões.
Há muitas coincidências que conectam o projeto literário da curadora do mês a Gabriel García Márquez. Mas talvez o fundamental seja que os dois escrevem sinceramente a partir dos lugares de onde vêm, de um jeito que alcança pessoas que vêm de muitos outros lugares e que sentem ali algo intangível e profundo que conversa com sua própria realidade. Para a escritora cearense, o Nordeste brasileiro, assim como outros cantos da América Latina, é um lugar de milagres, de uma intimidade muito forte com os santos e com o simbólico. Segundo ela, isso tem a ver com a necessidade de fé que a pobreza impõe, mas também se relaciona à capacidade de conectar-se com o mistério e o encantamento. E é isso que está no âmago do apreço que nutre por Do amor e outros demônios, seu livro do coração. “Eu sou romântica, eu tenho fé, e este para mim é de longe o melhor livro do Gabo”, diz.
Para ela, o autor explora de forma muito contundente neste livro os impasses da religiosidade na América Latina e a tentativa de apagamento das religiões de matriz africana e indígena, através da forma como Sierva María experimenta os impactos dessas religiões em seu corpo, assim como a violência de uma doutrina católica imposta. Socorro também relembra, encantada, a imagem inesquecível do cachorro com uma estrela na testa, que abre a narrativa. No desenvolvimento da história, o cão que dispara a sequência de acontecimentos do enredo acumulará camadas e mais camadas de significado.
Assim como Do amor e outros demônios, os dois romances de Socorro Acioli encontraram inspiração em fatos tão insólitos quanto verdadeiros. O mote de A cabeça do santo surgiu a partir de uma notícia de jornal. No livro, um homem encontra abrigo na imensa cabeça oca de uma escultura inacabada de Santo Antônio e, lá dentro, escuta as preces de amor das mulheres que oram para o santo. Já Oração para desaparecer foi inspirado em uma igreja em Almofala que passou 45 anos soterrada nas dunas e que posteriormente a autora descobriu ser um território Tremembé. “Foi da descoberta dos Tremembés e da religiosidade deles que veio todo o resto”, declarou Acioli em entrevista publicada na revista da TAG em 2023.
A autora atribui esse gosto pelo enlace entre fantasia e realidade ao jornalismo, profissão em que se formou. “A gente aprende a apurar, entrevistar, ouvir, elaborar o que escutou, e que tudo tem três, quatro versões. Acho que não preciso inventar nada, a realidade já me dá material suficiente, mas eu ficcionalizo muito a partir disso”, explica.
A curadora do mês
Nome:
Socorro Acioli
Nascimento:
1975, Fortaleza, Ceará
Profissão:
Jornalista, professora e escritora
Duas ou três coisas sobre ela:
1 AUTORA E CURADORA DA TAG
Em 2023, os associados do clube receberam em primeira mão o segundo romance de Socorro Acioli, Oração para desaparecer. A obra conquistou uma das notas mais altas da nossa história e consolidou uma parceria ainda mais próxima com a autora, que já tinha sido curadora em 2021, quando indicou o livro Aprender a falar com as plantas, de Marta Orriols.
2 OFICINA
COM GABO
Socorro Acioli foi
aluna de Gabriel García Márquez durante uma semana em 2006, na última edição da oficina de roteiro Como contar um conto, que o colombiano ministrou por duas décadas na Escuela Internacional de Cine y Televisión, em Cuba. Na ocasião, ela apresentou ao autor o argumento de A cabeça do santo e foi enfaticamente incentivada por ele a persistir na escrita.
3 NOVO LIVRO
A escritora cearense está trabalhando em um novo livro e gosta de buscar cenários especiais para se concentrar na escrita em meio a uma agenda movimentada de eventos literários. Uma dessas incursões criativas envolveu uma hospedagem de três dias no apartamento onde Guimarães Rosa viveu, morreu e escreveu Grande sertão: veredas, no Rio de Janeiro.
Socorro também contou sobre a incrível experiência de ter sido aluna de Gabriel García Márquez em uma oficina de escrita de roteiro em Cuba, em 2006, que descreve como algo próximo de um sonho, um delírio. Em uma turma de nove jovens roteiristas em que era a única pessoa do meio literário, ela conviveu com o escritor colombiano durante uma semana. O argumento de A cabeça do santo foi sua porta de entrada para o curso. “Quando eu contei a história da cabeça, ele ficou me fazendo perguntas: ‘Mas o homem existe, a cabeça você inventou?’ E eu dizia: ‘Não, o personagem eu inventei, a cabeça existe’. Ele mesmo ficou um tempo tentando entender onde estava a invenção.”
