

As cinco Amazônias • A urgência da restauração e a Meta F lorestal 2030 Aprender com saberes ancestrais • A história das reservas extrativistas
Inovação financeira e socioambiental • A ameaça da crise climática • A questão fundiária
ESPECIAL AMAZÔNIA – OFERECIMENTO FUNDO VALE
CONHEÇA A ILUSTRADORA DO ESPECIAL AMAZÔNIA
Wira Tini, natural do Amazonas, descendente das tradições ancestrais do povo Kokama, é artista visual, muralista e pesquisadora. Suas obras apresentam as perspectivas indígenas para além das atribuições dadas pela mídia e pelo senso comum, de forma a problematizá-las e sublinhar a realidade de pessoas indígenas inseridas no meio urbano, bem como dos aspectos da cultura e tradição nortistas. Wira Tini já realizou diversas exposições e participou de festivais de arte urbana em diferentes cidades do Brasil. É idealizadora do Graffiti Queens, um dos primeiros festivais de arte urbana voltado para mulheres, e da Revista Graffiti Queens, que apresenta importantes nomes do cenário da arte urbana nacional e internacional, sendo a única revista de graffiti feminino no mundo.
CARTA DOS PATROCINADORES
5 Semeando futuros possíveis
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POR BETO VERÍSSIMO, JULIANO ASSUNÇÃO E MANUELE LIMA
Território de mais de 8 milhões de km2, a maior floresta tropical do mundo demanda lentes específicas para suas complexidades. A divisão em macrozonas com base na vegetação remanescente é uma entre tantas formas de olhar para suas riquezas e desafios, e propor soluções mais adequadas
12 20 22
POR CARLOS A. NOBRE, DIEGO OLIVEIRA BRANDÃO
E JULIA ARIEIRA
Maior reserva de carbono na superfície terrestre, a Amazônia tem sentido os efeitos das mudanças climáticas globais, do desmatamento e da degradação florestal. Sua capacidade de serviços ecossistêmicos está sob ameaça e, por consequência, também o nosso futuro
POR EDUARDO GÓES NEVES
Densamente ocupada no passado, a Amazônia que conhecemos hoje, incluindo suas matas e seus solos, é resultado de processos de interação com povos indígenas. Das férteis “terras pretas” ao cultivo de uma imensa diversidade de plantas, a história da ocupação está sendo recontada
O impacto da regularização fundiária na economia verde
POR BRUNO KONO, GABRIEL NATÁRIO, FERNANDA SEQUEIRA, MARICELI MOURA, RICARDO AZEVEDO, GABRIELA SAVIAN, EDIVAN CARVALHO, RAQUEL POÇA E RAFAELA REIS
Com quase 50% das emissões de gases de efeito estufa associadas a mudanças no uso da terra, é fundamental discutir como a promoção de uma bioeconomia sustentável pode transformar a realidade amazônica e garantir um futuro mais justo e verde
32
POR MARY ALLEGRETTI
Criadas há mais de três décadas, as reservas extrativistas representam valores que podem explicar a resiliência de uma política pública inovadora. Conheça essa história contada por quem participou de sua construção
POR BIA MARCHIORI, GUSTAVO LUZ, JULIANA VILHENA E NATHALIA CIPOLETA
Para além de proteger e recuperar 500 mil hectares de florestas, a Meta Florestal 2030 da Vale também tem como objetivo servir de modelo para outras iniciativas, contribuindo para a construção de um futuro mais sustentável para o Brasil e o mundo
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POR RODRIGO MAURO FREIRE
O fim do desmatamento e a promoção da restauração florestal não podem ser entendidos de forma isolada e desconectada de outras agendas, como o desenvolvimento social e econômico justo, a geração de emprego e renda e agregação de valor via cadeias produtivas
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POR MARIANA OLIVEIRA
Fundamental para a recuperação e sustentação dos sistemas socioecológicos, a restauração deve ser vista como um processo integrado dentro de sistemas socioecológicos mais amplos para alcançar uma mudança transformacional duradoura
58 26
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POR ANDRÉ BANIWA, FLORIANA BREYER, LUCIANA VILLA NOVA, LUIZ RICARDO MARINELLO E SIMONE ATHAYDE
A confluência de conhecimentos ancestrais, tradicionais e acadêmicos é cada vez mais essencial não apenas para o desenvolvimento de inovações, mas também para promover soluções que acelerem a transição socioeconômica na Amazônia
50
POR MARCO GORINI
A complexidade dos desafios socioambientais da Amazônia exige soluções financeiras inovadoras. Entre as novas abordagens, produtos e serviços que transformam a forma como o capital é mobilizado, investido e gerenciado, o blended finance emerge como ferramenta estratégica
POR FRANCISCO DE ASSIS COSTA
Conceito emergente que busca integrar sustentabilidade ambiental e desenvolvimento econômico e social, a bioeconomia se apresenta como uma alternativa viável para enfrentar os desafios impostos pela crise climática e as desigualdades sociais
ESPECIAL AMAZÔNIA COM OFERECIMENTO DO FUNDO VALE
Editora de projetos especiais
Ana Claudia Ferrari
Curadoria Fundo Vale Liz Lacerda, Márcia Soares
Revisão Flávia Figueirêdo, Mauro de Barros
Projeto gráfico e diagramação Simone Oliveira Vieira
Ilustrações Wira Tini
Diretora-geral Carolina Martinez carolina@ssir.com.br
Editora-chefe Francesca Angiolillo francesca@ssir.com.br
Editora Mariana Meira
Estagiária Bárbara Lopes da Silva Mídias sociais Rafael Dias Programador web Daniel Miranda
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StanfordSocialInnovationReviewBrasiléumapublicaçãodaRFMEditoressoblicençada Stanford Social Innovation Review.
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Editora acadêmica
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Editora edições globais Jenifer Morgan
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Paola Perez-Aleman, Universidade McGill
Josh Cohen, Universidade Stanford
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Chip Heath, Universidade Stanford
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Anne Claire Pache, Essec Business School
Woody Powell, Universidade Stanford
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A StanfordSocialInnovationReview(SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Universidade Stanford. Todos os direitos reservados.
