Stanford Social Innovation Review Brasil #12

Page 1


Transferência de programas para aumentar o impacto l Apoio a micro e pequenas empresas na América Latina l Filantropia reparatória pela democracia

Como financiar a restauração florestal produtiva

POR ISABEL APEL BRITEZ, MARCELO PERETI E VALMIR ORTEGA

JUNHO 2025 / VOLUME 3, NÚMERO 12

sumário

28 Como financiar a florestalrestauraçãoprodutiva

A restauração produtiva de milhões de hectares no Brasil exige mais do que tecnologia: demanda inovação na forma de financiar e estruturar projetos. A experiência da Belterra e de outras organizações de impacto mostra que é possível superar barreiras de risco, prazo e escala para transformar o uso sustentável da terra em um setor robusto e replicável PUBLICADA

38

Quando a comunidade cresce junta

POR SETH D. KAPLAN

Para dar certo, a transformação de comunidades marginalizadas precisa levar em conta as características do lugar, ter a participação ativa da população local e abrir caminhos inovadores para recursos externos. Bonton Farms, nos Estados Unidos, é um exemplo desse tipo de iniciativa

48

Transferência de programas para ampliar o impacto social

POR MICHELLE SHUMATE, LINDSAY KIJEWSKI, KATE PIATT-ECKERT E CHRISTINE THOMPSON

Embora quase sempre deflagrada por crises institucionais, a transferência de programas de uma organização para outra não representa um fracasso – e pode ser uma oportunidade para que todos os envolvidos atinjam suas metas

57 Aliança em novo ciclo

CAPA
Ilustração de Catarina Bessell
POR DANIELA SCHMID

A filantropia reparatória não diz respeito apenas a expiar culpas do passado, mas agir ativamente para desmontar sistemas e estruturas que perpetuam desigualdades. – DE “FILANTROPIA REPARATÓRIA PARA PROTEGER A DEMOCRACIA”, P. 62

SEÇÕES

CARTA AO LEITOR

4 Florescer

SSIR ONLINE

5 Dados em prol do meio ambiente / Parcerias estratégicas para ONGs e IA / Inovação que vem do Sul / Uma alternativa às soluções universais / Continuidade, apesar do encerramento / Comunidades em ação / Mulheres na filantropia

O QUE HÁ DE NOVO

6 Construção do futuro / Ajuda humanitária antecipatória / IA brasileira acelera conservação ambiental / Tecnologia, dados e comunidade para enfrentar desafios

HISTÓRIAS DO CAMPO

11 Resgate de almas perdidas

A Shraddha Rehabilitation Foundation resgata pessoas em situação de rua na Índia para tratar suas doenças mentais

POR PUJA CHANGOIWALA

13 Mais apoio ao jornalismo sem fins lucrativos Uma aliança de pequenos veículos jornalísticos sem fins lucrativos nos EUA quer tornar o financiamento de mídias mais equitativo para salvar o setor de notícias

POR KYLE COWARD

ESTUDO DE CASO

18 Transformação contínua para apoiar

MPMEs na América Latina

Há 40 anos, a Fundes foi criada no Panamá para atender pequenas empresas na região. A organização teve de se reinventar muitas vezes para sobreviver, mas continua a apoiar o desenvolvimento econômico e social latino-americano

POR TINA C. AMBOS, ALEXANDER ZIMMERMANN E

SEBASTIAN H. FUCHS

COBERTURA ESPECIAL

58 Coragem para escutar e agir Debates no 13o Congresso Gife propõem abordagens para que a filantropia tenha uma atuação mais justa, duradoura e conectada aos territórios

POR CAROLINA DE ASSIS

PONTO DE VISTA

60 Fundações devem investir mais em funcionários

Críticos das práticas de concessão de recursos devem apoiar a contratação de mais profissionais para aprimorar a prestação de contas, o retorno sobre o investimento e a igualdade de oportunidades

POR KYLE A. SMITH E BOB FISCHER

62 Filantropia reparatória para proteger a democracia Com coragem para enfrentar seu passado e redistribuir poder, a filantropia brasileira pode liderar uma transformação global na forma de doar e fortalecer a democracia a partir da justiça social

POR EDGAR VILLANUEVA

PESQUISA

64 Como um sindicato desafia a polarização / O legado dos heróis invisíveis da reciclagem / Quem protege a floresta? / O custo ESG do ativismo acionário

LIVROS

69 Ver o mundo pelas lentes de gênero Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista, de Regina Madalozzo

RESENHA DE ALINE GATTO BOUERI

ÚLTIMO OLHAR

72 Cacau com propósito

P.
P.
P. 8
inovação social

Carta ao leitor Florescer

O SUMÁRIO DESTA 12ª EDIÇÃO DA Stanford Social Innovation Review Brasil, percebi dois grandes fios condutores: restaurar e reparar

O primeiro está em destaque na capa: “Como financiar a restauração florestal produtiva” (p. 28), artigo original brasileiro escrito por Isabel Apel Britez, Marcelo Pereti e Valmir Ortega e lindamente ilustrado por Catarina Bessell. A partir da experiência da Belterra e de outras iniciativas, os autores mostram como essa alternativa pode enfrentar a crise climática, gerar renda e recuperar ecossistemas degradados, e os desafios para garantir escala e sustentabilidade a esse setor.

Mais do que plantar árvores, a restauração exige articulação entre saberes diversos, criação de mecanismos financeiros de longo prazo e ruptura com modelos que causaram a destruição. É um processo que demanda paciência, dedicação consistente e inovação enraizada no território.

Já o segundo fio aparece no artigo “Filantropia reparatória para proteger a democracia” (p. 62), de Edgar Villanueva, em diálogo com nossa cobertura do 13º Congresso Gife (p. 58). Villanueva nos lembra que há feridas históricas abertas – como o racismo e a profunda desigualdade de renda e riqueza – que não se resolvem com boas intenções ou doações pontuais. Ele propõe uma filantropia que, de forma consciente, devolva poder e autonomia a comunidades marginalizadas e historicamente exploradas. Não é um gesto simbólico, mas uma postura política e prática, fundada no entendimento de que não há justiça sem redistribuição.

Restaurar e reparar são ações que exigem humildade e compromisso. Elas se opõem à lógica da inovação “disruptiva” e apressada, muitas vezes desconectada das realidades que afirma querer transformar. Um campo de inovação social verdadeiramente comprometido com a mudança deve cuidar do que foi rompido antes de propor o novo.

E quando o solo é restaurado, as feridas são tratadas e o ambiente se torna propício à vida em todas as suas formas, tudo e todos florescemos.

Buscamos mostrar, a cada edição da SSIR Brasil, como o país pode ser referência em soluções que aliam justiça, regeneração e inovação. Mas esse florescimento só será possível se formos capazes de encarar o que foi perdido, negligenciado ou destruído e nos comprometermos com o trabalho profundo de restaurar e reparar.

Nesta edição, temos ainda outros artigos originais: Catarina B. Zanon narra como dois adolescentes criaram uma tecnologia para ajudar a ONG Onçafari a monitorar a fauna do Pantanal (p. 8); Eliane Trindade apresenta três finalistas do Prêmio Empreendedor Social 2024 que usam dados e mobilização comunitária para influenciar políticas públicas e combater desigualdades (p. 9); Daniela Schmid compartilha os aprendizados da transferência da Aliança pelo Impacto, do ICE para a Din4mo Lab (p. 57) – em diálogo com o artigo traduzido “Transferência de programas para ampliar o impacto social” (p. 48); e Aline Gatto Boueri resenha Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista, de Regina Madalozzo, que nos convoca a ver o mundo pelas lentes de gênero (p. 69).

Quer dividir conosco sua experiência ou reflexão sobre o campo da inovação social? Escreva para mim: carolina.assis@ssir.com.br.

Boa leitura!

– CAROLINA DE ASSIS

ssir.com.br publicação trimestral volume 3 I número 12 I junho 2025

Diretora-geral Carolina Martinez carolina@ssir.com.br

Editora-chefe Carolina de Assis carolina.assis@ssir.com.br

Editora-assistente Daniela Schmid

Programador Web Guto Lopes

Estagiária Bárbara Lopes da Silva Mídias sociais Rafael Dias

Diretora de projetos Christine Salomão especiais

Colaboraram nesta edição: Arte Simone Oliveira Vieira

Tradução Ada Felix, Camilo Adorno, Frank de Oliveira, Ramon Vitral Revisão Carmen Garcez

Conselho Editorial

Daniela Pinheiro

Eliane Trindade

Gabriel Cardoso

Graciela Selaimen

Graziella Comini

Kamila Camilo

Luciano Cerqueira

Marcos Paulo Lucca Silveira

Richard Sippli

Mantenedores Institucionais

Fundação José Luiz Setúbal

Instituto Sabin

Movimento Bem Maior

Samambaia Filantropias

Apoio Institucional

Instituto Beja

CIVI-CO | Negócios de Impacto Social R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 Pinheiros, São Paulo – SP, 05415-030

Quer falar com a SSIR Brasil?

Redação: contato@ssir.com.br

Projetos especiais, publicidade, eventos: marketing@ssir.com.br

Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review

Editor-chefe David V. Johnson (interino)

Editora acadêmica Johanna Mair

Editores Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride, Bryan Maygers, David V. Johnson, Marcie Bianco

Editora global Jenifer Morgan

Conselho Consultivo Acadêmico

Paola Perez-Aleman, Universidade McGill

Josh Cohen, Universidade Stanford

Alnoor Ebrahim, Universidade Tufts

Marshall Ganz, Universidade Harvard

Chip Heath, Universidade Stanford

Andrew Hoffman, Universidade de Michigan

Dean Karlan, Universidade Yale

Anita McGahan, Universidade de Toronto

Lynn Meskell, Universidade Stanford

Len Ortolano, Universidade Stanford

Francie Ostrower, Universidade do Texas

Anne Claire Pache, Essec Business School

Woody Powell, Universidade Stanford

Rob Reich, Universidade Stanford

A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada

pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Universidade Stanford.

Todos os direitos reservados.

CONTEÚDO EXCLUSIVO DO SITE SSIR.COM.BR facebook.com/ssirbrasil

linkedin.com/company/ssirbrasil

@stanford.ssir.br

DADOS EM PROL DO MEIO AMBIENTE

ARTIGO | Dados abertos fortalecem comunidades na defesa ambiental Comunidades estão usando dados abertos e ferramentas tecnológicas para defender o meio ambiente. Na África Oriental, por exemplo, ativistas empregaram o Fossil Fuel Atlas para mapear os impactos ambientais de um oleoduto, evidenciando ameaças ao lago Vitória e a áreas protegidas, o que fortaleceu a oposição ao projeto. O artigo de Mitchelle De Leon, da SkyTruth, discute esse e outros exemplos sobre o uso de tecnologias para transferir poder a comunidades impactadas por danos ambientais em busca de condições mais justas.

PARCERIAS ESTRATÉGICAS PARA ONGS E IA

ARTIGO | Como parcerias podem ajudar ONGs a trabalhar com IA Organizações sem fins lucrativos devem buscar colaborações além do setor de tecnologia para implementar soluções baseadas em inteligência artificial (IA) de forma ética e eficaz. Parcerias multissetoriais (com artistas e acadêmicos, por exemplo) podem atender às necessidades comunitárias, evitando vieses e garantindo acessibilidade. O artigo de Michelle Flores Vryn e Meena Das, cofundadoras do IA Equity Project, reflete sobre como a tecnologia pode fortalecer o setor sem fins lucrativos, priorizando o bem-estar humano e a autonomia comunitária.

INOVAÇÃO QUE VEM DO SUL

ARTIGO | Empresas para todos: novos modelos de propriedade no Sul Global O sistema econômico global atual tem falhado em criar uma sociedade habitável para todos, na medida em que privilegia os interesses de investidores externos e, assim, perpetua desigualdades sociais. Modelos de Empresas de Propriedade Alter-

SSIRonline

nativa (AOE, na sigla em inglês) surgem como uma solução, redistribuindo direitos econômicos para trabalhadores e produtores, o que promove uma distribuição mais justa da riqueza. Harvey Koh e Laura Amaya, da Dalberg, discutem experiências no Sudeste Asiático, na África e na América Latina que já utilizam esses modelos.

UMA ALTERNATIVA ÀS SOLUÇÕES UNIVERSAIS

ARTIGO | As limitações do investimento em soluções universais

O capital de impacto tende a ser investido de duas formas principais: soluções universais que buscam replicabilidade em larga escala e soluções altamente contextualizadas em realidades específicas. Dominic Hofstetter, diretor-executivo da TransCap Initiative, sugere uma alternativa a esses modelos por meio do investimento sistêmico que atue nos níveis macro, médio e micro das intervenções. O segredo está em pensar nas soluções como um quebra-cabeças no qual algumas peças podem ser adaptadas conforme os contextos em que são aplicadas.

CONTINUIDADE, APESAR DO ENCERRAMENTO

ARTIGO | Como preservar ativos digitais antes do fechamento de ONGs Em tempos de desafios financeiros e operacionais, muitas organizações podem ser forçadas a encerrar suas atividades. Nesse contexto, é importante que líderes e financiadores adotem medidas para garantir que os ativos digitais (como dados, documentos e aplicativos) sejam devidamente preservados. A perda desses ativos não apenas representa um desperdício de recursos, mas também impede que outras organizações aprendam com as experiências anteriores. Jim Fruchterman e Steve Francis, da Tech Matters, apresentam alternativas para a preservação dos ativos

por meio de ferramentas gratuitas como o Internet Archive e o GitHub.

COMUNIDADES EM AÇÃO

ARTIGO | A próxima geração do mutualismo Espaços mutualistas (como cooperativas de trabalhadores, hortas comunitárias e projetos de cohousing) proporcionam um sentimento de humanidade e pertencimento que contrasta com as experiências impessoais do consumo moderno. Sara Horowitz discute as características e os exemplos de mutualismo, além de orientar sobre o início, financiamento e crescimento das iniciativas.

MULHERES NA FILANTROPIA

ARTIGO | O futuro da filantropia é feminino Heather McLeod Grant e Jessica Robinson Love discutem a crescente influência das mulheres na filantropia – como doadoras e como líderes no setor. Dados e pesquisas do Women’s Philanthropy Institute (WPI) da Universidade de Indiana mostram que as mulheres doam de maneira diferente em comparação com os homens, realizando doações mais abrangentes, com viés de gênero, e sendo mais participativas nos projetos. À medida que acumulam mais riqueza e poder de decisão, as mulheres moldam a filantropia com valores centrados em equidade, justiça social e impacto comunitário.

EM NÚMEROS

US$ 34 trilhões

é o valor de ativos investíveis que estará nas mãos de mulheres até 2030 nos Estados Unidos –cerca de 38% do total, segundo a empresa de consultoria estratégica McKinsey

O QUE HÁ DE NOVO

Novas abordagens para a mudança social

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Construção do futuro

Sediada em Chicago, a HIRE360 conecta trabalhadores de grupos sub-representados na construção civil a oportunidades no setor

POR KYLE COWARD

Empregos na construção civil, especialmente aqueles com benefícios sindicais, têm sido há muito tempo uma porta de entrada para a classe média nos Estados Unidos. No entanto, práticas excludentes impedem o acesso de muitas minorias raciais e mulheres a essas oportunidades. Em uma análise publicada em 2022 sobre o legado do racismo em redutos sindicais, o jornal The Philadelphia Inquirer afirmou que a discriminação trabalhista, “disfarçada de solidariedade sindical, sempre fez parte das profissões técnicas”. E um relatório de 2023 da Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego dos EUA afirmou que a discriminação “em seleções, em programas de aprendizagem e na contratação bloqueia o acesso a carreiras bem remuneradas, enquanto o tratamento desigual [...] dificulta o avanço e expulsa muitas mulheres e trabalhadores negros da indústria”.

Fundada em 2020, a organização sem fins lucrativos HIRE360, com sede em Chicago, tem como objetivo diversificar a construção civil – que movimenta cerca de US$ 2 trilhões por ano – por meio da capacitação de pessoas de grupos sub-representados no setor para atuarem nessas profissões. A organização também trabalha com empresas pertencentes a minorias e mulheres, ajudando-as a ampliar seu conhecimento e acesso a oportunidades de contratos. “Colo-

Aprendizes da HIRE360 em treinamento sobre infraestrutura de carregamento de veículos elétricos para estações de ônibus da Autoridade de Trânsito de Chicago

camos todos à mesa: ajudamos empreiteiros diversos a crescer e apoiamos candidatos para que ingressem em programas de aprendizagem”, diz Jay Rowell, diretorexecutivo da HIRE360.

As origens da HIRE360 remontam a 2017, quando um grupo de empresários locais, representantes trabalhistas e outros líderes da construção civil realizavam reuniões regulares para discutir a falta de diversidade racial e de gênero na indústria.

A organização é atualmente composta por um conselho de oito pessoas e mais de 50 parceiros, incluindo corporações como Bally’s e Verizon, o Obama Presidential Center, e sindicatos e empreiteiros locais. Pessoas interessadas em seguir carreira na construção civil e que vivem no estado de Illinois podem iniciar o processo com a HIRE360 preenchendo um formulário no site da organização. Após participarem de uma orientação oferecida pela HIRE360, os candidatos realizam um teste inicial para avaliação de seu interesse em trabalhar na área. Aqueles que obtêm um bom desempenho são então convidados a fazer um teste de aptidão complementar. Os selecionados passam, em seguida, por cerca de 150 horas de treinamento remunerado com uma empresa parceira, envolvendo matemática, raciocínio espacial e conhecimentos específicos da construção civil. Criado no bairro predominantemente mexicano-americano de Little Village, em Chicago, Nicholas Gamino, de 24 anos, nunca tinha pensado em trabalhar na construção civil. “Quando eu estava no ensino médio, ninguém nunca falou sobre as profissões da área”, diz ele, que escolheu, inicialmente, ir para a faculdade. No entanto, após sua mãe ter sido diagnosticada com câncer, Gamino precisou encontrar uma forma de ajudar a família. Quando a mãe lhe falou sobre a HIRE360, logo após sua fundação, o rapaz entrou em contato com um representante da organização. Foi aceito no projeto e agora cursa um programa de aprendizado de cinco anos em engenharia elétrica. “Gosto de trabalhar com as mãos, ver como as coisas funcionam e compreendê-las”, diz.

Empreiteiros também são direcionados a um formulário online que avalia suas necessidades. Em seguida, a organização convida representantes selecionados para discutir os objetivos do negócio e elabora um plano personalizado para cada empresa. A HIRE360 oferece assistência financeira por meio de um fundo de empréstimos, com a cobrança de uma taxa de juros anual entre 5% e 6%.

Até o momento, a organização já concedeu mais de 90 empréstimos.

A Simply E&C, uma empresa familiar de assistência em eletricidade localizada no oeste de Chicago, é parceira comercial do HIRE360 e já realizou cerca de 40 projetos elétricos desde sua fundação, em 2021. Calvin Payne, o diretor de operações, credita ao HIRE360 o apoio para garantir linhas de crédito bancário, além de fornecer recursos financeiros para a empresa, que foram usados como garantia para os projetos. “Os resultados foram mais financiamentos e mais relacionamentos”, diz Payne. “Com a formação, aprendemos a enxergar os negócios e os clientes de uma forma diferente.”

A HIRE360 tem sido financiada por meio de subsídios e doações, que em 2024 incluíram mais de US$ 9 milhões do estado de Illinois, além de uma contribuição de US$ 3 milhões da filantropa MacKenzie Scott. “Não sou uma pessoa muito emotiva, mas comecei a chorar quando recebi a ligação”, conta Rowell sobre o telefonema-surpresa de um representante de Scott informando sobre a doação. A HIRE360 usou os recursos para concluir seu novo centro de treinamento de 3,7 mil metros quadrados, inaugurado em setembro passado em Bronzeville, bairro ao sul de Chicago cuja população, em sua maioria, é negra.

Olhando para o futuro, Rowell imagina a HIRE360 como uma peça-chave para ajudar o setor da construção civil a manter uma força de trabalho bem abastecida, já que, estima-se, 41% dos profissionais atuais se aposentarão até 2031. Ele também acredita que a missão da organização é especialmente importante para preservar a diversidade, a equidade e a inclusão em um momento no qual esses esforços estão sendo desmantelados no país. “Todos devem ter oportunidades nessa área”, afirma Rowell. O

KYLE COWARD é redator e profissional da comunicação baseado em Chicago. Já escreveu para Chicago Tribune, The Atlantic e Reuters, entre outras publicações.

DIREITOS HUMANOS

Ajuda humanitária antecipatória

A Mercy Corps usa dados de satélite e IA para enviar ajuda às pessoas antes de desastres naturais POR ANDREW MAMBONDIYANI

Desastres naturais têm se tornado mais frequentes nas últimas décadas, e muitos especialistas afirmam que essas catástrofes estão relacionadas às mudanças climáticas. Muitas comunidades, especialmente em países de baixa e média renda, encontram-se despreparadas para enfrentar esses eventos, o que tem provocado enormes perdas de vidas, meios de sustento e propriedades. Após a seca causada pelo El Niño em 2024 no sul da África – a pior em mais de 40 anos –, comunidades aguardaram semanas e até meses por ajuda de seus governos e agências de assistência. Para pessoas em áreas remotas, a ajuda nunca chegou. Como resultado da seca, países da região estão lutando para arrecadar os bilhões de dólares necessários para alimentar milhões de pessoas à beira da fome.

Com o propósito de reduzir atrasos na ajuda emergencial, a Mercy Corps Ventures – um braço da ONG Mercy Corps – iniciou um programa-piloto em 2023 que enviou ajuda em dinheiro às pessoas antes da ocorrência de um desastre natural. A tecnologia que facilita esse trabalho depende de dados de satélite de alta precisão, análises preditivas e serviços bancários móveis para identificar pessoas que possam ser afetadas por um desastre natural e alocar ajuda financeira para elas.

“Com o uso de dados de satélite e inteligência artificial, as organizações podem prever desastres naturais com maior precisão e garantir que a ajuda chegue às populações vulneráveis com antecedência”, diz Gebremedhin Gebremeskel Haile, professor assistente de ciências da terra e ambientais na Wesleyan University. “Pagamentos via serviços bancários móveis, em particular, são uma tábua de salvação para as comunidades afetadas, permitindo que adquiram suprimentos essenciais, mantenham a segurança alimentar e atenuem os piores impactos das crises.”

Quase 300 milhões de pessoas ao redor do mundo precisam de assistência humanitária, e mais de US$ 223 bilhões foram doados em 2023. No entanto, de acordo com a ONG internacional Start Network, 99% dessa ajuda é fornecida após a ocorrência de desastres naturais, o que dificulta sua distribuição para as pessoas afetadas. Pesquisas da ONU mostram que a ação antecipatória – antes que desastres aconteçam – é sete vezes mais econômica do que a ajuda humanitária tradicional.

“A ação antecipatória capacita os beneficiários a planejar e reduzir os impactos das emergências, em vez de esperar pela ajuda e pelo apoio à reconstrução após o desastre”, diz Scott Onder, diretor de investimentos da Mercy Corps Ventures. Ao oferecer suporte financeiro incondicional, a Mercy Corps respeita as necessidades do beneficiário, proporcionando dignidade na escolha de como usar os recursos. Nos últimos dois anos, a Mercy Corps testou ações antecipatórias na Guatemala e no Quênia, com uma terceira iniciativa no Nepal concluída no início deste ano. No Quênia, a Mercy Corps Ventures fez parceria com empresas locais de finanças e tecnologia para implementar o projeto. Primeiro, compararam dados de satélite para avaliar o estado da vegetação na região e prever a ocorrência de seca. Uma vez feita a previsão, contratos inteligentes – que automatizam o processo de distribuição dos fundos, incluindo a confirmação das taxas de câmbio, validação dos beneficiários e envio de notificações por SMS – acionaram pagamentos automáticos por meio de stablecoins (uma moeda digital) e sistemas de pagamento em criptomoeda, transferindo os recursos em moeda local para comunidades quenianas. Haile alerta que há limitações a ser consideradas, uma vez que “o acesso a redes móveis e serviços financeiros ainda não é universal na África”. Áreas remotas podem ter dificuldades em se beneficiar dessas tecnologias devido à conectividade fraca, falta de dispositivos móveis ou alfabetização digital inadequada. Apesar disso, a Mercy Corps Ventures acredita que pode expandir os testes e otimizar ainda mais as transferências em dinheiro às pessoas afetadas por desastres naturais por meio de análises climáticas aprimoradas, IA e dados de sensoriamento remoto fornecidos por satélites. Em 2025, a iniciativa será expandida para o nordeste africano, alcançando pessoas em Quênia, Sudão do Sul e Somália. O

ANDREW MAMBONDIYANI é jornalista residente no Zimbábue e escreve sobre mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e meio ambiente.

IA brasileira acelera conservação ambiental

Plataforma desenvolvida por adolescentes ajuda ONG a monitorar a fauna e otimizar recursos

POR CATARINA B. ZANON

Em 2022, durante um safári no Pantanal, os adolescentes João e Felipe Barbosa ouviram algo que os intrigou: biólogos da ONG de conservação ambiental Onçafari passavam mais da metade do mês diante do computador, analisando vídeos gravados por armadilhas fotográficas. A rotina, burocrática e repetitiva, contrastava com o trabalho em campo que os irmãos esperavam encontrar.

Essas armadilhas fotográficas são câmeras com sensores de movimento programadas para registrar vídeos de 30 segundos. Atualmente, há cerca de 350 câmeras espalhadas pelas 17 bases da Onçafari, do Pantanal à Amazônia, em uma área de influência de 2 milhões de hectares. Capturando imagens de onças, lobos-guará, antas e outros animais, as câmeras são uma ferramenta fundamental no trabalho de conservação e ecoturismo da ONG, auxiliando a produção de conhecimento científico sobre o comportamento da fauna.

Cada cartão de memória pode conter de 250 a mil vídeos e é trocado a cada 15 dias. Mas para cada onça registrada, há dezenas de vídeos de outros animais, ou apenas mato balançando ao vento. Era preciso assistir a horas de material para descobrir se uma das onças monitoradas pela Onçafari havia passado por determinada área.

João e Felipe, que na época tinham 14 e 16 anos respectivamente, se ofereceram para criar uma solução com inteligência artificial que automatizasse a leitura desses vídeos. O ChatGPT, ferramenta que popularizou a IA generativa, só seria lançado meses depois, em novembro de 2022. Não havia ferramentas prontas capazes de analisar e classificar imagens em movimento. Era preciso desenvolver um modelo próprio do zero.

Na mesma época, o então executivo do Google Rafael Souza também visitou a Onçafari e enxergou uma série de oportunidades para tornar mais eficiente a atuação da organização com o uso de tecnologia. O fundador da ONG, Mario Haberfeld, resolveu formar um time

Onças-pintadas são as grandes estrelas dos safáris promovidos pela Onçafari no Pantanal

de voluntários e convidou Souza para ser mentor dos adolescentes. Ele aceitou com a condição de não escrever nenhuma linha de código – pelas regras do Google, o direito autoral de códigos escritos por seus colaboradores pertence à empresa.

João e Felipe passaram noites acordados assistindo a tutoriais sobre redes neurais e IA de imagem no YouTube, tentando aprender como criar um modelo capaz de ensinar a máquina a ler os vídeos e distinguir animais, pessoas e veículos. Usando o TensorFlow, biblioteca de código aberto, deram início ao projeto. A Onçafari disponibilizou apenas 500 vídeos para o treinamento da ferramenta, o que exigiu criatividade dos irmãos: inverteram imagens, trocaram cores, manipularam formatos e transformaram o material em um banco com 8 mil amostras.

Com essa base, conseguiram treinar um protótipo que alcançou 86% de acerto na identificação dos animais. O resultado surpreendeu, mas ainda não era suficiente para substituir a triagem manual. A ONG então liberou 200 mil vídeos. O volume, no entanto, superava a capacidade dos computadores caseiros: “Eu começava a rodar os vídeos e literalmente saía fumaça do computador. A tela ficava azul, preta, rosa”, lembra João.

Com a mentoria de Souza, o sistema de processamento migrou para a nuvem do Google. À medida que novas tecnologias de IA, como o ChatGPT e o Gemini, foram sendo lançadas, a ferramenta de leitura desenhada para a Onçafari passou a incorporar essas capacidades, com linguagem de programação customizada para identificar animais da fauna brasileira.

Souza apresentou aos irmãos a metodologia do Design Sprint, usada para encontrar soluções rápidas em cocriação com o cliente. Com isso, eles voltaram ao Pantanal, conduziram um workshop com a equipe local e perceberam que só o modelo de classificação não bastava. A tecnologia bruta de reconhecimento evoluiu para um software adaptado às necessidades da ONG: um aplicativo que permite ler o conteúdo dos vídeos e também gerenciar câmeras, baterias e cartões de memória. “Eles [funcionários da Onçafari] faziam tudo no papel. Agora não apenas podem organizar o conteúdo, mas também fazer buscas e produzir relatórios”, diz Souza, hoje líder de tecnologia de dados & IA para a América Latina na Alvarez & Marsal.

MEIO AMBIENTE
João e Felipe Barbosa com a equipe da Onçafari na base Caiman, no Mato Grosso do Sul

A plataforma já está em uso na base Caiman, no Mato Grosso do Sul, sede principal da Onçafari, com 97 câmeras em campo distribuídas por 53 mil hectares. A automação da triagem liberou os biólogos de cerca de 500 horas mensais diante da tela. “A IA não se distrai, não pisca, não erra por cansaço. O tempo que antes era gasto pelos biólogos em frente à tela agora pode ser usado em campo”, diz João.

“Muita gente que vem nos visitar é picada pelo ‘mosquitinho pantaneiro’”, diz Lilian Elaine Rampim, bióloga e coordenadora de operações da base Caiman. “As pessoas ficam encantadas e querem se envolver de alguma forma. Mas era uma loucura imaginar que aqueles meninos em idade escolar iriam resolver um dos nossos maiores desafios. A gente achava que o sistema ia errar, não ia entender, e não iria fazer o trabalho tão bem quanto os humanos.”

A ONG busca parceiros para expandir a ferramenta para outras bases do projeto. O custo é significativo, especialmente pela demanda por capacidade de processamento em nuvem. Além da expansão territorial, João e Souza já trabalham em uma nova solução de IA: um sistema para detecção e controle dos incêndios que ameaçam o Pantanal. O

CATARINA B. ZANON é estudante da faculdade Sciences Po, na França, e tem interesse em atuar com políticas públicas.

ENGAJAMENTO CÍVICO

Tecnologia, dados e comunidade para enfrentar desafios

Iniciativas inovadoras usam dados e mobilização comunitária para influenciar políticas públicas e reduzir desigualdades

POR ELIANE TRINDADE

Três iniciativas brasileiras lideradas por jovens e reconhecidas pelo Prêmio Empreendedor Social 2024 demonstram o potencial transformador do uso da tecnologia e de dados, somado ao engajamento comunitário, como ferramentas eficientes para enfrentar desafios socioambientais do Brasil.

Finalistas na categoria “Soluções que Inspiram”, Fiquem Sabendo, Revolusolar e Super Nina são exemplos de inovação que começam a promover transformações em áreas como engajamento cívico-cidadão para fortalecimento da democracia, acesso a energia limpa e combate à pobreza energética em comunidades vulneráveis e prevenção da violência contra mulheres no transporte urbano.

TRANSPARÊNCIA PÚBLICA COMO

BASE PARA DIREITOS

A Fiquem Sabendo personifica a importância da transparência e do acesso à informação como ferramentas de controle social e combate à corrupção. Utilizando a Lei de Acesso à Informação (LAI) como principal instrumento, a organização empodera cidadãos, jornalistas e órgãos da sociedade civil para investigar e fiscalizar a gestão pública. Ao fornecer treinamentos, ferramentas e uma plataforma online para apoiar o uso da LAI, a Fiquem Sabendo democratiza o acesso a dados que antes eram inacessíveis, permitindo o acompanhamento de gastos públicos e a identificação de irregularidades.

Maria Vitória Ramos e Bruno Morassutti, cofundadores da Fiquem Sabendo, receberam o Prêmio

Transparência e Fiscalização

Pública na Câmara dos Deputados em 2022

“A lei de acesso e a transparência são ferramentas básicas para a garantia de todos os outros direitos sociais. Nenhuma pessoa ou organização será capaz de suprir todas as necessidades da população, além do Estado. Então a gente faz com que essa máquina entregue o que tem que entregar à sociedade”, diz Maria Vitória Ramos, de 27 anos, cofundadora e diretora-executiva da Fiquem Sabendo. Um exemplo do trabalho da organização é o levantamento histórico sobre pensões pagas aos militares. Em junho de 2021, após sucessivas cobranças à Controladoria-Geral da União e duas denúncias da Fiquem Sabendo acatadas pelo Tribunal de Contas da União, o governo federal finalmente liberou os dados sobre pensões pagas a parentes de militares: cerca de R$ 19 bilhões só em 2020. Os gastos bilionários com filhas e viúvas de militares estamparam manchetes nos principais jornais e portais de notícias do Brasil. A partir da abertura da caixa-preta, foi possível cancelar pagamentos indevidos e pagos em duplicidade. “Por cem anos, o governo gastou bilhões sem saber como gastava”, diz Ramos.

Além de economia para os cofres públicos, a organização também computa vitórias importantes no campo do advocacy, com influência direta em 21 projetos de lei – 19 em tramitação e dois que já se tornaram leis após serem aprovados e sancionados pelo presidente Lula.

ENERGIA SOLAR COMO

TECNOLOGIA SOCIAL

No campo da sustentabilidade e da inclusão social, a Revolusolar, com sua origem no Morro da Babilônia, na cidade do Rio de Janeiro, apresenta um modelo engenhoso de cooperativa de energia solar comunitária. Ao levar energia limpa e acessível para comunidades vulneráveis, a iniciativa reduz custos para os moradores associados e fomenta a autonomia e a geração de renda.

A metodologia da organização prevê a instalação de sistemas fotovoltaicos e a capacitação de instaladores, com uma gestão par-

ticipativa e envolvimento de lideranças comunitárias, uma forma de garantir longevidade aos dez projetos já implantados ao redor do país. Essa tecnologia social tem ganhado escala e vem sendo aplicada em diferentes contextos e geografias, como em empreendimentos de habitação popular do Minha Casa, Minha Vida ou numa aldeia indígena no Amazonas.

“Na região amazônica, um milhão de pessoas não têm acesso à eletricidade. Nos grandes centros, a rede elétrica chega com qualidade muito pior nas comunidades e nas periferias, onde apagões são constantes. E o preço é impraticável”, diz Eduardo Ávila, de 28 anos, diretor-executivo da Revolusolar. Pesquisas mostram que mais de 40% dos brasileiros gastam mais da metade do orçamento familiar com energia, em um cenário no qual gastar mais de 6% já é considerado pobreza energética.

“Cerca de 90% dos cooperados gastam o que economizam na conta de luz com alimentação. Quando se combate a pobreza energética, combate-se também a fome”, diz ele.

DADOS CONTRA ASSÉDIO NO TRANSPORTE

Já a plataforma Super Nina surge em resposta à invisibilidade da violência de gênero no contexto do deslocamento urbano, um problema crítico nas grandes cidades brasileiras. Trata-se

de uma ferramenta de impacto direto nas mãos das mulheres, permitindo denúncias de importunação sexual em tempo real.

Dinei Medina, Adalberto Almeida e Eduardo Ávila, cofundadores da Revolusolar, conversam na favela da Babilônia, no Rio de Janeiro, em agosto de 2024

Quando chega uma denúncia, o sistema Nina alerta as autoridades e as equipes de videomonitoramento, que podem resgatar imagens do incidente. A vítima recebe o registro da denúncia e orientações para suporte psicossocial e jurídico. Para além do encaminhamento dos casos denunciados, os dados coletados pelo sistema subsidiam ações preventivas.

A solução inovadora da startup se conecta a diversos aplicativos de mobilidade, como Google Maps, além de possibilitar o acionamento via WhatsApp. Essa integração estratégica facilita o acesso à plataforma no momento da ocorrência, permitindo que as vítimas relatem o assédio de forma ágil e segura.

Simony César nasceu em Recife (PE), é filha de excobradora de ônibus e trabalhou em rodoviária, onde viu que denúncias de importunação sexual não eram levadas a sério

A relevância da plataforma se expande para a esfera da gestão pública através da coleta e da análise de dados. Com base nas informações geradas pelas usuárias, a Super Nina desenvolveu um sensor de cidade inteligente focado na segurança no transporte público.

“Minha mãe, meu avô e meu bisavô foram cobradores de ônibus. A mobilidade sempre esteve dentro da minha casa, mas na perspectiva de trabalhadores, não de tomadores de decisão. A gente tem que colocar o usuário no centro da discussão. Não adianta colocar gestor público, que não anda de ônibus, ou mil especialistas brancos e ricos formados nas melhores universidades, para definir o que é melhor. É muito discrepante quem usa, quem paga e quem planeja”, diz Simony Moura, de 31 anos, fundadora da Super Nina. “O que a gente tenta fazer com o governo é hackear o sistema, dar prioridade para o trânsito dessa mulher.”