Ela foi embora com um incentivo declarado de seu ídolo literário, que reforçou que ela não desistisse de escrever, pois seria um caminho difícil. Essa bênção luxuosa ressoaria em seu íntimo nos sete anos seguintes em que passou trabalhando no livro. Mas, segundo ela, o maior ganho da oficina foi voltar para casa com um sentimento inédito de pertencimento à identidade latino-americana. “Eu fui fazer o curso motivada pela figura dele, mas, quando cheguei lá, o que aconteceu de mais forte foi me reconhecer latino-americana. Não sei como fazer para recuperar essa conexão perdida entre o Brasil e a América Latina, mas a literatura é um dos caminhos para essa aproximação”, declarou em evento virtual realizado pela TAG em 2020.
Antes de se alçar ao nível de repercussão que ganhou com Oração para desaparecer, Socorro já tinha mais de 20 livros publicados, a maioria deles direcionados às crianças. Nesse percurso, ganhou um Jabuti de Literatura Infantil com o livro Ela tem olhos de céu. Quando se voltou para o público adulto, a autora conta que o aspecto inventivo de suas tramas a desconcertava em muitos momentos. Às vésperas de publicar Oração para desaparecer, quase desistiu, pensando que “a história era muito louca” e que não faria sentido para os leitores. Para benefício de todos nós, ela foi convencida por sua agente a persistir no plano. Quando a TAG enviou o livro em primeira mão aos associados, em setembro de 2023, a autora acompanhava com ansiedade os comentários dos taggers no aplicativo. A cada elogio emocionado à história (e foram muitos!), ela ficava mais incrédula. Demorou para se convencer de que sua narrativa tinha mesmo conquistado o público. Agora, quem acompanha com ansiedade os passos de Socorro somos nós, aguardando com expectativa o lançamento de um novo romance da autora.
Cartagena das Índias
O cenário do livro do mês é a cidade que encantou Gabo aos 21 anos e onde ele viveu entre 1948 e 1949, quando largou a faculdade de Direito e passou a se dedicar ao jornalismo e à escrita
“Me bastou dar um passo dentro da muralha para vê-la em toda a sua grandeza, à luz das seis da tarde, e não pude reprimir o sentimento de ter voltado a nascer.”
- Gabriel García Márquez, em Viver para contar, sobre sua primeira visita a Cartagena
Caminhar por uma antiga cidade colonial tem uma forte aura mágica, que flerta com o impossível de estar nas esquinas de uma época distante e, ao mesmo tempo, fundante dos contrastes sociais, econômicos e raciais que estruturam, ainda hoje, a nossa sociedade. Talvez fosse um sentimento parecido com esse o que tomou Gabriel García Márquez ao percorrer pela primeira vez as ruas de Cartagena das Índias, aos 21 anos. A cidade é uma presença evidente, embora nem sempre declarada, em alguns livros do autor, como O amor nos tempos do cólera e O general em seu labirinto. Em última instância, pode ser entendida como a síntese da atmosfera que caracteriza seu realismo mágico e o conjunto de sua obra: esse encontro entre o passado de dor do colonialismo na América Latina e o encantamento que esse território produz na gente.
Fundada em 1533 e localizada na costa caribenha da Colômbia, Cartagena foi um dos portos mais importantes do continente durante o período colonial. Suas muralhas com canhões apontados para o Mar do Caribe foram construídas no final do século 18 para proteger a cidade dos ataques de piratas, e ainda hoje cercam o centro histórico. A cidade antiga é Patrimônio Mundial da UNESCO e constitui um dos conjuntos urbanos coloniais mais bem preservados das Américas.
O CONVENTO DE SANTA CLARA
O principal cenário de Do amor e outros demônios é o monastério onde Sierva María de Todos Los Ángeles é internada por seu pai. Teria sido lá que, em 1949, o jornalista Gabriel García Márquez testemunhou o esvaziamento das criptas funerárias e a retirada de uma ossada com longos cabelos cor de cobre, inspirando a criação da personagem, como ele relata no prólogo do livro. Embora não haja confirmação de que essa história tenha realmente acontecido na data indicada por ele, o convento existe e foi transformado em um hotel cinco-estrelas na década de 90.
Construído dentro da cidade amuralhada como convento em 1621, o local abrigou a Ordem das Clarissas por cerca de 240 anos. Depois, a imponente construção ganhou outros usos: foi hospital de caridade, prisão, faculdade de medicina e escola de belas-artes. Depois de alguns anos passando por processos de restauração, foi inaugurada como hotel em 1995. A cripta referida por Gabo, descoberta durante escavações no local, foi preservada e se tornou atração turística.
Nos anos 90, Gabriel García Márquez construiu uma casa na cidade, que também virou parada obrigatória dos turistas fãs do autor. Com muros altos, vista para o mar e um espaçoso pátio interno, a construção fica quase em frente ao convento e foi projetada pelo arquiteto Rogelio Salmona.