EM SETEMBRO DE 2024 , o sudoeste da Amazônia foi identificado pelo Copernicus, o Programa Europeu de Observação da Terra, como a região com maior emissão de gases de efeito estufa do planeta. A elevada concentração de aerossóis e monóxido de carbono, decorrente do desmatamento e das queimadas, agravou o fenômeno, transformando a Amazônia, vital para a regulação climática global, em uma bomba de carbono por alguns dias. A gravidade desse fato não pode ser ignorada
Com 21% a menos de sua cobertura florestal nativa, a Amazônia enfrenta uma crise ambiental, econômica e social sem precedentes, causada por secas severas e incêndios. A ciência aponta que, se a floresta atingir o ponto de não retorno, sua biodiversidade e seu papel na regulação climática serão irreversivelmente comprometidos, causando impactos globais devastadores.
O Relatório de Riscos Globais 2024 do Fórum Econômico Mundial alerta que eventos climáticos extremos são uma preocupação significativa, especialmente para países vulneráveis. Tempestades, inundações e secas frequentes podem destruir infraestruturas, desestabilizar finanças e interromper cadeias de suprimentos, exacerbando desigualdades sociais. Um esforço global coordenado é essencial para mitigar esses riscos.
Desde a criação do Fundo Vale, em 2009, temos investido em soluções e negócios de impacto socioambiental que protegem e recuperam áreas da Amazônia e de outros biomas brasileiros. Nossa atuação inverte a lógica que coloca o meio ambiente a serviço da economia. Adotamos a perspectiva de que a economia deve ser impulsionada pela proteção e recuperação ambiental.
Ao longo dos últimos 15 anos, nos posicionamos como agentes estratégicos na promoção do desenvolvimento econômico regenerativo, atuando como conectores de ideias, negócios e investimentos.
Formamos parcerias com comunidades locais, organizações da sociedade civil, startups, instituições acadêmicas, empresas, órgãos públicos, investidores e organizações financeiras, sempre em busca de soluções inovadoras que equilibrem sustentabilidade e desenvolvimento. Acreditamos firmemente que a transformação é coletiva.
Em alinhamento com a meta da nossa mantenedora de proteger e recuperar 500 mil hectares até 2030, desenvolvemos estratégias para promover negócios agroflorestais e apoiar iniciativas voltadas para a recuperação produtiva em larga escala. Mais do que proteger florestas, apoiamos iniciativas que restauram as características naturais de biomas ameaçados e geram benefícios econômicos significativos para as comunidades locais.
O conceito de desenvolvimento sustentável, que busca alinhar progresso econômico e conservação ambiental, está evoluindo para um novo paradigma que coloca a bioeconomia – associada a sistemas produtivos sustentáveis – como uma solução promissora. Nesta abordagem, é fundamental manter a floresta em pé e fazer o manejo da terra por meio de práticas agroflorestais, integrando a sabedoria dos povos tradicionais com inovações tecnológicas.
Acreditamos que uma economia resiliente só pode ser alcançada por meio de um modelo justo e inclusivo. Nesse sentido, buscamos construir um legado que promova o bemestar das comunidades, povos tradicionais e produtores rurais comprometidos com a proteção da biodiversidade e a recuperação ambiental.
Durante nossa trajetória, nos consolidamos como um investidor paciente e catalítico, assumindo riscos e promovendo arranjos inovadores que viabilizam negócios de impacto positivo nas agendas de biodiversidade, floresta e clima. Esse modelo de financiamento permite que os recursos retornem para serem reinvestidos, gerando um ciclo virtuoso de sustentabilidade.
Observamos que a mobilização de recursos financeiros via blended finance – que combina recursos filantrópicos, privados e públicos – tem sido fundamental para destravar capital e financiar projetos de impacto socioambiental na Amazônia.
Ao longo desses 15 anos, investimos um total de R$ 360 milhões, apoiamos 340 iniciativas de impacto socioambiental e ajudamos a recuperar cerca de 15 mil hectares por meio de sistemas sustentáveis, em colaboração com mais de 40 organizações. Nossas decisões de investimentos e parcerias são embasadas pela experiência das pessoas que vivenciam na prática os desafios, pela ciência e por análises objetivas de mensuração de seu impacto.
Cada passo nosso representa um movimento coletivo dedicado a semear um futuro promissor. Acreditamos que, através de nossas parcerias estratégicas, podemos reescrever a história da Amazônia, convertendo ameaças em soluções e garantindo que a floresta continue sendo o pulmão do planeta.
Convidamos todos para a leitura desta edição especial Amazônia e para uma reflexão sobre os diferentes temas abordados, de forma que possamos promover um futuro em que a Amazônia simbolize resiliência, sabedoria ancestral, respeito, justiça e inclusão. Juntos, podemos colaborar para que este patrimônio natural continue a prosperar e a oferecer benefícios ecossistêmicos essenciais para a sobrevivência humana.
FUNDO VALE
Território de mais de 8 milhões de km2 espalhados por nove países e com 35 milhões de habitantes, a maior floresta tropical do mundo demanda lentes específicas para suas complexidades. Diferenças expressivas em termos sociais, econômicos, naturais e geográficos marcam os 772 municípios dos nove estados brasileiros que compreendem a Amazônia Legal. O conceito das Cinco Amazônias e suas macrozonas com base na vegetação remanescente é uma entre tantas formas de olhar para suas riquezas e desafios e de formular políticas públicas adequadas para o desenvolvimento sustentável da região
Por Beto Veríssimo, Juliano Assunção e Manuele Lima
TERRA DE SUPERLATIVOS, a Pan-Amazônia detém cerca de metade das florestas tropicais do planeta, abriga a maior rede hidrográfica mundial, contém os maiores estoques de carbono e coexiste com uma das maiores concentrações de biodiversidade do globo.1 É também o lar de uma das maiores diversidades étnico-culturais do mundo, espalhando-se por um território que cobre cerca de 8 milhões de km2 (incluindo as savanas e os campos naturais). O Brasil, onde estão quase dois terços desse território que engloba nove países, tem um papel-chave para o destino da Pan-Amazônia. A Amazônia brasileira, à qual aqui nos referimos como “Amazônia”, possui cerca de 5 milhões km2 . A área enfrenta uma tempestade de problemas ambientais, econômicos e sociais, impactada pelo desmatamento e degradação florestal, baixa produtividade e pouco dinamismo econômico. A maior floresta tropical do planeta também sofre com baixo progresso social em moradia, educação, saúde, saneamento, segurança pública, entre outros. Para superar esses desafios, é essencial reduzir drasticamente o desmatamento no curto prazo e buscar zerá-lo antes de 2030. Tanto a economia como a vida social da região se beneficiam quando a floresta deixar de ser derrubada.