A eficácia dessa abordagem se concretizou em parceria com a prefeitura de Fortaleza. Usando os dados fornecidos pela plataforma, a gestão municipal implementou políticas públicas direcionadas, como a flexibilização da parada noturna, a instalação estratégica de câmeras e iluminação em pontos de ônibus e o treinamento especializado de agentes de mobilidade e segurança. A plataforma já melhorou a experiência de deslocamento para mais de um milhão de usuárias na capital cearense, contribuindo para tornar a cidade mais acessível e, principalmente, mais segura para as mulheres. Além disso, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) reconheceu o software da Super Nina como referência em seu Manual de Inovações Urbanas Inteligentes, o que sublinha a relevância e o potencial de replicabilidade da iniciativa em outras cidades do Brasil e do mundo. O

PARCERIA INSTITUCIONAL

ELIANE TRINDADE é editora do Prêmio Empreendedor Social, parceria entre Folha de S.Paulo e Fundação Schwab.

HISTÓRIAS DO CAMPO

Perfis de projetos inovadores

Resgate de almas perdidas

A Shraddha Rehabilitation Foundation resgata pessoas em situação de rua na Índia para tratar suas doenças mentais e reintegrá-las às famílias

POR PUJA CHANGOIWALA

Em 1989, assistentes sociais encontraram Gangadhar Vinode nas ruas de Mumbai. Com as roupas esfarrapadas, o adolescente parecia desnutrido e estava com a perna quebrada. Os profissionais levaram o jovem de 18 anos para um abrigo no subúrbio de Mumbai e, logo depois, um psiquiatra visitante, Bharat Vatwani, transferiu-o para seu centro de recuperação, a Shraddha Rehabilitation Foundation. O rapaz come-

çou a se recuperar após iniciar um tratamento para esquizofrenia. À medida que os detalhes de sua identidade surgiam, Vatwani levou-o para a cidade de Pune, no oeste da Índia, e reuniu-o com sua família – três meses após seu desaparecimento.

“Eu estava voltando para casa de um acampamento em Kolhapur [a 228 quilômetros de Pune], mas não desci do ônibus e acabei nas ruas de Mumbai”, lembra Vinode, agora um incorporador imobiliário de 52 anos. “Quando me encontraram, eu não sabia onde estava, como fraturei minha perna nem como sobrevivi nas ruas. Ainda não sei o que aconteceu comigo naquele ônibus.”

Vinode é um dos mais de 10 mil moradores de rua com alguma doença mental na Índia que, graças à Shraddha Rehabilitation Foundation, foram resgatados, tratados e reconectados a suas famílias.

Em julho de 2023, a

ao

organizou um acampamento de dois dias em Jhargram (Bengala Ocidental) que ofereceu consultas psiquiátricas gratuitas aos moradores e derrubou mitos a respeito das doenças mentais

O que começou em 1988 como um abrigo instalado em um apartamento de dois cômodos em Mumbai tornou-se uma organização sem fins lucrativos que administra uma unidade de 120 leitos localizada num terreno de 2,6 hectares em Karjat, a 67 quilômetros de Mumbai. Em 2018, Vatwani recebeu o Prêmio Ramon Magsaysay por sua “coragem e compaixão curativa ao acolher a população em situação de rua com doenças mentais da Índia, além da dedicação firme e magnânima ao trabalho de restaurar e afirmar a dignidade humana até mesmo dos mais excluídos em nosso meio”.

Cerca de 200 milhões de indianos vivem com doenças mentais, mas o país investe apenas 1% de seu orçamento de saúde em saúde mental. A Índia também sofre com um grave déficit de profissionais da área: tem apenas 0,3 psiquiatra por 100

dra. Swarali Kondwilkar (sentada
centro)

mil pessoas, em comparação com mais de 6,6 psiquiatras por 100 mil pessoas em países ocidentais. O renomado psiquiatra indiano Dayal Mirchandani diz que, além daqueles que deixam seus lares, “indivíduos com doenças mentais são com frequência abandonados pela família devido ao estigma social arraigado”. Segundo o último censo, realizado em 2011, a Índia tinha cerca de 1,7 milhão de pessoas em situação de rua, das quais perto de 50% eram, provavelmente, portadoras de doença mental. Vatwani fundou a Shraddha após um encontro com uma pessoa esquizofrênica

workshops para promover a conscientização a respeito das doenças mentais. Hospitais em todo o país transferem seus pacientes para a Shraddha, e colaboradores, policiais e outras organizações também informam rotineiramente a fundação sobre pessoas em situação de rua. Após receber as informações, uma equipe médica da Shraddha vai com a ambulância da fundação para resgatar a pessoa. Se o paciente estiver em uma organização governamental ou sem fins lucrativos em outra cidade, será transferido para a Shraddha por trem.

Ao longo dos anos, a fundação promoveu reencontros em todos os estados indianos e até mesmo em outros países

há pouco mais de 37 anos. O médico estava em um restaurante de Mumbai com a esposa, também psiquiatra, quando notou um jovem recolher água suja de uma sarjeta. Vatwani se aproximou enquanto o rapaz faminto e desgrenhado engolia a água. Então o casal levou-o para o abrigo que administrava e ministrou-lhe um tratamento para a esquizofrenia. Dias depois, Vatwani soube que o jovem tinha formação universitária, mas fora consumido pela doença mental que o atirou às ruas de Mumbai. Cerca de dois meses após seu resgate, Vatwani reconectou-o com sua família no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. “A doença mental pode reduzir uma pessoa a condições desumanas. Depois de encontrar aquele jovem, percebemos que não havia nenhuma organização lidando com essas pessoas na Índia”, diz Vatwani sobre a criação da Shraddha. Hoje, a entidade sem fins lucrativos, conduzida apenas pelos Vatwani, evoluiu de seu humilde começo para uma organização de larga escala com cinco gestores, quatro psiquiatras, 16 assistentes sociais com pós-graduação, 13 funcionários de meio período, 12 enfermeiros, dois contadores, dois motoristas de ambulância e dois cozinheiros.

RESGATAR, REUNIR, REEDUCAR

A Shraddha persegue sua missão de três maneiras: resgate e tratamento; reunião com a família e/ou comunidade; e

O trabalho da equipe médica nem sempre é fácil. Às vezes, os pacientes ficam agressivos durante o resgate, alguns têm lesões físicas que atrasam e/ou restringem o tratamento psiquiátrico e outros, ainda, falam apenas dialetos nativos. Além disso, os médicos não têm acesso ao histórico dos pacientes, o que torna o tratamento mais desafiador.

Quando os pacientes chegam, os funcionários atendem às suas necessidades médicas antes de tratar suas doenças psiquiátricas, diz Swarali Kondwilkar, uma dos quatro psiquiatras da Shraddha. Uma vez que os pacientes começam a se recuperar, os médicos iniciam a segunda fase do programa, com perguntas sobre sua identidade – seu nome, nomes dos familiares e de sua aldeia ou cidade, de sua escola, assim como os festivais que celebravam na infância, entre outras questões. Os assistentes sociais da Shraddha, que vêm de todos os estados da Índia e falam uma variedade de línguas e dialetos, ajudam a identificar os vilarejos, cidades e municípios dos pacientes.

Ao longo dos anos, a fundação promoveu reencontros em todos os estados indianos e até mesmo em outros países. No entanto, em um a cada dez casos as famílias relutaram em receber o parente, sobretudo devido a seu histórico de violência ou comportamento nocivo. Kondwilkar diz que, nessas ocasiões, eles orientam as

famílias sobre as doenças mentais e, na maioria das vezes, a empatia prevalece e a família o aceita de volta.

“Usamos as oportunidades [de reencontro] para promover a conscientização sobre saúde mental”, diz Kondwilkar, referindo-se à terceira fase do programa. A psiquiatra recorda uma ocasião em que, após reintegrar um homem a sua família em Bengala Ocidental, vários moradores da região a procuraram em busca de ajuda, relatando doenças mentais entre seus familiares. Em resposta, ela realizou um acampamento de dois dias para a comunidade, oferecendo consultas psiquiátricas gratuitas e derrubando mitos sobre doenças mentais.

A Shraddha é financiada por doadores individuais, organizações governamentais, como a General Insurance Corporation of India, e organizações não governamentais, como a Shree Babulnath Mandir Charities e a Sir Ness Wadia Foundation. Ex-pacientes e suas famílias também contribuem. Por exemplo, em 2014 um homem doou 120 mil rúpias (US$ 1,4 mil) depois que a organização reconectou seu irmão com a família. Em uma carta, ele escreveu: “Nossa família estava desesperada. Cada dia de sua ausência era difícil de suportar. A gentileza, o cuidado e o esforço de vocês para garantir seu retorno seguro foram tão grandes e tão avassaladores que nos deixaram sem palavras”.

COMBATE AO ESTIGMA E À DISCRIMINAÇÃO

Desde que foi registrada como uma organização sem fins lucrativos, em 1991, a Shraddha enfrenta desafios – de processos judiciais a dificuldades na reintegração de pacientes a suas famílias. Naquele ano, por exemplo, uma mulher e o filho de cinco anos foram levados aos cuidados de Vatwani depois que a encontraram carregando nos braços uma segunda criança, que estava morta e já em estado de decomposição. Após alguns meses, quando sua saúde melhorou, a mulher disse a Vatwani que era de Baroda, uma cidade no estado de Gujarat, no oeste da Índia. Ele a levou para Baroda, mas ninguém a reconheceu. Incapazes de localizar a família, a mulher e o filho residem na Shraddha até hoje.

A experiência, diz Vatwani, “me colo-

cou frente a frente com a realidade de que as mulheres na Índia rural são com frequência tão analfabetas que, exceto pelo nome de sua aldeia, não têm ideia de onde vêm realmente. Isso ainda dificulta nossos reencontros, 30 anos depois”.

A Shraddha ganhou atenção pública quando um proeminente professor da Escola de Arte Sir J. J. em Mumbai foi resgatado e tratado em 1993. Para expressar sua gratidão, alunos e professores organizaram uma exposição com 141 artistas de todo o mundo. A mostra arrecadou US$ 22.357 para a organização, que os Vatwani usaram para comprar um terreno no norte de Mumbai a fim de construir uma unidade de 20 leitos com a ajuda de profissionais voluntários e assistentes sociais. Antes de sua inauguração em 1997, no entanto, moradores locais exigiram que a Shraddha deixasse a vizinhança, por medo de que estivessem trazendo “elementos mentalmente perturbados” para a comunidade, diz Vatwani.

Os moradores “ameaçaram fisicamente a mim e a minha esposa, fizeram protestos, espalharam faixas enormes por todo o bairro e, em uma ocasião, cerca de cem pessoas invadiram as instalações, cercaram minha esposa e nos insultaram aos gritos. Na confusão, ela foi jogada no chão”, lembra o psiquiatra. Os moradores então entraram com duas petições contra a fundação. Felizmente, o Tribunal Superior de Mumbai rejeitou ambas as ações.

Embora a saúde mental continue estigmatizada na Índia, filmes, livros e várias organizações focadas na educação sobre saúde mental catalisaram uma mudança cultural. A Shraddha não enfrenta mais tanta resistência quanto na década de 1990 e, no ano passado, até estabeleceu uma segunda unidade de 14 leitos na cidade de Nagpur, no centro da Índia.

Vatwani diz que a sociedade indiana por fim se abriu para a causa da população em situação de rua com doenças mentais.

“A história é testemunha de que a mudança na sociedade é de fato um processo muito, muito lento. Mas a maré dá sinais de que está mudando e algum socorro parece ao alcance das pessoas com doenças mentais nas ruas”, conclui. O

PUJA CHANGOIWALA é jornalista e escritora premiada baseada em Mumbai

Mais apoio ao jornalismo sem fins lucrativos

Uma aliança de pequenos veículos jornalísticos sem fins lucrativos nos EUA quer tornar o financiamento de mídias mais equitativo para salvar o setor de notícias

POR KYLE COWARD

Jason Pramas sabe bem como funciona uma publicação independente e sem fins lucrativos. Fotojornalista e editor veterano na mídia alternativa de Boston, no estado de Massachusetts (EUA), Pramas é diretor-executivo e cofundador do Instituto de Jornalismo sem Fins Lucrativos de Boston (Binj, na sigla em inglês), criado em 2015 para oferecer oportunidades de colaboração e recursos financeiros para repórteres, redatores e publicações comunitárias independentes.

Pramas também atuou como editor do semanário alternativo DigBoston de 2017 a 2023. A publicação estava endividada quando ele e outros investidores a compraram em 2017, mas já prestes a se tornar lucrativa no início de 2020. Então a covid-19 chegou, dizimando os contratos de publicidade da publicação em março daquele ano e novamente em abril de 2022, durante o pico da variante ômicron, quando o semanário passou a ser exclusivamente digital.

Em 2020, o DigBoston recebeu US$ 150 mil em assistência emergencial da Admi-

nistração de Pequenas Empresas dos Estados Unidos (SBA, na sigla em inglês) para se manter à tona, e outros US$ 50 mil em 2021. Mas com o fim do programa de empréstimos da agência governamental no início de 2022, Pramas ficou sem opções para manter a publicação viva. “Foi um ano terrível. O jornalismo está agora em colapso terminal. Em 2022, isso já era evidente”, diz. Muitos veículos de notícias sem fins lucrativos dependem de subsídios de fundações. Pramas acreditava que havia desigualdade na distribuição desses recursos, afirmando que publicações maiores e reconhecidas em âmbito nacional eram privilegiadas pelos financiadores em detrimento de mídias menores e locais.

Sua afirmação estava correta. De acordo com uma análise de 60 veículos de notícias independentes, realizada em 2019 pelo jornalista australiano Bill Birnbauer, três grandes veículos – ProPublica, Center for Public Integrity e Center for Investigative Reporting – receberam 40% do financiamento total de fundações e doadores ao longo de um período de sete anos. Entre as 60 organizações pesquisadas, apenas um terço delas concentrava, em conjunto, 90% dos recursos.

“Embora o número de veículos de notícias sem fins lucrativos tenha aumentado na última década e o financiamento do setor tenha crescido de modo geral, muitas organizações que estão preenchendo lacunas na reportagem local ainda não convenceram uma quantidade suficiente de fundações sem tradição de financiamento de mídia, filantropos ricos e doadores menores a apoiá-las”, explica Birnbauer.

Cofundador do Instituto de Jornalismo sem Fins Lucrativos de Boston (Binj), Jason Pramas liderou a criação da Aliança de Veículos de Notícias sem Fins Lucrativos (Anno)

Em julho de 2022, Pramas publicou um ensaio no site do Binj pedindo aos financiadores que apoiassem veículos noticiosos sem fins lucrativos de forma mais equitativa. “Para ao menos adiar nossas crises terminais de financiamento, precisamos de dinheiro de grandes financiadores do jornalismo”, escreveu ele. “E precisamos que todos os veículos recebam a mesma quantia.”

Pramas mantinha uma comunicação frequente com outros atores do mundo do jornalismo sem fins lucrativos que compartilhavam sua opinião de que veículos menores eram negligenciados por grandes financiadores. A partir dessas discussões, o Binj e 16 organizações formaram a Aliança de Veículos de Notícias sem Fins Lucrativos (Anno, na sigla em inglês) em agosto de 2023.

Hoje com 45 membros, a Anno defende a distribuição de mais financiamento diretamente aos veículos sem fins lucrativos e que os recursos atendam a propósitos operacionais mais gerais, em vez de se destinarem a projetos – o que, segundo Pramas, pode resultar em menores quantias de apoio financeiro. “Precisamos que todos recebam algum dinheiro. Se isso não acontecer, a maioria de nós vai entrar em colapso nos próximos anos”, argumenta.

É de se lamentar, porém, que a Anno não tenha sido criada a tempo de salvar o DigBoston, que fechou em junho de 2023. No entanto, Pramas prevê que a entidade será vital para ajudar outras publicações a escapar do destino que atingiu o DigBoston. “Se conseguirmos observar um aumento geral no financiamento – tanto no valor como no número de veículos beneficiados –, sentiremos que desempenhamos um papel nisso”, diz.

ESTRUTURA IGUALITÁRIA

A Anno é uma organização de voluntários sem conta bancária – não exige taxas de adesão e não tem funcionários nem diretores. Membros em potencial podem simplesmente solicitar sua afiliação, com o único requisito de que outra entidade integrante da Anno apoie sua candidatura. Pramas afirma que essa estrutura horizontal é mais propícia à cooperação entre os membros. “Uma estrutura desse tipo ajuda a criar e a sustentar uma cultura interna muito democrática. Isso encoraja os veícu-

los associados a expressarem suas opiniões de uma maneira que não podem fazer em organizações dominadas por fundações, dirigidas por uma equipe e integradas de forma vertical”, afirma o jornalista. Dana Amihere é fundadora e diretora-executiva do AfroLA, um site de jornalismo de dados que se concentra em questões sociais importantes para a população negra de Los Angeles. De início, ela sentiu-se atraída pela abordagem igualitária da Anno. “No geral, trata-se de ter acesso a pessoas que compartilham as mesmas experiências ao fazer jornalismo local. Pode ser que não cubramos as coisas da mesma maneira, e as pessoas com quem trabalho podem não refletir exatamente aquelas com quem eles trabalham. Mas enfrentamos algumas das mesmas dificuldades”, explica.

forma que custa cerca de US$ 300 por ano. Os custos do site são financiados por um membro anônimo da Anno, com dinheiro próprio, e as reuniões e workshops são realizados pelo Zoom e pelo Google Meet.

UM SETOR SOB PRESSÃO

Um estudo de 2024 da Escola de Jornalismo Medill da Universidade Northwestern constatou que 206 condados dos EUA não tinham um único veículo jornalístico – impresso, televisivo, radiofônico ou digital – e cerca de metade de todos os condados do país tinha apenas um.

O aumento dos desertos de notícias também ocorreu à medida que muitos veículos locais e nacionais diminuíram sua força de trabalho. De acordo com dados da empresa de transição de carreira Chal-

O editor Brian Zayatz e a repórter

Sarah Robertson, do The Shoestring, um veículo membro fundador da Anno, em evento na Universidade de Massachusetts Amherst em abril de 2023

A maioria dos membros da Anno se concentra na Costa Leste dos Estados Unidos e faz uma cobertura jornalística variada – alguns veículos divulgam notícias gerais e outros são especializados em questões como direito, meio ambiente e segurança alimentar. “Somos uma associação de pequenos editores de notícias que estão combatendo o bom combate e fazem isso todos os dias”, diz Amos Gelb, editor da American Witness, um dos membros fundadores da Anno e matriz dos sites de jornalismo de dados sobre justiça criminal DC Witness e Baltimore Witness.

A infraestrutura de comunicação da associação – gerenciada pela Binj – é relativamente simples, de baixa tecnologia, composta por uma lista de discussão gratuita e um site hospedado em uma plata-

lenger, Gray & Christmas, em 2023 mais de 2,6 mil funcionários foram demitidos até novembro – um número pelo menos um terço maior que os cortes de pessoal feitos durante o mesmo período nos dois anos anteriores.

A retração afetou importantes veículos de grande porte pertencentes a conglomerados corporativos, e os dados do setor sugerem que publicações menores – em especial aquelas sem fins lucrativos – poderiam estar em uma posição crucial para liderar o futuro da indústria de notícias, mantendo assim sua importância para o público. O Instituto de Notícias sem Fins Lucrativos (INN, na sigla em inglês), que representa mais de 475 mídias independentes, relatou um grande aumento no número de redações sem fins lucrativos

em todo o país desde 2009. Muitos veículos sem fins lucrativos se beneficiaram de um aumento no financiamento de fundações. Um estudo de 2023 liderado pela Universidade de Chicago constatou que as doações para redações aumentaram 15% desde 2018 nos EUA. Desses financiadores, 64% declararam preferência por doar para organizações sem fins lucrativos, enquanto apenas 2% preferiram empresas com fins lucrativos. Além disso, uma pesquisa de 2024 com os membros da INN – mais de 70% dos quais têm como foco principal o jornalismo online – constatou que cerca de três quartos aumentaram ou

medo entre as mídias jornalísticas sem fins lucrativos de que, se trabalharem conosco, serão punidas”, diz ele. “Isso é meio que uma piada entre a gente, porque pensamos: ‘Bem, a maioria de nós já não está recebendo dinheiro mesmo’.”

Muitos veículos de notícias sem fins lucrativos recebem financiamento por meio do NewsMatch, uma iniciativa coordenada pelo INN e apoiada por 22 grandes fundos, fundações e organizações. A iniciativa equipara doações individuais com contribuições feitas por financiadores, que são então distribuídas para organizações participantes a cada ano. O Nieman Journa-

“Quando a competição é maior, você precisa ser mais forte. Não basta fazer bom jornalismo”

mantiveram sua receita em 2023, em relação ao ano anterior, e que os membros menores mostraram um crescimento mais significativo que os veículos maiores. Os dados tendem a reforçar o argumento de que pequenos veículos jornalísticos sem fins lucrativos podem desempenhar um papel fundamental no futuro do setor de notícias dos EUA, se receberem o apoio financeiro e os recursos necessários para fazê-lo. Com base nos dados, talvez este seja o melhor momento para uma aliança como a Anno se fazer ouvir.

O JOGO DO FINANCIAMENTO

Publishers e editores de veículos afiliados à Anno não se abstêm de críticas aos financiadores do jornalismo, que costumam favorecer redações maiores. Reprovam não apenas benfeitores proeminentes, mas também organizações como o INN, que ajuda a arrecadar e distribuir fundos de doadores para veículos noticiosos. Alguns afiliados à Anno também são membros do INN, bem como de outras organizações influentes do setor, como a Local Independent Online News (Lion) Publishers, que possui mais de 575 membros nos EUA e no Canadá. Pramas suspeita que a postura da Anno torna alguns pequenos veículos sem fins lucrativos cautelosos em relação às possíveis consequências de criticar os patrocinadores da indústria. “Existe um grande

lism Lab, da Universidade Harvard, já classificou o NewsMatch como a “campanha de arrecadação de fundos mais importante” para muitas dessas organizações.

O NewsMatch arrecadou mais de US$ 330 milhões desde sua criação em 2017, com 391 membros participantes em 2024. No entanto, a iniciativa foi criticada por alguns afiliados à Anno pelos níveis díspares de fundos de equiparação (matching funds) concedidos a membros do INN de portes variados.

Tanto o Binj como a American Witness participaram do NewsMatch, embora Gelb tenha descoberto que a generosidade do projeto “foi diminuindo” ao longo do tempo para alguns veículos que não são de grande porte, enquanto “o INN seguiu crescendo cada vez mais”. As impressões de Gelb são compartilhadas por Joanna Detz, editora da ecoRI, um site de notícias no estado de Rhode Island que se concentra em questões ambientais e de justiça social. Falando ao Nieman Lab em 2024, Detz disse que, embora “no geral, o NewsMatch seja ótimo”, ela acredita que os fundos de equiparação da iniciativa ficam “cada vez menores a cada ano, à medida que mais redações se juntam ao INN”. Pramas também tem críticas ao processo de inscrição do NewsMatch, alegando que a burocracia envolvida pode ser demasiado complexa para entidades como

o Binj. Ele estima que, em 2021, a equipe do instituto levou de 25 a 30 horas para concluir o processo. Essas frustrações que Pramas e seus colegas compartilhavam entre si acabaram por lançar as bases para a formação da Anno. “Nós só queríamos um canal aberto para falar entre nós”, diz ele.

A FILANTROPIA

PRESTA ATENÇÃO

Karen Rundlet foi diretora do programa de jornalismo da Fundação Knight, uma financiadora do NewsMatch, antes de se tornar CEO do INN em 2023. Ela afirma que o INN é transparente com os membros sobre o processo de avaliação dos candidatos do NewsMatch e reconhece que pode ser um processo competitivo. Acredita que algumas críticas ao NewsMatch vêm daqueles que percebem a organização como semelhante a um financiador ou um gatekeeper – que define quem tem acesso aos recursos – entre redações e doadores, em vez de uma entidade com recursos para conectar veículos aos apoiadores de uma maneira mais direta do que seria possível de outra forma.

Rundlet argumenta que, ao buscar apoio financeiro, veículos menores precisam demonstrar aos financiadores que têm um modelo de negócio com potencial de crescimento. “Quando a competição é maior, você precisa ser mais forte. Não basta fazer bom jornalismo. É preciso ter também um plano de negócios por trás disso”, alerta.

Enquanto estava na Fundação Knight, Rundlet se reuniu com membros da Anno para discutir questões que os preocupavam e diz que acolhe futuras conversas. Conta que, desde que se tornou CEO, dialogou com representantes de pelo menos 50 veículos membros do INN – incluindo alguns da Anno. Segundo ela, no geral, membros do INN lhe deram um retorno positivo sobre o NewsMatch. “Eu realmente quero ouvir o que têm a dizer aqueles com orçamentos menores”, afirma.

Um dos benfeitores mais notáveis do setor de notícias nos EUA é a Fundação MacArthur, que, juntamente com a Fundação Knight, atua como financiadora do NewsMatch. Silvia Rivera é diretora de notícias locais da MacArthur e, como Rundlet, está aprendendo mais sobre a missão da Anno à medida que ganha experiência

em seu cargo, que assumiu em fevereiro de 2024. “Assim como qualquer organização ou movimento, eles nasceram de uma necessidade e estão tentando atendê-la usando sua voz”, diz Rivera.

Ela e seus colegas da MacArthur esperam que redações menores possam se beneficiar do Press Forward, iniciativa lançada em 2023 para fornecer apoio financeiro a organizações de jornalismo local. Composto por uma coalizão de mais de 60 financiadores de mais de 20 unidades federativas dos EUA, o Press Forward se comprometeu a investir US$ 500 milhões em veículos locais, incluindo aqueles afiliados à Anno.

A MacArthur e a Fundação Knight estão entre os principais financiadores do Press Forward. As doações da coalizão estão disponíveis para veículos noticiosos com e sem fins lucrativos com orçamentos anuais de até US$ 1 milhão. O Press Forward lançou uma convocatória no primeiro semestre de 2024 para veículos que atendessem

teve efeito positivo ao direcionar financiadores de jornalismo para o tipo de mudança que apoiamos”, escreveu Pramas no site da Anno em dezembro de 2024, observando que ele havia se reunido com Anglin no início do ano para expressar suas preocupações sobre o financiamento do setor de notícias.

OLHAR PARA O FUTURO

Assim como Rundlet e muitos líderes no mundo da captação de recursos para o jornalismo, Anglin ainda está se familiarizando com a Anno. Ela acolhe a presença da aliança, mas ressalta que ela e seus colegas têm de estar atentos às necessidades de muitos pequenos veículos que operam no vasto ecossistema do jornalismo sem fins lucrativos. “A Anno representa um segmento” dessas organizações, diz. “Quando conversamos com qualquer pequeno grupo, queremos garantir que estamos sendo justos, e é por isso que fizemos a

Embora a Anno tenha expandido sua base de membros, vários se desligaram do grupo devido a divergências

a esse limite orçamentário, e os destinatários foram anunciados no segundo semestre. Nesse grupo inicial, foram concedidos US$ 20 milhões para 205 veículos, a maioria dos quais recebeu US$ 100 mil cada um.

Dale Anglin, diretora do Press Forward, acredita que a iniciativa pode ajudar a conter a onda de fechamentos entre as mídias locais. “Acreditamos que existem várias soluções para os problemas atuais”, diz ela. As estratégias de sua organização incluem fornecer mais recursos aos veículos, apoiar os esforços de equidade e diversidade e melhorar a acessibilidade a notícias para os cidadãos em áreas consideradas desertos de notícias.

Inicialmente, o Press Forward planejava fornecer doações para cem redações. Embora meios sem fins lucrativos tenham obtido menos financiamento (41%) que aqueles com fins lucrativos, Pramas acredita que o trabalho de incidência da Anno influenciou o Press Forward a mais que dobrar sua meta inicial de concessão. “Há indícios de que a existência da Anno

convocatória. A Anno será convidada, mas outros também serão.”

Embora a Anno tenha expandido sua base de membros, vários se desligaram do grupo devido a divergências. Um deles foi o AfroLA, que saiu em dezembro de 2024. “Eles estão tentando realmente desafiar e ampliar a narrativa”, disse Amihere antes de deixar a aliança. “Mas o que acontece depois disso? Quais são os próximos passos? Sou alguém que sempre pensa adiante. E me pergunto: para onde vamos depois?” Amihere ressalta que o AfroLA não rompeu sua relação com a Anno em maus termos e deseja sucesso ao grupo.

Uma pessoa que acredita muito no futuro da associação é Alice Dreger, fundadora e ex-editora do East Lansing Info, site de jornalismo investigativo do estado do Michigan, um dos membros fundadores da Anno. Dreger, que se aposentou da publicação em 2023, está otimista de que a entidade possa mobilizar meios jornalísticos locais sem fins lucrativos em todo o país para abordar questões de financiamento.

“A Anno já é um sucesso”, afirma Dreger, que agora dirige o site Local News Blues e atua como conselheira do The Shoestring, um veículo membro da Anno que cobre o oeste de Massachusetts. “A aliança é extremamente bem-sucedida em termos de gerar visibilidade, e o apoio entre os pares é extraordinário. Acho que isso fica claro quando vemos que todos os membros continuam conversando entre si.”

Embora os membros da Anno apoiem seu ethos igualitário, alguns questionam se um grupo sem estrutura de gestão ou equipe pode, de fato, conquistar financiadores e obter mais recursos e apoio financeiro para pequenos veículos jornalísticos sem fins lucrativos. “Não duvido da dedicação, da sinceridade ou da necessidade deles”, afirma Chris Krewson, diretor-executivo da Lion. “Acredito, no entanto, que é preciso existir uma equipe dedicada para promover mudanças. Para atender a essa necessidade tão grande, é necessário que haja pessoas comprometidas exclusivamente com essa missão.”

Pramas adota uma visão de longo prazo ao avaliar o futuro da Anno, considerando que a organização poderia, eventualmente, assumir alguns serviços convencionais de apoio a negócios. Propõe, por exemplo, que a Anno possa oferecer assistência contábil para organizações menores – algo que, de outra forma, poderia ser inviável em termos de tempo e custo –, financiada com recursos captados em vez de cobrada diretamente dos veículos. Pramas também não descarta a contratação de pessoal, caso a aliança se expanda para diferentes regiões.

A possibilidade de a Anno adotar uma mentalidade de gestão mais convencional pode se concretizar caso a entidade amplie sua base de membros e recursos a ponto de atrair grandes doadores e viabilizar oportunidades de financiamento a outros veículos. Esse modelo não seria muito diferente do que o INN e a Lion já fazem para seus associados. Pramas explica: “Reconhecemos a situação em que as pessoas se encontram. Começamos a ver as coisas também do ponto de vista de quem administra as instituições que estamos criticando”. O

KYLE COWARD é redator e profissional da comunicação baseado em Chicago. Já escreveu para Chicago Tribune, The Atlantic e Reuters, entre outras publicações.

As periferias estão transformando o Brasil.

Você está ouvindo?

PSIR! É UM PODCAST SOBRE PERIFERIAS, SOLUÇÃO, INOVAÇÃO E RECONSTRUÇÃO.

HISTÓRIAS REAIS DE LIDERANÇAS QUE

TRANSFORMAM SEUS TERRITÓRIOS COM CORAGEM, CRIATIVIDADE E VIVÊNCIA.

ESTUDO DE CASO

Um olhar profundo para o interior de uma organização

Transformação contínua para apoiar MPMEs na América Latina

Há 40 anos, a Fundes foi criada no Panamá para atender pequenas empresas na região. A organização teve de se reinventar muitas vezes para sobreviver, mas continua a apoiar o desenvolvimento econômico e social latino-americano

POR TINA C. AMBOS, ALEXANDER ZIMMERMANN E SEBASTIAN H. FUCHS

EM 8 DE OUTUBRO DE 2024 , convidados lotaram o elegante restaurante da Çuina, a Academia de Inovação Culinária, para celebrar um aniversário. No coração do bairro Roma da Cidade do México, a Çuina ensina e apresenta a visão socialmente consciente do chef Xano Saguer sobre as artes culinárias. Naquela noite, sua equipe prepararia uma refeição especial para marcar os 40 anos da Fundação para o Desenvolvimento Sustentável (Fundación para el Desarrollo Sostenible), mais conhecida como Fundes.

Ao entrar, cada pessoa recebeu uma peça de quebra-cabeça, na qual foi convidada a escrever sua visão para o futuro da Fundes. Desde sua criação, a fundação busca promover o desenvolvimento econômico sustentável em toda a América Latina por meio de financiamento, educação e apoio a micro, pequenas e médias empresas (MPMEs). Enquanto os convidados desfrutavam seus coquetéis de boas-vindas, membros do conselho da Fundes compartilhavam suas visões sobre as próximas quatro décadas da organização.

“Nos primeiros 40 anos da Fundes, ela teve de se reinventar de forma contínua”, disse Andreas Eggenberg, membro do conselho da Fundes e presidente da Masisa, um cliente de longa data da instituição. “Não sei onde estaremos em 40 anos, mas com certeza estaremos diferentes de agora, mantendo o espírito motivacional e a curiosidade de nos reinventarmos.”

As peças do quebra-cabeça foram por fim montadas, formando um mural que retrata clientes típicas da Fundes: duas padeiras vestindo aventais brancos e toucas, moldando a massa em pequenos pães. O quebra-cabeça apresentava o logotipo da Fundes e o slogan

Por que publicamos este texto Micro e pequenas empresas representam 98,4% do total das empresas no Brasil, segundo dado de 2023 do Sebrae. O artigo oferece aprendizados relevantes, em diversos países latino-americanos, sobre como alinhar impacto social com sustentabilidade financeira, explorar o potencial das tecnologias digitais, construir parcerias com grandes empresas e adaptar modelos de negócio para ampliar o alcance e a efetividade de iniciativas voltadas às MPMEs – desafios centrais também no contexto brasileiro.

Comerciante (à esquerda) em Bogotá, Colômbia, recebe orientação de um consultor da Fundes como parte do projeto 4e, realizado em parceria com a SABMiller

“Você também faz parte do futuro da América Latina”. O exercício criou um símbolo da luta de várias décadas da fundação e de sua missão duradoura de manter interações próximas e significativas com seus beneficiários. A Fundes defende as MPMEs por seu papel na geração de empregos, na redução da pobreza, na inclusão econômica e na promoção do crescimento equitativo e sustentável. A instituição passou por inúmeras reinvenções em seus primeiros 40 anos para se manter e apoiar seus clientes – e inevitavelmente enfrentará outras no futuro.

Em 2016, a Fundes começou a experimentar estratégias digitais para ajudar pequenas empresas, como esta na Cidade do México, a aumentar sua renda e melhorar a eficiência de seus negócios

Hoje, muitos líderes de organizações de impacto social se perguntam como conciliar uma forte missão social com um modelo de financiamento sustentável e experimentam muitas abordagens diferentes. Imagine, por exemplo, que você dirige uma organização filantrópica internacional e, de repente, seu financiamento é interrompido. O que seria um desastre para a maioria das organizações sem fins lucrativos foi apenas o começo da história da Fundes, que a fez se transformar de uma organização filantrópica em uma consultoria de valor compartilhado e, por fim, em uma incubadora de empreendimentos sociais. No entanto, a fundação manteve a mesma missão ao longo de sua trajetória. “A única coisa que não se pode tocar é a missão – o desenvolvimento sustentável das MPMEs na América Latina”, diz Ulrich Frei, atual diretor do conselho da Fundes.

O caso da Fundes revela as condições, oportunidades e desafios associados à adoção de diferentes abordagens. Mostra que a promoção de um impacto sustentável de longo prazo para a sociedade exige gestores empreendedores, capacidade de abordar domínios de mercado totalmente novos, abertura para abraçar novos grupos de stakeholders e disposição para mudar de maneira radical as organizações e suas culturas.

AIDEIA DA FUNDES SURGIU EM 1983 , quando o arcebispo Marcos McGrath, do Panamá, embarcou em uma viagem de arrecadação de fundos pela Europa para buscar ajuda para os desafios sociais e econômicos da América Latina. Estes incluíam pobreza estrutural, baixo crescimento econômico e poucas oportunidades de emprego formal para uma população jovem e crescente. Durante sua jornada, McGrath se encontrou com um grupo de empresários suíços proeminentes, entre eles Stephan Schmidheiny, empresário e herdeiro de uma rica família industrial e filantrópica. Schmidheiny se encantou com a visão de McGrath de estimular o desenvolvimento por meio do apoio a pequenas empresas. Na América Latina, as micro e pequenas empresas (MPMEs) – como lojas tradicionais de bairro, pequenas fazendas de banana e catadores de recicláveis – desempenham papel crucial na economia. McGrath imaginou transformar esses pequenos empreendimentos em motores de crescimento, fornecendo-lhes assistência financei-

ra e conhecimento empresarial essencial. Impressionado com essa perspectiva, Schmidheiny se tornou seu principal financiador.