Da mesma estante
Livros que poderiam ser guardados na mesma prateleira do livro do mês, para quem quiser continuar no assunto
HORROR LATINO-AMERICANO
Tramas contemporâneas que fisgam os leitores e mostram que a história do nosso continente é permeada, em diferentes sentidos, pelo sobrenatural
VOLADORAS,
Mónica Ojeda
Autêntica
Contemporânea, 136 pp.
Tradução de Silvia
Massimini Felix
Uma coletânea de contos situados nos Andes equatorianos, habitados pelo mundano da amizade, da vizinhança e da família, mas também por criaturas que escalam telhados de casas e voam, terremotos apocalípticos, desejos inconfessáveis e segredos familiares.
AS
COISAS QUE PERDEMOS NO FOGO,
Mariana Enriquez
Intrínseca, 188 pp.
Tradução de José Geraldo Couto
Doze histórias onde personagens e lugares aparentemente comuns revelam um universo sombrio, e o horror ilumina as violências e feridas sociais da Argentina contemporânea, movimentando questões como feminicídio, saúde mental e autoritarismo.
TEMPORADA DE FURACÕES,
Fernanda Melchor
Mundaréu, 216 pp.
Tradução de Antonio Xerxenesky
Em uma cidadezinha mexicana, o corpo de uma mulher considerada bruxa é encontrado boiando no rio. Nesse mosaico macabro, descobrimos os terrores de um lugar dominado por pobreza, superstições, misoginia e violências de todo tipo.
COLONIALISMO, IGREJA E PODER
Livros que recuperam a memória e tradições ancestrais brasileiras, apagadas violentamente pela colonização europeia
CAMINHANDO COM OS MORTOS, Micheliny Verunschk Companhia das Letras, 144 pp.
No interior do Brasil, um crime chocante motivado por razões religiosas dispara uma narrativa inovadora e assustadoramente atual, que mergulha na história de colonização das Américas e demonstra como o ódio às mulheres e às minorias atravessa os séculos.
TENDA DOS MILAGRES, Jorge Amado Companhia das Letras, 320 pp.
Um painel poderoso do racismo científico e da marginalização das religiões afro-brasileiras na Bahia do século 20, construído em uma narrativa que celebra o candomblé, seus ritos e símbolos, e denuncia o apagamento cultural operado pelas elites brancas e instituições religiosas.
FOGO NO MATO: A CIÊNCIA ENCANTADA DAS MACUMBAS, Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino Mórula, 124 pp.
Nesse conjunto de ensaios, os autores propõem uma interpretação do Brasil a partir do conhecimento acumulado na macumba e em outros saberes populares, em um resgate fundamental dos aprendizados do terreiro, dos tambores, da mata, dos sertões e das encruzilhadas.
Universo do livro
Livros, séries, filmes que orbitam o livro do mês
EM
CEM ANOS DE SOLIDÃO
série da Netflix que leva as gerações da família Buendía e a mítica Macondo para o audiovisual, em adaptação de Laura Mora Ortega e Alex García López.
AGOSTO NOS VEMOS
livro póstumo de Gabriel García Márquez, publicado em 2024 por seus filhos, contrariando o desejo do autor de que a narrativa fosse destruída.
GABO: A CRIAÇÃO DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
documentário do britânico Justin Webster que recupera os passos da trajetória do escritor colombiano, entrelaçando sua vida e sua obra.
LUZ EM AGOSTO
livro de William Faulkner que foi fundamental na formação literária de Gabo, descrito por ele como “o mais fiel dos meus demônios tutelares”.
A DANÇA DA REALIDADE
filme autobiográfico de Alejandro Jodorowsky, que retrata com riqueza simbólica e traços surrealistas a infância do diretor em uma pequena cidade litorânea no Chile.
VIVER PARA CONTAR
autobiografia de Gabriel García Márquez, em que ele recupera memórias de infância e juventude que se tornaram matéria-prima de sua obra literária.
DUAS SOLIDÕES: UM DIÁLOGO
SOBRE O ROMANCE NA
AMÉRICA LATINA
livro que registra uma conversa entre García Márquez e seu então amigo e interlocutor literário Mario Vargas Llosa, com quem romperia dramaticamente alguns anos mais tarde.
LEIA. CONHEÇA. DESCUBRA: Silvina Ocampo
Com uma proposta estética muito inovadora para o seu tempo, a escritora argentina inaugurou uma aproximação com o surrealismo em suas narrativas e, junto com Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, consolidou o que hoje conhecemos como literatura fantástica
Nome
Silvina Inocencia Ocampo
Nascimento
Buenos Aires, 28 de julho de 1903
Morte
Buenos Aires, 14 de dezembro de 1993
Considerada uma das escritoras mais importantes da literatura argentina, Silvina Ocampo nunca fez questão de aparecer e, em parte por isso, sua obra é bem menos conhecida do que seria justo.