O artigo explora as diversas características e desafios da região amazônica a partir do conceito das Cinco Amazônias. Essas zonas apresentam diferentes níveis de conservação e desmatamento, exigindo abordagens específicas para o desenvolvimento sustentável. O texto enfatiza a importância de combater o desmatamento, melhorar a infraestrutura urbana, promover a bioeconomia e aumentar a produtividade agropecuária sem ampliar o desmatamento.
A discussão é de extrema importância porque a Amazônia desempenha um papel crucial na regulação climática global, abrigando a maior biodiversidade do planeta e contribuindo para a captura de carbono, essencial no combate às mudanças climáticas. O desmatamento descontrolado e a degradação ambiental ameaçam não apenas a riqueza ecológica e cultural da região, mas também a segurança hídrica e energética do Brasil, já que os chamados “rios voadores” influenciam a agricultura e a geração de energia hidrelétrica em todo o país. Abordar esses desafios com soluções que integrem economia e conservação é essencial para garantir um futuro equilibrado para a região e o mundo.
É possível enfrentar o dilema que tem aprisionado a Amazônia em um ciclo vicioso de crescimento econômico efêmero a partir do desmatamento desenfreado seguido de um colapso social e econômico? A resposta está no que nós do Amazônia 2030 chamamos de “paradoxo amazônico”
Até 1975, menos de 0,5% da Amazônia estava desmatado. Em pouco menos de 50 anos, cerca de 21% da floresta original foi derrubada2 até 2023. Queimadas e extração predatória de madeira também deixaram extensas áreas de florestas degradadas.3 Cientistas alertam que porções da Amazônia já estão sob risco e prestes a perder a capacidade de se regenerar, ou seja, um ponto de não retorno de degradação.4 Essas áreas passariam a ser ocupadas por espécies de menor porte e mais resistentes ao fogo e ao clima seco, típicas do Cerrado. As consequências para o clima global, regional e para a biodiversidade seriam catastróficas. Reduzir drasticamente o desmatamento no curto prazo e buscar zerá-lo antes de 2030 é vital. O desmatamento tem mantido a Amazônia presa a um ciclo vicioso de crise ambiental, economia de baixa produtividade, elevadas taxas de pobreza, catalisando a explosão da violência.5 Seus efeitos também atingem a reputação internacional do Brasil, inibindo investimentos de qualidade na região. Os negócios com boas práticas de governança corporativa e bem inseridos no mercado nacional e global têm evitado fazer investimentos na Amazônia, uma vez que não são competitivos nesse cenário de ilegalidade e degradação ambiental.6 Por último, a destruição da Amazônia é uma ameaça existencial à estabilidade climática do planeta e afeta em particular o próprio Brasil, que depende das águas da Amazônia (fenômeno dos rios voadores) para a sua produção agrícola e geração de energia hidrelétrica.7
Sabemos que é viável combater o desmatamento e ao mesmo tempo melhorar a economia amazônica. Isso porque a maior parte da área desmatada é ocupada por uma pecuária de baixa produti-
BETO VERÍSSIMO é cofundador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, coordenador do Projeto Amazônia 2030 e coordenador do Índice de Progresso Social Brasil (IPS Brasil).
JULIANO ASSUNÇÃO é economista e mestre em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), professor associado da PUC-Rio e diretor-executivo da Climate Policy Initiative (CPI) Brasil.
MANUELE LIMA é graduada e mestre em Engenharia Química pela Universidade Federal do Pará (UFPA), com MBA de Gestão de Negócios na Universidade de São Paulo (USP/ Esalq) e coordenadora de projetos no Centro de Empreendedorismo da Amazônia.
vidade e porque extensas regiões desmatadas estão degradadas e sem uso produtivo. A boa notícia é que elas excedem em muito a área necessária para toda produção.7
O projeto Amazônia 2030*, do qual fazemos parte, identificou caminhos para resolver os dilemas da Amazônia.8 O primeiro é melhorar as condições das cidades da Amazônia urbana, onde residem cerca de 76% da população. Segundo, é preciso garantir o pagamento pelos serviços ecossistêmicos gerados pela floresta em pé. Terceiro, é urgente investir na restauração com espécies nativas para reconstruir a floresta original em áreas desmatadas que estão degradadas e sem uso econômico. Quarto, é necessário desenvolver as cadeias da bioeconomia com foco nos produtos não madeireiros, agroflorestais, peixes tropicais etc. Por último, aumentar a produtividade da agropecuária nas áreas já desmatadas e aproveitar melhor essas áreas.
POSSÍVEL ENFRENTAR o dilema que tem aprisionado a Amazônia em um ciclo vicioso de boom-colapso,9 ou seja, com um crescimento econômico efêmero a partir do desmatamento desenfreado seguido de um colapso social e econômico? A resposta está no que nós do Amazônia 2030 chamamos de “Paradoxo Amazônico”. Isso porque os fatores que contribuíram para a crise atual apresentam em si elementos que podem servir de base para a solução para a região.
Esse paradoxo é composto por três elementos. O primeiro é o desmatamento excessivo que em pouco mais de quatro décadas atingiu mais de 84 milhões de hectares. Como resultado, quase dois terços das áreas desflorestadas estão subaproveitadas e ou degradadas.6 Isso significa que há superfícies sobrando para garantir, e até mesmo expandir, a produção agropecuária na região sem que seja necessário fazer novos desmatamentos. E significa também que ainda sobrariam extensas áreas para outros usos, em especial a restauração florestal, aproveitando o promissor mercado de captura de carbono.6
Segundo, a floresta remanescente tem um valor cada vez maior tanto por sua biodiversidade como pelos serviços ambientais que presta para o Brasil e o mundo. Um deles é o fenômeno dos rios voadores, essencial para a produção agrícola no Centro-Sul e a geração de energia hidrelétrica do país. Sem contar que a conservação da floresta em pé é uma das formas mais baratas e eficientes de compensar a emissão de carbono.
Por fim, o terceiro e último elemento é a característica demográfica, diferente do restante do país. A Amazônia apresenta um bônus demográfico, isto é, uma proporção maior de pessoas
economicamente ativas – aquelas com idade entre 18 e 64 anos – em relação às crianças e aos idosos. No entanto, sem oportunidade de trabalho, esse bônus tem se transformado em ônus social com explosão de violência. Com educação profissionalizante para esses jovens e melhor dinamismo da economia, a Amazônia pode se beneficiar muito com esse contingente de pessoas em idade produtiva.