A Fundes iniciou suas operações em 1984 oferecendo empréstimos garantidos a MPMEs no Panamá e estabeleceu uma sede na Suíça para trabalhar em estreita colaboração com Schmidheiny. Nos anos seguintes, a fundação se expandiu para mais nove países: Costa Rica (1986), Guatemala (1988), Colômbia (1989), Bolívia (1990), Chile (1992), Argentina (1993), México (1993), Venezuela (1994) e El Salvador (2000). Esses escritórios locais eram “pequenos reinos”, de acordo com Frei, empresário suíço com vasta experiência na América Latina que se tornou CEO da Fundes em junho de 2008 e ocupou esse cargo por quatro anos. “Cada escritório de país decidia o que fazer, desde que fosse para o bem das MPMEs.” Cada um moldou de forma independente estratégias para fornecer apoio diretamente aos beneficiários, como agricultores ou donos de pequenas lojas. Durante a primeira década, o modelo filantrópico permitiu que a instituição se concentrasse por inteiro em seu propósito e adaptasse sua abordagem aos contextos locais.

“Para investir em MPMEs, as pessoas têm de ir a essas empresas e entender o que elas fazem”, diz Urs Jäger, professor associado da Incae Business School, na Costa Rica, sobre os mercados informais na América Latina. Esse trabalho de base foi o que a Fundes fez. No entanto, ao longo do tempo, sua estrutura descentralizada criou cada vez mais ineficiências operacionais sem compensar com maior impacto ou aprendizado entre os países. Além disso, sua dependência de Schmidheiny, um único doador, tornou-a financeiramente vulnerável a mudanças em sua estratégia filantrópica. A instituição precisaria mudar.

A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO

EM 1996 , A SEDE DA FUNDES REALIZOU uma avaliação interna. A análise apontou as limitações de seu modelo de garantia de crédito – as taxas de reembolso de empréstimos eram baixas e, embora a fundação garantisse o pagamento ao banco, os desafios fundamentais enfrentados pelas pequenas empresas muitas vezes permaneciam

Frei acreditava que grandes corporações estariam dispostas a fornecer o apoio financeiro necessário para as atividades da Fundes, “não necessariamente porque são boas pessoas, mas porque queriam se manter competitivas, pois as MPMEs são a espinha dorsal de suas cadeias de valor”

sem solução. O estudo descobriu ainda que as habilidades organizacionais deficientes dos proprietários de pequenas empresas e empreendedores impediam seu sucesso e sua contribuição geral para a economia regional.

“Após dez anos, percebemos que dar às MPMEs acesso a capital sem também dar-lhes acesso a conhecimento era um negócio muito arriscado”, diz Frei. Em vez de ver isso como um revés, Schmidheiny trabalhou em estreita colaboração com a gestão da Fundes para desenvolver um modelo novo para avançar na missão da organização.

A Fundes, então, reafirmou seu compromisso de capacitar as MPMEs como atores essenciais no desenvolvimento econômico e social da América Latina, mas mudou seu foco para a educação. A fundação começou a oferecer workshops e aulas para proprietários de MPMEs em vários setores, do varejo à agricultura. Esses programas melhoraram as habilidades organizacionais e financeiras dos proprietários e, por extensão, as práticas de gestão de seus negócios. Ao equipar os empreendedores com ferramentas práticas, a Fundes ajudou-os a aumentar sua eficiência, expandir o alcance de mercado, navegar pelos desafios regulatórios e fazer com que seus negócios crescessem de forma sustentável. Em 2002, seu programa educacional havia alcançado mais de 140 mil participantes, abrangendo 40 áreas de conhecimento, que incluíam administração e finanças, produção, marketing e recursos humanos.

Na época, as MPMEs tinham dificuldades principalmente com “acesso a crédito, procedimentos fiscais, concorrência desleal e a necessidade de se adaptar à globalização e à tecnologia”, disse o proprietário de uma pequena empresa na Guatemala, que preferiu permanecer anônimo. A economia volátil, com suas instituições financeiras instáveis, ondas de inflação e altos níveis de corrupção, proporcionava condições adversas para os proprietários de pequenas empresas em toda a região, que com frequência eram forçados a se concentrar na mera sobrevivência. Por meio do acesso ao conhecimento empresarial e a um grupo de empreendedores que compartilhavam os mesmos valores, foram capazes de navegar melhor pelos desafios que enfrentavam.

A Fundes expandiu seu modelo de treinamento nos anos seguintes, tornando-se um provedor significativo de educação empresarial para MPMEs na região. O modelo também ajudou a fundação a aprender mais sobre os verdadeiros pontos problemáticos das MPMEs na economia da América Latina. Constatou-se que as MPMEs eram elos críticos nas cadeias de valor de grandes multinacionais, mas essas relações em geral não eram bem integradas ou gerenciadas. Descobrir maneiras de profissionalizar as MPMEs e capacitá-las a unir forças com empresas maiores foi visto como fundamental para impulsionar o crescimento econômico.

Em 2004, a Fundes mudou oficialmente seu objetivo de apenas “fornecer conhecimento” para “implementar conhecimento” na América Latina, disponibilizando consultoria de varejo para pequenos lojistas. Naquele ano, a fundação participou de um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da Organização das Nações Unidas, que concluiu que educar as pessoas era importante, mas que o foco da Fundes deveria mudar para o impacto real em seus negócios. João Carlos Ferraz, diretor da Cepal, viu a colaboração com a Fundes como “uma oportunidade importante para aprofundar e refinar técnicas e metodologias de pesquisa aplicada para a avaliação de programas de educação”.

A fundação, portanto, adaptou seu portfólio de serviços para oferecer consultoria às MPMEs sobre como melhorar suas operações. Schmidheiny subsidiou a nova operação, porque as MPMEs não tinham recursos para pagar pelo serviço. Enquanto os primeiros projetos de consultoria visavam gestão de estoque, contabilidade e outras melhorias operacionais de pequena escala em MPMEs individuais, um projeto foi diferente. Em 2006, a Coproca, uma empresa peruana que armazena e exporta lã de lhama e alpaca, colaborou com a Fundes em uma escala maior para apoiar e profissionalizar 500 pequenos agricultores e transformá-los em fornecedores mais confiáveis. Embora esse fosse um projeto incomum para a instituição na época, acabou sendo um vislumbre do futuro.

COMBINAR PROPÓSITO E LUCRO

EM 2008 , A CRISE FINANCEIRA GLOBAL secou o crédito, levou ao desemprego em massa e atingiu duramente as MPMEs da América Latina. A situação crítica também limitou a capacidade e a disposição dos financiadores filantrópicos de continuarem apoiando suas causas nas mesmas condições. Diante da necessidade de reajustar seu portfólio de beneficiários, a equipe de Schmidheiny identificou a Fundes como um projeto que tinha o potencial de se tornar autossustentável e decidiu eliminar de forma gradual suas doações anuais. “Fomos informados de que, dentro de cinco anos, deveríamos nos tornar uma organização financeiramente sustentável”, conta Frei. Como a Fundes poderia continuar a cumprir sua missão social gerando receita suficiente para sustentar suas operações? A equipe de gestão sabia que as MPMEs na América Latina eram parte essencial das cadeias de valor de grandes corporações, operando como fornecedores ou distribuidores: por exemplo, produtores de banana como fornecedores para empresas agrícolas ou lojas de bairro como distribuidores para fabricantes de bebidas. Desse modo, havia muita interdependência, bem como muito potencial para ganhos de eficiência e desenvolvimento de negócios se as MPMEs pudessem ser apoiadas para operar com mais sucesso

e profissionalismo. Frei acreditava que as grandes corporações estariam dispostas a fornecer o apoio financeiro necessário para as atividades da fundação, “não necessariamente porque são boas pessoas, mas porque queriam se manter competitivas, pois as MPMEs são a espinha dorsal de suas cadeias de valor”.

Entre 2014 e 2015, a Fundes trabalhou com a siderúrgica brasileira Gerdau para capacitar e organizar milhares de ferros-velhos – como este em Santiago, no Chile – com o objetivo de fortalecer sua cadeia de suprimentos

E ele estava certo, como ficou comprovado quando a Fundes passou a trabalhar com grandes empresas, como o Walmart. “Trabalhar em valor compartilhado nos permite ter um impacto direto em nossos negócios e nos diferentes stakeholders com os quais atuamos, como as MPMEs voltadas para produtos agrícolas e consumo de massa”, explicou Viena Ochoa, gerente de responsabilidade social corporativa do Walmart América Central, em 2015. “O desafio para eles é crescer conosco de forma sustentável ao longo do tempo.” Foi nessa necessidade de crescimento sustentável que a fundação apoiou de forma ativa as MPMEs, para que atendessem às expectativas de seus parceiros corporativos.

A Fundes decidiu ir além da entrega de conhecimento, passando à sua implementação por meio de serviços de consultoria de varejo. “A ideia do nosso fundador era ótima em seu tempo, para ajudar diretamente as MPMEs”, diz o atual CEO da Fundes, Elfid Torres. “Houve um ponto de inflexão, quando a equipe teve de mostrar coragem. Se não tivéssemos mudado naquele momento, a organização provavelmente teria deixado de existir.”

O advento do novo modelo de consultoria dupla da Fundes –oferecendo suporte tanto para MPMEs como para grandes corporações multinacionais – coincidiu com um interesse crescente em combinar propósito e lucro, em particular por meio da lente de “criação de valor compartilhado”, um conceito desenvolvido em 2011 por Michael Porter e Mark Kramer. Eles definiram valor compartilhado como políticas e práticas que “aumentam a competitividade de uma empresa enquanto fazem avançar de forma simultânea as condições econômicas e sociais nas comunidades em que opera”. Porter e Kramer viram a Fundes como uma personificação prática dessa ideia. Visitaram a organização várias vezes e fizeram referência a ela em discussões de alto nível com executivos.

Embora o modelo de valor compartilhado fosse atraente na teoria, implementá-lo era desafiador. A Fundes precisava de uma equipe com mentalidade comercial para apresentar projetos a multinacionais e outras empresas com fins lucrativos – um território desconhecido para muitos de seus funcionários, a maioria dos quais tinha experiência em filantropia. Para se alinhar com esse novo modelo, o CEO Frei, assim como Torres, que na época era responsável pelo escritório de gestão de mudanças, viram a necessidade de estabelecer na Fundes uma cultura mais voltada para o comércio. Em 2008 e 2009, a organização dispensou 150 dos 200 funcionários por não terem experiência empresarial e contratou cerca de 60 novos profissionais para apoiar o novo modelo de consultoria.

Embora a fundação permanecesse dedicada a apoiar as MPMEs,

agora precisava de uma estratégia regional para trabalhar efetivamente com clientes multinacionais e se beneficiar de forma mais coordenada de sua presença em vários países. Mais de 50 empresas multinacionais, entre elas Walmart, PepsiCo e Cemex, começaram a trabalhar com a Fundes para desenvolver suas cadeias de valor com MPMEs.

Para melhor atender esses clientes, a Fundes consolidou sua estrutura descentralizada em escritórios regionais ou nacionais que pudessem se coordenar de forma mais fluida com a sede. A centralização da fundação marcou uma grande mudança cultural. A sede da organização na Costa Rica assumiu um papel duplo, supervisionando as operações e apoiando as subsidiárias, enquanto coordenava de maneira direta alguns projetos multinacionais. A equipe central ali instalada, liderada por Torres, era ambiciosa, mas as iniciativas com frequência enfrentavam gargalos. Os gerentes das subsidiárias às vezes dificultavam o fluxo de estratégias da sede para as equipes locais, tornando desafiador implementar por completo novas ideias.

“Não quero ser uma empresa de consultoria”, disse um gerente de subsidiária, que pediu para não ser identificado. “Quero fazer negócios com o governo. Quero fechar acordos com fundações. E esses parceiros não trabalharão conosco se acharem que somos uma consultoria.”

Além disso, muitos anos após a nova estratégia, alguns funcionários ainda viam a Fundes como uma ONG, e não como uma empresa de consultoria com uma missão social. “Nossa proposta de valor é apoiar e desenvolver MPMEs; não é cobrar dinheiro delas ou gerar lucro”, disse um coordenador de projetos do México, que também pediu anonimato. “Como nosso diretor Frei disse, se você ajudar a desenvolver essas empresas e a gerar benefício econômico, você reduzirá a pobreza. É isso que acredito que a Fundes deveria fazer.”

Apesar desses desafios, o modelo de valor compartilhado da Fundes ganhou impulso, com cada projeto de consultoria bem-sucedido servindo como uma prova de conceito adicional. Um exemplo de sucesso foi um projeto com a produtora brasileira de aço

Embora a SABMiller elogiasse as atividades da Fundes por seu impacto, queria alcançar um número muito maior de pequenos varejistas que vendiam seus produtos, e a um custo menor por engajamento. Mas a capacidade de escala da fundação havia atingido seus limites

Gerdau, que envolveu o treinamento e a organização de milhares de ferros-velhos em México, Venezuela e Colômbia para fortalecer a cadeia de suprimentos da empresa. A Gerdau tinha dois objetivos: primeiro, trabalhar com seus fornecedores estabelecidos os aspectos relativos a qualidade, redução de custos e desenvolvimento comunitário para alcançar uma relação de confiança mútua, respeito e sustentabilidade; segundo, identificar novos fornecedores e desenvolvê-los, integrando-os à cadeia de suprimentos da empresa. Esse projeto de grande escala foi realizado entre 2014 e 2015, o que resultou em melhoria do trabalho de 58 fornecedores (13 no México, 25 na Venezuela e 20 na Colômbia).

A Fundes expandiu sua base de clientes e beneficiários, trabalhando cada vez mais com gigantes corporativos como Coca-Cola, AB InBev e Bimbo. Para a AB InBev e sua subsidiária SABMiller, a Fundes implementou seu primeiro grande projeto inter-regional em seis países – El Salvador, Honduras, Panamá, Colômbia, Equador e Peru –, de 2013 a 2018, apoiando pequenos varejistas na melhoria de seu desempenho geral nos negócios, na promoção da qualidade de vida de seus funcionários e para assumirem papéis de liderança em suas comunidades. O projeto, chamado 4e, foi instalado pela primeira vez em El Salvador e depois expandido por toda a região. O programa tinha três objetivos: o desenvolvimento de capacidades de negócios (incluindo treinamento em grupo com aconselhamento técnico personalizado); a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos e de suas famílias (envolvendo gestão de renda, investimento e planejamento de vida); e o fomento da liderança comunitária e social (com treinamento para desenvolver empresas sociais).

Com base nos primeiros exemplos de sucesso, a Fundes uniu forças com o Fundo Multilateral de Investimento (Fumin) do Banco Interamericano de Desenvolvimento para lançar um projeto de US$ 20 milhões destinado a apoiar o desempenho empresarial de pequenos varejistas. Foram 12 semanas de um ciclo que compreendeu recrutamento, diagnóstico, treinamento em sala de aula, mentoria na loja, monitoramento e entrega de certificados. A primeira iteração regional do 4e alcançou 5.631 lojas em seis países.

A ambição da SABMiller era ampliar sua inserção em ecossistemas de negócios regionais e trabalhar com lojas de bairro de uma forma que, ao fim e ao cabo, impactasse a vida de até 10 milhões de pessoas. “Os tenderos [lojistas] são referências comunitárias e líderes de opinião”, escreveu Torres. “Suas lojas são centros de informação e integração para seu bairro. Eles constroem capital social e criam uma cultura de empatia.”

Embora a SABMiller elogiasse as atividades da Fundes por seu impacto, queria alcançar uma quantidade de pequenos varejistas que vendiam seus produtos muito maior que aquela atendida pela

Fundes, e a um custo menor por engajamento. Mas a capacidade de escala da organização havia atingido seus limites, pois só podia contar com seis gerentes de projeto e cerca de 100 consultores para Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras, Peru e Panamá. Essa dificuldade na ampliação era uma reclamação compartilhada por outros clientes corporativos. Até 2016, a Fundes havia trabalhado com 450 mil MPMEs. Apesar de parecer um número muito grande, representa apenas uma pequena fração dos 20 milhões de MPMEs da América Latina. Além disso, grandes clientes corporativos da Fundes concluíram que a expansão por meio da consultoria tradicional era financeiramente insustentável.

“Justo quando atingimos equilíbrio financeiro e estávamos prontos para conquistar o mundo, nossos clientes vieram com novas demandas”, recorda Frei. “Eles nos disseram que gostavam das coisas que fazíamos, mas queriam que as fizéssemos não apenas com centenas ou alguns milhares de MPMEs, mas com 100 mil MPMEs. Ao mesmo tempo, disseram que o custo deveria ser reduzido.”

Enquanto enfrentava esse problema no trabalho com clientes corporativos, a organização cultivava parcerias com fundações filantrópicas internacionais. Um desses parceiros, a Fundação elea para Ética na Globalização, acabaria por levar a Fundes à sua próxima reinvenção. A missão da elea, fundada por Susanne e Peter Wuffli, é combater a pobreza com meios empresariais, aproveitando as oportunidades da globalização. A colaboração entre a Fundes e a elea começou com um projeto conjunto para apoiar pequenas lojas de bairro na Bolívia em 2009 e evoluiu ao longo dos anos para um relacionamento mais próximo.

“A Fundes tinha uma missão intimamente alinhada à nossa, era bastante empreendedora e entendia muito bem as cadeias de valor locais”, recorda Adrian Ackeret, diretor de investimentos da elea. “No entanto, a esperança de que seria possível conquistar em alguns anos um número crescente de grandes fabricantes de bens de consumo, como principais clientes para essa abordagem, mostrava-se ambiciosa demais. Era necessário um foco mais forte na tecnologia para reduzir custos, promover a capacidade de ampliação e usar a rede da Fundes de maneira eficaz.”

DIGITALIZAR PARA CRESCER

DE 2016 A 2021 , A FUNDES FOI PERCEBENDO que não poderia continuar seus serviços de consultoria de valor compartilhado na escala exigida por seus parceiros corporativos. Enfrentou um dilema: deveria prosseguir com o mesmo modelo em uma escala menor ou embarcar em mais uma transformação para seguir em sua missão? A liderança da fundação decidiu fazer uma nova guinada estratégica para garantir estabilidade financeira, satisfação

dos parceiros corporativos e impacto em grande escala. Ao longo dos anos, desenvolveu um modelo digital que alterou – e poderia, com o tempo, substituir – o antigo e dispendioso modelo baseado em escritórios de país.

Em 2016, Armando Moguel juntou-se à Fundes como diretor de estratégia e desenvolvimento de negócios. Físico e engenheiro de sistemas por formação e fundador de uma plataforma colaborativa de cadeia de suprimentos, Moguel trouxe uma perspectiva de fora. Diagnosticou que as sinergias regionais idealizadas por Torres e Frei não tinham se materializado. Na verdade, os primeiros projetos internacionais, como o da SABMiller, expuseram as estruturas de país e regionais da Fundes como excessivamente complexas e consideradas, pelos clientes, difíceis de navegar. Além disso, o modelo de consultoria lutava para atender às demandas dos clientes por ampliação da escala e eficiência.

A equipe de gestão optou por duas respostas: primeiro, para reduzir custos, a Fundes reorganizou suas unidades de país em uma estrutura centralizada, baseada em polos. A maioria da equipe trabalharia na Costa Rica e no México, e se concentraria em projetos com sinergias entre países. Segundo, para aumentar a capacidade de ampliação, a fundação começou a experimentar novas tecnologias e novos modelos de negócio a fim de alcançar mais MPMEs sem sacrificar o impacto social.

Durante esse tempo, os líderes da fundação decidiram se concentrar no valor do cliente – determinando o que os clientes precisavam e o que estavam dispostos a pagar por isso. Torres também impulsionou a Fundes a tornar a organização mais eficiente. Fechou vários escritórios para simplificar as operações. Para o CEO, a competência central da fundação envolvia criar propostas de projetos, vendê-las para os clientes e implementá-las por meio de gerentes de projetos locais. Ele descreveu esse período como uma “busca pela dor no mercado”, em que se procuravam problemas que a Fundes pudesse ajudar as MPMEs a resolver, ao mesmo tempo que as impactava de maneira significativa.

Para simplificar ainda mais suas operações e melhor atender os clientes, a Fundes adotou soluções digitais, identificando novas oportunidades de criar impacto sem comprometer a sustentabilidade financeira. Os líderes da fundação consideraram especialmente promissora a monetização de seu conhecimento central – dados sobre MPMEs, que seriam cruciais para análises de cadeias de suprimentos e redes de distribuição para grandes corporações. Mas tal mudança no modelo de negócio exigiria novos acordos e novas empresas parceiras. Envolveram-se então em discussões acaloradas sobre se o futuro digital era o caminho certo. No fim das contas, concordaram que tinham pouca escolha: precisavam abraçar o novo modelo digital se a Fundes quisesse continuar a cumprir sua missão.

Uma das primeiras novas iniciativas da Fundes foi a criação de uma plata-

forma na América Central para geolocalizar lojas de bairro, fornecendo-lhes consultoria e suporte logístico. A plataforma também gerava insights de mercado para clientes maiores que trabalhavam com pequenos varejistas. Ao mesmo tempo, Torres liderou sessões de brainstorming sobre o futuro da fundação, nas quais Moguel foi incluído para trazer inovação à organização e a seu modelo operacional. Torres descobriu que a contribuição de Moguel era “como um reagente que você adiciona a outro fluido estático”, à medida que o físico e engenheiro ajudou a catalisar uma abundância de novas ideias. Em 2016, a Fundes lançou uma unidade chamada Fábrica de Inovação, composta de uma pequena equipe encarregada de experimentar estratégias digitais para aproveitar a nova base de conhecimento. Após dois anos, em 2018, a Fábrica de Inovação evoluiu para a Fundes Digital, uma entidade legal separada que ficou sob o comando de Moguel.

Logo a Fundes provou que as ferramentas digitais não eram apenas uma maneira de ganhar dinheiro, mas também fundamentais para continuar a servir às MPMEs da América Latina. A Fundes Digital lançou comunidades baseadas no Facebook para proprietários de minilojas em vários países, como Peru, Costa Rica, Colômbia, El Salvador, Honduras e Chile. Os grupos atuaram como uma plataforma para que a organização pudesse fornecer conteúdo gratuito e coletar insights sobre as habilidades digitais das MPMEs. Em seguida, lançou um aplicativo chamado EntreTenderos, que fornecia pílulas de conhecimento empresarial gratuitas para proprietários de pequenas lojas. Donos de minimercearias na Colômbia apreciaram a ajuda e avaliaram muito bem a comunidade no Facebook. Os comentários incluíram afirmações do tipo: “Todos os vídeos me ajudaram muito”, “Bons conselhos sobre como administrar uma loja” e “Que ótimo site. Precisávamos disso”.

A Fundes também começou a coletar e digitalizar dados para venda a empresas de bens de consumo de giro rápido (FMCG, na sigla em inglês) interessadas em entender melhor o comportamento da rede de varejo da fundação. No entanto, a implantação da ideia se mostrou desafiadora demais – a atualização constante dos dados das MPMEs não era tecnicamente viável. No fim de

A Fundamental, incubadora social desenvolvida pela Fundes, ajudou a lançar diversas startups, incluindo a Voalá, um empreendimento social de microfranquias que apoia profissionais de salões de beleza na Guatemala. Na foto ao lado, uma proprietária de salão de beleza participa de um projeto piloto da Voalá na Cidade do México

Em 2020, no auge da pandemia de covid-19, a liderança da Fundes mais uma vez debatia o futuro da fundação em meio a uma crise global. Dois jovens profissionais sugeriram: “Por que não nos tornamos a Rocket Internet de soluções para micro e pequenas empresas na América Latina?”

2019, a Fundes Digital havia começado uma variedade de projetos, mas, como é comum em ações digitais em estágio inicial, elas não geraram fluxo de caixa significativo e dependeram de capital para crescer. O financiamento para essas iniciativas foi fornecido pela Fundação elea como um investidor de impacto e pela Fundes, que usou sua reserva estratégica.

Durante essa fase de teste de suas credenciais digitais, a parceria da Fundes com a elea evoluiu para uma colaboração mais próxima e para um desenvolvimento conjunto. Embora seja uma organização filantrópica, a elea sempre aplicou uma lógica de investidora, esforçando-se para estabelecer ações que aliviem a pobreza, mas possam ser autossustentáveis a longo prazo. Essa experiência foi muito útil para orientar a transformação digital da Fundes. Em 2020, enquanto a Fundes explorava novas oportunidades de negócios no mundo digital, a pandemia de covid-19 atacou. O impacto sobre as MPMEs na América Latina foi severo. A própria fundação foi forçada a acelerar sua transição para uma organização mais integrada e virtual, com ênfase no digital. Em 2021, a Fundes lançou a Merkomuna, uma plataforma digital para compras em grupo baseadas em comunidades, com pequenas lojas servindo como pontos de distribuição. A nova empreitada rapidamente mostrou potencial ao atrair investidores e uma considerável base de usuários de proprietários de lojas: após dois anos de operação, a Merkomuna se separou da Fundes Digital com um CEO e um conselho de administração dedicados, com assentos para a Fundes e a elea. Além disso, Michael Jost, ex-CFO da Nestlé México, tornou-se membro do conselho e investidor.

Jost tinha experiência em operações de FMCG e varejo, incluindo logística, soluções para entrega final e as peculiaridades dos produtos alimentícios e suas margens nas cadeias de valor. Pela abordagem bem organizada da Fundes, convenceu-se a desenvolver o negócio. “Eles analisaram 20 modelos diferentes de como a Merkomuna poderia funcionar e fizeram benchmarking sistemático, em particular com o Pinduoduo, um famoso site chinês de compras em grupo”, diz Jost. “Com base nesse benchmarking, concluímos que o modelo poderia ser aplicado às pequenas lojas tipo changarro [minissupermercado]. Só no México, tínhamos um milhão de changarros. […] Pela minha experiência em FMCG, eu sabia que as grandes corporações não têm essa conexão direta porque dá muita dor de cabeça gerenciá-las.”

A plataforma arrecadou US$ 2 milhões em capital em 18 meses e alcançou vendas anuais de US$ 1,5 milhão. Tudo isso foi obtido com o atendimento de apenas uma parte de Toluca, capital do estado do México, onde a Merkomuna logo se expandiu para atender 4 mil pequenas lojas. No entanto, apesar desse crescimento, a Merkomuna nunca atingiu a lucratividade.

“Crescemos muito rápido, nos mudamos para um armazém maior, investimos bastante no aplicativo, integramos a logística de back-office e contratamos pessoas demais”, afirma Jost. Os desafios do modelo intensivo em capital foram ainda mais ampliados por uma desconexão operacional entre a gestão da Merkomuna e a liderança da Fundes. Por fim, a Merkomuna fechou no final de 2023. Apesar desse revés, a fundação aprendeu com o processo e enxergou uma oportunidade de construir sobre os insights obtidos: formalizou sua abordagem de construção de empreendimentos ao explorar, idealizar, criar protótipos e lançar empreendimentos sociais de forma mais sistemática.

INSTITUCIONALIZAÇÃO

DO EMPREENDEDORISMO SOCIAL

EM 2020 , NO AUGE DA PANDEMIA, a liderança da Fundes mais uma vez debatia o futuro da fundação em meio a uma crise global. Dois jovens profissionais, o gerente de soluções Mauricio Ramírez e o diretor de crescimento Corentin Larue, sugeriram: “Por que não nos tornamos a Rocket Internet de soluções para micro e pequenas empresas na América Latina?”

Ambos se inspiraram na empresa de capital de risco alemã Rocket Internet, que se especializou em replicar modelos de negócios de sucesso baseados na internet em mercados emergentes. Assim como a Rocket Internet lançou plataformas de comércio eletrônico como Zalando, na Europa, e Lazada, no Sudeste Asiático, Ramírez e Larue viram potencial para um modelo semelhante na América Latina. “Estávamos trabalhando com micro e pequenas empresas e víamos cada vez mais startups oferecendo produtos e serviços para esse público, que conhecíamos muito bem”, conta Larue.

O resultado desse repensar foi a Fundamental, uma incubadora de empreendimentos sociais para lançar negócios orientados a soluções com base no portfólio de projetos que a Fundes havia desenvolvido. Mais uma vez, a fundação teve de descobrir qual seria a trajetória de um novo negócio. Enquanto as primeiras iniciativas digitais da Fundes se concentravam em complementar e apoiar seu modelo de consultoria, a construção de novos empreendimentos começou a se transformar em uma avenida independente para criar impacto.

A Fundamental lançou startups como a Simón, uma plataforma SaaS (software como serviço) que permite que grandes empresas treinem microempreendedores na cadeia de valor ou trabalhadores que atendem essas microempresas por meio de um formato de vídeo semelhante ao TikTok; a Voalá, um empreendimento social de microfranquias que apoia salões de beleza na Guatemala;

a Ékole, uma empresa de lanches saudáveis que conecta produtores a mercados; e a Trófica, um serviço de reciclagem de ponta a ponta. Hoje, a Fundamental tem um portfólio robusto de soluções inovadoras que abordam as principais necessidades de negócios das MPMEs, como entrega final, e-learning e microfranquias.

O foco principal da Fundamental era a exploração e a ideação. Uma vez que um conceito de empreendimento se mostrasse promissor, a incubadora procurava um empreendedor para levá-lo adiante, oferecendo uma participação de 30% que poderia crescer para 60% ou 70% ao longo do tempo. O objetivo da Fundamental era lançar pelo menos um novo empreendimento social a cada ano. Após 18 meses de incubação e construção de empreendimentos, os projetos buscariam financiamento independente e desenvolvimento adicional.

“Esse é um ecossistema”, diz Torres sobre a interação entre o modelo de consultoria da Fundes e a Fundamental. “A Fundes permanece sendo a organização que trabalha com as MPMEs e o mun-

do corporativo, mas que também procura o que poderia ser um empreendimento social [para a Fundamental]. Então, os empreendimentos [da Fundamental] podem trazer negócios para a Fundes e servir como exemplos da maneira pela qual o mundo corporativo pode integrar a criação de valor social em seu núcleo e não apenas considerar a RSC [responsabilidade social corporativa].”

A transformação da Fundes em uma incubadora de empreendimentos sociais foi facilitada por meio de parcerias com investidores filantrópicos como a Fundação Julius Bär, Leopold Bachmann Stiftung e Argidius, bem como investidores de impacto como a Fourfold Foundation, GitLab Foundation e elea. Esses financiadores contribuíram com suporte financeiro e ajudaram a implementar o novo modelo operacional.

“No início, havia um forte foco na estratégia, e provavelmente colocamos muita ênfase nisso”, diz Ackeret. “Em retrospectiva, deveríamos ter colocado ênfase extra no estabelecimento de padrões de relatórios e transparência financeira para os investidores. A Fundes sempre foi muito profissional em relatórios de impacto. Mas prestar contas aos investidores é mais sobre KPIs [indicadores-chave de desempenho] e pontos de comprovação.”

Uma consultora da Fundes orienta o proprietário de uma empresa de gestão de resíduos industriais em San José, Costa Rica, em 2017

Um consultor da Fundes conduz um workshop com um pequeno fornecedor de aço no Equador, em 2018

Na transformação anterior da fundação, o CEO Torres contratou gerentes de negócios para substituir a equipe concentrada em filantropia. Dessa vez, trouxe a bordo indivíduos com mentalidade empreendedora que queriam desenvolver sua participação em projetos e crescer junto com eles. Para impulsionar esse novo modelo, a Fundes também promoveu talentos internos. Essa nova geração de funcionários incluiu líderes como Mauricio Ramírez, que se tornou diretor administrativo da Fundes em outubro de 2023; Corentin Larue, que passou a ser o diretor administrativo da Fundamental no início de 2022; e Maxime Braun, construtor de empreendimentos experiente que assumiu o cargo de diretor de portfólio da Fundamental em fevereiro de 2022. Descritas de maneira amigável por Frei como hipsters, as equipes da Fundamental se reuniram na Cidade do México, um centro para nômades digitais, trabalhando remotamente com os gerentes locais que cuidavam dos clientes nos principais mercados da fundação na América Latina. Localizado em seu maior mercado, o escritório da Fundes na Cidade do México se tornou seu polo estratégico.

LIÇÕES DA FUNDES

NA FESTA DE 40 ANOS DA FUNDES, diferentes gerações da gestão da fundação se reuniram para celebrar suas conquistas passadas e vislumbrar

A

Fundes é um exemplo de como pode ser difícil perseguir uma missão social ao longo de várias décadas. Embora suas transformações tenham se mostrado eficazes, a jornada não foi nada fácil. Houve inúmeros contratempos, desafios e conflitos

um futuro. A noite capturou o desenvolvimento da Fundes: enquanto cada geração enfrentou e dominou desafios únicos, todas foram unidas pela missão de ajudar as MPMEs a trazer prosperidade para a América Latina. A fidelidade da Fundes à sua missão foi confirmada por um beneficiário recente, Luis Antonio Tello, proprietário da Shucos Estelita, uma loja de sanduíches em um bairro de baixa renda na Cidade da Guatemala. “Eles me ajudaram a realizar meu sonho para toda a minha família”, disse Tello. “Obrigado, Fundes!”

Ao longo das transformações da fundação, Frei atuou como o guardião da missão. Embora a Fundes tenha permanecido firme em seu compromisso com as MPMEs, sua definição de “impacto” evoluiu. Nos primeiros anos da instituição, cada funcionário podia ver imediatamente o impacto que estava tendo nas MPMEs. Na segunda fase, de consultoria, a compreensão do impacto tornou-se mais ampla e complexa, pois também se referia aos grandes parceiros corporativos da organização. Essa complexidade ganhou ainda mais impulso nas iniciativas de empreendimentos sociais mais recentes.

“Quanto mais os investidores querem medir, mais temos de medir”, diz Frei. “Mas essas métricas nem sempre se relacionam com o impacto. Por exemplo, se 100 mil pessoas usam nosso aplicativo, não podemos presumir que tiramos 100 mil pessoas da pobreza. Isso era diferente no início da Fundes, quando podíamos ver diretamente nosso impacto para as MPMEs.”

A história da Fundes revela, em última análise, as condições, oportunidades e desafios associados à busca de longo prazo de uma missão social unificadora sob circunstâncias internas e externas em constante mudança. Primeiro, mostra que a realização de um impacto sustentável a longo prazo para a sociedade requer gestores dedicados e muito empreendedores. No caso da Fundes, a mentalidade empreendedora está enraizada tanto na sua missão como nas pessoas encarregadas de impulsionar essa missão. Os executivos da entidade mostraram talento para identificar oportunidades, assumiram riscos calculados, resolveram problemas de forma criativa, persistiram diante dos desafios e exibiram uma abordagem proativa e inovadora para questões empresariais e sociais. Por exemplo, a primeira transformação em uma consultoria de valor compartilhado exigiu a identificação de um modelo de negócio radicalmente novo para o qual não havia modelos de referência no mercado. Segundo, a Fundes teve de entrar em domínios de mercado totalmente novos para continuar seguindo sua missão. Apesar da resistência de muitos funcionários, os gestores persistiram e entraram em território desconhecido. Durante a primeira transformação, começaram a colaborar com grandes multinacionais de varejo que diferiam de forma drástica das MPMEs que eram os clientes

anteriores da Fundes. Da mesma forma, a segunda transformação em uma incubadora de empreendimentos sociais trouxe mais uma vez uma nova lógica de mercado e exigiu que a fundação gerenciasse um novo conjunto de indicadores-chave de desempenho, como número de usuários, capacidade de ampliação ou fluxo de caixa. Terceiro, novos domínios de mercado vieram com a necessidade de abraçar novos grupos de stakeholders. Os primeiros dias da Fundes como organização filantrópica exigiram que ela agisse de forma muito centrada no doador e se alinhasse à visão e ao propósito de financiamento do doador. As fundações continuam importantes hoje, mas em papéis diferentes. Por exemplo, a Fundação elea tornou-se mais engajada do que os doadores iniciais. No entanto, a complexidade aumentou a cada transformação. Como a Fundes é uma empresa de consultoria de valor compartilhado, grandes corporações e instituições governamentais precisaram ser gerenciadas com cuidado, sem alienar os stakeholders existentes. A última transformação aumentou ainda mais a complexidade dos stakeholders, com muitas outras organizações envolvidas. Enquanto antes havia tipicamente uma fundação fornecendo apoio financeiro, a gestão da Fundes passou agora a lidar com conselhos de investidores compostos de múltiplas fundações e fundos. Também internamente, a Fundes hoje precisa atender a demandas muito distintas, como as dos especialistas em TI que exigem oportunidades de trabalho remoto e mecanismos de incentivo diferentes dos consultores de linha de frente que trabalham de forma direta com as MPMEs.