A caçula de seis irmãos em uma família aristocrática de proprietários de terras na Argentina, ela cresceu em uma mansão isolada e foi educada em casa, sem frequentar a escola. Aprendeu francês, inglês e italiano, e demorou para desenvolver bem o espanhol, idioma que mais tarde dominaria com impressionante intimidade. Nesse universo de privilégios, se interessava pelo que era subalterno e recusava as obrigações convencionais das mulheres da elite.
Estudou artes plásticas em Paris com o pintor italiano Giorgio de Chirico e, na volta dessa viagem, tomou a decisão de dedicar-se exclusivamente à literatura. Sua irmã, Victoria Ocampo, foi uma poderosa mulher da vida pública e fundou a revista literária Sur, uma das mais prestigiadas da Argentina. Nesse entorno, Silvina conheceu Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, com quem se casou em 1940.
Sua estreia literária ocorreu em 1937 com o livro de contos Viaje olvidado, marcado por um olhar muito inovador naquela época — sobre os fluxos borrados de uma memória retorcida, sobretudo com cenas perturbadoras da infância.
A escrita de Silvina se distingue pela abordagem inquietante do cotidiano, pelo humor sombrio e pela sensibilidade poética. Sua vasta obra inclui contos, poemas e peças teatrais, muitos publicados postumamente.
PARA COMEÇAR
ANTOLOGIA DA LITERATURA FANTÁSTICA
Antes de mergulhar na obra propriamente dita da autora, delicie-se com essa coletânea clássica dos autores preferidos de Silvina Ocampo e de Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges.
Quem é esta aí?, pensei, e era eu.
OBRA-PRIMA
A FÚRIA
O primeiro volume de histórias da autora publicado no Brasil é considerado “o mais ocampiano” de seus livros, em que ela encontra sua voz e inaugura um universo monstruoso, insólito, perturbador e fascinante.
PARA SE APAIXONAR DE VEZ
AS CONVIDADAS
Em algumas dezenas de contos que refletem uma fase já madura da autora, ela investiga os enigmas da infância, a monotonia das relações familiares e outras de suas deliciosas obsessões temáticas.
Espaço da comunidade
Cara Madame TAG,
Há alguns anos, com a ajuda das caixinhas da TAG, me propus o desafio de me tornar um leitor mais assíduo. Hoje posso dizer que consegui! Agora que estou mais “em forma”, me sinto pronto para embarcar em um clássico, algo que sempre tive um pouco de medo de fazer e acabar me desestimulando. Você pode me indicar obras clássicas acessíveis, que me motivem a percorrer essa jornada?
Obrigado!
Ah, o medo dos clássicos… um clássico, se você me permite a redundância. Adentrar o universo das grandes obras da história da literatura pode intimidar, mas acredite: nem todo clássico é um calhamaço difícil de digerir. Aliás, são obras que pertencem a essa categoria justamente por ter o poder de dialogar com questões fundamentais da alma humana e, nesse sentido, elas têm tudo para ganhar seu coração.
Além do livro do mês da TAG Curadoria, que é uma pedida sem erro, deixo aqui outras dicas para você aproveitar sua boa forma literária e começar sem demora essa aventura apaixonante pelos clássicos. Na literatura nacional, sugiro dois: Vidas secas, de Graciliano Ramos, é uma narrativa curta e acessível, mas ao mesmo tempo forte, profunda e dolorosamente atual. Dê uma chance também para Dom Casmurro , do mestre Machado de Assis, e entre de vez para o eterno debate sobre a traição (ou não) de Capitu. Para citar mais um curto e infalível, aposte em A metamorfose, a célebre história kafkiana do homem que amanhece num dia qualquer transmutado em um inseto asqueroso. E, se estiver no clima de um suspense filosófico, Frankenstein é mais acessível (e existencial) do que parece.
Bom proveito, caro leitor!
As capas de livro frequentemente são verdadeiras obras de arte, não é mesmo?
Recortando a página ao lado, você pode transformar este projeto gráfico em um item exclusivo, seja como elemento decorativo ou colecionável. O verso também é especial, com uma linda citação do autor para complementar a imagem.
Agora é só soltar a criatividade! E, se compartilhar nas redes, não se esqueça de nos marcar no @taglivros — adoramos ver as ideias de vocês ganhando vida.
Nenhum louco é louco para quem aceita as razões dele.
“Apaixonar-se é criar uma religião cujo deus é falível.”