A transformação de problema em solução como propõe o “Paradoxo Amazônico” pressupõe o fim do desmatamento e a conclusão do ordenamento territorial. Cerca de 30% do território amazônico permanece com incerteza e indefinição fundiária.10 Além disso, é essencial considerar que não existe apenas uma Amazônia, mas sim muitas Amazônias com padrões distintos de uso da terra. Estamos falando de uma região marcada pela heterogeneidade, o que significa dizer que o que funciona para uma área pode não funcionar para outra.
AAMAZÔNIA LEGAL tem dimensão continental, com cerca de 5 milhões de km2 (59% do território do Brasil) e abriga diferenças expressivas em termos sociais, econômicos, naturais e geográficos dentro do seu território. Embora a região seja complexa e heterogênea, é possível classificá-la em cinco macrozonas com base na vegetação remanescente e, a partir desse agrupamento, avaliar e propor soluções específicas para cada uma das zonas.
As cinco zonas foram definidas a partir da metodologia do Imazon em 2007, na qual cada um dos 772 municípios da Amazônia Legal foi classificado com base na cobertura vegetal e na
proporção do território já desmatado11. São elas: Amazônia florestal, Amazônia florestal sob pressão, Amazônia desmatada, Amazônia Cerrado e a Amazônia urbana. Reconhecer essas diferenças é uma pré-condição para qualquer plano efetivo de desenvolvimento sustentável para a região.
AMAZÔNIA FLORESTAL
AAMAZÔNIA FLORESTAL corresponde aos municípios com mais de 90% do território ainda coberto por floresta até o ano de 2021. Essa zona ocupa 39% da Amazônia Legal, o equivalente a quase 2 milhões de km2. Essas áreas mais conservadas estão situadas principalmente nos municípios do Amazonas e norte do Pará.
A Zona Florestal abriga cerca de 22% da população (6,3 milhões de pessoas). Aqui o foco deve ser manter a floresta em pé com ganhos sociais e econômicos, o que inclui apoiar mecanismos de pagamentos de serviços ambientais e fomentar a bioeconomia de produtos florestais não madeireiros.
Os municípios da Zona Florestal precisam melhorar a sua infraestrutura sem promover a abertura de novas estradas, pois esse tipo de acesso catalisa o desmatamento e os conflitos sociais. As soluções de logística nesse caso devem estar apoiadas na ampla rede de rios navegáveis com melhoria do transporte fluvial. Além disso, é urgente investir na eletrificação dessa zona através das energias renováveis, pois uma parte importante de sua população ainda depende de energia fóssil. Por último, essa zona sofre com a internet de baixa qualidade e de alcance limitado. Priorizar a internet banda larga é uma das melhores apostas para a infraestrutura dessa região.
DIFERENTES UNIVERSOS
É possível classificar a Amazônia em cinco macrozonas com base na vegetação remanescente e, a partir desse agrupamento, avaliar e propor soluções específicas para cada uma. As cinco zonas foram definidas a partir da metodologia do Imazon em 2007, na qual cada um dos 772 municípios da Amazônia Legal foi classificado segundo a cobertura vegetal e a proporção de território desmatado.
1 AMAZÔNIA FLORESTAL
2 AMAZÔNIA FLORESTAL SOB PRESSÃO
3 AMAZÔNIA DESMATADA
4 AMAZÔNIA NÃO FLORESTAL (CERRADO)
AMAZÔNIA URBANA 5
OS MUNICÍPIOS DESSA ZONA ainda têm grande cobertura florestal (mais de 75% dos seus territórios cobertos de floresta), porém estão sofrendo um processo de desmatamento intenso e acelerado. Eles representam 29% do território da Amazônia Legal (aproximadamente 1,5 milhão de km2) e abrigam um população de 3,3 milhões de pessoas. Esses municípios estão concentrados no centro, sul e oeste do Pará, no sudeste do Amazonas, no norte do Mato Grosso, no sul de Roraima e cerca de metade do Acre.
Os principais vetores de pressão sobre a floresta aqui são o desmatamento, a extração ilegal de madeira, o garimpo de ouro e a grilhagem de florestas públicas. Esses problemas estão presentes em municípios críticos, como é o caso de São Felix do Xingu, Altamira, Novo Progresso e Itaituba – todos situados no Pará. Há três agendas estruturantes para a Amazônia florestal sob pressão. Primeiro, é essencial intensificar a fiscalização nos focos de desmatamento e degradação florestal (isto é, extração predatória de madeira e incêndios florestais). Segundo, é necessário enfrentar a grilagem de terras. Isso precisa ser feito tanto no âmbito regulatório (por exemplo, evitar mudanças no marco legal de terras que possam incentivar a invasão de florestas públicas), bem como na criação de Áreas Protegidas (terras indígenas e unidades de conservação) nas florestas públicas sob risco de invasão. Por último, é necessário avançar com o fomento especialmente para os pequenos produtores (muitos estão em áreas de assentamento de reforma agrária), de modo a incrementar um melhor uso da terra nas áreas já desmatadas. Há boas oportunidades para a adoção de sistemas agroflorestais nas áreas desmatadas com espécies de valor econômico crescente, como é o caso do cacau.
É importante reforçar que é possível combater o desmatamento sem prejudicar a economia da Amazônia. O combate ao desmatamento estimula a intensificação das atividades agropecuárias nessas áreas já desmatadas e, assim, contribui para aumentar o valor da produção sem exigir novos desmatamentos. De fato, o fim do desmatamento não apenas é positivo para o meio ambiente, mas é também fundamental para o desenvolvimento econômico e o progresso social na Amazônia.
OS MUNICÍPIOS DESSA MACROZONA têm mais de 65% do sua extensão já desmatados, somam cerca de 11% do território e abrigam cerca de 9 milhões de pessoas (quase um terço da população da Amazônia Legal). Concentrada no oeste do
Maranhão, leste do Pará, parte do norte do Mato Grosso, sul do Acre e grande parte de Rondônia, a maior parte das áreas desmatadas nessa zona está subutilizada ou abandonada.
É importante registrar que, apesar de o desmatamento acumulado ter afetado mais de 65% da Amazônia desmatada, essa região ainda abriga áreas importantes de florestas remanescentes. De fato, quase um terço do território tem cobertura florestal.
A história de ocupação da Amazônia desmatada é mais antiga que a das outras. Sua rede de estradas é mais ampla e a infraestrutura de internet e a eletrificação são melhores se comparadas às da Amazônia florestal e da Amazônia Sob Pressão.