Por fim, a Fundes é um exemplo de como pode ser difícil perseguir uma missão social ao longo de várias décadas. Embora suas transformações tenham se mostrado eficazes, a jornada não foi nada fácil. Houve inúmeros contratempos, desafios e conflitos. A boa notícia, no entanto, é que as experiências e capacidades que a organização acumulou nos últimos 40 anos provavelmente a ajudarão a continuar sua jornada de transformação e a defender sua missão, quaisquer que sejam os novos desafios a aguardá-la no horizonte. O

TINA C. AMBOS é professora de gestão internacional e diretora do Centro de Inovação e Parcerias da Escola de Economia e Gestão da Universidade de Genebra.

ALEXANDER ZIMMERMANN é professor adjunto de desenvolvimento organizacional e chefe de desenvolvimento universitário da Universidade de St. Gallen.

SEBASTIAN H. FUCHS é professor de gestão e liderança e de empreendedorismo no Tecnológico de Monterrey, além de pesquisador visitante na Oxford Brookes Business School e na Oxford Space Initiative da Universidade de Oxford. Os autores gostariam de agradecer à equipe da Fundes, em particular Ulrich Frei e Elfid Torres, bem como a outras pessoas entrevistadas, por seu generoso apoio e tempo durante anos de pesquisa.

A restauração produtiva de milhões de hectares no Brasil exige mais do que tecnologia: demanda inovação na forma de financiar e estruturar projetos.

A experiência da Belterra e de outras organizações de impacto mostra que é possível superar barreiras de risco, prazo e escala para transformar o uso sustentável da terra em um setor robusto e replicável

como financiar a restauração florestal produtiva

O BRASIL POSSUI PELO MENOS 80 MILHÕES DE HECTARES DE TERRAS DEGRADADAS –UMA EXTENSÃO EQUIVALENTE AO TERRITÓRIO DA COLÔMBIA. 1

Essa degradação é, hoje, uma das principais razões pelas quais o país figura entre os dez maiores emissores de gases de efeito estufa (GEE) do mundo. 2 Seus impactos, embora globais e de longo prazo, já se manifestam de forma concreta no território nacional. As enchentes que devastaram o estado do Rio Grande do Sul em 2024, bem como a seca histórica que atingiu a Amazônia no mesmo ano, foram associadas ao desmatamento e à perda da cobertura vegetal, 3 e expuseram os efeitos sistêmicos da degradação: desequilíbrio climático e aprofundamento da vulnerabilidade social de milhões de pessoas.

POR ISABEL APEL BRITEZ, MARCELO PERETI E VALMIR ORTEGA

Ilustrações de Catarina Bessell Fotos cortesia da Belterra Agroflorestas

Áreas degradadas são aquelas em que houve perda de produtividade e complexidade do solo,4 acompanhada da redução na capacidade de prestar serviços ecossistêmicos essenciais, como a regulação do clima e o ciclo das chuvas.5 Regiões degradadas frequentemente enfrentam também impactos sobre a saúde e a qualidade de vida da população local como resultado da alteração nos ciclos hídricos, do desequilíbrio no controle natural de pragas e da piora na qualidade do ar. A renda gerada nessas áreas tende a ser baixa e, no Brasil, está majoritariamente ligada à pecuária de baixíssima produtividade – com a média de uma cabeça de gado por hectare – ou à agricultura pouco eficiente. Essas terras deixam de funcionar como sumidouros de carbono e passam a emitir GEE, além de apresentar queda significativa na biodiversidade.

A degradação ocorre, em grande parte, por meio de queimadas e desmatamento florestal. Entre 1990 e 2023, essas atividades responderam por cerca de 60% das emissões de GEE no país.6 Somadas às emissões da agropecuária – o segundo maior fator emissor –, elas representam cerca de 80% do total.7 Essa dinâmica se intensifica justamente na Amazônia brasileira, que abriga alguns dos ecossistemas mais biodiversos do planeta, mas também concentra os maiores emissores nacionais: os estados do Pará, Maranhão e Mato Grosso.

Reverter esse quadro é urgente, mas esbarra em um obstáculo estruturante: o financiamento. A restauração produtiva em larga escala exige não apenas ambição política e técnica, mas também soluções financeiras que estejam à altura do desafio. O Brasil estabeleceu a meta de restaurar 12 milhões de hectares até 2030 como parte de sua Contribuição Nacionalmente Determinada ao Acordo de Paris. Essa meta foi incorporada à Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg) e será operacionalizada pelo Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), criado em 2017 e revisado em 2024. Trata-se de um plano estratégico que articula governo, setor privado e sociedade civil para viabilizar a restauração em larga escala. No entanto, o financiamento dessa ambição continua sendo o elo mais frágil.

A implantação de sistemas de restauração produtiva, como os sistemas agroflorestais (SAFs) – que integram espécies nativas e culturas agrícolas, promovendo a recuperação ambiental e a geração de renda –, demanda investimentos elevados, planejamento técnico complexo, assistência técnica contínua e tempo para maturação dos resultados. Cada hectare de agrofloresta abriga, em média, mil mudas e requer insumos diversos, como condicionadores de solo, adubos, equipamentos e práticas específicas de manejo. Esses sistemas também exigem mão de obra especializada e acompanhamento técnico. O custo médio estimado é de R$ 45 mil por hectare.8 Para restaurar os 12 milhões de hectares previstos com SAFs, seriam necessários cerca de R$ 540 bilhões até 2030. Esse custo é compensado pelos resultados: áreas que migram de monoculturas ou da pecuária extensiva para sistemas agroflorestais podem se tornar até 20 vezes mais rentáveis. A agrofloresta é, de fato, uma revolução. É nesse contexto que atua a Belterra, uma organização privada que desenvolve projetos que articulam produtores rurais em arranjos coletivos de restauração florestal produtiva, por meio de sistemas agroflorestais adaptados a diferentes biomas e territórios. A estratégia combina práticas regenerativas com soluções financeiras inovadoras, como o blended finance, articulando diferentes fontes de capital – filantrópico, concessional e comercial –

para viabilizar a restauração em escala. O objetivo é transformar a restauração em uma atividade economicamente viável para produtores e atrativa para investidores.

Ainda assim, mesmo com modelos estruturados, iniciativas como a da Belterra enfrentam barreiras significativas para acessar financiamento. Investidores costumam demonstrar baixa familiaridade com os ciclos produtivos da restauração, aversão a riscos climáticos e reputacionais e exigência de garantias tradicionais que muitas vezes são incompatíveis com os arranjos fundiários da agricultura familiar e de projetos coletivos. O ambiente macroeconômico brasileiro, com juros altos e demanda por liquidez, agrava o cenário. Apesar disso, a Belterra e outras organizações têm conseguido demonstrar que é possível desenhar mecanismos de financiamento adaptados à realidade da restauração – por meio da comercialização de produtos agroflorestais de alto valor, como cacau e café, da emissão de créditos de carbono ou do uso de instrumentos inovadores da bioeconomia, como créditos de biodiversidade e pagamentos por resultados.

Este artigo parte das experiências da Belterra e de outras organizações que atuam no ecossistema da restauração para discutir como projetos de regeneração ambiental em larga escala podem se tornar viáveis, passíveis de ser ampliados e financeiramente sustentáveis. Exemplos concretos, desafios enfrentados e soluções construídas evidenciam a urgência de inovar não apenas nas técnicas de cultivo, mas também nas finanças. A restauração pode, sim, se consolidar como uma indústria robusta, desde que estruturas adequadas de financiamento, governança e confiança entre os atores sejam estabelecidas. Com isso, o Brasil pode deixar de ser o país que destruiu uma Colômbia de florestas para se tornar aquele que lidera a sua reconstrução.

Superar barreiras para impulsionar a restauração

oS DESAFIOS RELACIONADOS AO USO DA TERRA no Brasil vão além do controle do desmatamento e da adoção de práticas sustentáveis de manejo e restauração. Dizem respeito, também, aos milhões de pessoas que dela dependem. Estima-se que mais de 4 milhões de pequenos e médios produtores rurais enfrentem dificuldades estruturais como acesso limitado a crédito, inserção precária em mercados e ausência de assistência técnica adequada.9 Nesse contexto, a proposta de restauração florestal produtiva da Belterra busca integrar a preservação ambiental à geração de oportunidades para esses agricultores, contribuindo para a redução de suas vulnerabilidades sociais e econômicas.

Diante da magnitude do desafio – milhões de hectares degradados e milhões de produtores rurais –, a solução precisaria estar à altura, em ambição e escala. Modelos de restauração produtiva baseados em sistemas agroflorestais já existiam e demonstravam bons resultados em diferentes cenários. A dificuldade, no entanto, estava em comprovar que essas soluções podiam ser replicadas em larga escala, transformando áreas degradadas em territórios férteis, produtivos e socialmente vibrantes. Era preciso mostrar que restaurar milhões de hectares com geração de renda era, sim, possível. Mas uma pergunta se impunha: como financiar essa escala?

Essa pergunta não é exclusiva das empresas que atuam com restauração florestal. Também ressoa entre empreendedores da inovação social que enfrentam desafios semelhantes: barreiras ao crescimento associadas à novidade de seus produtos ou serviços, à necessidade de construir credibilidade em setores emergentes, à interlocução com um mercado de investimentos ainda tradicional e às relações complexas com os beneficiários finais. Soma-se a isso a dificuldade, por parte de investidores e financiadores, de compreender plenamente os riscos e benefícios sociais, econômicos e ambientais envolvidos. No campo da restauração, no entanto, exis-

créditos de carbono, outra importante fonte de receita, demanda ainda mais tempo, devido à complexidade técnica, aos custos envolvidos e à necessidade de comprovação dos resultados. Investidores tradicionais raramente aceitam manter aportes travados por mais de cinco anos, o que dificulta sua participação em projetos com retornos sustentáveis e progressivos.

Como observou José Pugas, sócio e head de investimentos responsáveis e engajamento da JGP Asset Management, “há uma defesa do longo prazo, que é hipercorreta, mas não posso ignorar que a maior parte dos investidores tem visões curto-prazistas. Então,

O

custo da transição é compensado pelos resultados:

áreas que migram de monoculturas ou da pecuária extensiva para sistemas agroflorestais podem se tornar até 20 vezes mais rentáveis.

A agrofloresta é, de fato, uma revolução

tem especificidades que tornam o desafio ainda mais agudo e que merecem atenção especial.

Do lado dos financiadores, uma série de fatores explica a falta de interesse em projetos de restauração. Um estudo recente da Climate Policy Initiative (CPI),10 organização global especializada em finanças e políticas públicas, identifica cinco principais razões para essa lacuna:

• Descompasso entre os prazos de posse da terra e a escala necessária de investimento;

• Desalinhamento entre a busca por lucros de curto prazo e os objetivos de sustentabilidade de longo prazo;

• Alto risco percebido, associado a um setor ainda volátil e a um tipo de ativo relativamente novo;

• Falta de familiaridade com as diferentes necessidades de investimento em soluções de agricultura sustentável;

• Inexistência de capacidade para garantir a adoção contínua das soluções.

Além desses fatores, a trajetória de captação da Belterra revelou outros obstáculos igualmente relevantes. Um deles é o impacto do ambiente macroeconômico brasileiro: as altas taxas de juros desestimulam investimentos de maior risco, sobretudo aqueles com taxas de retorno semelhantes ou inferiores às alternativas tradicionais de mercado. Como consequência, mesmo projetos inovadores e ainda em fase de consolidação acabam submetidos a uma pressão por alta rentabilidade, justo num momento em que sua capacidade de entrega ainda está em desenvolvimento e aperfeiçoamento.

Outro fator relevante, que dialoga com o ponto levantado pela CPI sobre o desalinhamento entre retornos de curto e longo prazo, é o que se costuma chamar de “miopia dos investidores” – a preferência por retornos financeiros rápidos e alta liquidez, mesmo quando os projetos exigem prazos mais longos para maturar. No caso da Belterra, por exemplo, o intervalo entre o plantio e a primeira colheita de cacau varia de três a cinco anos. A geração de

se eu quero efetivamente democratizar o acesso a investimentos sustentáveis, tenho que trabalhar com diferentes camadas de expectativas de retorno”.11

Além do descompasso entre os prazos dos financiamentos e os ciclos dos projetos, os investimentos no uso sustentável da terra ainda apresentam aos investidores um perfil de risco pouco familiar. Trata-se de um tipo de ativo novo, inserido em um setor ainda volátil e em processo de consolidação.12 A subcategoria da restauração florestal ainda não está estruturada como um setor formalizado, o que amplia as incertezas. No entanto, os riscos vão além da novidade ou da instabilidade de mercado. Há uma questão central que permeia a relação entre investidores e projetos de impacto ambiental: o risco reputacional.

À diferença de setores como o de tecnologia, onde um investimento malsucedido pode resultar na perda financeira ou na falha de um produto, projetos ambientais mal executados expõem os investidores a consequências simbólicas e políticas muito mais complexas. Isso porque não estão em jogo apenas retornos econômicos, mas compromissos públicos com causas climáticas e socioambientais. Um projeto de reflorestamento que não cumpre suas promessas – seja na regeneração esperada, na geração de renda ou na certificação de créditos de carbono – pode ser interpretado como greenwashing. Nesse caso, a credibilidade de quem investe é diretamente impactada, colocando em risco sua reputação diante de pares, imprensa e sociedade.

Como resposta aos riscos percebidos, investidores têm exigido cada vez mais garantias – o que, na prática, se traduz em uma multiplicação de exigências documentais, sistemas de monitoramento, auditorias independentes, relatórios ESG (do inglês Environmental, Social and Governance; Ambiental, Social e Governança, em português), indicadores de impacto e métricas de performance. Embora essas demandas sejam em muitos casos desejáveis, elas impõem uma carga operacional significativa que empresas nascentes, especialmente aquelas que atuam em territórios remotos, têm dificuldade de absorver.

Além disso, projetos baseados na natureza enfrentam riscos climáticos sistêmicos, como alterações imprevisíveis nos regimes de chuva ou elevações na temperatura média, além de dependências ambientais complexas, como a polinização natural e a regeneração do solo. Essas variáveis são difíceis de modelar com a precisão esperada pelos analistas financeiros. Ferramentas convencionais de avaliação de risco, como o fluxo de caixa descontado, muitas vezes não capturam essas dinâmicas e se mostram inadequadas para a realidade dos projetos ambientais. Isso evidencia a necessidade de novas formas de avaliação e previsão de riscos, que ainda não foram plenamente desenvolvidas ou incorporadas ao setor financeiro tradicional. Apesar dos muitos desafios, o contexto que permitiu a criação da Belterra e que tem sustentado sua trajetória indica que um cenário mais favorável vem se consolidando para o setor da restauração. Novas estruturas de financiamento estão sendo desenvolvidas e diferentes tipos de atores têm se engajado para viabilizar negócios voltados à restauração produtiva. Isso revela um campo em transformação, no qual a filantropia se reposiciona estrategicamente e despontam novas possibilidades para as finanças sustentáveis. A própria história da Belterra ilustra esse movimento. Sua origem é exemplo dessa mudança de paradigma e de transformações mais amplas no ecossistema da restauração – desde a nova atuação de bancos comerciais e de desenvolvimento até o papel emergente, e cada vez mais essencial, dos gestores intermediários.

Da semente à estratégia

eM 2017 , O ECOSSISTEMA PARA O desenvolvimento e o financiamento de soluções em restauração começou a demonstrar amadurecimento com dois marcos importantes: a criação do Planaveg e o lançamento da chamada pública Recuperação da Cobertura Vegetal, pelo Fundo Amazônia – criado pelo governo brasileiro em 2008 e gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para captar doações e financiar ações de conservação da floresta. A chamada previa um aporte de R$ 200 milhões para até cinco projetos de recuperação da vegetação nativa, com foco na estruturação técnica e gerencial da cadeia de reflorestamento e na regularização ambiental de propriedades rurais.

Nesse contexto, a Belterra iniciou suas atividades com a aquisição de uma propriedade no Pará, destinada a funcionar como um laboratório de experimentação para a restauração florestal. Na mesma época, o Fundo Vale, braço filantrópico da mineradora Vale, assumia o compromisso de restaurar 100 mil hectares até 2030, contribuindo com a meta brasileira de 12 milhões de hectares definida no Acordo de Paris. Após uma série de conversas, firmou-se uma parceria: a Belterra se comprometeria a executar projetos de restauração de terras degradadas com o apoio do Fundo Vale, e as áreas restauradas seriam consideradas parte da meta de reflorestamento do Fundo.

A parceria entre a Belterra e o Fundo Vale mostrou que havia espaço para ir além da atuação filantrópica tradicional. Revelou-se ali a possibilidade de um modelo mais ousado, capaz de combinar capital filantrópico com recursos de mercado para alavancar investimentos em restauração. A partir dessa virada estratégica, o Fundo Vale passou a operar como uma plataforma de investimen-

to de impacto, ampliando sua capacidade de mobilizar recursos e fomentar soluções e negócios voltados à recuperação de áreas degradadas. Nascia, assim, não apenas uma operação de restauração, mas também um projeto-piloto com o propósito de comprovar a viabilidade de um modelo replicável e ampliável para o setor. Ao longo dos anos, a atuação do Fundo – investindo em negócios, usando capital filantrópico como catalisador e fortalecendo o ecossistema da restauração – atraiu novas empresas, consolidando-se como uma das principais referências em investimento de impacto voltado à restauração florestal no Brasil.

Desde o início, a Belterra sabia que assumir o papel de primeiro caso bem-sucedido nesse modelo traria grandes responsabilidades: amadurecer rapidamente, atrair investidores, estruturar cadeias produtivas e desenvolver um modelo de negócios sólido, com relevância ambiental e social. Entre os marcos desse compromisso estão a certificação como Empresa B, que atesta seu impacto socioambiental por meio de auditorias e indicadores, e a parceria com apoiadores estratégicos, como a suíça Good Energies Foundation, voltada a negócios de impacto, que selecionou o projeto como um dos poucos apoiados no Brasil. Hoje, a organização segue em tratativas com diferentes fundos de investimento para viabilizar a expansão do modelo para 40 mil hectares até 2030, consolidando um arranjo sustentável e de longo prazo para a restauração florestal e o fortalecimento de negócios regenerativos na Amazônia.

O capital encontra a floresta

nO CAMINHO DA EXPANSÃO, A BELTERRA identificou quatro vias principais para financiar projetos de restauração: bancos privados, bancos de desenvolvimento, blended finance e equity, cada um com seus próprios desafios e limitações.

A primeira tratativa foi com os bancos privados, e a experiência revelou rapidamente os limites desse tipo de crédito. As análises dessas instituições seguem modelos desenhados para culturas

Bancos privados mostraram que ainda não estão preparados para aceitar garantias inovadoras. Idealmente, ativos como créditos de carbono ou contratos de venda futura de cacau poderiam ser utilizados como colaterais aos empréstimos. Na prática, porém, as exigências continuam centradas em garantias tradicionais como a posse da terra ou fianças. Isso torna o crédito inacessível para negócios como o da Belterra, que operam com parcerias e arrendamentos em vez de propriedades próprias. Mesmo que a organização fosse a proprietária das terras, é pouco provável que isso facilitasse os empréstimos: em geral, os bancos atribuem baixo valor comercial às terras na Amazônia, o que reduz sua atratividade como garantia em caso de inadimplência e dificulta ainda mais o financiamento de projetos nesse bioma.

Outro entrave importante está nos prazos dos empréstimos. Os bancos privados costumam operar com financiamentos de curto e médio prazo – em geral entre cinco e seis anos. No entanto, esse horizonte é incompatível com os ciclos de produção da restauração. Essa defasagem entre o tempo da terra e o tempo do capital deixa claro por que o modelo tradicional de crédito bancário não atende às necessidades de projetos de restauração produtiva.

O blended finance surge como a terceira via promissora para o financiamento da restauração de terras e já apresenta casos bem-sucedidos de implementação no setor. Também conhecido como financiamento misto, consiste no uso de capital catalítico, proveniente de fontes públicas ou filantrópicas, para atrair investimentos do setor privado em países de baixa e média renda, com o propósito de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.13 Trata-se de uma abordagem voltada à estruturação de operações financeiras, e não de um tipo de investimento em si. A criação de um veículo de blended finance exige, como primeiro passo, a captação de fundos concessionais – ou seja, recursos ofertados em condições mais favoráveis que as praticadas no mercado, a fim de reduzir o custo total do capital para o tomador e/ou oferecer proteção adicional contra perdas aos investidores mais seniores, em especial quando estão expostos à chamada “posição de primeira perda”.14

O capital concessional pode ser mobilizado por diferentes instrumentos financeiros, como dívida, capital próprio, subsídios ou financiamento mezanino. O blended finance tem se mostrado essencial justamente porque o apetite de investidores tradicionais por projetos com risco elevado, garantias inovadoras e prazos longos de retorno ainda é bastante limitado. Por isso, o capital catalítico – frequentemente captado como doação, ou seja, a fundo perdido –desempenha um papel estratégico, atuando como amortecedor de risco e tornando o investimento mais atrativo para os demais participantes. No campo dos investimentos de impacto, essa aborda-

Os riscos vão além da novidade ou da instabilidade de mercado. Há uma questão central que permeia a relação entre investidores e projetos de impacto ambiental: o risco reputacional

A segunda via são os bancos de desenvolvimento, como o BNDES, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Corporação Financeira Internacional (IFC). Esses bancos geralmente oferecem condições mais favoráveis, com juros mais baixos, prazos mais longos e períodos de carência mais flexíveis. Ainda assim, não estão isentos dos desafios que envolvem o financiamento de projetos de restauração. Em 2024, por exemplo, a re.green, empresa que atua com restauração ecológica em larga escala, obteve a aprovação de um empréstimo de quase R$ 200 milhões do BNDES, com juros de 7% ao ano, para restaurar 15 mil hectares. O recurso fazia parte do programa Arco da Restauração, estruturado justamente para apoiar esse tipo de projeto. No entanto, o acesso ao financiamento foi dificultado por entraves burocráticos, sobretudo pela exigência de uma carta fiança – uma garantia que a maioria dos bancos comerciais se recusou a fornecer. Isso mostra que, apesar da existência de linhas de crédito voltadas à restauração florestal, as exigências e instrumentos de garantia ainda não foram adaptados de modo apropriado. Na prática, esses recursos seguem inacessíveis para empresas emergentes do setor, como a Belterra, a re.green e a Mombak, que atua na restauração de florestas nativas.

gem tem viabilizado o financiamento de projetos socioambientais com taxas abaixo das praticadas no mercado.

Um exemplo concreto vem da Sitawi, fundo de investimento de impacto, relatado por seu diretor Bruno Girardi.15 Ele descreve o caso de uma cooperativa que precisava de capital de giro para comprar insumos, mas não conseguia acessar crédito a taxas de mercado, que variavam entre 14% e 16% ao ano. Por meio de uma estruturação blended, a Sitawi conseguiu oferecer financiamento com taxa zero, permitindo que os cooperados mantivessem suas atividades, reduzissem sua vulnerabilidade econômica e permanecessem em suas terras. Trata-se de uma estratégia com forte impacto socioeconômico e potencial transformador nos territórios.

O uso do financiamento misto no setor agrícola global tem se expandido de forma consistente desde 2014, alcançando cerca de US$ 3 bilhões em 2023.16 Esse avanço reflete não apenas o papel crescente das fontes públicas na estruturação de transições financeiras, mas também uma transformação significativa no modo como a filantropia atua. Tradicionalmente associada a doações, a filantropia começa agora a empregar seus recursos de forma estratégica, alavancando investimentos adicionais e compartilhando agrícolas tradicionais, com garantias bem estabelecidas e baixo nível de inovação. Em consequência, há pouca margem para adaptar os critérios a projetos inovadores, sobretudo aqueles relacionados ao uso sustentável da terra. Isso restringe o acesso a recursos por iniciativas como a da organização.

Apesar do crescente interesse do mercado financeiro por estruturas de blended finance, esse modelo ainda não está bem consolidado nem é de fácil replicação. Cada novo projeto exige da Belterra uma engenharia financeira própria, capaz de alinhar diferentes interesses e expectativas – não apenas em termos de retorno financeiro, mas também em relação a prazos, taxas e perfis de risco. Mesmo

bientais como lastro de CRA; realizar auditorias socioambientais; e construir indicadores de impacto capazes de atender às exigências de governança e transparência dos investidores. Esse caso demonstra que, em um campo onde a inovação técnica já está consolidada, o verdadeiro avanço depende da engenharia financeira e da confiança construída entre atores diversos.

Além das iniciativas em curso, a Belterra está estruturando um fundo de investimento voltado ao apoio de projetos sustentáveis no Brasil rural. Em parceria com a gestora Régia Capital, está sendo criado um Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais (Fiagro) com valor-alvo de R$ 130 milhões. Ainda em fase de captação, o fundo já despertou o interesse de investidores internacionais, especialmente por contar com uma estrutura

Apesar da existência de linhas de crédito voltadas à restauração florestal, as exigências e instrumentos de garantia ainda não foram adaptados de modo apropriado. Na prática, esses recursos seguem inacessíveis para empresas emergentes do setor

diante desses desafios, o programa CRA Verde ilustra como a combinação adequada de capital, estrutura e parcerias pode viabilizar o financiamento da restauração produtiva em escala.

Em janeiro de 2023, a Belterra emitiu R$ 17 milhões em Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRAs), lastreados em contratos de compra futura de cacau, castanhas, açaí e créditos de carbono. Com vencimento em três anos, os recursos foram destinados a oferecer capital de giro a 22 cooperativas e associações comunitárias, além de quatro pequenas e médias empresas de impacto situadas nas regiões Norte e Nordeste do país.

Um dos elementos centrais da estrutura do CRA Verde foi a posição de primeira perda assumida pela Good Energies Foundation por meio do Instituto Belterra, que ofereceu uma camada de proteção essencial aos investidores seniores. A Conexsus, por meio da CX Investimentos Socioambientais, aportou R$ 5 milhões com recursos do Fundo Vale. Também atuou como estruturadora com o Grupo Gaia, arquiteto financeiro da operação, coordenando diligências, modelagem de fluxo de caixa e negociações com as diferentes fontes de recursos. Já o Banco Santander entrou como coordenador-arranjador e investidor da cota sênior, conferindo credibilidade à operação e ampliando o acesso a investidores institucionais. O CRA Verde já está gerando impactos socioeconômicos concretos: os recursos vêm sendo usados para aquisição de insumos, aumento da produtividade e garantia de compradores para as safras das cooperativas beneficiadas. No entanto, foram necessários cinco anos de trabalho para tirar o projeto do papel. Foi preciso compatibilizar os prazos esperados pelos investidores – geralmente de dois a quatro anos – com os ciclos produtivos das culturas agroflorestais, que variam de três a sete anos. Também foi necessário desenvolver cláusulas de carência e gatilhos de pagamento atrelados a entregas de colheita e certificações de carbono; superar barreiras regulatórias para o uso de recebíveis agrícolas e am-

financeira robusta e uma governança reconhecida pelo mercado brasileiro. Para atrair capital privado e mitigar o risco percebido, o fundo foi desenhado com uma estrutura de blended finance. Trinta por cento dos recursos virão de cotas mais arriscadas, assumidas por investidores dispostos a absorver eventuais perdas para destravar a entrada de outros perfis de capital. O restante será destinado a investidores tradicionais, com menor exposição ao risco. Como garantia adicional, contratos de venda futura de cacau já firmados serão utilizados para dar mais segurança à operação.

Novas estruturas e novos atores

hOUVE AVANÇOS IMPORTANTES NO MERCADO, embora as boas intenções ainda nem sempre se traduzam em soluções plenamente consolidadas. Um exemplo é o Fundo Clima, do BNDES, que deu um passo relevante em setembro de 2024 com o lançamento do programa Florestas Crédito. A iniciativa oferece condições especiais de crédito e garantias para empresas que investem em ações de recuperação e preservação da vegetação nativa. Trata-se de uma sublinha do Fundo Clima que elimina a exigência de garantias pessoais, removendo, assim, uma das principais barreiras ao acesso a empréstimos.

No caso da Belterra, estruturas mais flexíveis de garantias, combinadas a contratos de compra futura de carbono e cacau, foram suficientes para viabilizar a obtenção de um empréstimo. Isso sinaliza que bancos de desenvolvimento têm se mostrado mais atentos às dificuldades enfrentadas por projetos de restauração na estruturação de financiamentos e, assim, vêm criando programas específicos com condições mais adaptadas à realidade do setor. O tempo e os recursos dedicados por essas instituições ao desenvolvimento de soluções sob medida indicam um interesse estratégiriscos. Essa mudança – que se manifesta em iniciativas como a do Fundo Vale e, mais recentemente, do Instituto Arapyaú – representa uma nova visão de responsabilidade: mais do que doar, os fundos passam a acompanhar de perto a gestão dos recursos, bem como os impactos e benefícios socioambientais gerados por eles. É um movimento que redefine o papel da filantropia dentro do ecossistema de investimentos de impacto.

co, tanto por parte dos bancos como dos governos, em fomentar a restauração produtiva como setor econômico emergente.

Outros exemplos promissores de novas modalidades de financiamento surgiram recentemente, como é o caso da Mombak, startup dedicada à remoção de carbono. Uma parceria da empresa com o Banco Mundial resultou na emissão de um outcome bond, título atrelado a resultados. Embora já utilizado em outros mercados, trata-se de uma inovação no contexto brasileiro: é a primeira vez que se implementa um veículo financeiro cujos retornos estão vinculados à absorção de carbono da atmosfera, ou seja, ao desempenho efetivo de um projeto de restauração florestal.

Os outcome bonds oferecem uma alternativa relevante para o financiamento de soluções baseadas na natureza, pois ajudam a reduzir diversas incertezas para os investidores, tanto em relação à performance dos projetos no cumprimento de suas metas

socioambientais, os gestores intermediários têm se consolidado como atores-chave. São eles que estruturam veículos financeiros –como CRAs, Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs) e bonds –, coordenam a entrada de diferentes tipos de capital (filantrópico, concessional e comercial), constroem mecanismos de garantia, consolidam dados, organizam estruturas de governança e, sobretudo, criam a confiança necessária para viabilizar a entrada de capital privado em projetos ainda percebidos como complexos ou de alto risco.

A atuação desses gestores vai além da intermediação financeira: envolve o desenho de soluções jurídicas, operacionais e estratégicas que viabilizam a materialização de investimentos em restauração produtiva. Organizações como Sitawi, Mov Investimentos, Régia Capital e Violet Capital têm desempenhado esse papel de forma cada vez mais sistemática, estruturando operações como

Sem estruturas intermediárias, a distância entre o capital e o território permanece grande demais. Com elas, começam a se formar as condições para que o financiamento da restauração se torne não apenas viável, mas também replicável, ampliável e sistêmico

de impacto como na geração dos resultados financeiros esperados. Como destaca Gabriel Haddad, CEO da Mombak, o bond gerou ganhos em duas frentes: ampliou o acesso da empresa a novos investidores e viabilizou a captação sob um instrumento de dívida mais barato do que os antes disponíveis.17

Já em abril de 2025, a Mombak obteve R$ 100 milhões em financiamento do BNDES, utilizando como garantia uma fiança bancária concedida pelo Santander. Com isso, a empresa tornou-se a primeira a acessar recursos do Fundo Clima destinados à restauração de áreas degradadas na Amazônia desde o relançamento do fundo, em 2023.18 A decisão de um banco comercial participar como garantidor em uma operação conjunta com um banco de desenvolvimento representou um marco importante para o setor. Esse movimento tem sido acompanhado com grande interesse por diversos atores do ecossistema da restauração.

Em paralelo à transformação na atuação de bancos tradicionais e de desenvolvimento, outro movimento relevante tem ganhado força: o crescimento do número e da importância dos gestores intermediários. Esses novos atores vêm ocupando um papel estratégico ao atuar como ponte entre projetos que buscam financiamento e investidores de diferentes perfis. Sua principal função é traduzir as realidades e necessidades dos projetos de impacto, em especial os de base territorial, para o público investidor, tanto nacional como internacional. Ao facilitar o diálogo, reduzir assimetrias de informação e assumir parte da carga operacional, esses gestores aliviam obstáculos que iniciativas emergentes não têm capacidade de enfrentar sozinhas.

Em um contexto em que investidores buscam previsibilidade, liquidez e mitigação de riscos reputacionais, enquanto os projetos operam com ciclos longos, baixa padronização e múltiplas variáveis

o CRA Verde da Belterra, desenhando estratégias para fundos de impacto temáticos e construindo pontes entre os objetivos socioambientais dos investidores e a realidade concreta da restauração no chão da floresta.

Além disso, esses gestores apoiam o desenvolvimento de capacidades dos beneficiários. A Sitawi, por exemplo, além de oferecer suporte em governança, atua diretamente na capacitação técnica das organizações na ponta. Desenvolver esse tipo de capacidade – seja dentro de casas de investimento, fundações filantrópicas ou organizações híbridas – é fundamental para ampliar tanto o volume como a qualidade do financiamento destinado a soluções baseadas na natureza. Sem essas estruturas intermediárias, a distância entre o capital e o território permanece grande demais. Com elas, começam a se formar as condições necessárias para que o financiamento da restauração se torne não apenas viável, mas também replicável, ampliável e sistêmico.

Como destravar o potencial da restauração

oAVANÇO DA RESTAURAÇÃO FLORESTAL produtiva exige mudanças estruturais na forma como o capital é mobilizado e os riscos são compreendidos e geridos. O panorama traçado ao longo deste artigo evidencia a necessidade de transformar não apenas os mecanismos financeiros, mas também a lógica que sustenta as decisões de investimento. Financiadores, formuladores de políticas, gestores de fundos e empreendedores sociais comprometidos com a expansão do impacto e da escala de iniciativas baseadas na natureza podem se guiar pelas recomendações a seguir:

Desenhar veículos financeiros adequados ao setor. Investidores e gestores de fundos devem criar produtos com prazos mais flexíveis, que garantam certa liquidez e estejam alinhados com as expectativas do mercado financeiro atual, sem desconsiderar as especificidades dos ciclos da natureza.

Reduzir riscos percebidos com dados e garantias. Organizações de apoio e instituições multilaterais podem desenvolver mecanismos de mitigação de risco, como fundos garantidores e a divulgação transparente de estudos de caso bem-sucedidos, facilitando a replicação de modelos testados.

Apoiar decisões com tecnologia climática. Desenvolvedores de projetos e investidores devem incorporar ferramentas preditivas de riscos climáticos para ajustar rotas estratégicas à medida que o contexto muda, fortalecendo a resiliência dos empreendimentos ao longo do tempo.

Educar o mercado financeiro. Organizações da sociedade civil, redes de investidores e fundações filantrópicas podem contribuir para a disseminação de conhecimento sobre soluções baseadas na natureza, promovendo capacitação e uma linguagem acessível sobre finanças sustentáveis.

Expandir o uso do blended finance. Estruturas que combinem capital filantrópico e comercial, com diferentes perfis de risco, devem ser promovidas por investidores de impacto e instituições de fomento. Essas estratégias ajudam a atrair investidores tradicionais para o campo, de forma progressiva e alinhada aos seus mandatos.

Fortalecer dados para tomada de decisão. É essencial melhorar a coleta, o monitoramento e a divulgação de dados sobre os impactos ambientais e econômicos dos projetos. Organizações executoras e apoiadores técnicos devem priorizar o uso de indicadores sólidos, que orientem decisões e reduzam a incerteza.

A análise dos desafios enfrentados por investidores na restauração florestal produtiva revela um mercado em transformação, no qual as boas intenções ainda superam as soluções estruturadas. A falta de alinhamento entre os ciclos de retorno financeiro e o tempo necessário para o amadurecimento da agrofloresta, somada à complexidade dos riscos reputacionais e operacionais, impõe barreiras relevantes à mobilização de capital. Ainda assim, está em curso um movimento crescente de adaptação, com o surgimento de instrumentos financeiros inovadores e o fortalecimento de gestores intermediários capazes de traduzir as necessidades e oportunidades do setor para investidores nacionais e internacionais. Ao longo desse processo, experiências como as da Belterra, da Mombak e de outras iniciativas de impacto mostram que, apesar das dificuldades, é possível construir mecanismos financeiros mais adequados para investimentos em soluções baseadas na natureza. Exemplos como o Florestas Crédito, do BNDES, e os outcome bonds, do Banco Mundial, apontam caminhos concretos para reduzir riscos e ampliar o acesso de diferentes perfis de investidores ao setor. A busca por tecnologias preditivas, novos modelos de mitigação de riscos e estratégias mais eficazes de captação e comunicação de dados também se destaca como fundamental para fortalecer a confiança dos investidores e expandir o mercado de finanças sustentáveis. O avanço do financiamento para a restauração florestal produtiva, no entanto, dependerá de um esforço contínuo de inovação e adaptação regulatória, aliado a uma integração cada vez maior entre investidores, gestores intermediários e desenvolvedores de

projetos. A criação de veículos financeiros mais flexíveis, ajustados aos ciclos produtivos da agrofloresta, e o fortalecimento da transparência e previsibilidade nas operações financeiras podem acelerar a consolidação do setor.

O relatório de impacto socioambiental mais recente da Belterra, lançado em maio de 2025, evidencia os benefícios concretos da restauração produtiva em escala. Os avanços alcançados só foram possíveis graças às estruturas de investimento desenvolvidas ao longo dos últimos anos. As operações da organização já geraram 500 empregos e impactaram aproximadamente 7 mil pessoas. Nas regiões onde atua, observam-se melhorias em resiliência climática, segurança alimentar, saúde e bem-estar das comunidades. Com um ecossistema financeiro mais sólido e articulado, será possível ampliar ainda mais a escala de soluções sustentáveis que conciliem impacto socioambiental positivo e retorno financeiro, contribuindo para a construção de um modelo econômico mais resiliente e regenerativo. O

ISABEL APEL BRITEZ é coordenadora de inovação financeira e novos negócios no Instituto Belterra. É graduada em relações internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em inovação social pela Universidade de Cambridge.

MARCELO PERETI atua como diretor financeiro (CFO) da Belterra Agroflorestas. Também é cofundador e CFO da Rio Capim Agrossilvipastoril e graduado em administração de empresas, e possui MBA em venture capital e private equity pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP).

VALMIR ORTEGA é geógrafo e fundador do Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus) e da Belterra Agroflorestas. Foi diretor de ecossistemas e presidente interino do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e secretário de Estado de Meio Ambiente no Pará.

NOTAS

1 MapBiomas, “Até 25% da vegetação nativa do Brasil pode estar degradada”, 05.jul.2024.

2 Parlamento Europeu, Emissões de gases com efeito de estufa por país e setor (infografia), 01.mar.2018.

3 Ben Clarke et al., Climate change, El Niño and infrastructure failures behind massive floods in southern Brazil, World Weather Attribution, 2024.

4 Ver United Nations Framework Convention On Climate Change (UNFCCC), DLDD, Land Degradation and Drought: Workshop Proceedings, 2018, e Elton Alisson, “Degradação florestal no Brasil preocupa especialistas”, Agência FAPESP, 08.set.2014.

5 Carlos A . Nobre et al., Nova Economia da Amazônia, São Paulo: WRI Brasil, 2023.

6 IEA et al., GHG emissions of all world countries, 2024.

7 Plataforma do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), 2025.

8 Reset, “Carbono, madeira e agrofloresta: modelos de negócio para reflorestar”, 03.out. 2023.

9 Ibid.

10 Climate Policy Initiative, 2025 Policy Bulletin: Climate Finance for Development.

11 Isabel Britez. Sustainable finance in Brazil: investments into innovation in the use of land. Dissertação (Master of Studies in Social Innovation) – Universidade de Cambridge, 2024.

12 Climate Policy Initiative, 2025 Policy Bulletin: Climate Finance for Development

13 Convergence, The State of Blended Finance 2023: Climate Edition

14 Ibid.

15 Isabel Britez. Sustainable finance in Brazil: investments into innovation in the use of land. Dissertação (Master of Studies in Social Innovation), Universidade de Cambridge, 2024.

16 Convergence, The State of Blended Finance 2023: Climate Edition

17 Mariana Fragoso, “Banco Mundial lança bonds inovadores para reflorestar a Amazônia”, Reset, 22.fev.2024.

18 Agência BNDES de Notícias, “BNDES-Fundo Clima desembolsa R$ 100 milhões para restauração florestal com Mombak”, 07.abr.2025.

Quando a comunidade cresce junta

Para dar certo, a transformação de comunidades marginalizadas precisa levar em conta as características do lugar, ter a participação ativa da população local e abrir caminhos inovadores para recursos externos.
Bonton Farms, nos Estados Unidos, é um exemplo desse tipo de iniciativa

POR SETH D. KAPLAN

Ilustrações de Jason Holley

Por que publicamos este texto O artigo apresenta um modelo alternativo e replicável de desenvolvimento comunitário baseado no fortalecimento de vínculos internos e na criação de conexões estratégicas com instituições externas. O modelo de Bonton oferece lições sobre o potencial de soluções enraizadas no território para articular bem-estar, geração de renda, inclusão e protagonismo comunitário.

NA PRIMEIRA VEZ EM QUE FOI A BONTON, DARON BABCOCK NÃO TINHA NENHUM PLANO EM MENTE. Era 2011 e Babcock estava à procura de um novo rumo após dez anos difíceis. Depois da morte da esposa, aos 31 anos, ele havia lutado contra a depressão e a dependência química – e se jogado no trabalho e na criação dos dois filhos. Foi nesse período que conheceu Bonton, um bairro de Dallas, no estado do Texas. No começo, era voluntário em um projeto cristão chamado BridgeBuilders, que ajudava homens em busca de uma transformação de vida.

Depois de um tempo, Babcock sentiu-se chamado a deixar sua vida confortável para se dedicar a Bonton. Quando os filhos se mudaram (um foi para a faculdade, outro para a Marinha), vendeu sua casa em um bairro nobre nos

arredores de Dallas, deixou o cargo bem remunerado em uma empresa de capital privado e foi dividir uma casa do programa habitacional Habitat for Humanity em Bonton com um ex-presidiário. Segundo ele, só assim seria possível “compartilhar da vida” daquela comunidade.

Babcock logo percebeu o pouco que sabia a respeito do lugar e de seus habitantes. Quase todos os moradores tinham passagem pela prisão e, embora quisessem trabalhar, problemas de saúde, falta de transporte e antecedentes criminais eram um entrave.

“Até então, não tinha tido nenhum contato com esse tipo de realidade, era completamente ignorante”, diz Babcock. “Não sabia o impacto que a pobreza tem na mobilidade e descobri que há comunidades inteiras de pessoas adoecendo e morrendo simplesmente por não terem acesso a comida.”

Babcock decidiu criar um projeto agrícola para atender o bairro, uma iniciativa que com o tempo se converteu em muito mais que isso. A Bonton Farms, instituição que acabou fundando, serviu de catalisadora para o desenvolvimento de outras instituições e atividades para a melhoria da comunidade e seus moradores.

A organização que Babcock ajudou a criar transformou a dinâmica social em Bonton. Hoje, os moradores têm um espaço para socializar, trabalhar, aprender, obter renda e fazer serviço voluntário. O objetivo da Bonton Farms é muito mais que produzir alimentos – trata-se de construir uma rede de apoio sólida na própria comunidade, munindo cada vez mais indivíduos de habilidades e conexões para assumir um papel de liderança e, isso feito, servir de ponte entre a comunidade e instituições externas para promover o desenvolvimento da área. Criar uma parceria entre aquilo que a comunidade tem a oferecer e recursos de fora é muito mais eficaz para quem busca sair da pobreza ou superar um histórico de criminalidade e dependência química do que a oferta isolada de serviços.

“Soluções fragmentadas de transporte, moradia ou acesso a alimentação saudável sempre deixam a desejar. Já quando mudamos o enfoque e investimos na autonomia das pessoas e da comunidade, há esperança”, sustenta Daniel Herrig, um engenheiro local de mobilidade urbana. “Há um novo horizonte para Bonton à medida que empregos e investimentos vindos de dentro começam a revitalizar o bairro.”1

Diversos fatores podem levar uma localidade a se tornar desconectada e isolada, com instituições e vínculos sociais frágeis ou inexistentes. Às vezes, isso é circunstancial, como quando uma cidade industrial perde uma empresa da qual dependia – e, junto com ela, seus principais laços econômicos e sociais. Em outras, a desconexão é intencional, resultado de um legado de segregação. Era o caso de Bonton. Localizado a cerca de seis quilômetros do centro de Dallas, Bonton foi desde o início um exemplo de como um

bairro pode oprimir as pessoas. Hoje, graças à Bonton Farms, virou um modelo de como esses lugares – e seus moradores – podem ser transformados.

Várias formas de exclusão

PENSADO E CONSTRUÍDO para trabalhadores negros, Bonton surgiu no início do século 20 em uma área de várzea do rio Trinity. Foi planejado não só para ser alagado quando o rio transbordasse, mas para servir de barreira natural contra a inundação de outras áreas da cidade. As próprias comportas que evitavam cheias em Dallas foram estrategicamente posicionadas para reter a água em Bonton – só na década de 1990 foi construído um dique para proteger o bairro. Na década de 1960, a construção de uma rodovia isolou ainda mais a área, agravando problemas como a criminalidade e a deterioração urbana.

Com a redução da segregação racial na região, quem teve condições ou oportunidade mudou-se de Bonton.2 O resultado, como destacou um plano de reurbanização em 2005, foi que Bonton ficou “isolado do resto da cidade, cercado por rodovias, trilhos de trem e diques. A falta de desenvolvimento e atenção ao bairro deixou a área abandonada à própria sorte por mais de 40 anos, sem nenhum investimento de capital, tempo e esforço externos. […] Seu isolamento, tanto físico como simbólico, fez com que gradualmente desaparecesse do radar de Dallas”.3

O bairro viu a pobreza, a violência e a drogadição se alastrarem. Em meados da década de 2000, cerca de metade da população do bairro vivia abaixo da linha da pobreza; a renda per capita, de US$ 24.445 ao ano, era de apenas dois quintos da média da cidade.4 O

“Crescer em Bonton era como crescer no Afeganistão ou no Paquistão”, lembra Danny George. “Todo dia alguém era morto a tiros. Minha mãe usava o próprio corpo para me proteger quando o tiroteio começava”

cotidiano dos moradores era marcado pela criminalidade, pela ausência de estrutura familiar e pela influência de maus exemplos.

“Crescer em Bonton era como crescer no Afeganistão ou no Paquistão”, lembra Danny George, que foi criado no bairro e voltou para trabalhar como gerente na Bonton Farms. “Todo dia alguém era morto a tiros. Minha mãe usava o próprio corpo para me proteger quando o tiroteio começava.” 5

O isolamento do bairro se refletia no dia a dia dos moradores. O transporte público era escasso e o pouco comércio local existente só vendia bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados, caros e muitas vezes com data de validade vencida. Praticamente dois terços da população não tinha acesso fácil a supermercados com alimentos frescos a preços acessíveis, pois a maioria não possuía carro. Essa realidade impactava diretamente na saúde da população: em meados da década de 2000, índices de doenças cardiovasculares (86%), acidentes vasculares cerebrais (63%) e câncer (71%) entre moradores da área eram muito superiores à média da cidade.6 Índices de obesidade infantil, diabetes, doenças cardíacas, câncer e outras enfermidades eram mais que o dobro do restante de Dallas.

Ao se instalar em Bonton, Babcock teve contato direto com os desafios que a população enfrentava – cada um deles uma forma de exclusão. “As populações vulneráveis que queremos apoiar e fortalecer vêm, em grande parte, de lugares projetados não só para nos separar uns dos outros, mas, de modo ainda mais cruel, para afastá-las de bens, serviços, recursos e oportunidades” que para outros indivíduos são garantidos, escreveu.7 Suas observações, nascidas do convívio diário com moradores do bairro, inspiraram e moldaram a visão de trabalhar junto com eles para combater o isolamento de Bonton e transformar aos poucos a dinâmica do lugar.

Foco no território

CIENTISTAS SOCIAIS COMO Raj Chetty, William Julius Wilson, Robert Sampson e Patrick Sharkey já demonstraram que um bairro em condições precárias pode afetar negativamente todos os que vivem nele.8 A concentração de problemas sociais em um mesmo lugar tem um efeito cascata que torna cada problema ainda mais difícil de solucionar: a rede de ensino não aprimora o desempenho escolar, o sistema de saúde não melhora a saúde da população, a polícia não torna as ruas mais seguras.

A despeito do comprovado efeito de vizinhança, formuladores de políticas, filantropos e organizações sem fins lucrativos há muito encaram a pobreza de forma individualizada, buscando aliviar a carência material pessoa por pessoa. Esse modelo resultou em uma abordagem que busca reduzir a pobreza lidando com cada necessidade de forma isolada. Embora alivie certas carências (ao menos no curto prazo), essa abordagem individualizada é incapaz de promover a real e sustentável ascensão de indivíduos, como evidenciado pela queda na mobilidade social, pelo aumento da população em situação de rua e a crescente concentração geográfica da população mais vulnerável nos Estados Unidos. Apesar de altos dispêndios federais e estaduais no combate à pobreza, o número de zonas urbanas com concentração de pobreza no país mais que triplicou desde 1970 e a quantidade de indivíduos de baixa renda que vivem nesses locais mais que dobrou.9

O setor sem fins lucrativos tem buscado aumentar a eficiência desse modelo por meio de iniciativas inspiradas na abordagem do impacto coletivo. Essa estratégia visa melhorar a prestação de serviços com uma melhor coordenação de instituições e organizações relevantes, incluindo orgranizações sem fins lucrativos, entidades comunitárias, governo e empresas. O modelo do impacto coletivo busca estabelecer uma meta comum para os envolvidos, um sistema único para mensurar resultados e canais de comunicação contínuos. Uma organização central de apoio normalmente fica responsável por gerenciar e coordenar todas as partes envolvidas. Embora possam trazer resultados concretos, iniciativas de impacto coletivo têm limitações, especialmente se não forem complementadas por uma estratégia voltada a melhorar a localidade como um todo. O foco na prestação de serviços leva o modelo do impacto coletivo a enfatizar a redução de carências específicas. Métricas adotadas podem demonstrar progresso ainda que as condições do lugar permaneçam as mesmas. Um exemplo são iniciativas de impacto coletivo voltadas a aumentar a mobilidade social, que buscam garantir o sucesso de cada criança na escola e na vida com a colaboração entre diversas organizações e a concentração de esforços em um punhado de indicadores de sucesso. Esse modelo pode, sim, dar mais oportunidades a muitos jovens – mas também aumentar a probabilidade de que migrem para outros lugares, privando a comunidade de sua liderança e de recursos futuros. Além disso, o contexto no qual o jovem está inserido (violência e relações sociais frágeis, por exemplo) pode impedir que aproveite essas oportunidades. Outro risco é certas organizações se concentrarem excessivamente em métricas específicas enquanto outros aspectos, como segurança e estabilidade familiar, continuam a se deteriorar.

Em contrapartida, organizações que trabalham com foco no território (e não só no indivíduo) buscam alterar condições estruturais do ambiente no qual as pessoas vivem, partindo do princípio de que, ao melhorar o contexto socioeconômico, todos serão beneficiados simultaneamente. É o caso da Purpose Built Communities (PBC), organização que atua de forma holística na revitalização de bairros historicamente desassistidos e se sustenta em quatro pilares: moradia de qualidade, educação voltada à inserção no mercado de trabalho, bem-estar comunitário e dinamismo econômico. O objetivo é transformar bairros marginalizados em comunidades prósperas e autossustentáveis. Essa estratégia parte da compreensão de que não é possível atacar problemas de forma isolada quando todos estão interligados: a educação de baixa qualidade e a falta de empregos contribuem para altos índices de criminalidade; o crime afasta o comércio e possíveis fontes de emprego; o isolamento e a falta de oportunidades, por sua vez, podem levar ao êxodo dos indivíduos mais capacitados da comunidade. Para solucionar qualquer desses problemas é preciso abordar simultaneamente os demais.

Modelos baseados na comunidade ou no território têm mais impacto porque agem diretamente sobre fatores sociais de uma determinada localidade, como as relações no interior das famílias e entre famílias, com localidades vizinhas e instituições dentro e fora da comunidade. Com isso, buscam atacar os fatores que impedem o desenvolvimento de certas áreas e melhorar as condições de todos os moradores ao mudar o ecossistema em que vivem.

Além disso, o foco no território busca catalisar mudanças autossustentáveis, reduzindo a necessidade de intervenções futuras e permitindo que comunidades marginalizadas cresçam e prosperem. Isso posto, é uma transformação ambiciosa e mais difícil de promover, pois requer uma ação multifacetada e de longo prazo – algo em direto conflito com o modelo de ação de muitos órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos.

Nesse sentido, o caso de maior sucesso na abordagem territorial, a PBC, não tem como chegar à maioria dos lugares. Nos EUA, a PBC deu bons resultados em 25 comunidades de 14 estados, mas sua rede está concentrada no Meio-Oeste e no Sul, atingindo uma pequena parcela de cerca de 825 áreas urbanas em situação precária.10 O modelo da PBC enfrenta quatro grandes desafios: bairros muito isolados de zonas dinâmicas das cidades, o que dificulta a transformação; atores essenciais (poder público, organizações influentes) pouco dispostos a colaborar e a remanejar recursos; falta de verbas para viabilizar iniciativas; e bairros em regiões onde lideranças locais e financiadores simplesmente não priorizam esse tipo de investimento (como no Nordeste e no Oeste).

Em certos casos, a PBC atrai o interesse de possíveis parceiros locais, mas não consegue convencer atores cruciais de setores como o habitacional, o educacional e o imobiliário a adotarem, todos, uma visão voltada à localidade como um todo. E, quando é assim, a organização opta por não seguir adiante. “Nosso sucesso até hoje dependeu em grande medida da capacidade de fomentar esse tipo de colaboração”, diz David Edwards, ex-CEO da PBC. “Quando tivemos de abandonar iniciativas foi, na maioria das vezes, pela incapacidade de convencer algum ator essencial a se unir ao esforço.”11 Logo, ainda que acreditemos na eficácia e na necessidade de um modelo com foco no território, como o da PBC, em muitos locais vulneráveis ou áreas sem acesso direto a centros econômicos dinâmicos pode ser impraticável reproduzir a abordagem.

O modelo da Bonton Farms

INICIATIVAS DE COMBATE À POBREZA PRECISAM, portanto, de um outro modelo focado no território que abranja mais bairros, tanto em áreas suburbanas como rurais. Se tivesse como foco combater o isolamento – ou seja, a fragilidade ou ausência de laços sociais e instituições de apoio –, tal modelo não se restringiria apenas às localidades mais vulneráveis, pois o isolamento afeta um número crescente de comunidades. A Bonton Farms traz uma visão desse novo modelo. “Há uma tendência de tratar as pessoas como se a condição humana se resumisse a um único problema”, diz Babcock. “E como se, resolvido esse problema, tudo melhoraria. Mas, assim como uma semente, o ser humano precisa de um ecossistema no qual todas as partes atuem em simbiose para que o todo prospere.” 12

O modelo da Bonton Farms demonstra a importância de dois tipos de instituição. A primeira é representada pelos “vínculos” no interior da própria comunidade. Esse capital é formado por famílias sólidas, redes robustas entre famílias, microinstituições informais (como grupos de recreação, encontros de vizinhos, redes de vigilância comunitária, ações de voluntariado), que surge de forma espontânea e se reforça mutuamente, promovendo apoio e cooperação. E também inclui associações e instituições locais (igrejas,

pequenos negócios, grupos cívicos) formadas por moradores e voltadas a necessidades da comunidade.

A segunda, que chamamos de “pontes”, exige instituições e lideranças locais fortes e capazes de estabelecer elos e dialogar com grupos sociais influentes e organizações maiores (não só órgãos públicos, mas entidades que ofereçam acesso a oportunidades econômicas, crédito, saúde e educação). Em geral, estão fora do bairro. Quanto mais o lugar estiver conectado a esses atores e organizações – por vínculos sociais, transporte ou acesso –, maior será seu capital social “ponte”.

Nesse modelo, embora mudanças materiais possam ser necessárias, o objetivo maior é fortalecer a comunidade reforçando seu capital social interno (vínculos) e seu capital social externo (pontes). A Bonton Farms mostra como isso pode ser feito. Diferentemente da PBC (criada por uma grande incorporadora imobiliária), a Bonton Farms surgiu de forma bem mais orgânica, de uma série de iniciativas pontuais voltadas a resolver problemas da comunidade e incrementar seu capital social. Enquanto a PBC segue um plano predefinido, a Bonton Farms tem um processo que parte de dentro para fora, focado em colaborar com os moradores para identificar desafios e inovar para criar instituições e conexões necessárias para enfrentá-los. A estratégia é mais gradativa do que uma transformação em larga escala, embora o objetivo final seja parecido. A ênfase no engajamento também produz uma postura diferente. Ainda que não constitua uma nova categoria, o modelo certamente é mais flexível e pode ser adaptado a uma variedade maior de comunidades.

Cultivar laços

BABCOCK COMEÇOU O TRABALHO dentro do próprio bairro, cultivando vínculos com moradores, ampliando sua atuação de forma gradual e buscando ouvir, da própria comunidade, quais desafios a área enfrentava. “Morar na comunidade me transformou profundamente”, conta. “Sem essa proximidade física, não teria tido oportunidades cruciais de aprendizado.”13

No início, Babcock tinha apenas uma horta no quintal. Depois, começou a criar galinhas. Alguns logo perceberam o que estava fazendo e vieram oferecer ajuda. A Habitat for Humanity foi a primeira, doando dois terrenos na periferia do bairro para que ele ampliasse a área de cultivo. Depois veio a prefeitura, que cedeu outros seis lotes contíguos, elevando a área total a pouco mais de 8 mil metros quadrados. À medida que conhecia os vizinhos – a começar por gente como David Richie, que encontrou numa reunião do BridgeBuilders –, Babcock passou a colaborar com eles para atacar problemas maiores do bairro. A certa altura, Fred Treffinger, dono de uma concreteira que tinha lido sobre a iniciativa em um jornal, decidiu doar um lote de pouco mais de 80 mil metros quadrados em frente à empresa para a instalação de uma segunda área de cultivo, agora chamada Bonton Farm Extension. Ao ver o impacto do projeto, a família Treffinger comprou e doou o lote vizinho, do mesmo tamanho que o anterior, dobrando a área da nova sede. Com essa terra toda, Babcock criou uma das maiores fazendas urbanas do país. A Bonton Farms cultiva uma variedade de hortaliças (tomate, berinjela, couve, pimentão), produz carne

suína, caprina e de frango, leite e queijo de cabra, além de ovos. Hoje, abastece restaurantes de Dallas e o centro de treinamento do time de futebol americano Dallas Cowboys.

Com essa estrutura, a Bonton Farms conseguiu trazer um impacto muito maior do que entidades dedicadas a prestar serviços de forma isolada, sem envolvimento real com a comunidade. A fazenda urbana vende ou troca alimentos com moradores, que com isso têm acesso a uma alimentação mais saudável. Além disso, emprega pessoas que teriam dificuldade de conseguir trabalho fora dali, ajudando-as a ganhar experiência. Com o apoio de um de seus parceiros de outra área da cidade (uma lista que só cresce), ajudou moradores a abrir uma produtora de mel, a Bonton Honey. Quando ficou evidente que a população local precisava de mais serviços no bairro, a Bonton Farms criou uma feira de produtores e uma ca-

feteria. Virou uma comunidade dentro da comunidade, atraindo até gente de fora.

“A comunidade está por toda parte, não importa se estou no trabalho ou em casa”, diz Lance Carter, um gerente da Bonton Farms que, no início, nem sequer podia provar a própria identidade, pois tinha perdido todos os documentos devido à dependência química. “Estou rodeado pela comunidade 100% do tempo, e aí o vício não tem espaço para vencer.”14

O que Babcock fez foi radicalmente diferente de uma iniciativa anterior de Dallas, que tinha acenado com incentivos econômicos para atrair mercearias a uma das mais de 40 zonas da cidade classificadas pelo Departamento de Agricultura do país como “desertos alimentares”. Mas a ideia – que buscava sanar uma deficiência material de forma isolada – fracassou. Para as mercearias grandes o bastante para tirar partido do programa, a conta simplesmente não fechava. Não houve adesão ao projeto.

Assim como uma modificação no ambiente afeta o crescimento das plantas, mudar a natureza das relações pessoais com as instituições transforma as relações dos moradores entre si e com a sociedade de modo geral. Todo lugar tem gente com potencial, mas nem sempre oferece as condições necessárias para que esses indivíduos floresçam e assumam papéis de liderança ou mesmo permaneçam ali. Tornar o ambiente melhor não só contribui para a permanência das pessoas, mas cria oportunidades para que liderem. Sem isso, há uma fuga em busca de oportunidades melhores.

Dentro da comunidade, a abordagem pessoal e relacional de Babcock foi uma novidade se comparada ao que entidades sem fins lucrativos vinham fazendo até então, tentando ajudar com prestação de serviços. Babcock foi viver e trabalhar lado a lado com os moradores para reconstruir o tecido social por meio do exemplo, no convívio diário. O estabelecimento de vínculos não só ajuda as pessoas a avançar, mas serve de proteção contra uma série de riscos. Com o tempo, ao ver os resultados na própria vida e na dos demais, outros moradores aderiram ao projeto, reforçaram o exemplo e incentivaram ainda mais gente a assumir um papel de liderança.

Babcock também organizou diversas atividades para congregar as pessoas, de modo a fortalecer os laços e a confiança entre elas. Embora muitas dessas ações não fossem de natureza religiosa, ele passou a exercer sua fé cristã de uma nova maneira, mostrando por atos e palavras como viver em comunhão, enquanto frequen-

tava as igrejas locais e buscava seu apoio. Moradores de Bonton se reúnem regularmente em grupos de oração e aprendizado, o que propicia um clima de confiança e permite conversas mais francas na hora de agir juntos para resolver problemas concretos. O tamanho reduzido da comunidade foi importante para criar relacionamentos mais próximos. Em um bairro pequeno, com apenas 5,5 mil habitantes, esse tipo de engajamento teve impacto real em normas, expectativas e comportamentos coletivos. Laços mais fortes possibilitam que moradores assumam um papel ativo na segurança do bairro e colaborem para melhorá-lo. Doris Young, que trabalha na Bonton Farms e cuja família vive no bairro há várias gerações, relembra como eram as coisas antes de 2010: “Tinha de tudo – drogas, assassinatos, prostituição na rua. Qualquer atividade ilegal que você imaginasse, Bonton tinha. Hoje, nossa comunidade está se reerguendo”.15

Pontes para o mundo lá fora

BABCOCK, BONTON FARMS e as lideranças locais estreitaram seus vínculos. Com o tempo, já fortalecida, a comunidade conseguiu melhorar seu acesso à região metropolitana de Dallas e ao mundo em geral por meio de pontes que ligavam o bairro a instituições essenciais de saúde, bem-estar, moradia, educação, serviços financeiros e econômicos. Babcock e a equipe da Bonton Farms descobriram e cultivaram, nas palavras dele, a capacidade “dos que estão mais próximos do problema de identificar suas verdadeiras causas e obstáculos para que, juntos, pudéssemos criar soluções inovadoras, viáveis e reproduzíveis para substituí-los por instrumentos realmente eficazes”.16

A princípio, Babcock tentou resolver por conta própria o problema de mobilidade dos moradores, usando uma van para levar e trazer quem tivesse compromissos em lugares não atendidos pelo transporte público. Logo percebeu, no entanto, que isso seria insuficiente e que a melhor solução seria trazer para o bairro instituições que até então eram ausentes na área. Estar presente fisicamente e estabelecer relações com uma comunidade tem muito mais impacto do que simplesmente prestar um serviço a distância. E aquele bairro carecia de tudo: escolas próprias, supermercados, unidades de saúde, instituições financeiras.

Muitas pessoas ajudaram Babcock a refletir sobre as dificuldades dos moradores de Bonton, e Daris Lee, hoje gerente de saúde e bem-estar da Bonton Farms, teve um papel importante nesse processo. “Foi, provavelmente, quem mais contribuiu para tudo o que aprendi, pois estive com ele no turbulento período em que saiu da prisão e apresentava um quadro avançado de insuficiência renal devido a uma hipertensão não diagnosticada”, contou Babcock. Condenado a 16 anos de detenção por roubo e posse de drogas, Lee cumpriu quase seis anos e saiu com uma dívida de US$ 37 mil. Era um fardo tão grande que, como ele mesmo afirma, às vezes achava que “teria sido melhor continuar preso”.17 Sobre Babcock, Lee diz: “Tudo o que a gente faz na fazenda começa pelas sementes. [Ele tem] a capacidade de enxergar a semente nas pessoas [...], de ver seu potencial, não o que fizeram ou o que já viveram, mas aquilo que podem vir a ser”.18 O sentimento é recíproco: “Nós nos vemos um ao outro como modelo, para somar, aprender e crescer juntos”, diz Babcock. “Sou grato por essa amizade.”

Com moradores como Lee, Babcock aprendeu quais instituições eram as mais importantes e que obstáculos impediam as pessoas de acessá-las. Com a Bonton Farms e o apoio de lideranças locais, buscou superar cada barreira. Muitas vezes, isso significou buscar parceiros externos que pudessem ajudar o bairro e criar soluções inovadoras para atender às necessidades específicas da comunidade.

Em geral, bairros vulneráveis são desassistidos porque instituições públicas e privadas marginalizam a área e sua população, que não recebem o apoio de que precisam para progredir. O transporte público, por exemplo, não é prioridade em uma cidade como Dallas, projetada para o automóvel – um bem que muita gente de baixa renda não possui. O acesso a serviços públicos é difícil, seja pela distância, seja por exigir um tempo e um conhecimento que essa população tampouco tem. As instituições financeiras, por sua vez, dificultam o uso de seus serviços por moradores de baixa renda com a cobrança de taxas e a verificação de antecedentes. As pontes para esses recursos, portanto, dependem da localização física dos serviços, da disponibilidade de transporte, do tratamento dispensado a quem consegue se deslocar até eles e até de normas que regulam o acesso às instituições.

A experiência de Babcock mostra que, para atacar o isolamento de um lugar, em geral é preciso questionar velhas ideias sobre como se dá a inovação. O que funciona em regiões mais prósperas pode ser contraproducente em zonas mais pobres. Um exemplo disso são normas que em uma região mais rica da cidade podem até fazer sentido, mas que claramente dificultam a vida em lugares como Bonton. Babcock topou com esse tipo de entrave logo que se dispôs a morar no bairro. Já de início, sua tentativa de comprar uma casa modesta em Bonton foi frustrada. Muitas vezes, porque era difícil estabelecer a posse do bem (devido à burocracia intransponível envolvendo imóveis em processo de execução hipotecária) ou porque a venda era restrita à população de baixa renda (um jeito de manter o lugar pobre). Ele foi aprendendo a superar vários desses empecilhos legais. Para isso, combinou sua rede de contatos dentro no bairro, a tarimba profissional e o status econômico que trazia de fora. Antes de a comunidade lutar por mudanças nas normas do município, era ilegal vender produtos cultivados na propriedade de um morador; um trabalhador do primeiro sítio da Bonton Farms levou uma multa de US$ 70 por isso.

As pontes se materializaram na forma de instituições educacionais capazes de impulsionar a população. A rede de ensino da cidade não trabalhava para atender às necessidades específicas do bairro. Tinha inclusive fechado a escola primária de Bonton como parte de um processo maior de consolidação. Babcock trabalhou com lideranças locais para inaugurar uma pré-escola, fez parcerias com várias organizações em outras zonas da cidade para abrir uma escola particular totalmente subvencionada e focada em necessidades das crianças do bairro (que chegam com muitos traumas) e para lançar um programa de capacitação profissional para adultos. Agora, as escolas de Bonton estão investindo no envolvimento dos pais para o fortalecimento de vínculos sociais (estudos mostram que a relação entre pais e filhos e entre pais e escola é crucial para o desempenho escolar). Uma vez que 85% da população masculina do bairro já passou pelo sistema prisional e mais da metade dos moradores não concluiu o ensino médio, não chega a

surpreender que as escolas públicas raramente tenham priorizado essa participação.

Em vez de buscar apenas melhorar o acesso da população local a serviços de saúde, a comunidade resolveu criar a poucos metros da fazenda urbana um centro de saúde comunitário, o Bonton Farms Wellness Center. Com inauguração prevista ainda para 2025, o centro vai prestar atendimento médico, organizar eventos sobre saúde, dar aulas de ginástica, nutrição, culinária e prevenção de doenças e aplicar os avanços mais recentes da pesquisa médica para tentar melhorar a saúde local.

Uma vez que a população de baixa renda muitas vezes não é bancarizada, a Bonton Farms está criando, em parceria com instituições bancárias locais e nacionais, um banco comunitário – uma espécie de centro de saúde financeira – para atender a região. A ideia é levar a educação financeira a moradores do bairro (incluindo recuperação de crédito e gestão de dívidas), oferecer pequenos empréstimos e contribuir para a construção de patrimônio com a compra da casa própria e a capacitação para empreender. O objetivo, segundo a filosofia da Bonton Farms, é “criar uma escada para que a pessoa possa ascender o próximo degrau sem riscos e com dignidade”.19 O centro vai substituir agentes abusivos que hoje preenchem essa lacuna com empréstimos consignados, casas de penhor e empréstimos em que o automóvel entra como garantia – modalidades de crédito caras, com condições desfavoráveis e que costumam criar um ciclo de endividamento que pode levar o tomador a perder seus bens. O centro

financeiro funcionará no mesmo prédio do centro de saúde – no coração do bairro – e poderá, a certa altura, passar a oferecer serviços bancários convencionais.

A fim de ampliar a oferta de alimentos saudáveis, a comunidade fechou uma parceria com a rede de supermercados Kroger para oferecer entrega gratuita na comunidade. A empresa doou computadores para criar uma central de pedidos e entregas e garantir que qualquer pessoa no bairro tenha acesso aos produtos da rede a preços acessíveis. A entrega é feita uma vez ao dia em um ponto fixo em Bonton, cabendo a cada morador ir lá buscar seu pedido; há também um serviço local de delivery para idosos, mães solo e pessoas com dificuldade de locomoção. Agora que viu o potencial de atender um novo público, a Kroger já planeja ampliar o modelo para outros bairros – e não só de Dallas.

Pontes para instituições externas

Vínculos internos

Vínculos e pontes

O modelo da Bonton Farms começa com o fortalecimento dos vínculos no interior do bairro e depois os utiliza como pontes para instituições essenciais fora do bairro.

Saúde Serviços públicos Finanças Líderes sociais

Instituições Transporte Acesso Redes Empresas

Segurança

Grupos e organizações influentes

Por último, a Bonton Farms tenta preencher a lacuna deixada pela falta de instituições voltadas à habitação. “Infelizmente, Dallas foi feita para atrair gente com dinheiro, o que significa que não temos soluções inovadoras de moradias bonitas e dignas para quem está na base da estrutura socioeconômica”20, diz Babcock, que trabalhou com lideranças locais para a criação de um modelo totalmente novo de habitação, a chamada Roommate House. Graças a parcerias com bancos e fundos de impacto social, foi possível garantir que moradores tenham acesso a crédito hipotecário com juros baixos, algo impossível até então – e isso sem subsídios públicos. Cada casa de dois quartos tem cerca de 120 metros quadrados e, nos fundos, dois estúdios equipados com banheiro e uma cozinha compacta com chapa elétrica e micro-ondas. Essas unidades, que podem ser alugadas por cerca de US$ 250 por mês, são uma alternativa acessível para locatários e permitem que o proprietário do imóvel tenha uma renda adicional para ajudar a pagar o financiamento de 15 anos e construir um patrimônio. Também foram construídas casas compactas de pouco mais de 30 metros quadrados para serem alugadas a valores baixos, com a meta de criar a Bonton Tiny House Village, uma microcomunidade que possa servir de modelo para cidades do país todo em busca de soluções de moradia acessível. Seu objetivo é que o valor do aluguel não ultrapasse 20% da renda do indivíduo, para incentivar a poupança (o teto para moradias populares no país em geral é de 30% da renda e sua construção depende de subsídios públicos).21

Instituições locais Mecanismos de conexão

Famílias fortalecidas, laços interfamiliares e redes de apoio mútuo

Todas essas iniciativas de construção de pontes surgiram dos vínculos estabelecidos primeiro na comunidade. E, juntas, transformaram o bairro. Ruas estão mais seguras, serviços e escolas melhoraram, o número de instituições sociais, cívicas e econômicas cresceu consideravelmente. Graças ao custo baixo da moradia, à proximidade do centro da cidade e à existência de uma grande área verde nas redondezas,

Bonton está atraindo gente que até então jamais cogitaria morar ali, diversificando o bairro tanto racial como socioeconomicamente. A pobreza vem diminuindo (hoje, está em 28%) 22, taxas de emprego da população estão subindo e o desempenho escolar na rede de ensino tem melhorado. A renda média dos lares dobrou e a parcela de moradores que concluiu o ensino médio passou de 54% para 77%.23 A taxa de imóveis desocupados caiu e o valor dos imóveis está subindo, como demonstram unidades recém-reformadas na região. O valor médio de moradias ocupadas pelo proprietário subiu de cerca de US$ 44 mil em 2005 para mais de US$ 100 mil em 2022.24 Até a imagem de Bonton mudou: de lugar a ser evitado, o bairro passou a ser visto como exemplo a ser seguido, oferecendo lições valiosas para o poder público e outras organizações. Já a Bonton Farms tem hoje um orçamento de US$ 4 milhões e cerca de 50 funcionários. Todo ano, cerca de 10 mil voluntários contribuem para suas atividades.