Há três agendas prioritárias para essa zona. Primeiro, é crucial priorizar a regularização fundiária nessa região, o que permitirá criar as bases para a melhoria do ambiente de negócios e atração de investimentos para os produtores rurais.
Segundo, é possível melhorar o uso da terra por meio da intensificação da agropecuária, ampliando significativamente a produção, sem precisar realizar novos desmatamentos. Isso porque mais de 84 milhões de hectares já foram desmatados na Amazônia, dos quais mais de dois terços são formados por pecuária de baixa produtividade e áreas degradadas.
Por último, há excelentes oportunidades para a restauração florestal (regeneração da vegetação secundária e plantio de árvores nativas) nas áreas já desmatadas, aproveitando as oportunidades do mercado de captura de carbono. Parte dessas áreas degradadas pode também ser destinada para reflorestamento (plantio de árvores de rápido crescimento), bem como para expansão dos sistemas agroflorestais.
AMAZÔNIA NÃO-FLORESTAL (CERRADOS)
OS MUNICÍPIOS DA AMAZÔNIA NÃO FLORESTAL possuem uma vegetação predominante de Cerrado, enquanto a vegetação florestal original era bem inferior a 50%. Esses municípios somam cerca de 1 milhão de km2 (21% da Amazônia Legal) e estão concentrados no Maranhão, Tocantins, centro e sul do Mato Grosso e em Roraima e no Amapá.
Essa zona é fortemente ocupada por agricultura de grãos (soja e milho) e possui a melhor rede de infraestrutura e serviços se comparada às outras zonas. A agenda prioritária inclui ampliar a adoção do código florestal nas propriedades rurais, promover a restauração das áreas de Cerrado nos termos do código florestal, combater as queimadas e a conversão ilegal de áreas de Cerrado. Há boas perspectivas para a restauração florestal (nas partes originalmente florestais desses municípios), bem como para o desenvolvimento de uma agricultura de baixo carbono.
O NÓ DA QUESTÃO FUNDIÁRIA
A Amazônia sofre com indefinição da situação fundiária que afeta quase 30% de seu território. Isso significa que existem ainda cerca de 140 milhões de hectares de áreas públicas não destinadas na região,12 uma área imensa sem informação fundiária e áreas ocupadas de maneira irregular. Essa indefinição as torna alvo de invasões, grilagem e desmatamento constantes.13 Além de facilitar a destruição da floresta, a indefinição fundiária dificulta bons investimentos na região.14 Por essa razão, o ordenamento territorial também é uma condição necessária para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. E o mais importante: o arcabouço legal para realizar o ordenamento territorial já está presente na legislação brasileira.5
AMAIORIA (76%) DA POPULAÇÃO da Amazônia reside nas zonas urbanas, marcadas por infraestrutura precária e serviços públicos sofríveis se comparados aos núcleos urbanos do restante do Brasil. Enfrentando problemas críticos nas áreas de saneamento e coleta e tratamento de resíduos sólidos, as cidades amazônicas (núcleos urbanos), apesar de estarem situadas em regiões tropicais úmidas, sofrem com uma arborização insuficiente na comparação com outras cidades brasileiras fora da Amazônia. Para a iniciativa Amazônia 2030, é preciso considerar e adequar as políticas públicas de acordo com cada uma das Cinco Amazônias. A intensificação da agropecuária, o reflorestamento (plantio de árvores para a indústria de papel e celulose, MDF etc) e a restauração florestal (plantio de árvores nativas para a recomposição da floresta original para atender o mercado de captura de carbono) são prioridades na Amazônia desmatada.
Por sua vez, a fiscalização deve se concentrar na Amazônia sob pressão, onde ocorre a maioria do desmatamento e da degradação florestal. Nessa zona também é fundamental combater a grilhagem de florestas públicas que ainda não foram destinadas. O pagamento de serviços ambientais é desejável em toda a Amazônia, mas é ainda mais necessário na Amazônia florestal.
Nas cidades, é essencial uma agenda robusta de investimentos em saneamento, mobilidade, educação, serviços de saúde e internet de qualidade. Em particular, a infraestrutura de banda larga tem o potencial de aumentar as oportunidades de renda e emprego para os trabalhadores e empreendedores locais nas áreas urbanas. Apesar das condições precárias, a maioria dos postos de trabalho existentes na Amazônia Legal está nas cidades. Por essa razão, será crucial ampliar de modo significativo a oferta de ensino profissionalizante com foco nos jovens e jovens adultos nas zonas urbanas. Essa qualificação possibilitará aproveitar as oportunidades emergentes nas áreas de programação e tecnologia da informação, economia criativa, produção cultural, turismo, gastronomia etc. Por fim, investir na expansão da internet banda larga nas pequenas e médias cidades e na periferia das metrópoles como Manaus (AM) e Belém (PA) é estratégico, porque essa infraestrutura é o que permitirá abrir novas oportunidades de emprego e renda para os quais os jovens devem ser capacitados. Uma internet de qualidade fortalece a rede de conexão entre as cidades amazônicas e promove as melhorias nos serviços públicos e na economia urbana.
QUE QUEREMOS
NAS ÚLTIMAS QUATRO DÉCADAS, a Amazônia tem sofrido um desmatamento excessivo e descontrolado. O resultado dessa destruição florestal foi a perda de biodiversidade e emissões extremamente altas de gases de efeito estufa (GEE).12
O Brasil já demonstrou no passado recente a capacidade de reduzir drasticamente o desmatamento. Entre 2004 e 2012, o desflorestamento caiu quase 80%, ao mesmo tempo que o PIB agropecuário teve um crescimento significativo. Portanto, a redução do desmatamento não afeta o crescimento econômico. Ao contrário, favorece o desenvolvimento. Nos últimos dois anos, depois de testemunhar um período de
aumento no desmatamento, o Brasil tem conseguido reduzir a perda de floresta. Mas agora será essencial combinar agendas que, embora necessárias, sozinhas são ineficientes. Por um lado, uma ação de comando e controle com fiscalização ostensiva para coibir o desmatamento ilegal e a degradação florestal (extração ilegal de madeira e incêndios florestais). Por outro, avançar no ordenamento territorial e regularização fundiária.
Por fim, é urgente levar adiante a agenda de desenvolvimento econômico e social da região, aproveitando as oportunidades existentes em setores como restauração florestal, bioeconomia, agropecuária, economia das cidades, entre outros.
Como mostramos, a Amazônia Legal apresenta padrões distintos de ocupação humana e de uso da terra. Reconhecer as diferentes “Amazônias” é uma precondição para qualquer plano de desenvolvimento sustentável factível para a região. As sugestões de políticas públicas terão prioridades distintas de acordo com cada uma das “Cinco Amazônias” propostas nesse exercício de zoneamento territorial. O
AMAZÔNIA 2030 é uma iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira. Nosso objetivo é que a região tenha condições de alcançar um patamar maior de desenvolvimento econômico e humano e atingir o uso sustentável dos recursos naturais em 2030. O projeto é uma criação conjunta do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, ambos situados em Belém, com a Climate Policy Initiative (CPI) e o Departamento de Economia da PUC-Rio, localizados no Rio de Janeiro. – www.amazonia2030.com.br
1 Santos, D. et al. (2024), Fatos da Amazônia. Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia.
2 Inpe, 2022. Monitoramento da floresta amazônica brasileira por satélite – Projeto Prodes.
3 Clarissa Gandour, Diego Menezes, João Pedro Vieira e Juliano Assunção (2021). Degradação Florestal na Amazônia: Fenômeno Relacionado ao Desmatamento Precisa ser Alvo de Política Pública. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2021. https://www.climatepolicyinitiative.org/wp-content/uploads/2021/03/DQDegradacao-Florestal-Amazonia.pdf
4 Thomas E. Lovejoy, Carlos Nobre (2019). Amazon tipping point: Last chance for action.Sci. Adv.5, eaba2949. DOI:10.1126/sciadv.aba2949
5 Clarissa Gandour, Beto Veríssimo e Juliano Assunção (2023). Amazônia 2030: Desmatamento zero e ordenamento territorial: fundamentos para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Amazônia 2030. https://amazonia2030.org. br/wp-content/uploads/2023/05/Amz2030DesmatamentoZero-1.pdf
6 Veríssimo, B., Assunção, J. e Barreto, P. (2022). O Paradoxo Amazônico. Amazônia 2030. https://amazonia2030.org.br/o-paradoxo-amazonico/
7 Barreto, Paulo (2021). Amazônia 2030: Políticas para desenvolver a pecuária na Amazônia sem desmatamento. https://amazonia2030.org.br/wp-content/ uploads/2021/09/pecuaria-extrativa_final_Paulo-Barreto-1.pdf
8 Veríssimo, B. et al. (2023) Amazônia 2030: bases para o desenvolvimento sustentável. Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia – Imazon, eBook.
9 Celentano, D., & Veríssimo, A. 2007. O Avanço da Fronteira na Amazônia: do boom ao colapso. O Estado da Amazônia – Indicadores, 48. Belém: Imazon. https://imazon. org.br/publicacoes/o-avanco-da-fronteira-na-amazonia-do-boom-ao-colapso/
10 Brito, B. e Gomes, P. (2022). Propostas para um Ordenamento Territorial na Amazônia que Reduza o Desmatamento. Amazônia 2030. https://amazonia2030. org.br/propostas-para-um-ordenamento-territorial-na-amazonia-que-reduza-odesmatamento/
11 Beto Veríssimo, Juliano Assunção, Paulo Barreto, Manuele Lima e Daniel Santos (2022). As 5 Amazônias: bases para o desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal. Amazônia 2030. https://amazonia2030.org.br/wp-content/ uploads/2023/05/As5Amazonias.pdf
12 Seeg (2022). Sistema de Estimativa de Emissões de GEE.
13 Veríssimo, B. e Assunção, J. (2022). Four Strategies to Build a Future for the Amazon. Americas Quarterly.
14 Amazônia 2030 (2024). Nota conceitual: Mecanismo para Florestas Tropicais: uma nova abordagem para o financiamento da conservação florestal. Amazônia 2030. https://amazonia2030.org.br/mecanismo-para-florestas-tropicais-uma-novaabordagem-para-o-financiamento-da-conservacao-florestal/
O tempo e a floresta fizeram da Amazônia a maior reserva de carbono na superfície terrestre. No entanto, nas últimas décadas, com os efeitos das mudanças climáticas globais, o desmatamento e a degradação florestal, a capacidade de remoção de gás carbônico e de fornecimento de tantos serviços dentro de um sistema teleconectado através da atmosfera e de práticas culturais foram impactados. A solução para esse desafio passa pela preservação ambiental, pelo desenvolvimento de uma bioeconomia sustentável e pelo reforço dos laços entre as populações amazônicas, por exemplo, com a criação de entidades supranacionais
Por Carlos A. Nobre, Diego Oliveira Brandão e Julia Arieira
RECONHECIDA NO MUNDO TODO POR SUA RICA E ÚNICA diversidade biológica e cultural, a Bacia Amazônica ocupa cerca de 40% da América do Sul. Espalhando-se ao longo de 5,5 milhões de km2 em territórios do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, a floresta amazônica abriga pelo menos 16 mil espécies de árvores. De seus 47 milhões de habitantes, cerca de 2,2 milhões são indígenas de 410 diferentes etnias. O número de línguas e dialetos falados pelos amazônidas ultrapassa 300. Essa imensa diversidade cultural, da qual fazem parte comunidades tradicionais com afrodescendentes, ribeirinhos e outros grupos campesinos, ajudou a dar forma às paisagens amazônicas que conhecemos hoje.
Dezenas de milhões de anos de evolução, moldada por ciclos climáticos que incluem períodos glaciais e interglaciais, além de alterações geológicas que criaram uma considerável heterogeneidade ambiental e deram origem à enorme biodiversidade amazônica. O clima tropical, e sempre úmido da região, favorece a manutenção da floresta e de seus processos ecológicos. São eles que garantem a provisão de serviços ecossistêmicos críticos, como a reciclagem de nutrientes e da água, a alta umidade nos solos e a consequente redução na propagação de incêndios causados por descargas elétricas, a oferta de alimentos, o controle da temperatura local, a diminuição de riscos de desastres
Uma situação cada vez mais crítica coloca sob ameaça a rica e única diversidade biológica e cultural da Amazônia. Devido ao desmatamento, degradação, queimadas e mudanças climáticas, o futuro da floresta está em jogo. O artigo discute os efeitos dessas atividades, entre os quais, a perda de serviços ecossistêmicos vitais e a ameaça do chamado ponto de não retorno. Além disso, explora soluções baseadas na natureza e a importância de fortalecer a governança e as comunidades locais para evitar um desastre ambiental com efeitos não só no Brasil, mas no mundo.