A mudança começa por dentro

MODELOS DE TRANSFORMAÇÃO FOCADOS na comunidade têm um histórico comprovado de sucesso quando bem executados. Mas, uma vez que cada localidade possui contextos singulares, precisamos de mais abordagens além do modelo PBC para chegar a toda área carente de transformação.

É que o modelo PBC, que busca a transformação por meio de uma estrutura já estabelecida, muitas vezes só pode ser aplicado na presença de condições adequadas, específicas. Já o modelo da Bonton Farms, por ser mais determinado pela vivência e por necessidades reais da população de um lugar, é mais flexível e gradual – e, portanto, mais compatível com um número maior de comunidades. Ao identificar problemas em colaboração com moradores e criar soluções de mercado em parceria com distintos atores – dentro e fora do bairro –, o modelo de Bonton busca soluções que podem ser adaptadas e aplicadas a uma diversidade de contextos.

Na maioria das organizações sem fins lucrativos, programas seguem objetivos definidos internamente. Na Bonton, por sua vez, a filosofia é a de envolvimento da população. A ideia é unir forças para eliminar obstáculos que impedem as pessoas de melhorar sua própria situação e a do bairro. Um aspecto fundamental é que seu modelo busca fortalecer vínculos internos antes de tentar criar pontes com o mundo lá fora. Além disso, enquanto a PBC – bem como a maioria das organizações sem fins lucrativos – tem uma agenda relativamente clara desde o início, a ênfase da Bonton Farms em relacionamentos, em alterar regras e normas do poder público, em criar e ampliar novas instituições e em experi-

mentar faz com que seu progresso seja mais gradual, mas também especialmente útil em locais de difícil acesso que não satisfazem os requisitos necessários para o sucesso da PBC.

O modelo da Bonton também traz lições para outras organizações dedicadas a melhorar a vida das pessoas e também as comunidades onde vivem. Em primeiro lugar, embora governos, filantropos e organizações sem fins lucrativos precisem inovar, o modo como atuam pode acabar atrapalhando, em vez de ajudar. Para haver mudança, é preciso seguir outro princípio da filosofia da Bonton: “Mergulhe fundo, não disperse. Invista em poucas áreas e lute por uma transformação real e autossuficiente, e outras naturalmente se somarão”.25 Pode ser difícil implementar essa visão, pois a filantropia costuma adotar indicadores estreitos de sucesso que priorizam o número de pessoas atendidas e o custo por indivíduo. Em contrapartida, o modelo da Bonton requer um horizonte de longo prazo e métricas baseadas na qualidade das relações entre instituições e a população. Em vez de focar no atendimento de indivíduos, iniciativas de transformação comunitária buscam resolver as causas subjacentes ao isolamento, deflagrando um ciclo virtuoso de progresso que alimenta o desenvolvimento econômico. Com isso, empregos são gerados, moradores passam a ter mais acesso a oportunidades e surgem novas instituições no seio da comunidade.

Segundo, para que a situação de uma comunidade realmente melhore, empreendedores sociais e lideranças cívicas precisam remover obstáculos à inovação pelas bases e ao progresso de moradores de zonas marginalizadas. Um número excessivo de regulamentações governamentais, normas de serviços públicos, políticas empresariais e indicadores de organizações sem fins

Bonton nos ensina que todo bairro precisa tanto de vínculos internos como de pontes externas para catalisar e sustentar o progresso. Cada residente é um cidadão, não só um consumidor de serviços

lucrativos acaba prejudicando a população desses lugares. Peguemos a dificuldade de vender produtos agrícolas ou de construir moradias em Bonton. Ou normas para solicitar recursos de programas filantrópicos ou públicos, que dificultam o acesso para organizações menores dirigidas por líderes com menos contatos. Ou instituições financeiras que criam produtos e tabelas de custos compatíveis apenas com certas classes sociais e localidades. Ou agências do governo que ignoram necessidades de bairros mais isolados, física e socialmente, como ocorreu quando autoridades de educação e transporte em Dallas tomaram decisões sobre alocação de recursos que não consideraram o impacto em bairros desconectados e desfavorecidos como Bonton.

Terceiro, incentivar lideranças dentro das próprias comunidades é essencial para o progresso dos lugares. Em vez de buscar mais eficiência no modo como órgãos do governo, ONGs e instituições filantrópicas operam, responsáveis pelo setor social talvez devessem perguntar por que não surgem mais líderes nos lugares mais vulneráveis da sociedade. Talvez seja preciso repensar nossa visão sobre essas localidades e descobrir como oferecer a capacitação, as redes e um ambiente para que líderes possam emergir – ou retornar. Kimberly High, que administrou a filial da Bonton Farms durante vários anos, foi criada em Joppa, bairro logo ao sul de Bonton. Tinha ido embora e estabelecido uma trajetória profissional sólida, trabalhando por 31 anos em uma seguradora. Nunca imaginou que voltaria. “Jamais teria decidido trabalhar na agricultura. Gosto das minhas unhas feitas”, diz. “Mas a Bonton Farms restaurou minha saúde [...]. Tem gente que acha que sou louca, mas passei a vida toda em um escritório. Não é assim que quero passar meus últimos dias.”26 Em 2021, depois de trabalhar na Bonton Farms por vários anos, canalizou suas energias para a vizinha Joppa, com o propósito de começar sua própria fazenda urbana em uma propriedade que pertenceu à sua avó.

Empreendedores comunitários, gestores locais e lideranças comprometidas podem criar conexões e capacidades de modo a fortalecer bairros carentes. Quando a intervenção de agentes externos for necessária, é preciso que ajam como catalisadores para criar vínculos e pontes que garantam o progresso do lugar – em vez de sufocar a iniciativa e a liderança locais.

Quarto, em vez de encarar áreas de baixa renda exclusivamente como um problema, devemos buscar nelas lições sobre o crescente desafio do isolamento, que afeta uma parcela cada vez maior da sociedade. Já que todo bairro, rico ou pobre, se situa em algum ponto entre dois extremos – dos mais conectados aos menos conectados –, uma abordagem mais inclusiva poderia incorporar os crescentes desafios da pobreza social. Essa abordagem não só reformularia as dificuldades enfrentadas por zonas de baixa renda, mas acabaria com sua estigmatização. Bairros de classe média podem estar em situação material melhor, mas também expostos a diversos problemas sociais, como suicídio ou abuso de drogas. Por outro lado, alguns bairros de baixa renda – como aqueles com imigrantes recentes – podem ser socialmente vibrantes, capazes de enfrentar seus desafios, com maior probabilidade de ver a renda da população aumentar e menos vulneráveis a problemas sociais. Bonton nos ensina que todo bairro precisa tanto de vínculos internos como de pontes externas para catalisar e sustentar o progresso. Cada residente é um cidadão, não só um consumidor de

serviços – um morador, não só um necessitado. É como escreveu Martin Luther King Jr.: “Somos parte de uma rede inescapável de mutualidade, atados em um único manto do destino. O que afeta um diretamente afeta todos indiretamente”. 27 O

SETH D. KAPLAN é professor da Escola Paul H. Nitze de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e autor do livro Fragile Neighborhoods: Repairing American Society, One Zip Code at a Time

NOTAS

1 Daniel Herrig, “Bonton Farms: Transforming a Community from Within”, Strong Towns, 28.mar.2017.

2 Informações obtidas em entrevista presencial feita com Daron Babcock em fevereiro de 2024 e das seguintes fontes: Kathy Wise, “The Rogue Shepherd”, D Magazine, 15.jan.2018; Catherine Rosas, “The Transforming Power of the Bonton Farms Act”, D Magazine, 20.dez.2021; Michael McMinn, “Bonton Farms: A Story That Needs to Be Told”, B. H. Carroll Theological Seminary, 28.out.2016; Herrig, “Bonton Farms”.

3 Antonio Di Mambro + Associates, Inc., “Bonton Neighborhood Redevelopment Plan”, Dallas Housing Authority, 30.set.2005.

4 The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation: Zip Code 75215”, Research Brief, jun. 2006.

5 Wise, “The Rogue Shepherd”.

6 The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation”.

7 Daron Babcock e Jacob Duvall, “True Community Bank: Bonton”, ago. 2022.

8 Ver, por exemplo, Raj Chetty et al., “Where Is the Land of Opportunity? The Geography of Intergenerational Mobility in the United States”, Quarterly Journal of Economics, v. 129, n. 4, 2014; William Julius Wilson, The Truly Disadvantaged: The Inner City, the Underclass, and Public Policy, Chicago: University of Chicago Press, 1987; Robert Sampson, Great American City: Chicago and the Enduring Neighborhood Effect, Chicago: University of Chicago Press, 2012; e Patrick Sharkey, Stuck in Place: Urban Neighborhoods and the End of Progress Toward Racial Equality, Chicago: University of Chicago Press, 2013.

9 Joe Cortright e Dillon Mahmoudi, “Lost in Place: Why the Persistence and Spread of Concentrated Poverty – Not Gentrification – Is Our Biggest Urban Challenge”, City Observatory, dez. 2014.

10 Purpose Built Communities, “The Neighborhood Is the Unit of Change”, 30.out.2018.

11 Entrevista por telefone do autor com David Edwards, jun. 2020.

12 Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”.

13 Martita Mestey, “Food Deserts: Daron Babcock of Bonton Farms on How They Are Helping to Address the Problem of People Having Limited Access to Healthy & Affordable Food Options”, Medium, 29.jul. 2021.

14 Saltbox, “Bonton Farms // The People of Bonton – Lance”, vídeo, 2022.

15 Roy Maynard, “Bonton Farms – A Community Coming Together”, Texas Public Policy Foundation, 25.nov.2019.

16 Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”.

17 Depois de testemunhar o drama de ex-presidiários endividados, Babcock e moradores de Bonton fizeram pressão até que parlamentares do Texas aprovaram uma lei, a Bonton Farms Act. A lei garante um recomeço para texanos e texanas egressos do sistema prisional, eliminando taxas e multas estaduais que frequentemente impediam essa população de conseguir emprego ou até carteira de habilitação para dirigir.

18 Saltbox, “Bonton Farms // The People of Bonton – Daris”, vídeo, 2021; Roy Maynard, “Finding Hope in a Once-Broken Community”, Texas Public Policy Foundation, 26.out.2022.

19 Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”. A filosofia é apresentada em diversos documentos e em geral não é divulgada publicamente em um material específico.

20 Shakari Briggs, “Bonton Farms’ Tiny House Village to Provide Sustainability, Affordability”, Spectrum News, 2.set.2021.

21 Ibid.

22 The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation”.

23 Ibid.

24 Ibid.

25 Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”.

26 Wise, “The Rogue Shepherd”.

27 Dr. Martin Luther King Jr., “Letter from a Birmingham Jail”, 16.abr.1963.

Transferência de programas para ampliar o impacto social

Embora quase sempre deflagrada por crises institucionais, a transferência de programas de uma organização para outra não representa um fracasso – e pode ser uma oportunidade para que todos os envolvidos atinjam suas metas

É ENORME A QUANTIDADE DE LIVROS JÁ ESCRITOS SOBRE GESTÃO DE MUDANÇAS, CULTURA ORGANIZACIONAL E AMPLIAÇÃO DE ESCALA Parcerias estratégicas, no entanto, ainda não receberam a mesma atenção. É uma pena, pois para líderes do setor social essas parcerias são um instrumento adicional para criar a infraestrutura necessária ao enfrentamento de desafios e à conquista de metas.

Em certos casos, parcerias estratégicas exigem mudanças estruturais profundas. Fusões e aquisições, por exemplo, combinam e incorporam entidades. Outras estratégias de parceria preservam as estruturas já existentes, mas estabelecem vínculos entre as organizações envolvidas. Compartilhar equipes, dividir um mesmo teto e outros modelos de colaboração operacional permitem que organizações sem fins lucrativos mantenham sua independência, mas compartilhem atividades essenciais.

Por que publicamos este texto

O artigo traz à tona uma prática ainda pouco discutida e sistematizada no Brasil, propondo uma visão em que programas sociais podem circular entre organizações para atingir seu pleno potencial. Em um contexto marcado por escassez de recursos e alta demanda por soluções eficazes, o artigo oferece aprendizados, exemplos e orientações sobre como planejar transferências bem-sucedidas — além de destacar o papel fundamental dos financiadores nesse processo.

POR MICHELLE SHUMATE, LINDSAY KIJEWSKI, KATE PIATT-ECKERT, E CHRISTINE THOMPSON

Ilustrações de David Plunkert

A transferência de ativos é mais uma alternativa no repertório de parcerias estratégicas, que difere de outras formas de parceria em dois grandes aspectos. O primeiro é que a colaboração entre as organizações envolvidas dura apenas o tempo necessário para que a transferência seja feita. E o segundo é que esse modelo pode ser aplicado isoladamente ou em conjunto com outras estratégias, como fusões, dissoluções e a criação de estruturas federadas. Em geral, essa transferência envolve ativos tangíveis como imóveis, veículos e equipamentos inscritos no balanço patrimonial da organização. Os ativos físicos costumam ser transferidos em meio a fusões e dissoluções, quando a organização que originalmente os adquiriu deixa de existir. Muitos líderes, no entanto, vêm adotando uma visão mais ampla sobre esse portfólio de ativos e as circunstâncias em que sua transferência pode gerar impacto. Enquanto dirigentes de empresas com fins de lucro usam ativos para gerar receita, líderes de organizações sem fins lucrativos têm como objetivo produzir impacto social e cumprir a missão da organização. Mas ativos não são só bens físicos: podem ser programas, tecnologia exclusiva, redes de relacionamentos, processos criativos e propriedade intelectual. E, ainda que não apareçam no balanço financeiro, certos ativos intangíveis são imprescindíveis para que a organização atenda a comunidade e cumpra sua missão.

No setor social, a transferência de ativos dessa natureza depende de um acordo entre as partes envolvidas. As transferências de programas costumam abranger diversos tipos de ativos, como ativos físicos, financeiros, processos criativos, tecnologia e propriedade intelectual. E podem, inclusive, envolver a transferência de relações já estabelecidas com funcionários, voluntários, fornecedores e membros da comunidade.

Após um estudo aprofundado sobre a transferência de programas, constatamos que essa é uma excelente ferramenta para o crescimento e a mudança organizacionais. Para cumprir as metas ambiciosas de um líder que busca o impacto social, talvez seja preciso incorporar um programa de outra organização ou transferir um programa da própria organização. A seguir, apresentaremos lições trazidas por nossa pesquisa para incentivar líderes sociais a fazerem um uso mais amplo e melhor dessa ferramenta estratégica.

COMIDA E EMPREGOS

NOSSO ESTUDO É PARTE de um projeto que examinou a colaboração permanente entre organizações. A ideia era entender o que distinguia uma colaboração de sucesso (ou seja, que tinha um impacto positivo mensurável nas organizações e na comunidade) de iniciativas menos frutíferas. Analisamos diversas modalidades de colaboração, como alianças, projetos compartilhados, serviços compartilhados, fusões e transferências de ativos. Ao longo da pesquisa, realizada durante o primeiro semestre de 2023, fizemos 118 entrevistas com indivíduos envolvidos em 45 iniciativas de colaboração, incluindo financiadores, funcionários, conselheiros, consultores e advogados. Desse total, selecionamos 20 casos para uma análise mais aprofundada (essa informação é pública e está disponível online em sustainedcollab.org/

collaboration-stories). Neste artigo, apresentamos dados de oito casos que envolveram transferências de ativos ou incorporações.

Um dos casos – exemplo de como a transferência de ativos pode turbinar a inovação e o impacto social – é o da parceria entre a Uplift Solutions e o Share Food Program na Filadélfia, no estado da Pensilvânia (Estados Unidos).

A Uplift Solutions foi criada em 2009 por Jeff Brown, CEO da rede de supermercados Brown’s Super Stores, para enfrentar o problema dos “desertos alimentares urbanos”: comunidades sem acesso a alimentos frescos e saudáveis. A entidade, sem fins lucrativos, abriu supermercados nesses lugares e criou programas de capacitação profissional voltados a trabalhadores do setor de alimentos, incluindo pessoas que estavam saindo do sistema prisional. Em 2018, a Uplift criou o programa Philly Food Rescue para ampliar seu impacto no combate à insegurança alimentar. O programa contava com voluntários que recolhiam excedentes de alimentos em supermercados, restaurantes e fornecedores e os distribuíam para organizações que atendiam pessoas em situação de insegurança alimentar. Essa operação de coleta e distribuição era coordenada por meio de um aplicativo licenciado da 412 Food Rescue, organização especializada nessa logística. A equipe do Philly Food Rescue estabeleceu relacionamentos com supermercados, lojas de conveniência, bufês e restaurantes, criou parcerias com conjuntos habitacionais, lares para idosos e centros comunitários para a distribuição dos alimentos e montou uma vasta rede de voluntários.

Com a ajuda de centenas de voluntários, o Philly Food Rescue distribuía quase 60 toneladas de alimentos por mês. Embora tenha enfrentado um problema sério na Filadélfia, a iniciativa não conseguiu apoio financeiro relevante de fundações da região. Em 2019, o presidente da Uplift, Atif Bostic, concluiu que para a organização cumprir sua missão, o melhor a fazer seria priorizar a capacitação profissional e buscar uma parceira para tocar o programa.

O Share Food Program, também da Filadélfia, é um dos maiores bancos de alimentos independentes dos EUA. Em 2019, tinha um orçamento de aproximadamente US$ 13 milhões – recursos em sua maioria vinculados a subsídios ou contratos públicos. Todos os anos, a organização distribuía toneladas de alimentos para milhares de pessoas por meio de uma vasta rede de parceiros, como organizações comunitárias e redes de ensino. Com a demanda crescendo sem parar, o Share enfrentava o constante desafio de angariar alimentos de varejistas e queria ampliar sua capacidade de captação, distribuição e logística.

George Matysik, diretor-executivo do Share, já vinha explorando com potenciais parceiros a possibilidade de uma união para aumentar a capacidade total do banco de alimentos. Foi por essa época que Bostic começou a procurar interessados em assumir seu programa. Matysik sabia que a captação de excedentes de alimentos de empresas locais poderia ajudar nessa expansão. Mas, como dependia de recursos públicos, o Share não tinha total liberdade para inovar, pois leis federais regulavam a distribuição de alimentos doados, sob supervisão da Food and Drug Administration, a agência sanitária dos EUA. Até que, um dia, Bostic e Matysik conversaram e o Share incorporou o Philly Food Rescue. O programa deu a Matysik uma oportunidade única de melhorar o serviço sem investir consideráveis recursos para desenvolver um

novo programa do zero. Mais que isso, a tecnologia de logística do Philly Food Rescue dava ao Share a possibilidade de tornar seus outros programas ainda mais sofisticados e interligados.

A transferência do programa também permitiu que a Uplift Solutions se concentrasse em sua missão maior, que era a capacitação profissional. Em 2022, redefiniu sua missão e visão para refletir essa ênfase renovada na capacitação, vislumbrando um futuro no qual jovens em situação de vulnerabilidade e pessoas com antecedentes criminais tivessem a oportunidade de atingir seu pleno potencial. Assim como doar roupas que não servem mais abre espaço no armário e ajuda quem precisa, transferir um programa social a outra entidade pode liberar a organização para se dedicar a áreas em que seu impacto possa ser ainda maior.

QUANDO CONSIDERAR A TRANSFERÊNCIA DE PROGRAMAS

HÁ VÁRIAS RAZÕES PARA SE TRANSFERIR um programa – e nem toda transferência é simples como a do Philly Food Rescue. A transferência possibilita que uma organização social maximize o impacto de um programa, serviço ou outro ativo ao desvinculá-lo de uma estrutura organizacional que não está alinhada com seu propósito. Quando vê que certos ativos não estão sendo plenamente aproveitados ou não estão em sintonia com os objetivos da organização, um líder atento pode agir para realocá-los em instituições nas quais tenham condições de atingir seu potencial. Nossa pesquisa identificou três circunstâncias que podem inspirar um líder a transferir um ativo programático: incubação de programas, redirecionamento estratégico e ampliação do impacto de programas.

Incubação de programas | Inovação e sustentabilidade são objetivos distintos, que exigem diferentes capacidades, modelos de gestão e infraestruturas. Conceber novos programas para atender comunidades de maneira inovadora, criar processos originais de colaboração e inventar soluções para velhos problemas exige criatividade, disposição para correr riscos e abertura à incerteza. Já manter serviços funcionando no dia a dia, garantir segurança e conformidade regulatória, aderir a protocolos necessários e realizar a constante manutenção de instalações e equipamentos demandam previsibilidade, estabilidade e repetição.

Quando uma organização desenvolve um novo programa, serviço ou processo, transferir esse ativo totalmente incubado per-

mite que ela continue inovando e buscando novas soluções. Ao mesmo tempo, o ativo pode crescer dentro de uma organização com a escala, a estrutura e o foco necessários para sua consolidação. Tanto a organização que transfere como a que recebe podem se beneficiar da transação. Em última instância, o setor social como um todo se fortalece quando sua capacidade de inovar por meio do desenvolvimento de programas e a prestação de serviços é gerida de forma mais eficiente.

Para Atif Bostic, da Uplift Solutions, programas são ativos a ser administrados em prol da comunidade. A seu ver, líderes comprometidos com uma missão devem pensar no impacto que deixam como um todo. “Às vezes, quando pensamos em nosso legado, nos prendemos ao trabalho que estamos fazendo no momento. Vemos o legado como a longevidade de um único projeto, em vez de pensá-lo como o impacto que podemos gerar com o conjunto do nosso trabalho e quanto isso contribui para o bem maior”, diz Bostic. Ao contemplar a transferência do Philly Food Rescue, ele levou em conta sua organização, a comunidade e o legado que criaria. A decisão de transferir o programa foi melhor tanto para sua organização como para a comunidade – e o crescimento contínuo do Philly Food Rescue, agora em sua nova casa, faz parte do legado de Bostic na criação e implementação de programas transformadores.

Redirecionamento estratégico | Troca de lideranças, mudanças no perfil de comunidades atendidas, avanços tecnológicos, pressão externa e novas oportunidades de financiamento tendem a redefinir prioridades e objetivos de uma organização social. Ao examinar e avaliar a carteira de programas e serviços, seus líderes podem identificar iniciativas que, apesar de eficazes isoladamente, não estão mais alinhadas com a missão ou o foco da instituição e poderiam ter um impacto maior se transferidas a outra entidade. E, de quebra, liberar a organização cedente para se concentrar em suas principais atividades.

A transferência do programa Youth and Parent Leadership Development (YPLD), em Los Angeles, é um bom exemplo. O YPLD era um projeto com apoio financeiro da Asian Americans Advancing Justice, uma organização dedicada a promover direitos civis e humanos da população asiático-americana. O projeto trabalhava com estudantes dentro de escolas e era focado em advocacy. A organização tinha incubado e patrocinado financeiramente diversas iniciativas sociais em um espaço compartilhado, que alugava e operava. Mas, em 1999, o diretor-fundador Stewart Kwoh decidiu se afastar. A troca de comando levou a um redirecionamento es-

Líderes do setor social devem se ver como guardiões de seus programas em nome da comunidade e se perguntar se alguma outra organização poderia aumentar o impacto desses ativos

tratégico, e a organização priorizou sua missão principal e reduziu seu papel de incubadora de outras iniciativas. Muitas das organizações que patrocinava, incluindo o programa YPLD, tiveram de buscar novos apoiadores (leia mais sobre essa transferência em Mudança na cultura organizacional, mais adiante).

Ampliação do impacto de programas | Outra razão para transferir um programa é quando outra organização tem melhores condições de administrá-lo. A instituição receptora do ativo pode ter mais experiência, programas complementares que criam sinergias ou uma estrutura de gestão mais robusta para expandir o programa. Líderes do setor social devem se ver como guardiões de seus programas em nome da comunidade e se perguntar se alguma outra organização poderia aumentar o impacto desses ativos. Se a resposta for sim, a melhor decisão para os beneficiários do programa talvez seja transferir o ativo.

Vejamos, por exemplo, a decisão da Beyond Foundation de aceitar, em 2021, a transferência de um programa do El Rio Community Health Center, em Tucson, no estado do Arizona (EUA). O centro abrigava o Meet Me at Maynards, um evento semanal de atividade física que reunia cerca de 800 pessoas por mês. A Beyond Foundation já promovia iniciativas gratuitas para incentivar hábitos saudáveis entre os moradores de Tucson. Na época, Jannie Cox, idealizadora do Meet Me at Maynards, estava planejando se aposentar após 14 anos à frente do projeto e percebeu que a Beyond Foundation poderia ampliar o impacto da iniciativa. Cox buscou – e encontrou – um parceiro na comunidade capaz de manter sua visão inicial e expandi-la para outras iniciativas que combinassem atividades físicas e engajamento social.

IMPACTO DA AQUISIÇÃO

AIDEIA DA TRANSFERÊNCIA de ativos é alinhar programas, serviços, processos e outros recursos à organização com a gestão mais adequada para abrigá-los e permitir seu pleno desenvolvimento. Assim como o transplante de mudas, a transferência de programas permite que as organizações alcancem seu potencial máximo, ao mesmo tempo que dá aos ativos as condições necessárias para vicejar. Uma organização que considere a aquisição de um programa pode esperar avanços em pelo menos quatro objetivos: inovação, mudança na cultura organizacional, melhoria da qualidade de programas e crescimento organizacional.

Inovação | A integração de diferentes recursos muitas vezes estimula a inovação. A transferência de programas permite que a organização que os recebe incorpore novos recursos e capacidades. Essa infusão cria oportunidades de inovação que não surgiriam se a organização tivesse tentado criar o ativo por conta própria. Ao receber o Philly Food Rescue, o Share conseguiu identificar como preencher lacunas em seu esquema de distribuição de alimentos. A princípio, tentou usar voluntários, como fazia o Philly Food Rescue, mas logo percebeu que a solução não era factível. Em vez disso, fez uma parceria com a empresa de delivery DoorDash para gerenciar essa logística. Hoje, o Share é um dos maiores usuários da DoorDash nos EUA.

Mudança na cultura organizacional | Embora fundamental, a cultura organizacional costuma ser negligenciada: quando saudável chega a ser invisível, mas quando doentia é um sério entrave. A transferência de programas, ao trazer pessoas e ideias novas para uma organização, pode ser uma ferramenta valiosa para definir e fortalecer sua cultura.

A transferência do programa YPLD da Asian Americans Advancing Justice para o Asian Youth Center é um bom exemplo. O Asian Youth Center foi fundado em 1989 (no começo, era o Asian Task Force) pela United Way de Los Angeles. Foi criado para atender às necessidades de serviços sociais e de saúde de famílias asiáticas no Vale de San Gabriel, com foco especial em jovens imigrantes de baixa renda em situação de vulnerabilidade. Inicialmente voltado a educação, empregabilidade e serviços sociais, o centro passou a concentrar esforços também na área de justiça juvenil.

“O Asian Youth Center, tradicionalmente, não era uma organização de advocacy”, diz Michelle Freridge, sua diretora-executiva. “Esse programa [o YPLD], em sua essência, é um programa de liderança e advocacy que ensina jovens e pais a se tornarem ativistas na comunidade e na escola. É uma abordagem de advocacy empoderadora. Historicamente, o Asian Youth Center era apenas uma organização de serviços diretos e nosso financiamento e afiliação iniciais eram com órgãos de segurança pública, para ações de prevenção, intervenção e repressão a gangues com uma abordagem mais tradicional de serviço social.”

Ao aceitar a transferência do YPLD, o centro conseguiu atualizar sua missão, visão e valores para priorizar o empoderamento e o ativismo cultural. A transferência do ativo por si só não foi suficiente para transformar a organização. A equipe de Freridge fez muita capacitação cruzada com os líderes do programa para

Com frequência, essas ações são vistas por financiadores como meros realinhamentos administrativos. Mas transferências de ativos tendem a ser verdadeiros catalisadores de inovação social e gerar impacto significativo para todos os envolvidos

que todos fossem expostos à abordagem do chamado advocacy empoderador do YPLD.

Melhoria da qualidade de programas | Oferecer programas e serviços de qualidade à comunidade é um objetivo importante. Adquirir programas pode permitir a uma organização melhorar a qualidade de seus programas ao aproveitar recursos disponíveis para apoiar o ativo e criar sinergias com iniciativas alinhadas.

A transferência do programa Learn All The Time para a Andy Roddick Foundation (ARF) exemplifica os benefícios dessa abordagem. O Learn All The Time era uma rede de programas extracurriculares para jovens em Austin, no Texas, com 20 anos de atuação. A ARF, criada pelo tenista estadunidense Andy Roddick, morador de Austin, atuava principalmente como financiadora de programas, com foco em “promover relações seguras e acolhedoras, incentivar o aprendizado e o crescimento e estimular lideranças juvenis”. A fundação já dava suporte financeiro ao Learn All The Time. À medida que expandiu suas atividades, a ARF se interessou em criar um programa para melhorar a qualidade de

iniciativas extracurriculares. Com a transferência do ativo, a fundação adquiriu uma plataforma de aprendizagem voltada para a qualificação desses programas. O Learn All The Time trabalhou em parceria com a ARF para desenvolver padrões de qualidade para os provedores de programas extracurriculares – padrões que depois foram implementados na rede.

Crescimento organizacional | Para organizações em trajetória de crescimento, desenvolver internamente um novo programa, currículo ou outra propriedade intelectual não é a única forma de expandir serviços. Receber a transferência de um programa pode ajudá-las a ampliar seu impacto, alcançar um público maior ou atender às necessidades da comunidade com mais agilidade. Como disse um líder do setor, se cultivar um novo programa é como trabalhar com uma pá de jardim, adquirir um programa totalmente estruturado é como usar uma escavadeira.

A transferência do Philly Food Rescue da Uplift Solutions para o Share permitiu que o programa atingisse seu pleno potencial. O Share ampliou o impacto do programa de forma significativa, com logística, infraestrutura e suporte melhores – além do apoio de uma instituição dedicada exclusivamente à segurança alimentar. Antes da transferência, o programa coletava pouco mais de 20 toneladas de alimentos todo mês. Após a integração à infraestrutura do Share, esse número saltou para quase 227 toneladas mensais.

IMPORTÂNCIA DO APOIO DE FINANCIADORES

OUTRO APRENDIZADO IMPORTANTE da nossa pesquisa é que colaborações estratégicas – em especial as transferências de programas – exigem suporte financeiro. Com frequência, essas ações são vistas por financiadores como meros realinhamentos administrativos. Mas, quando bem executadas, transferências de ativos tendem a ser verdadeiros catalisadores de inovação social e gerar impacto significativo para todos os envolvidos.

Na prática, vimos que muitas organizações sem fins lucrativos só conseguiram explorar ou implementar colaborações duradouras porque tiveram apoio financeiro. Esses recursos possibilitaram a contratação de especialistas técnicos e gestores de projeto, algo fundamental para que a colaboração acontecesse de fato. Se mais financiadores reconhecerem o papel essencial que essa colaboração desempenha – em particular transferências de programas –, será possível ampliar ainda mais os impactos sociais que nossa pesquisa identificou.

Uma das maneiras mais eficazes de sustentar essas transferências é participar de fundos coletivos (pooled funds) dedicados ao

apoio de colaborações de longo prazo entre organizações. Foi o caso da transferência entre o Share e a Uplift Solutions, viabilizada pelo Nonprofit Repositioning Fund, e da transferência para o Asian Youth Center, apoiada pela Nonprofit Sustainability Initiative. Ambos são fundos coletivos que bancam dezenas de colaborações desse tipo todos os anos.

Mas não é necessário esperar pela criação de um fundo conjunto para agir. A transferência entre a ARF e a Learn All The Time, por exemplo, foi facilitada pela Austin Together, uma fundação que apoia organizações sem fins lucrativos em processos de colaboração formal (embora não funcione como fundo coletivo, a Austin Together conta com financiadores em seu conselho consultivo).

TRÊS MITOS

Ainda há muito desconhecimento sobre o propósito e a natureza da transferência de ativos. Três mitos podem atrapalhar esse processo.

Mito 1: Apenas ativos tangíveis podem ser transferidos – e somente na dissolução ou aquisição de uma organização. Se entendermos os ativos de organizações sociais como tudo o que contribui para seu impacto, fica claro que realocar programas para estruturas organizacionais onde possam ser mais produtivos é o melhor caminho para o setor e para as comunidades atendidas. Por que, então, isso ainda é tão raro?

Muitos dirigentes só consideram a possibilidade de transferir ativos quando estão diante do encerramento da organização – e, mesmo assim, tendem a considerar apenas os ativos que aparecem no balanço patrimonial. A transferência de ativos de outra natureza raramente ocorre, pois nem sequer é cogitada. Isso perpetua o mito de que só pode haver transferências quando uma organização fecha as portas. É difícil achar a linguagem, a orientação e exemplos concretos de transferências de sucesso em programas de formação de lideranças sociais, processos de planejamento estratégico e oficinas de fortalecimento institucional. Nossa pesquisa busca mudar essa realidade.

A definição de sucesso empregada por conselhos de organizações sem fins lucrativos também costuma impedir a transferência de programas. Muitos executivos e conselhos se sentem responsáveis por manter a estrutura organizacional que herdaram. Por essa lógica, transferir um programa pode parecer um fracasso.

Mas há outra maneira de encarar a questão. Dirigentes e conselhos dessas entidades podem se ver como guardiões de ativos que pertencem à comunidade. Com esse olhar, podem considerar todas as possibilidades para garantir que esses programas gerem o maior impacto social possível – inclusive quando isso significa transferi-los para outra organização.

Mito 2: Um ativo autossustentável não tem impacto no orçamento da organização que o recebe. Muitos programas contam com fontes de financiamento específicas que cobrem seus custos operacionais. Para a organização que transfere o programa, isso pode dar a impressão de que o ativo é financeiramente neutro –nem gera, nem consome recursos. À luz desse mito, membros do conselho ou da equipe podem alegar que já há doações ou contratos vinculados ao programa ou mencionar patrocinadores

que pretendem continuar apoiando a iniciativa após a transferência. Não raro, presume-se que os mesmos recursos que sustentaram o ativo em uma organização continuarão a sustentá-lo na nova casa.

Mas até no mais estável dos contextos é difícil fazer projeções de receita – e a incerteza que acompanha uma transferência de programas aumenta esse desafio. Quando um contrato ou doação que custeava salários, por exemplo, não é renovado, esses postos de trabalho ficam desguarnecidos. Além disso, doadores nem sempre são tão comprometidos quanto afirmam ser. Em todos os casos analisados em nosso estudo, os programas transferidos exigiram apoio financeiro adicional da organização receptora, que precisou buscar novas fontes de financiamento, utilizar reservas operacionais ou ambas as coisas.

Foi o que aconteceu quando o YPLD foi transferido para o Asian Youth Center. A receita vinculada ao programa cobria apenas três meses de despesas operacionais. Depois da transferência, o Asian Youth Center bancou o programa com recursos próprios por mais de um ano, até conseguir ampliar o financiamento e captar novas doações à medida que o YPLD foi sendo integrado às operações da organização.

Lideranças que estejam avaliando uma transferência de ativos podem combater o mito do ativo autossustentável garantindo que as projeções orçamentárias sejam realistas, transparentes e considerem distintos cenários, como parte do processo de diligência prévia sobre a transferência. Conselhos e equipes diretivas das duas organizações devem analisar essas projeções com atenção e, antes de seguir adiante, a organização receptora precisa garantir que terá reservas financeiras e estrutura suficientes para arcar com os custos mesmo no pior dos cenários.

Mito 3: Até um programa ineficaz pode ser salvo por uma organização maior. Às vezes, líderes bem-intencionados se julgam capazes de resgatar um programa com os dias contados apenas por adotá-lo. A tese é que, sob a gestão eficiente de sua organização, será possível corrigir falhas de operação ou má administração e transformar um programa inviável em algo bom e sustentável. Mas, se um programa não se sustenta, isso dificilmente vai se alterar só porque mudou de casa.

Um programa acaba por diferentes motivos. Às vezes, por erros sérios de concepção. Em outras, por não ter acompanhado mudanças importantes na comunidade ou por estar inserido em um nicho tão específico que não atrai financiadores. Há programas que enfrentam concorrência demais no mesmo campo de atuação ou que não conseguem demonstrar que suas atividades produzem resultados concretos. E há casos em que o programa até já foi fundamental para uma população, mas com o tempo perdeu relevância. Mudar de organização não resolve nenhum desses problemas.

Líderes comprometidos com o impacto social podem evitar esse mito da salvação ao compreender como o programa de fato opera e qual é seu papel no contexto mais amplo do setor. Com a devida diligência, uma organização interessada em receber um programa pode entender melhor os desafios envolvidos e avaliar se está, de fato, em posição de melhorar ou modificar o que for necessário para que o programa gere impacto.

QUATRO LIÇÕES

Transferências de programas podem ajudar lideranças do campo social a cumprir sua missão – mas só quando encaradas de modo realista. Além de identificar mitos, nosso estudo destacou quatro lições fundamentais sobre esse tipo de transferência que todo líder deve ter em mente.