A floresta desempenha um papel vital na regulação do clima global, armazenando grandes quantidades de carbono e, por isso, a discussão sobre a Amazônia é crucial para o planeta. A contínua degradação do ecossistema pode fazer a floresta atingir um limiar capaz de desencadear transformações irreversíveis, resultando em graves consequências climáticas e ecológicas. A preservação e restauração da Amazônia são essenciais para mitigar as mudanças climáticas, proteger a biodiversidade e garantir a sustentabilidade para as futuras gerações.
socioambientais – incluindo epidemias e pandemias –, entre muitos outros. A presença da Cordilheira dos Andes e do Escudo da Guiana, onde se encontra o Pico da Neblina, destaca como a geodiversidade da bacia criou gradientes topográficos e térmicos, oferecendo uma variedade de habitats favoráveis a uma diversidade biológica muito particular.
O tempo e a floresta fizeram da Amazônia a maior reserva de carbono na superfície terrestre. Estimativas da década de 1990 indicavam de 150 a 200 bilhões de toneladas de carbono estocado tanto acima quanto abaixo do solo. Na época, a taxa de remoção líquida da Amazônia era de 1 a 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono da atmosfera ao ano. Entretanto, a capacidade da floresta de remover gás carbônico da atmosfera e de continuar fornecendo inúmeros outros serviços dentro de um sistema teleconectado através da atmosfera, e de práticas culturais, tem sido reduzida nas últimas décadas devido aos efeitos das mudanças climáticas globais, desmatamento e degradação da floresta.
ENTRE AS FLORESTAS TROPICAIS DO PLANETA, a taxa de perda de floresta e de serviços ecossistêmicos na Amazônia é a mais alta. Nas últimas duas décadas até 2022, cerca de 16 mil km² de novas florestas foram cortados todos os anos e, ainda que o desmatamento tenha diminuido de forma significativa em 2023 e 2024, mais de 1 milhão de km² de floresta desapareceu. Uma área equivalente se encontra em estágios diversos de degradação ambiental.
O principal motor de desmatamento e de degradação é conhecido há tempos. Historicamente, a conversão da floresta em áreas de pastagem segue um modelo econômico orientado ao mercado de commodities e à extração de recursos naturais que impulsiona a destruição florestal e a degradação de seus ecossistemas. Atividades como grilagem de terras, incêndios florestais, mineração ilegal de ouro, contaminação dos rios por mercúrio, construção de estradas não oficiais, tráfico de animais silvestres, pesca clandestina, invasão de áreas protegidas, assassinato de indígenas e tráfico de drogas são alguns exemplos de crimes que delineiam um cenário de violência e de vulnerabilidade de Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICLs), além da destruição de seus ecossistemas.
A degradação perturba as mais diversas formas de interação biológica da floresta e dos rios dentro dos ecossistemas, podendo resultar na redução de populações de espécies e da qualidade ambiental. Apesar da queda recente do desmatamento, os incêndios continuam degradando a floresta, e mesmo um fogo de baixa intensidade é capaz de causar alta mortalidade de árvores. Outra consequência dramática da liberação de monóxido de carbono e particulados emitidos pela fumaça nos incêndios na Amazônia brasileira são os cerca de 150 mil casos de doenças respiratórias e cardiovasculares por ano.
O impacto do aquecimento global e da elevada queima de combustíveis fósseis, assim como do desmatamento, já é bastante concreto no clima regional da Amazônia. Nos últimos 50 anos, a temperatura média do ar aumentou mais de 1°C em toda a bacia. Desde 1979, a estação seca se prolongou entre 4 e 5 semanas no
sul e leste da floresta. As secas extremas, como as ocorridas em 2005, 2010, 2015-16 e 2023-2024, estão mais frequentes. A mais recente foi associada ao aumento da temperatura dos rios e lagos e consequente redução do oxigênio dissolvido na água, causando a morte de milhões de peixes e centenas de mamiferros aquáticos, como botos e tucuxis. As consequências adversas desses eventos extremos de secas serão sentidas em setores como agricultura, transporte, gestão hídrica, produção energética e saúde.
ACOMBINAÇÃO SINÉRGICA ENTRE DESMATAMENTO, degradação florestal e mudanças climáticas está levando a Amazônia a um limite crítico no qual uma pequena perturbação pode causar uma mudança abrupta na paisagem, o chamado ponto de não retorno (tipping point, em inglês). Se o desmatamento e a degradação continuarem nas taxas das últimas décadas e o aquecimento global exceder muito além dos 1,5°C, a floresta ultrapassará os limiares que sustentam sua dinâmica natural. Isso pode ocorrer daqui duas ou três décadas, fazendo com que 50% a 70% da floresta se auto degradem em até 30 a 50 anos. Como resultado, teremos um ecossistema de dossel aberto e altamente degradado, emissor de carbono e com menor biodiversidade.
Ultrapassar um ponto de não retorno significa também que as emissões globais de gases de efeito estufa serão agravadas, o que pode causar um aumento de 0,5°C na temperatura média do planeta. Todos sentiremos impactos profundos da conversão da floresta úmida e biodiversa, desde pequenos e grandes produtores agrícolas até moradores de áreas urbanas e rurais, além de empreendedores que enxergam na Amazônia um polo de inovação e de negócios. Evitar esse colapso ambiental exige a adoção de ações urgentes, tanto individualmente, quanto em colaboração entre diferentes partes interessadas.
CARLOS A. NOBRE graduou-se em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e fez doutorado em meteorologia no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Primeiro brasileiro indicado para integrar os Guardiões Planetários, Nobre está à frente do Amazônia 4.0, uma iniciativa científica para desenvolver uma “bioeconomia florestal permanente para a Amazônia”. Pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e copresidente do Painel Científico para a Amazônia (SPA).
DIEGO OLIVEIRA BRANDÃO é biólogo e doutor em Ciência do Sistema Terrestre. Ele se dedica ao estudo dos efeitos do desmatamento na produção de produtos florestais não madeireiros e participa de projetos focados na restauração florestal e na conservação da biodiversidade na Amazônia. Membro da Secretaria Técnico-Científica do SPA.
JULIA ARIEIRA é mestre em Ecologia e Conservação da Biodiversidade e doutora em Agricultura Tropical, atuando na interface entre a biologia e a ecologia, com foco na conservação dos ecossistemas florestais e savânicos e serviços ecossitêmicos fornecidos por estes. Membro da Secretaria Técnico-Científica do SPA.