Lição 1: Considerar implicações jurídicas e envolver especialistas na questão. A transferência de ativos exige um processo de avaliação específico, distinto do aplicado na incorporação convencional, quando uma organização absorve integralmente ativos e passivos de outra entidade. Quando a transferência não se dá pela incorporação, passivos sem relação direta com o programa não vão junto. Isso posto, a absorção de ativos pode envolver custos relevantes, obrigações contratuais ou legais, questões trabalhistas e outros aspectos que merecem atenção.

Transferências de programas levantam questões importantes:

• Quais evidências sustentam o valor do ativo?

• Quais são os reais custos de sua manutenção?

• Ativos físicos (instalações, veículos, equipamentos) serão transferidos com o programa? Se sim, há algum ônus sobre esses bens?

• Os ativos físicos carregam algum tipo de responsabilidade legal?

• Qual é o valor e o estado dos ativos físicos?

• Há manutenções pendentes ou adiadas que precisam ser consideradas?

• Há contratos ou exigências legais pendentes que precisam ser atendidos?

• Quais recursos financeiros serão transferidos com o programa?

• Quais cargos serão transferidos com o ativo? Há vínculos sindicais ou contratuais relacionados a esses postos?

• Considerando o modelo de negócios atual, quais as projeções financeiras para três meses? Seis meses? Um ano? Dois anos?

Embora invariavelmente haja um advogado envolvido no processo de diligência prévia, consultores em gestão podem ajudar com projeções financeiras e de outra natureza. Esse apoio técnico é fundamental para que as organizações avaliem se a transferência de ativos trará benefícios estratégicos e se a entidade receptora tem reservas suficientes para arcar com riscos e custos da transição. Além disso, a própria organização transferidora deve investigar possíveis parceiros – em geral, com o apoio de um facilitador –, levando em conta a situação financeira, a reputação institucional e a missão da entidade.

O grau de assistência técnica exigido vai depender do porte e da complexidade dos ativos a ser transferidos e das organizações envolvidas. A transferência do programa Philly Food Rescue para o Share, por exemplo, foi uma transação relativamente modesta. A diligência prévia se concentrou nos contratos de tecnologia transferidos, na verificação de eventuais denúncias ou reclamações contra o programa e na análise dos contratos de trabalho do pessoal que atuava no programa. Já em transferências que envolvem múltiplos programas, equipes ou contratos, a diligência tende a ser mais extensa. Definir a complexidade adequada para esse processo em qualquer transferência de ativos é responsabilidade dos conselhos e das lideranças das organizações envolvidas, com o suporte de assessoria jurídica.

Lição 2: Determinar se a equipe será transferida junto com o ativo. A absorção de pessoal é uma preocupação central em muitas transferências de programas. Refletir – séria e separadamente – sobre cada posto a ser transferido e sobre cada indivíduo que ocupa esses cargos é fundamental para a saúde da organização. Embora a equipe seja essencial para o valor de muitos programas, isso não significa que as pessoas envolvidas seguirão automaticamente para a nova organização junto com o programa. Algumas podem preferir ficar onde estão, por valorizarem a cultura da instituição, sua liderança, a política de trabalho, benefícios oferecidos ou o relacionamento com colegas. Outras, no entanto, talvez vejam na transferência uma boa oportunidade de transformação profissional. Há ainda quem atue em diferentes programas na mesma organização – o que vai exigir reavaliação de suas responsabilidades caso um dos programas seja transferido e o outro não.

É imprescindível manter uma comunicação clara e atenta com todos os envolvidos. A liderança da organização que vai receber o programa precisa fazer reuniões regulares com esse pessoal durante as fases de sondagem e diligência prévia. Isso vai ajudar a esclarecer dúvidas quanto a contratos, remuneração e benefícios. Mas também é essencial conversar sobre o que cada pessoa valoriza em seu trabalho, as dúvidas que possa ter em relação à nova função e seus planos para seguir contribuindo com o programa. Estruturas de remuneração e missões institucionais – tanto da organização que transfere como da que recebe – também precisam ser consideradas. Faixas salariais entre duas entidades raramente são equivalentes e o custo de equiparar remunerações pode ser relevante.

É comum que lideranças se concentrem somente na criação de novos ativos – em parte porque a prática da transferência ainda não está incorporada à cultura de gestão de organizações sem fins lucrativos

Falar sobre afinidade e valores é tão importante na transferência de programas quanto discutir remuneração e benefícios. Muita gente optou por permanecer na Uplift Solutions quando da transferência do programa Philly Food Rescue devido à sua política de trabalho remoto. Já na transição do programa YPLD para o Asian Youth Center, a questão de valores divergentes foi o centro do debate. Freridge relembra: “O pessoal do programa YPLD que viria para o Asian Youth Center era mais progressista e fazia críticas ao tamanho e à atuação da força policial e ao sistema de liberdade condicional – o que criava um conflito com relações que já havíamos construído. Para se ter uma ideia, tínhamos um chefe de polícia no conselho”. Foi preciso um processo mais demorado de diálogo sobre valores e relações de poder antes que a transferência fosse concretizada.

Transferir profissionais que atuam em vários programas ao mesmo tempo é complicado e requer arranjos específicos. Uma pessoa pode concordar em atuar como consultora no programa que está sendo transferido, mas continuar contratada pela organização original. Pode optar por trabalhar para as duas organizações como autônoma ou por meio de uma prestadora de serviços terceirizada. Outra possibilidade é cada organização contratar o profissional por meio período. Ou, ainda, criar um modelo de equipe compartilhada. A organização que recebe o programa pode preferir transformar um cargo de meio período para tempo integral, digamos. Cada uma dessas alternativas – entre tantas outras imagináveis – tem implicações orçamentárias que precisam ser consideradas no processo de avaliação da transferência.

Lição 3: Gerenciar com cuidado ativos bancados por subsídios ou por contratos governamentais. A transferência de programas bancados por subsídios ou por contratos com órgãos do governo costuma ser especialmente complexa. Nesses casos, é preciso envolver desde cedo essas fontes de recursos – incluindo órgãos públicos que sejam parte de contratos relevantes – nas negociações de transferência de qualquer ativo. Já que o contrato ou subsídio está associado à organização original, a continuidade dos recursos depende da formalização de novos compromissos e transferi-los para outra entidade quase nunca é um processo rápido ou simples. Um financiador pode se recusar a apoiar o programa caso seja transferido para outra organização – ou a organização em questão pode não estar habilitada a receber apoio do financiador. Por outro lado, às vezes a existência de uma relação contratual anterior entre o financiador e a entidade receptora pode complicar a transferência. Não são desafios insuperáveis, mas devem ser incluídos no processo de diligência prévia.

Programas financiados por recursos estipulados em contrato exigem projeções detalhadas de fluxo de caixa, pois isso determina o melhor momento de uma eventual transferência. Em muitos casos, os recursos precisam ser usados antes da transição, o que pode criar um intervalo entre a data da transferência e o início de novos contratos.

Lição 4: Ponderar sobre o dilema entre “fazer” ou “transferir”. Trata-se de um dilema muito debatido em cursos de administração. Os alunos avaliam se, no papel de administradores, valeria mais a pena criar um produto ou serviço internamente ou com-

prá-lo ou contratá-lo de um fornecedor externo. Fatores como expertise e capacidade internas, custo-benefício, demanda e possibilidade de aprimoramento a partir de um modelo existente (reverse engineering) influenciam a decisão.

Líderes do setor social enfrentam dilemas parecidos quando avaliam oportunidades estratégicas. Ao considerar a criação de um novo programa, a formação de uma rede interorganizacional ou o desenvolvimento de uma nova tecnologia, há sempre duas opções: construir do zero ou incorporar um programa já existente que esteja disponível para transferência. Para tomar uma decisão, é útil adotar métodos analíticos semelhantes aos do setor privado, com fins lucrativos.

A análise quantitativa dessas opções envolve estimar os custos diretos e indiretos do desenvolvimento interno, incluindo o tempo da equipe, insumos e capacitação necessários. Também é preciso avaliar os custos de aceitar um ativo já existente, como despesas com busca e análise do programa, honorários de advogados, custos operacionais para integração do ativo às operações da organização e eventuais adaptações necessárias. Uma análise financeira comparativa das opções é uma etapa essencial da diligência prévia para a transferência de ativos.

No entanto, a decisão por criar ou incorporar não deve se basear apenas na análise financeira. Um exame qualitativo mais amplo exige respostas para perguntas como:

• O desenvolvimento das competências necessárias para criar o ativo traria benefícios estratégicos para a organização além do ativo em si?

• Há tempo suficiente para criar o ativo do zero? Esse processo comprometeria outras prioridades estratégicas?

• O ativo tem benefícios intangíveis difíceis de reproduzir, como uma marca consolidada, relações estabelecidas, traquejo cultural ou confiança de partes interessadas relevantes?

• A cultura do ativo vai contribuir para a imagem da organização ou prejudicá-la?

No final, a decisão de criar um programa por conta própria ou aceitar a transferência do ativo de outra organização depende de uma análise estratégica das respostas a essas perguntas qualitativas e de uma avaliação cuidadosa de custos. No setor de impacto social, é comum que lideranças se concentrem somente na criação de novos ativos – em parte porque a prática da transferência ainda não está incorporada à cultura de gestão de organizações sem fins lucrativos. Isso posto, o setor conta com alternativas para desenvolver ou adquirir ativos – e uma análise criteriosa já nas fases iniciais do planejamento pode representar um uso muito valioso do tempo. O

MICHELLE SHUMATE é titular da cátedra Delaney Family University Research Professor, diretora-fundadora da Network for Nonprofit and Social Impact (NNSI) e professora associada do Institute for Policy Research da Universidade Northwestern.

LINDSAY KIJEWSKI é sócia da SeaChange Capital Partners, onde lidera um programa que financia e incentiva parcerias entre organizações.

KATE PIATT-ECKERT é diretora da Mission Sustainability Initiative na Forefront, onde apoia a colaboração entre organizações sem fins lucrativos no estado de Illinois (EUA).

CHRISTINE THOMPSON é diretora da Arizona Together for Impact, iniciativa que apoia a colaboração entre organizações sem fins lucrativos em todo o estado do Arizona (EUA) por meio de consultoria, ferramentas e financiamento.

Aliança em novo ciclo

Como a Aliança pelo Impacto foi transferida do ICE para a Din4mo Lab, com planejamento, recursos e respeito à autonomia

UM EXEMPLO NACIONAL de transferência de programa como estratégia para garantir sua continuidade é a Aliança pelo Impacto. Criada em 2013 para promover investimentos e negócios de impacto socioambiental positivo, foi transferida em 2022 do Instituto de Cidadania Empresarial (ICE) para a Din4mo Lab.

Inicialmente batizada de Força Tarefa de Finanças Sociais, a Aliança foi lançada e conduzida pelo ICE com o apoio de um conselho multissetorial. Nos primeiros anos, produziu materiais explicativos e recomendações para fortalecer o setor, abordando desde o papel de incubadoras até a importância da mensuração de resultados.

“Tínhamos uma vocação muito específica: atuar como uma organização estruturante do ecossistema”, diz Diogo Quitério, vice-diretor de Planejamento de Impacto no ICE, que esteve à frente da Aliança nos primeiros anos. Uma das conquistas destacadas por Quitério foi a articulação com o governo federal para auxiliar na criação da Estratégia Nacional de Economia de Impacto (Enimpacto), relançada em agosto de 2023.

TRANSFORMAÇÃO E TRANSIÇÃO

EM 2022, inspirado em uma das recomendações da própria Aliança, o ICE criou a Coalizão pelo Impacto. O projeto se dedica ao fortalecimento do tema em nível local, atuando em seis cidades. Apesar da sinergia entre a Aliança e a Coalizão, o ICE entendeu que seria desafiador manter ambas e que sua missão com a Aliança já havia sido cumprida. Iniciou-se então o processo para decidir seu futuro.

Para entender o valor da Aliança, foi contratada uma consultoria, que entrevistou organizações de referência e constatou o reconhecimento do impacto e a importância da continuidade da iniciativa. A partir dessa validação, o ICE elaborou um dossiê sobre a Aliança e o apresentou a instituições próximas. Entre as propostas dos interessados em receber a iniciativa, destacou-se a da Din4mo Lab, que já atuava no fortalecimento do ecossistema e acabou sendo a escolhida para seguir com a Aliança.

“A Din4mo Lab entendeu o potencial de avançar ainda mais com a Aliança, apoiando

Evento comemorativo dos dez anos da Aliança pelo Impacto, em setembro de 2023, reuniu representantes do ICE e da Din4mo Lab

o ecossistema na articulação nacional e internacional, influenciando políticas públicas e a construção de pontes entre os atores”, diz Ricardo Ramos, diretor-executivo que assumiu a Aliança desde a transição.

O processo de mudança levou cerca de um ano, sendo mais intenso nos primeiros meses. ICE e Din4mo Lab realizaram uma série de encontros para repassar histórico, indicadores, articulação com movimentos globais, captação de recursos e comunicação. Nos meses seguintes, o ICE permaneceu disponível para responder a dúvidas e realizar mentorias. Entre os aprendizados gerados pela experiência de transferência da Aliança pelo Impacto do ICE para a Din4mo Lab estão:

• Comunicação transparente: Manter a constância da comunicação com o público da iniciativa e transmitir segurança sobre as mudanças é essencial. A transição foi comunicada primeiro para parceiros mais próximos, depois para o público externo. Um evento em comemoração aos dez anos da Aliança, unindo a antiga e a nova administração, marcou a passagem de bastão.

• Sustentabilidade financeira: A Aliança foi transferida com recursos advindos de captações realizadas pelo ICE. A Din4mo Lab também reservou uma verba inicial para o projeto, adquirindo segurança nos primeiros meses para planejar sua sustentabilidade financeira.

• Networking: Apesar de o ICE ter transferido a rede de contatos da Aliança para a Din4mo Lab, foi importante reforçar o networking. “Foi necessário criar um processo para institucionalizar e, em alguns casos, recomeçar relações que tinham sido muito bem realizadas ao longo dos dez anos da Aliança, mas que não estavam totalmente institucionalizadas”,

diz Ramos. A transferência de legitimidade aos novos administradores por meio do evento comemorativo da primeira década ajudou nessa tarefa.

• Respeito à autonomia da receptora: A Aliança foi transferida com seu conselho vigente, que teve liberdade para se reorganizar. Um representante do ICE permaneceu para apoiar a transição, mas a instituição entendeu que, dali para a frente, era importante respeitar a autonomia da Din4mo Lab. “Tivemos que abrir mão do processo e nos sentir confortáveis com qualquer rumo que a nova Aliança tomasse”, diz Quitério.

A ALIANÇA PELO IMPACTO HOJE

AALIANÇA CONTA com o apoio de infraestrutura e captação da Din4mo Lab, mas se mantém como uma iniciativa autônoma. Após a transição, passou por um processo de escuta dos atores do ecossistema e de planejamento, que deu origem a quatro frentes de atuação, voltadas a associados, visibilidade para pequenas organizações, mobilização de capital e advocacy.

“A Aliança é uma instituição intermediária, uma plataforma para o ecossistema; ela não é o fim. Os protagonistas são aqueles que estão investindo, criando um novo negócio, uma solução nova, acelerando iniciativas. A Aliança tem sempre que criar oportunidades para que essas pessoas e organizações estejam sob os holofotes”, afirma Ramos.

Quitério considera que a continuidade da iniciativa é um sinal de êxito na transferência. “O fato de a Aliança seguir existindo é um indicador de sucesso. O Brasil demandava esse projeto e que bom que há um novo ciclo da Aliança com o DNA da Din4mo Lab”, diz. O

Coragem para escutar e agir

Debates no 13º Congresso Gife propõem abordagens para que a filantropia tenha uma atuação mais justa, duradoura e conectada aos territórios

POR CAROLINA DE ASSIS

Afilantropia e o investimento social privado (ISP) devem ter coragem e assumir riscos em nome da equidade racial e da justiça social, destinando mais recursos flexíveis e de longo prazo à transformação estrutural necessária. Esse apelo foi reiterado durante os três dias do 13º Congresso Gife, que reuniu cerca de mil pessoas em Fortaleza entre os dias 7 e 9 de maio.

Realizado bienalmente há 25 anos, o evento propõe reflexões sobre ideias e práticas da filantropia e do ISP no Brasil. O tema dessa edição, “Desconcentrar poder, conhecimento e riquezas”, motivou debates urgentes – e muitas vezes incômodos – entre representantes de instituições financiadoras e organizações da sociedade civil (OSCs).

“Eu falo, mas só se vocês prometerem escutar”, disse Bianca Santana, diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro, ao ser

provocada a responder como financiadores podem aprimorar suas práticas. Na plenária “Conjuntura internacional e contexto Brasil – Afinal, que país queremos?”, ela criticou financiadores que oferecem apoios escassos, atrelados a projetos pontuais, e ainda assim esperam mudanças profundas nas estruturas de desigualdade do país. “Não dá para apoiar as organizações por um ano com um pouquinho de dinheiro e querer ver retorno. Tem que apoiar por dez anos, e com muito dinheiro, para ter impacto”, afirmou.

Santana também alertou sobre as recorrentes mudanças de estratégia por parte de financiadores, que deixam OSCs e seus beneficiários à mercê de decisões externas. Lígia Batista, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco, reforçou esse ponto no painel “Desconcentrar para quem? Organizações negras no centro das

a plenária sobre “Os próximos 30 anos do ISP e da filantropia no país”, no 13º Congresso Gife

lutas e às margens dos recursos”. “Mudar de estratégia não é brincadeira. Implica demissão de pessoas e encerramento de projetos. As organizações precisam participar das conversas sobre definição de estratégias”, disse Batista.

Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá para a Equidade Racial, criticou o que chamou de “filantropia recreativa” – mais voltada às expectativas de quem doa do que às necessidades de quem recebe. Na plenária dedicada a debater “Os próximos 30 anos do ISP e da filantropia no país”, Harvey defendeu que financiadores estabeleçam metas concretas para ampliar a diversidade em suas equipes e nos apoios concedidos, de modo que os avanços possam ser efetivamente medidos nas próximas décadas.

Dados do Censo Gife 2022-2023 revelam que 92% dos membros de conselhos deliberativos de organizações financiadoras são pessoas brancas e 66% são homens. Pessoas negras ou indígenas estão presentes em 26% dos conselhos, mas têm poder decisório sobre apenas 17% dos recursos movimentados por institutos, fundações e fundos filantrópicos com conselho deliberativo.

Giovanni Harvey, diretor-executivo do Fundo Baobá para a Equidade Racial, fala durante

COMPROMISSO E RESPONSABILIDADE

No painel “Cenários da sustentabilidade financeira das organizações da sociedade civil e os caminhos para seu fortalecimento”, Fernando Nogueira, diretor-executivo da Associação Brasileira de Captadores de Recursos, chamou atenção para a escala limitada do investimento social. “Parece maior do que é e menor do que deveria ser”, disse, ao comparar os R$ 4,8 bilhões investidos por associados do Gife em 2022 com os R$ 125 bilhões do orçamento do município de São Paulo para 2025.

A percepção de que os recursos da filantropia são menores do que poderiam ser e insuficientes para enfrentar os desafios estruturais do país permeou vários debates. Na plenária “A escuta do território como vetor democrático de transformação social”, Mariana Almeida, diretora-executiva da Fundação Tide Setúbal, defendeu a articulação entre ISP, organizações de base e poder público como caminho para gerar políticas públicas duradouras e transformadoras. Ela também ressaltou a importância do comprometimento de longo prazo com os territórios e iniciativas apoiadas.

Essa mudança de abordagem foi destacada por Vitor Hugo Neia, diretor-geral da Fundação Grupo Volkswagen, no painel sobre desconcentrar recursos para organizações negras. Neia relatou que a fundação que lidera oferecia apoios pontuais, mas passou a ter ciclos de dez anos de apoio e priorizar organizações de base

comunitária lideradas por mulheres e pessoas negras. Ele salientou que investir no desenvolvimento institucional das OSCs é fundamental para fortalecer os territórios de forma responsável.

“Se depois que sairmos do território as coisas não continuarem, é porque não houve a construção de um legado. A filantropia cria – ou deveria criar – condições para que as organizações dos territórios saiam fortalecidas. Não falo apenas de competências básicas como gestão, comunicação e captação de recursos. A pergunta é: como ajudamos essas organizações a tirar seus projetos do papel, com sustentabilidade?”, questionou.

Camila Valverde, diretora-executiva da Fundação ArcelorMittal, destacou a importância de estabelecer mecanismos de escuta dos territórios e das organizações de base para compreender necessidades e potencialidades antes de decidir sobre a alocação de recursos. Represen-

tando uma fundação empresarial, ela afirmou que seu papel é “escutar, entender e traduzir a linguagem social para a linguagem de negócios”.

“Todo mundo ouve, mas quem escuta?”, perguntou Valverde durante o painel “Investimento social corporativo e suas alternativas no enfrentamento às desigualdades”.

Na plenária sobre escuta dos territórios, Benilda Brito reforçou que “quilombos, favelas e aldeias já têm suas próprias soluções” e defendeu a presença de pessoas negras na formulação das estratégias da filantropia e do ISP. “Falta aposta nas pessoas pretas”, disse. “Ouvir é um ato político – e ignorar também.” O

O 13º Congresso Gife reuniu cerca de mil pessoas em mais de 30 painéis e plenárias entre 7 e 9 de maio de 2025 em Fortaleza (CE)
PARCERIA DE MÍDIA

PONTO DE VISTA

Insights das linhas de frente

Fundações

devem

investir mais em funcionários

Críticos das práticas de concessão de recursos devem apoiar a contratação de mais profissionais para aprimorar a prestação de contas, o retorno sobre o investimento e a igualdade de oportunidades

Stakeholders de fundações privadas pedem, sistematicamente, melhorias nos processos de concessão de recursos. Organizações beneficiadas há muito expressam preocupação com o desequilíbrio de poder entre fundações e seus parceiros. Críticos da filantropia cobram mais transparência, apontando os riscos das iniciativas idiossincráticas de grandes doadores. E, embora os beneficiários muitas vezes não tenham espaço para se fazer ouvir, lideranças do setor têm insistido para que as fundações se esforcem mais em escutá-los.

Para atender a essas demandas, defendemos que as fundações devem aumentar substancialmente os investimentos em sua capacidade interna, ou seja, na quantidade e na qualidade do pessoal responsável pela concessão de recursos.

Qualquer discussão sobre essas equipes deve começar com o seguinte dado: fundações gastam pouquíssimo com elas. Analisamos os documentos que as fundações privadas dos Estados Unidos enviam à Receita Federal e identificamos 13.882 fundações privadas não operacionais (ou seja, que não operam diretamente seus próprios programas beneficentes) com mais de US$ 1 milhão em ativos, mais de

US$ 100 mil em doações concedidas e mais de dez doações concedidas em sua declaração mais recente. Dessas, impressionantes 9.569 – 69% – relataram não ter nenhuma despesa salarial relativa à sua atividade beneficente, considerando remuneração de diretores e outros funcionários e benefícios pagos.

Essas fundações concederam US$ 11,6 bilhões em doações no ano mais recente analisado. Em relação às 4.313 fundações que reportaram tal despesa, a mediana pagou apenas US$ 0,08 em salários para cada dólar doado e US$ 1.505 para cada concessão.

Ao analisar as cem maiores fundações da amostra, constatamos que 16 não registraram nenhuma despesa com remuneração. A fundação mediana desse grupo gastou US$ 0,06 em salários para cada dólar doado e US$ 9.538 em despesas salariais para cada doação. A Fundação Bill & Melinda Gates, a maior da amostra, declarou ter gasto em 2019 cerca de US$ 0,10 em salários de funcionários para cada dólar doado e US$ 89 mil por concessão.

É possível argumentar que faz sentido essas fundações gastarem mais por concessão, já que os valores de suas doações são proporcionalmente maiores. Segundo essa lógica, o que realmente importa é o valor gasto com salários por cada dólar doado, e não o total por concessão. E, por esse critério, as fundações menores já estão gastando mais do que as maiores em seus processos decisórios.

Contudo, se gastar mais por cada doação melhora o processo para os contemplados com os recursos e os resultados para as populações atendidas, esse gasto extra faz sentido. O objetivo da filantropia não é minimizar custos, e sim maximizar o impacto positivo na vida das pessoas para cada dólar investido.

Além disso, embora muitos fatores possam explicar as diferenças de gastos entre fundações, não há indícios claros de que as maiores estejam gastando em excesso – o que já é suficiente para questionar se o restante da amostra não estaria gastando aquém do necessário.

OS BENEFÍCIOS PODEM JUSTIFICAR OS CUSTOS

Pensemos em maneiras de aprimorar os processos de concessão de recursos por meio da ampliação das equipes. O movimento da filantropia baseada na confiança (TBP, na sigla em inglês) defende que o desequilíbrio de poder entre financiadores e contemplados pode ser reduzido por meio de boas práticas. Defensores da TBP sugerem que financiadores aprendam sobre o cenário filantrópico no qual atuam, simplifiquem e agilizem seus processos e relatórios, e encontrem maneiras de apoiar seus parceiros além dos recursos financeiros. Também argumentam que processos fechados de candidaturas reduzem a igualdade de oportunidades e recomen-

dam uma política aberta de manifestação de interesse, que permita às organizações se apresentarem para financiadores. Investimentos na capacitação de pessoal, como a contratação de especialistas, podem ajudar as fundações na implementação mais eficaz dessas práticas.

Um processo sólido de concessão de recursos envolve realizar diligência prévia e avaliações de impacto das oportunidades de financiamento. A diligência prévia permite que as fundações evitem situações constrangedoras que possam atrair a atenção da mídia ou da Receita Federal. Já as avaliações de impacto possibilitam a identificação dos meios mais eficazes para alcançar os objetivos da fundação, já que há evidências de que algumas doações geram mais resultados positivos do que outras. Suponhamos, por exemplo, que uma fundação meça seu impacto com base nas taxas de conclusão do ensino médio entre estudantes em situação de risco. Redirecionar recursos de intervenções caras e ineficazes (como a compra de novas tecnologias para alunos) para intervenções de alto custo-benefício (como a oferta de materiais pedagógicos estruturados para professores) pode significar a diferença entre causar quase nenhum impacto e gerar uma transformação significativa nesse indicador. Encontrar doações mais eficazes pode gerar mudanças profundas para os beneficiários. Identificar essas oportunidades exige tempo e conhecimento especializado. Portanto, as fundações podem aumentar sua efetividade ao investir em equipes com a experiência e a capacidade necessárias para identificar oportunidades alinhadas à sua missão.

É plausível, pois, que muitas fundações possam aprimorar seus processos de concessão de recursos e, desse modo, tratar as organizações beneficiadas com mais respeito e ampliar o alcance do impacto social. Porém, tanto a adoção das práticas recomendadas pela filantropia baseada na confiança como a busca por maior efetividade envolvem um custo: contar com pessoal qualificado e em número suficiente. Esse custo se justifica?

É compreensível que muitas fundações tenham receio de investir em funcionários. Em geral, doadores respondem negativamente a despesas operacionais e preferem que suas doações sejam destinadas a

programas. Ademais, custos operacionais de organizações sem fins lucrativos raramente são tratados de forma positiva na imprensa, o que indica que as fundações arriscam sua reputação quando investem em pessoal.

Por outro lado, especialistas têm criticado a aversão a esse tipo de custos, argumentando que se trata de uma métrica falha para avaliar o desempenho de organizações sem fins lucrativos. Embora o setor reconheça a importância dos gastos operacionais para o desenvolvimento de organizações sustentáveis e bem-sucedidas, alguém poderia questionar se isso também se aplica às fundações privadas. Em geral, elas não administram programas diretamente, mas distribuem recursos para organizações executoras. Não seria razoável esperar que fundações privadas tivessem pouca ou nenhuma despesa operacional?

complexas. Nosso objetivo é incentivar as fundações a iniciarem essa conversa internamente – orientadas por análises de custo-benefício – e promoverem mudanças quando a ampliação da equipe tornar a fundação mais alinhada à filantropia baseada na confiança e mais eficaz em seu impacto. Para facilitar essa conversa, propomos perguntas que os conselhos das fundações podem usar para avaliar maneiras melhores de alocar seus recursos. Qual é o nível atual de gastos da fundação com pessoal? Quanto é gasto por cada dólar doado e por cada doação realizada? Esses valores parecem altos ou baixos? Como se comparam com os de financiadores semelhantes? Essas perguntas podem ajudar o conselho a definir as bases para uma avaliação.

Conselhos podem ir além e perguntar: uma maior capacidade interna permitiria que a fundação atuasse de forma mais ali-

As fundações podem aumentar sua efetividade ao investir em equipes com a experiência e a capacidade necessárias para identificar oportunidades alinhadas à sua missão

Não necessariamente. Se é importante tratar as organizações beneficiadas com respeito, melhorando sua experiência na hora de solicitar e receber apoio financeiro, contar com uma equipe qualificada é fundamental. Ao investir nos processos de concessão, as fundações também sinalizam às entidades contempladas que entendem o valor dos custos operacionais. E se é possível fazer um bem maior para os beneficiários investindo mais em decisões ligadas à concessão de recursos, então pode-se argumentar que funcionários adicionais são um investimento que, na realidade, se paga.

Embora sustentemos que as fundações estejam provavelmente investindo pouco em pessoal, não queremos dizer que há um valor ideal único que deveria ser gasto com salários. Algumas fundações talvez não precisem de funcionários remunerados, podendo ter conselhos ativos nas tomadas de decisão sobre doações; por outro lado, algumas fundações podem ter um escopo restrito, que não necessita de avaliações

nhada à filantropia baseada na confiança? Isso poderia ocorrer por meio da adoção de um processo aberto de manifestação de interesse, oferta de feedback a candidatos rejeitados, implementação de práticas recomendadas pela TBP ou outras medidas. Do mesmo modo, uma equipe mais robusta possibilitaria à fundação gerar mais impacto? Isso poderia ocorrer por meio de pesquisas sobre as melhores formas de alcançar suas prioridades, um processo de decisão sobre doações mais detalhado, aprendizados e avaliações significativas no plano das doações e da análise de portfólios, para citar algumas opções. Esperamos que essas perguntas incentivem discussões produtivas entre membros do conselho, ajudando-os a refletir de forma crítica sobre as melhores maneiras de alcançar seus objetivos. O

KYLE A. SMITH é professor de ciências contábeis na Faculdade de Ciências Contábeis Adkerson, da Universidade Estadual do Mississippi.

BOB FISCHER é professor de filosofia na Universidade Estadual do Texas e pesquisador sênior na Rethink Priorities.

Filantropia reparatória para proteger a democracia

Com coragem para enfrentar seu passado e redistribuir poder, a filantropia brasileira pode liderar uma transformação global na forma de doar e fortalecer a democracia a partir da justiça social

Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de me envolver de maneira profunda com o setor filantrópico brasileiro. Em 2023, fui palestrante do 12º Congresso Gife em São Paulo, onde compartilhei as ideias centrais do meu livro Decolonizing Wealth com mais de 1.200 filantropos e líderes comunitários do Brasil e de toda a América Latina. Neste ano, retornei ao 13º Congresso Gife para falar sobre o estado atual da filantropia nos Estados Unidos e suas implicações para a América Latina, especialmente no clima político que vivemos hoje.

Ao longo da minha trajetória no setor filantrópico, tenho incentivado a filantropia dos EUA a se examinar de forma crítica, enfrentar suas falhas e trabalhar para redistribuir seus recursos, muitas vezes acumulados à custa de danos a pessoas e ao planeta. Alguns podem questionar a relevância para o contexto brasileiro do debate sobre decolonizar a filantropia nos EUA. Outros podem temer que esse conceito seja radical demais como ponto de partida para famílias ricas em países como o Brasil, para as quais questões como racismo e concentração de poder e riqueza talvez não sejam tão visíveis.

No entanto, a pertinência desses temas e as oportunidades para fazer doadores e organizações debatê-los não poderiam ser mais oportunas. Nos EUA – e em muitos outros lugares – enfrentamos um crescimento acelerado da disparidade de riqueza. Essa situação se agrava com a recente desestruturação da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e propostas legislativas

que ameaçam a atuação da filantropia privada, incluindo sua capacidade de financiar iniciativas fora do país. Além disso, não temos observado um aumento de doações e subsídios como ocorreu em 2020 e 2021,1 em resposta à pandemia de covid-19 e às mobilizações por justiça racial. Hoje, fundações e doadores respondem com mais lentidão diante de tarifas, crises constitucionais e ameaças de recessão que afetarão os EUA e o mundo. Estes tempos instáveis tendem a impactar também a disposição de famílias e fundações brasileiras em doar. Como chegamos até aqui? A resposta pode ser resumida em uma palavra: colonização. Uma longa lista de problemas sociais – da pobreza extrema à crise climática – tem raízes nas dinâmicas coloniais de extração e ganância. Os sistemas econômicos atuais concentram intencionalmente a riqueza em poucas mãos, enquanto extraem recursos de muitos. A história mostra que a falta de resposta a essas questões profundas e sistêmicas leva à degradação da sociedade e da democracia.

O QUE QUEREMOS DIZER COM “DECOLONIZAR A FILANTROPIA”

Decolonizar a filantropia significa usar o dinheiro para curar e restaurar, em vez de explorar e controlar. Isso começa com o reconhecimento de que a origem de grande parte da riqueza filantrópica é extrativa, enraizada na exploração de povos indígenas, da terra, de pessoas africanas escravizadas e do planeta. Muitas instituições, no Brasil e no mundo, construíram seu patrimônio sobre essas bases exploratórias. Apesar de atuarem filantropicamente, continuam se beneficiando desse legado problemático, revelando uma profunda contradição entre suas missões declaradas e suas histórias.

A filantropia reparatória é o próximo passo fundamental. Ela envolve redistribuir recursos de forma que se reconheça como a colonização, a escravidão e a opressão facilitaram o acúmulo de riqueza. Ao direcionar dinheiro e poder para comunidades historicamente prejudicadas, busca-se promover reconciliação, reparação e cura coletiva.

A urgência da filantropia reparatória é evidente em especial em países como o Brasil, cuja história é marcada pelo sofri-

mento profundo infligido a povos indígenas e africanos. No século 16, a escravização de populações indígenas deu início a um capítulo trágico da história brasileira.2 Comunidades foram devastadas, sofrendo traumas cujos ecos reverberam até hoje. Com o tráfico transatlântico de escravizados, o Brasil tornou-se um dos principais destinos dessa prática abominável: mais de 1,7 milhão de africanos foram sequestrados e trazidos ao país,3 submetidos a uma crueldade inimaginável.

A dependência brasileira da mão de obra escravizada perdurou por séculos, mais do que em qualquer outro país do Ocidente. Apenas em 1888 o Brasil se tornou o último país ocidental a abolir formalmente a escravidão.4 As feridas deixadas por séculos de opressão não são facilmente apagadas.

Os efeitos persistentes da colonização, da escravização e da apropriação de terras são visíveis hoje nas desigualdades educacionais, na vulnerabilidade à crise climática e na concentração de renda. O 1% mais rico do Brasil detém quase 50% da renda total.5 Apenas 0,8% da população do país é composta por indígenas,6 dos quais 33% vivem com renda per capita abaixo da linha da pobreza.7 Já entre pessoas negras, a taxa de pobreza é pelo menos o dobro da registrada entre brancos.8

Mesmo quando as instituições filantrópicas buscam gerar mudanças positivas, muitas vezes perpetuam as desigualdades ao manter os recursos em um círculo restrito e privilegiado, sem que haja uma redistribuição efetiva para comunidades marginalizadas. Esse desequilíbrio no repasse de recursos e no poder de decisão pode, involuntariamente, agravar os próprios problemas que se pretende resolver.

Minhas conversas com lideranças de base e filantropos no Brasil indicam que organizações negras e indígenas recebem uma fatia ínfima do financiamento filantrópico. Segundo a Rede Comuá, apenas 5% das fundações associadas ao Gife financiam diretamente iniciativas focadas em questões raciais.9 A Iniciativa PIPA, organização de base que busca democratizar o investimento social privado no Brasil, aponta que 46% dos coletivos periféricos recebem nada ou menos de R$ 5 mil por ano em doações e recursos filantrópicos.10 Essas práticas refletem tendências globais,

em que comunidades historicamente marginalizadas recebem apoio insuficiente em relação às suas necessidades e ao seu tamanho populacional. Um novo relatório do Decolonizing Wealth Project confirma essas tendências e apresenta caminhos para reinventar a filantropia global, rompendo com raízes coloniais e promovendo o florescimento mútuo.11

CURAR O FUTURO

Filantropia significa “amor à humanidade”. Essa definição deve nos guiar em direção a relações justas com as comunidades. Como setor, nos beneficiamos do privilégio da riqueza e do desequilíbrio de poder. Acumulamos mais recursos do que compartilhamos. Embora a diversidade

mento e reparação das injustiças econômicas e de outras naturezas que alimentaram o acúmulo de riqueza”.12 Acompanhei a Bush Foundation nessa jornada reparatória e conheço bem os medos e tensões que emergem quando lidamos com nossa história real e responsabilidades como setor. Mas os benefícios – de curto e longo prazo – superam amplamente os custos.

Decolonizar a filantropia é retirar o véu do imperialismo e reparar gerações de danos. A filantropia reparatória vai além: ela redistribui recursos intencionalmente para curar. Analisar nossa história é essencial para entender onde estivemos, onde estamos e para onde precisamos ir.

Diversas fundações nos EUA e no Reino Unido têm iniciado processos de inves-

O Brasil tem um ecossistema vibrante de agentes de mudança prontos para mergulhar em um trabalho transformador capaz de posicionar o país como líder global em filantropia

nas lideranças tenha aumentado, o poder de decisão sobre o dinheiro continua concentrado nas mãos de poucos. O único caminho para equilíbrio e equidade é o compromisso com a reparação

A filantropia reparatória, na prática, pode significar que uma fundação no Brasil destine parte expressiva de seu fundo patrimonial ao apoio de organizações e fundos liderados por pessoas negras e indígenas que atuam na superação de desigualdades estruturais em educação, saúde e oportunidades econômicas. O Fundo Baobá para Equidade Racial e o Fundo Agbara, por exemplo, são liderados por quem vive essas realidades e presta contas às comunidades. A reparação pode significar transferir mais riqueza para organizações de base, para que elas repassem recursos de modo a respeitar a autodeterminação comunitária, romper com a dependência permanente da generosidade alheia e transferir o poder sobre os recursos.

Em 2021, a Bush Foundation anunciou que destinaria US$ 100 milhões para a criação de dois fundos comunitários geridos por organizações locais para apoiar comunidades negras e indígenas nas regiões em que atua, “como forma de reconheci-

tigação sobre a origem de suas riquezas. Em alguns casos, há ligações diretas com a escravização e a apropriação de terras. Em outros, descobrem-se formas mais recentes de extração e exploração, muitas vezes baseadas em políticas econômicas prejudiciais a populações excluídas. Essas instituições agora se comprometem com ações reparatórias e usam o dinheiro como remédio para curar esses danos.

A filantropia reparatória não diz respeito apenas a expiar culpas do passado, mas agir ativamente para desmontar sistemas e estruturas que perpetuam desigualdades. Ao redistribuir riqueza e transferir poder de decisão, podemos construir um mundo mais justo e equitativo. Estamos lançando uma nova base.

No livro Decolonizing Wealth, abordo o conceito de “Mitakuye Oyasin”, do povo indígena Lakota, que significa que todos somos parentes e estamos conectados com todos os seres vivos e inanimados, com o planeta e com o Criador. O aspecto mais poderoso da filantropia reparatória é que a cura não é unidirecional. Todos nos beneficiamos dela.

Tenho esperança de que o setor filantrópico brasileiro escute esse chamado. O Brasil tem um ecossistema vibrante de

agentes de mudança prontos para mergulhar em um trabalho transformador capaz de posicionar o país como líder global em filantropia. Isso pode estimular o aumento do fluxo de capital filantrópico e redirecionar recursos para aqueles que atuam diretamente na proteção e no fortalecimento da democracia na sociedade civil brasileira.

A cura gera progresso, e o progresso exige coragem, humildade e disposição para enfrentar verdades incômodas. Quando aceitamos e enfrentamos a realidade das nossas histórias, experimentamos uma verdadeira democracia. Podemos decolonizar a riqueza e transformar a filantropia em uma força poderosa de cura, reparação e bem-estar coletivo ao adotar esses princípios. Todos temos um papel no processo de cura, quer tenhamos sido beneficiados pelos sistemas históricos ou sofrido seus impactos contínuos. Todo sofrimento é mútuo. Toda cura é mútua. Todo florescimento é mútuo. O

EDGAR VILLANUEVA é fundador e CEO do Decolonizing Wealth Project.

NOTAS

1 Michael Kavate, “Climate Regrantors Speak Up: How They’re Responding to Trump”, Inside Philanthropy, 15.mai.2025.

2 Lais Modelli, “Em duas décadas, mais de 1.600 indígenas foram encontrados em situação de escravidão no Brasil”, Mongabay, 12.jul.2022.

3 Sarah Brown, “Brazil’s heart-breaking site of two million enslaved Africans”, BBC, 15.fev.2024.

4 Ricardo Salles, “The Abolition of Brazilian Slavery, 1864-1888”, Oxford Research Encyclopedia of Latin American History, 30.out.2019.

5 Statista, “Percentage distribution of wealth in Brazil in 2021, by wealth percentile”, 12.ago. 2024.

6 Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, “The Indigenous World 2025: Brazil”, International Work Group for Indigenous Affairs, 25.abr.2025.

7 Statista, “Percentage of indigenous people living under the poverty line in Brazil 2005-2023”, 13.jan.2025.

8 Umberlândia Cabral, “Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego, educação, segurança e saneamento”, Agência IBGE Notícias, 11.nov.2022.

9 Rede Comuá, “Vamos decolonizar a filantropia, sim!”, 23.ago.2023.

10 Iniciativa PIPA, Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil, 2022.

11 Decolonizing Wealth Project, From Colonial Roots to Reparative Futures: Reimagining Global Philanthropy, 2025.

12 Jen Ford Reedy e Edgar Villanueva, “Closing the racial wealth gap is a collective responsibility. Reparations are a solution”, USA Today, 15.abr.2021.

EDUCAÇÃO

Como um sindicato desafia a polarização

Historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Seu trabalho pode ser lido em daniela-blei.com/writing

Os altos níveis de polarização política e desengajamento cívico nos Estados Unidos não são novidade, mas algumas organizações têm superado as divisões crescentes na sociedade estadunidense. Um novo estudo de Alexander Hertel-Fernandez, professor associado de ciência política na Universidade Columbia, mostra como um grande sindicato do setor público, a Associação de Educação do Estado de Iowa (ISEA, na sigla em inglês), tem conseguido recrutar e engajar novos membros em um ambiente cada vez mais partidário. Durante uma viagem de pesquisa a Iowa para estudar redes interestaduais de legisladores e grupos de interesse conservadores e progressistas, Hertel-Fernandez reuniu-se com o maior sindicato de professores do estado. O encontro se transformou em uma parceria de longo prazo que forneceu uma fonte de novos dados e uma compre-

PESQUISA

Destaques de revistas acadêmicas

ensão mais ampla de alguns dos desafios enfrentados pelas associações cívicas, sempre aclamadas como a espinha dorsal da democracia estadunidense. Hertel-Fernandez queria saber: como a associação de professores conseguia fazer apelos políticos bem-sucedidos a educadores conservadores e republicanos que tinham opiniões diferentes daquelas do sindicato em relação a causas, candidatos e temas políticos? E como o sindicato estava reunindo republicanos, democratas, conservadores e progressistas para participar de atividades e eventos políticos?

O pesquisador encontrou respostas nos dados gerados por cerca de 400 sindicatos locais associados à ISEA.

“Um dos desafios ao estudar organizações da sociedade civil é a dificuldade de obter dados prontos, especialmente para responder a algumas das questões mais interessantes e importantes”, diz Hertel-Fernandez. “As organizações da sociedade civil costumam ser uma caixa-preta.”

A colaboração com o sindicato permitiu a Hertel-Fernandez olhar dentro da “caixa-preta”. Ao analisar questionários com educadores sindicalizados, dados internos sobre a partici-

pação política desses membros e entrevistas, ele descobriu como os líderes sindicais cultivavam normas que incentivavam todos os membros a se engajarem politicamente.

“Há dois aspectos importantes nessa liderança”, diz Hertel-Fernandez. “O primeiro é estabelecer uma impressão inicial forte e incorporá-la como parte da norma do que se espera de quem é membro. O segundo é ir além dos debates políticos nacionais e focar em como a política afeta uma escola local ou a comunidade.” Como a ISEA negocia e atua em nível local, consegue enquadrar questões e debates políticos em termos dos interesses da comunidade, observou Hertel-Fernandez – mesmo em meio a disputas acaloradas em nível nacional sobre temas como aborto e outras questões polarizadoras.

Em nível local, membros do sindicato podem se envolver em ações políticas, como conversar com colegas de trabalho, amigos, familiares e vizinhos, enquanto maneiras mais formais de participação incluem contribuir com o comitê de ação política do sindicato – uma ferramenta importante para que a organização exerça influência política por meio de apoio público e doações a candidatos que disputam eleições locais e estaduais em cada ciclo eleitoral.

Desde que Hertel-Fernandez iniciou sua pesquisa, mais

sindicatos de trabalhadores e professores do setor público estão localizados em estados que possuem leis de “direito ao trabalho”. Essas leis proíbem sindicatos de exigir a sindicalização ou o pagamento de taxas de trabalhadores não sindicalizados para beneficiar-se dos acordos negociados com empregadores. Iowa, por exemplo, se inclinou para a direita nos últimos anos, aprovando leis que dificultam a organização sindical e a negociação coletiva. As estratégias adotadas pela ISEA para dialogar com republicanos e conservadores provavelmente serão úteis em outros contextos pouco favoráveis a sindicatos. Organizações cívicas com estrutura federada – ou que tenham presença local e estadual, além da nacional –frequentemente reúnem membros que não concordam com todas as posições assumidas pela organização.

“Esse estudo é um sopro de ar fresco em um momento em que a literatura da ciência política tem se concentrado na nacionalização e na polarização das identidades partidárias”, diz Leslie Finger, professora assistente de ciência política na Universidade do Norte do Texas. “Em vez de mostrar como republicanos e democratas se tornaram cada vez mais hostis entre si e social e geograficamente segregados, o estudo destaca maneiras pelas quais organizações associativas podem superar essas divisões e construir normas e culturas organizacionais que dialogam com diferentes espectros partidários.” O

Veja o estudo completo: “Civic Organizations and the Political Participation of Cross-Pressured Americans: The Case of the Labor Movement”, por Alexander HertelFernandez, American Political Science Review, publicado online, set. 2024

O legado dos heróis invisíveis da reciclagem

Historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Seu trabalho pode ser lido em daniela-blei.com/writing

Grace Augustine, professora associada de negócios e sociedade na Escola de Administração da Universidade de Bath, no Reino Unido, pesquisa sobre sustentabilidade desde a pós-graduação, com atenção especial a como grandes organizações, entre elas faculdades e universidades, podem reduzir o desperdício e mitigar impactos climáticos. No entanto, a área conta com um número limitado de estudos longitudinais e históricos, o que levou Augustine a se perguntar se as mudanças ambientais dentro das organizações realmente geram efeitos substanciais e duradouros.

Em parceria com Michael Lounsbury, professor de gestão estratégica, organizações e sociologia na Universidade de Alberta, no Canadá, Augustine se propôs a analisar a institucionalização da reciclagem no ensino superior. Acompanhados por Leanne Hedberg, professora associada de empreendedorismo e inovação na Universidade MacEwan em Edmonton, e Tae-Ung Choi, professor assistente de gestão na Escola de Negócios da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong, eles se concentraram nos esforços de um grupo extinto: os coordenadores de reciclagem, cargo criado na década de 1990 em resposta ao ativismo

ambiental de estudantes nos Estados Unidos e no Canadá. Em um novo estudo, os pesquisadores investigam se o trabalho desses profissionais fez diferença a longo prazo.

Um verdadeiro tesouro de dados primários deu a eles acesso a 25 anos de conversas em 445 instituições de ensino superior da América do Norte. Um fórum online ativo, criado em 1995 para que coordenadores de reciclagem colaborassem entre si, compartilhassem ideias e se apoiassem mutuamente, ofereceu uma visão única do cotidiano desses profissionais.

“Esses dados não foram criados com uma pesquisa em mente”, diz Augustine. “Não houve um questionário elaborado para responder às perguntas de um estudo. Os dados são conversas do dia a dia e vêm de uma época em que as pessoas conversavam muito livremente online.”

Com mais de 9 mil páginas de texto com espaçamento simples, provenientes de conversas e mensagens no fórum da Coalizão de Reciclagem de Faculdades e Universidades (CURC, na sigla em inglês), foi necessário recorrer a um algoritmo de amostragem por aprendizado de máquina para identificar os temas mais relevantes e filtrar questões mais triviais, como a localização ideal para lixeiras de reciclagem. Ao treinar o algoritmo, os pesquisadores conseguiram avaliar se as mudanças ao longo do tempo foram realmente significativas. Diante das críticas recorrentes ao greenwashing e de estudos que mostram como movimentos sociais podem gerar resultados positivos apenas no curto prazo, a prioridade deles foi entender os efeitos a longo prazo – e verificar se as pres-

sões e compromissos impulsionados pelos movimentos resultaram em mudanças que se expandiram e perduraram.

“Gerentes de sustentabilidade me dizem hoje que devem muito aos coordenadores de reciclagem”, diz Augustine. “Isso me fez refletir sobre alguns dos heróis não reconhecidos do movimento ambiental e como funcionários comuns podem desempenhar um papel importante na mudança de suas organizações.”

A equipe também entrevistou coordenadores de reciclagem que, juntos, acumulavam 141 anos de experiência na função – todos já aposentados. À medida que esses coordenadores compartilhavam memórias e refletiam sobre seus papéis, os pesquisadores discutiam com eles os achados preliminares, buscando compreender melhor como viam seu trabalho. O desaparecimento do cargo, agora incorporado às funções dos gestores de sustentabilidade contratados por universidades e faculdades para lidar com metas ambientais mais ambiciosas, é um testemunho das conquistas alcançadas pelos coordenadores de reciclagem.

“Existe um lugar-comum amplamente repetido entre profissionais de sustentabilidade: ‘Se eu for bem-sucedido, vou ficar sem emprego’. Esse estudo sugere que isso é, de fato, verdade”, afirma Andrew J. Hoffman, professor de empreendedorismo sustentável na Universidade de Michigan. “Coordenadores de reciclagem buscaram implementar novas práticas operacionais dentro das burocracias em que atuavam. Nesse processo, acabaram também contribuindo para o

fim da própria profissão. Mas, em vez de encarar isso como um sinal de fracasso, isso pode ser visto como um sinal de progresso.” O

Veja o estudo completo: “Wasted? The Downstream Effects of Social Movement-Backed Occupations”, por Grace Augustine, Leanne Hedberg, Tae-Ung Choi e Michael Lounsbury, Administrative Science Quarterly, v. 70, n. 1, 2024.

Quem protege a floresta?

Jornalista em Nova York, escreve sobre negócios, finanças e pesquisa acadêmica. Você pode segui-la no X: @cschoenberger

Os povos indígenas são melhores para cuidar das áreas naturais, ou a natureza precisa ser protegida deles? Esses dois estereótipos simplistas são repetidos com frequência, mas nenhum deles oferece uma perspectiva completa da realidade.

Um novo estudo analisa como o governo da República Democrática do Congo (RDC) e organizações não governamentais falam sobre o povo Batwa, com o objetivo de entender o papel dessa população na conservação do Parque Nacional Kahuzi-Biega, que abriga florestas e espécies ameaçadas, como o gorila-de-grauer.

A história recente do parque preparou o terreno para conflitos entre os Batwa, o governo local e outros grupos que vivem nas proximidades. Na década de 1970, autoridades expulsaram os Batwa do parque em nome da conservação, marginalizando-os para comunidades nos arredores da

área protegida. Quando, em 2018, alguns Batwa retornaram para viver dentro do parque, o governo e ONGs de proteção ambiental apresentaram esse retorno como um desastre ecológico. Diziam que os Batwa não eram confiáveis para cuidar de áreas naturais sensíveis. Já organizações de defesa dos direitos indígenas adotaram a posição oposta, argumentando que apenas os Batwa poderiam proteger adequadamente suas terras ancestrais.

Os autores – Fergus O’Leary Simpson, pós-doutorando no Instituto de Política de Desenvolvimento da Universidade de Antuérpia; Kristof Titeca, professor na mesma universidade; Lorenzo Pellegrini, professor de economia do meio ambiente e desenvolvimento no Instituto Internacional de Estudos Sociais da Universidade Erasmus de Roterdã; Thomas Muller, pesquisador no Serviço Inter-

nacional de Informações sobre Paz na Bélgica; e Mwamibantu Muliri Dubois, assistente de pesquisa na Université Officielle de Bukavu na RDC – analisam ambas as perspectivas. Eles realizaram cerca de 250 entrevistas com membros do povo Batwa, autoridades governamentais e representantes de grupos locais.

Descobriram que a história dos Batwa é bem mais complexa do que os slogans usados em folhetos de ONGs para arrecadar fundos junto a doadores estrangeiros interessados em apoiar a conservação ecológica ou os direitos dos povos indígenas. “As narrativas idealizadas acabam desviando a atenção de uma economia política mais ampla de extração violenta de recursos, que é fundamental”, escrevem os autores.

Uma análise por satélite feita antes e depois de outubro de 2018 – quando alguns Batwa voltaram a viver no parque –

mostrou que dois setores onde esses grupos se estabeleceram perderam grandes porcentagens de cobertura florestal. No entanto, isso não confirma a narrativa dos Batwa como destruidores da floresta. Os membros da comunidade vivem em situação de pobreza, e os dados, combinados com entrevistas, indicam que alguns chefes Batwa residentes no parque permitem o acesso de outros grupos ao comércio de carvão, transportando árvores locais para as duas maiores cidades da região, explica Simpson. Outros fatores em jogo incluem a falta de oportunidades econômicas tanto para os Batwa como para seus vizinhos, o fracasso do governo em conceder títulos de terra aos Batwa em uma área fora do parque onde poderiam se estabelecer, além de uma série de causas induzidas por seres humanos que forçam espécies ameaçadas a deixarem seus habitats dentro da área protegida.

“O que me chama atenção aqui é a diferença entre a história que as pessoas contam e a realidade concreta de um conflito complicado”, diz o pesquisador.

Por que a narrativa simplista persiste? Políticos e captadores de recursos de organizações sem fins lucrativos tendem a se apegar a visões unidimensionais de como grupos indígenas interagem com a natureza, porque é mais fácil para eleitores ou doadores entenderem. Mas isso não reflete a realidade completa, afirma Simpson.

Segundo ele, “em debates sobre conservação, há uma idealização dos povos indígenas como se vivessem uma vida muito simples, com baixo impacto ecológico. Mas também há a ideia de que eles

querem as mesmas coisas que outras pessoas querem, porque também são seres humanos – hospitais, smartphones, escolas”.

O estudo traz “um tema importante e uma abordagem inovadora – um esforço para quebrar o impasse entre os ‘destruidores da floresta’ e os ‘guardiões da floresta’, que acaba sendo uma construção artificial político-acadêmica de narrativas, em vez de um reflexo do que está acontecendo na realidade”, diz Christopher Day, professor associado de ciência política na Faculdade de Charleston. Mostrar que os Batwa são apenas uma das peças no tabuleiro da economia política da região é uma contribuição importante para a área, conclui o professor. O

Veja o estudo completo: “Indigenous Forest Destroyers or Guardians?

The Indigenous Batwa and Their Ancestral Forests in Kahuzi-Biega National Park, DRC”, por Fergus O’Leary Simpson, Kristof Titeca, Lorenzo Pellegrini, Thomas Muller e Mwamibantu Muliri Dubois, World Development, v. 186, fev. 2025

GOVERNANÇA

O custo ESG do ativismo acionário

POR CHANA R. SCHOENBERGER

Jornalista em Nova York, escreve sobre negócios, finanças e pesquisa acadêmica. Você pode segui-la no X: @cschoenberger

Quando um investidor ativista mira uma empresa de capital aberto, geralmente exige nomear um membro para o conselho de administração que represente os interesses dos acionistas. Esse passo costuma levar a uma valorização das ações, à medida que o representante do ativista pres-

siona a empresa a focar em ganhos financeiros de curto prazo. Mas que outros efeitos essa ação pode ter?

Um novo estudo mostra que ela tem implicações para a responsabilidade social corporativa (RSC). Empresas que recebem um novo diretor ativista tendem a gerar mais queixas de stakeholders sobre questões ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês).

“Embora a nomeação de um diretor ativista tenda a aumentar o valor da empresa para os acionistas, identificamos uma externalidade oculta: isso também leva a um aumento nos relatos de danos a partes interessadas”, escrevem os autores Brian L. Connelly, professor de gestão e empreendedorismo na Faculdade de Negócios Harbert da Universidade Auburn; Mark DesJardine, professor associado de administração na Escola de Negócios Tuck da Faculdade Dartmouth; Wei Shi, professor de gestão na Escola de Negócios Herbert da Universidade de Miami; e Zhihui Sun, professor assistente na Escola de Contabilidade da Universidade Capital de Economia e Negócios em Pequim.

Os pesquisadores analisaram dados de todas as empresas que passaram a ter um diretor vinculado a investidores ativistas entre 2008 e 2019, abrangendo o início da onda de ativismo acionário que começou em 2010. Para cada empresa, foi identificada uma semelhante que não recebeu um diretor ativista, servindo como grupo de controle. As duplas foram comparadas com base em três indicadores de danos a stakeholders: avaliações de agências de RSC, cobertura da imprensa e ações regulatórias. A presença

de um diretor indicado por investidores ativistas levou a um aumento significativo nos relatos de queixas de stakeholders, aponta o estudo.

As denúncias dos stakeholders sobre ESG não surgem necessariamente porque o investidor ativista, ou o diretor por ele indicado, se opõe a essas questões. O efeito provavelmente decorre do fato de que o novo diretor direciona a atenção do conselho à melhora do desempenho financeiro e do valor das ações da empresa – o que, geralmente, é a motivação do investidor ativista desde o início. “Na maioria das vezes, não é ideológico”, diz DesJardine.

A chegada de um diretor indicado por ativistas pode causar alvoroço no conselho. Alguns têm um perfil público por terem atuado como CEOs ou executivos no setor ou em outras áreas; outros trabalham diretamente para a firma ativista. Eles têm experiência relevante e são persuasivos.

“Há uma receptividade maior à campanha e ao que ela sinaliza sobre a empresa”, afirma DesJardine. O que, segundo ele, aumenta a abertura à mudança com esses diretores e as ideias que trazem consigo. À medida que o diretor ativista muda a orientação da empresa de estratégias de longo prazo para ações de curto prazo que impactam positivamente o valor das ações, as empresas tendem a reduzir gastos com pesquisa e desenvolvimento e com investimentos de capital, destinando esses recursos à recompra de ações. Esse é um bom resultado de curto prazo para os acionistas – e cumpre a missão do ativista, diz DesJardine. Os acionistas, diante desse cenário, podem votar contra o diretor ativista. Tam-

bém podem vender suas ações na empresa. Mas suas opções, fora isso, são limitadas.

Se o desempenho em ESG for importante para a empresa ou seus stakeholders, é preciso estabelecer medidas para proteger esse foco. Diz ele: “Se isso é uma peça central da estratégia da empresa, que tipos de salvaguarda existem para protegê-la?”.

A questão de como investidores ativistas se comportam como membros de conselho é importante porque a principal demanda deles ao mirar uma empresa é justamente colocar um diretor no conselho, diz Margarethe Wiersema, professora de gestão estratégica na Escola de Negócios Merage da Universidade da Califórnia. A maioria desses diretores conquista seu assento por meio de acordos entre o investidor ativista e a empresa, e não por votação, diz ela. Isso significa que os acionistas não têm voz direta sobre a entrada do representante do investidor ativista no conselho. No conjunto, os ativistas estão ganhando cada vez mais espaço nas empresas de capital aberto, conquistando cerca de 250 assentos em conselhos por ano, segundo o estudo.

“Considerando que há cerca de 3,5 mil empresas de capital aberto nos Estados Unidos, os diretores indicados por investidores ativistas conquistaram uma presença significativa nos conselhos corporativos. No entanto, sabemos pouco sobre as consequências sociais e ambientais dessa representação nos conselhos”, finaliza Wiersema. O

Veja o estudo completo: “Corporate Social Responsibility in the Age of Activist Directorships”, por Brian L. Connelly, Mark R. DesJardine, Wei Shi e Zhihui Sun, Strategic Management Journal, v. 46, n. 3, 2025

Feita por e para líderes de transformação

social de todo o mundo e de todos os setores

Unindo o melhor da teoria e da prática da inovação social, a SSIR Brasil é uma plataforma de debates sobre a transformação social no país.

Junte-se a essa iniciativa e apoie uma publicação que fala com os mais influentes agentes de mudança no Brasil e no mundo.

Confira as oportunidades de apoio, fomento e patrocínio

contato@ssir.com.br

A força das estratégias coletivas

Com o apoio dos nossos mantenedores, todo o conteúdo da plataforma é gratuito

LIVROS Lançamentos no Brasil e no mundo

Ver o mundo pelas lentes de gênero

Economia feminista oferece ferramentas para abordar desigualdades no mercado de trabalho e violência de homens contra mulheres

Qualquer pessoa que nos últimos anos acompanhou uma gravidez ou viu conteúdos sobre preparativos para a chegada de um bebê certamente ouviu falar de chá revelação. Com brincadeiras e, em alguns casos, pirotecnia, o evento é uma reunião de familiares e amigos para divulgar o sexo da pessoa que está por nascer, que pode ser anunciado com algum elemento associado ao masculino ou ao feminino, como um bolo azul, em caso de bebês com cromossomos XY, ou rosa, em caso de bebês XX.

Se antes mesmo de nascer os marcadores de gênero já acompanham os seres humanos, ao longo da vida eles se aprofundam e moldam a experiência de todas as pessoas que habitam nosso planeta, nas relações pessoais, no mercado de trabalho, no amor e na política. Para mulheres e meninas, a centralidade do gênero na organização social as coloca em situação de desvantagem e vulnerabilidade em diferentes campos.

Em Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista, a economista Regina Madalozzo conta histórias e apresenta dados para apontar as causas e consequências dessa desvantagem e dessa vulnerabilidade, com o emprego da economia feminista como ferramenta de análise.

Em sete capítulos, a autora introduz o público nas contribuições do feminismo

para a análise econômica e mostra como a economia pode ser útil para a leitura do mundo com lentes de gênero. A obra é um bom começo para quem se interessa por um dos dois campos, mas ainda não conhece a convergência entre eles.

Com um texto acessível, Madalozzo descreve e sugere soluções para um cenário conhecido por quem já tem familiaridade com o debate sobre desigualdades de gênero e raça: mulheres dedicam mais tempo a trabalhos domésticos e de cuidado desde a infância, ganham piores salários em trabalhos remunerados menos valorizados, são penalizadas pela decisão de ter filhos e essas dinâmicas contribuem para que se tornem mais vulneráveis à violência machista.

O primeiro capítulo evoca uma declaração de Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019 e 2022, no governo de Jair Bolsonaro (PL): “Menino veste azul e menina veste rosa”. Madalozzo faz uma genealogia de como as cores passaram a marcar o sexo das crianças e como essa é apenas a ponta do iceberg da percepção de que estamos, homens e mulheres, determinados biologicamente a seguir certas ocupações e manifestar interesses específicos.

A economista traz o dado de que mulheres eram 70% dos alunos no curso de ciências da computação da Universidade de São Paulo em 1974 e 15% em 2016. “O início da ciência da computação foi muito baseado em máquinas de tabulação, com a confecção e o uso de cartões perfurados, algo bem pouco glamouroso e, na época, o tipo de trabalho de baixo status. Dito de outra forma, um ‘trabalho para mulheres’”, escreve Madalozzo.

Dados históricos sobre segregação ocupacional apresentados pela autora ajudam a visualizar como homens e mulheres, brancos e negras, se inserem de maneira diferente no mercado de trabalho devido a estereótipos de gênero e raça, que operam do momento da contratação até a negociação salarial. Esse é o assunto do segundo capítulo, que traz informações úteis para quem está em posições de liderança, precisa montar equipes e quer burlar os vieses que podem levar a escolhas baseadas em estereótipos.

Madalozzo apresenta um estudo sobre recrutamento de musicistas para orquestras, que provou que audições às cegas aumentaram em até 50% a probabilidade de mulheres passarem à segunda rodada do processo seletivo. Os vieses de gênero determinam que mesmo mulheres talentosas podem ser rejeitadas para cargos para os quais estão capacitadas pelo simples fato de serem mulheres. Se elas têm filhos, a penalização é ainda maior.

O PESO DO GÊNERO

No livro A mão esquerda da escuridão, a escritora norte-americana Ursula K. Le Guin cria uma sociedade em que as pessoas não têm gênero nem sexo definido ao nascer. Durante o período fértil, seus corpos se transformam de acordo com a outra pessoa com quem têm relações e esse processo é aleatório. Qualquer pessoa pode ser pai ou mãe daquele bebê e é possível ser ambas as

Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista
POR REGINA MADALOZZO Zahar, 2024, 248 págs., R$ 89,90

coisas para diferentes bebês. Nessa sociedade em que o gênero não existe, o cuidado com os filhos não está determinado por ele.

O terceiro capítulo do livro de Madalozzo é uma amostra de uma sociedade em que, de maneira oposta, gênero tem um peso enorme sobre quem decide ter filhos e cuidar deles.

A experiência de um pai e de uma mãe em casais heterossexuais está definida não por suas aptidões, mas pela forma como são percebidas suas funções no trabalho reprodutivo, ou seja, “o conjunto de tarefas necessárias para nossa manutenção como seres humanos [...]. Cuidar de uma criança – alimentar, brincar, dar banho, trocar de roupa – é parte do trabalho reprodutivo, assim como cuidar de idosos ou de pessoas com alguma deficiência e, também, cuidar para que a roupa de alguém que sai para trabalhar esteja limpa e pronta para ser utilizada quando for necessário”.

O maior uso do tempo por parte das mulheres para exercer esse tipo de trabalho tem relação com os estereótipos de gênero que a sociedade imaginada por Le Guin apagou. Licenças parentais ou a ampliação da licença-paternidade não conseguem, por si só, garantir uma maior participação dos homens na criação dos filhos, como Madalozzo demonstra a partir da experiência de países nórdicos, onde benefícios desse tipo são mais antigos e generosos. A educação para uma socialização mais equitativa revela-se mais eficiente na redução da sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidado sobre as mulheres.

Os capítulos 4 e 5 mostram como esses estereótipos, acompanhados da desigualdade salarial entre homens e mulheres, têm impacto nas relações familiares. A autora recupera trabalhos sobre economia da família para registrar, com dados, que uma contribuição financeira menor para a renda da casa reduz o poder de barganha das mulheres na hora de negociar a divisão das tarefas domésticas e de cuidado. E que a “solução” para esse desequilíbrio implica, no caso de famílias com essa possibilidade, a contratação de trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres negras, de maneira precária e com baixa remuneração.

A economista lembra que a pouca valorização do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado – no Brasil, nem sequer é medido como parte do Produto Interno

Bruto (PIB) – se reflete também no caso das pessoas ocupadas nessa categoria, que está feminizada e racializada.

A divisão sexual do trabalho acontece desde a infância, quando meninos e meninas assumem diferentes papéis na vida familiar e realizam diferentes tarefas. Essa socialização, que especializa umas para o trabalho doméstico e de cuidado e outros para o trabalho fora de casa, também tem impacto na forma como vão se relacionar entre si no futuro, quando e se formarem suas próprias famílias.

O IMPACTO DA COVID-19

No sexto capítulo, Madalozzo recupera a experiência da pandemia de covid-19 para reforçar que, além de gênero e raça, a classe social foi outro fator que aprofundou os impactos desiguais na renda e na vida dos brasileiros.

Pessoas ocupadas em trabalhos que podiam ser realizados de maneira remota, homens e mulheres, tiveram a possibilidade de repartir o trabalho doméstico e de cuidado de maneira mais equitativa e resguardar a saúde ao ficar menos expostas ao contágio pelo vírus. Já em favelas e periferias, a pandemia reorganizou o trabalho de outra forma. Madalozzo participou de uma pesquisa realizada pelo Insper que entrevistou 141 moradoras da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, e de Heliópolis e Jardim Colombo, em São Paulo.

“Enquanto [...] os 10% mais ricos em nossa sociedade tiveram a oportunidade de trabalhar online ou em sistema híbrido durante toda a pandemia, as moradoras de favelas – grande parte delas trabalhando como diaristas, empregadas domésticas e cuidadoras – foram as primeiras pessoas a serem afastadas de seus empregos”, escreve a autora. Foram elas também que organizaram suas comunidades para o cuidado coletivo. Em Paraisópolis, elas eram 90% dos chamados presidentes de rua, pessoas designadas para gerenciar as necessidades dos moradores de cada quadra e acompanhá-los em casos de emergência.

Ainda que tenham executado tarefas importantes para a manutenção da vida durante a pandemia, um número significativo de mulheres – principalmente aquelas ocupadas em trabalhos menos valorizados, como o doméstico – se retirou do mercado de trabalho.

A economista mostra que a pandemia provocou um retrocesso à década de 1990 em termos de indicadores de participação feminina no mercado. O dado é público e está disponível para qualquer pessoa que tenha interesse em trabalhar com informações históricas sobre mercado de trabalho. O que Madalozzo traz aqui é a lente de gênero: é preciso perguntar onde estavam as mulheres, brancas e negras, ao longo da história, para saber que regredimos 30 anos com a pandemia.

Conforme argumenta a autora, a recuperação econômica precisa acontecer a partir do desenho de políticas públicas com perspectiva de gênero, com atenção especial à ampliação da oferta e do horário de atendimento de creches e escolas, serviços imprescindíveis para quem precisa cuidar de crianças e depende dessa rede para exercer tarefas remuneradas.

O livro encerra com a análise da faceta mais cruel e letal dos estereótipos de gênero: a violência machista. “O feminicídio, a forma mais brutal de violência contra a mulher, escancara uma crença de que a disparidade de força e oportunidades entre homens e mulheres seja ‘natural’. É através dessa visão de superioridade com relação às mulheres que alguns homens acreditam ser parte de seus direitos agredir e matar, por exemplo, as companheiras que pedem separação, quando isso não é também um desejo deles”, escreve a autora.

Ela lembra que a economia feminista oferece ainda ferramentas para analisar a violência de gênero, uma vez que esta “influencia e é influenciada pelas características de trabalho, de qualificação e alternativas de vida que as próprias mulheres têm”.

Ainda assim, na mesma medida em que as licenças por nascimento de filhos não são suficientes para garantir maior participação masculina nas tarefas de cuidado, a independência financeira não basta para que uma mulher decida deixar uma relação violenta. Madalozzo aponta que também nesse aspecto é preciso uma transformação cultural muito mais profunda, que engendre relações de poder mais equilibradas entre homens e mulheres. O

ALINE GATTO BOUERI é jornalista de dados especializada em coberturas sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e direitos sexuais e reprodutivos. Também cuida de uma criança todos os dias.

Quer contribuir com o debate sobre inovação social no Brasil e no mundo? Compartilhe seus insights e aprendizados com a comunidade SSIR Brasil.

Confira alguns artigos brasileiros já publicados.

ssir.com.br

Da teoria à prática, nosso objetivo é trazer artigos que provoquem reflexão, levantem questões e ampliem possibilidades para resolução de problemas cada vez mais complexos. Participe!

Conheça nossas diretrizes de submissão:

último olhar

Imagens que inspiram

Cacau com propósito

Daniela França é produtora agroecológica em Ibirapitanga, na Bahia. Na foto, exibe suas mudas de cacau cultivadas em sistema cabruca, técnica tradicional do sul do estado que preserva a Mata Atlântica e promove a regeneração ambiental. Ela é uma das agricultoras familiares beneficiadas pelo CRA Sustentável do Cacau, instrumento financeiro que combina crédito acessível e práticas sustentáveis, desenvolvido por Tabôa Fortalecimento Comunitário, Grupo Gaia e os institutos Arapyaú e humanize. Em sua primeira edição, entre 2020 e 2023, o projeto beneficiou 270 famílias em 11 municípios. Registrou aumento de 60% na renda dos produtores, inadimplência de 0,28% e crescimento de 52% na produtividade do cultivo.

No Brasil, 80% do cacau vêm de pequenos produtores, muitos dos quais nunca tiveram acesso a assistência técnica ou financiamento. O Instituto Arapyaú atua como catalisador de soluções para transformar esse cenário e promover uma cacauicultura de baixo carbono, inclusiva e produtiva. Saiba mais em arapyau.org.br

O maior sistema de saúde infantil do Brasil.

Uma infância mais saudável só é possível por meio de uma abordagem holística da saúde infantil. Por isso, o sistema da Fundação José Luiz Setúbal é estruturado de forma ampla e estratégica:

O PENSI e o PENSI SOCIAL desenvolvem pesquisas científicas e contribuem para o avanço do cuidado infantil e para a formação de novos profissionais.

O Sabará é referência em saúde infantojuvenil, e direciona seus resultados para a manutenção de nossas atividades.

O In nis luta em defesa da saúde infantil e pelo fortalecimento da sociedade civil no Brasil.

movimentobemmaior.org.br

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.