OPAINEL CIENTÍFICO PARA A AMAZÔNIA*, uma organização vinculada à Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável, criada pela Organização das Nações Unidas (UN-SDSN, na sigla em inglês), resumiu os caminhos de solução para afastar a Amazônia de um ponto de não retorno social e ecológico por meio de três pilares. O primeiro é o fortalecimento da governança amazônica e das comunidades locais e indígenas. A governança inclui um conjunto abrangente de políticas que protegem os ecossistemas, estabelecem direitos e responsabilidades sobre o uso dos recursos, promovem a participação das comunidades locais e indígenas na gestão, monitoram a biodiversidade e asseguram a aplicação das leis ambientais.
os compromissos nacionais para estabelecer um sistema de Áreas Protegidas (APs) têm sido essenciais para a conservação da floresta e para a proteção dos seus habitantes. A aplicação rigorosa da lei sobre o uso dessas áreas não apenas protege a floresta, mas também presta um serviço crítico de mitigação climática. As Terras Indígenas (TIs), que estocam cerca de um terço do carbono retido pelas árvores da Amazônia (28.247 milhões de toneladas), são particularmente importantes, reforçando a relevância de acelerar a demarcação de novos Territórios Indígenas na região amazônica.
A crise climática traz novos desafios de governança, uma vez que seus impactos ambientais e sociais exigem estratégias setoriais e temáticas de adaptação e mitigação climática baseadas nos direitos indígenas e das comunidades tradicionais e no valor intrínseco da biodiversidade, que vão além dos sistemas de áreas protegidas. Nessa perspectiva, acordos internacionais e políticas
Se o desmatamento e a degradação continuarem nas taxas das últimas décadas e o aquecimento global exceder muito 1,5°C, a floresta ultrapassará os limiares que sustentam sua dinâmica natural. Isso pode ocorrer daqui a duas ou três décadas, fazendo com que 50% a 70% da floresta se autodegradem em até 30 a 50 anos
De janeiro a outubro de 2023, o desmatamento na Amazônia brasileira caiu 50% em comparação a 2022, com uma tendência contínua de queda no primeiro semestre de 2024. Na Colômbia, a derrubada da floresta diminuiu de forma significativa (36%) em 2022 em relação ao ano anterior. A redução observada em ambos os países reflete os resultados eficazes das políticas de proteção ambiental quando implementadas. Nesse caso, provocou uma queda de 8% nas emissões, ressaltando o impacto significativo das medidas de combate ao desmatamento ilegal na Amazônia para a mitigação das mudanças climáticas. O fortalecimento da governança ambiental depende de financiamento adequado, da capacitação de profissionais e de uma melhor articulação entre e dentro das instituições como parte de um planejamento de longo prazo.
A Cúpula de Belém, realizada no Brasil em 2023, marcou um compromisso crucial da maioria dos países amazônicos em acabar com o desmatamento até 2030. Esse comprometimento político transnacional representa um passo significativo na proteção da Amazônia e reflete um sistema de governança biorregional e biodiplomático para gerir recursos naturais essenciais, fortalecer os direitos humanos e territoriais e mitigar os impactos das mudanças climáticas.
nacionais de mudança climática se entrelaçam com as políticas de conservação da floresta, incorporando elementos de conservação ex-situ (ou fora de seus habitats naturais) e fortalecendo os mecanismos jurídicos e institucionais contribuíram para a gestão eficaz da biodiversidade e territorial.
O segundo pilar são os chamados Arcos da Restauração florestal e Prosperidade sem Desmatamento. Grande parte das áreas desmatadas e degradadas da Amazônia pode ter suas florestas regeneradas naturalmente. A regeneração natural é o método de menor custo de implementação. Ainda assim, está entre as iniciativas de restauração menos adotadas na Amazônia brasileira (5%), segundo a Aliança para a Restauração da Amazônia. Os esforços para proteger as florestas maduras e para regenerar as degradadas podem acumular uma média de 62 milhões de toneladas de carbono por ano. A restauração florestal através de sistemas agroflorestais socialmente inclusivos pode produzir grandes quantidades de madeira, proteína, gordura e carboidratos de espécies nativas. Ao longo das duas últimas décadas, vários estudos têm mostrado que os sistemas agroflorestais diversificados são mais resilientes e lucrativos. Além disso, geram mais empregos do que as monoculturas de gado e de soja na Amazônia. É preciso aumentar a produtividade agrícola e florestal por meio da agricultura e pecuária regenerativa e da restauração florestal com espécies nativas. Cerca de 20% da área desmatada da Amazônia foi abandonada. Infelizmente, como consequência da seca de 2023-2024 e do aumento do crime organizado na Amazônia, os incêndios florestais também proliferaram.
Um sistema de proteção que tem funcionado como barreira eficaz contra o desmatamento e a degradação são as áreas protegidas e os territórios indígenas, que correspondem a mais de 50% da Bacia Amazônica. Esse sistema também garante os direitos ancestrais dos povos indígenas da Amazônia. Nas últimas décadas, Continua na pág 19
Bioma abrange floresta e outras vegetações menores não florestais, como campinarana e lavrado. Ele está presente em oito países, um território ultramarino, e representa metade do território brasileiro.
Por Amanda Fonseca e Mariana Froner, do jornal Nexo
A Amazônia é um bioma que abrange a floresta amazônica (a maior floresta tropical do mundo) e outras vegetações menores.
O bioma tem 5,8 milhões de km2 enquanto a bacia de drenagem da Amazônia tem 7,3 milhões de km2
O bioma amazônico está distribuído em oito países da América do Sul e um território (Guiana Francesa), mas o Brasil é o país com a maior porcentagem.
O Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa têm todo o seu território coberto pela Amazônia. No Brasil, o bioma representa metade da área do país.
Fonte: Fonseca, A.; Froner, M. Qual a extensão e a distribuição da Amazônia. Nexo Jornal, 24 out. 2023. Disponível em https://www.nexojornal.com.br/grafico/2023/10/24/qual-a-extensao-e-a-distribuicao-da-amazonia
Para reduzir a probabilidade de que a floresta ultrapasse um ponto de não retorno, pesquisadores do Painel Científico para a Amazônia listaram nove ações que fortalecem a resiliência florestal. As recomendações foram classificadas como urgentemente necessárias.
1
A redução drástica das emissões globais de gases de efeito estufa é um primeiro passo fundamental para mitigar as mudanças climáticas globais e seus impactos nas condições climáticas da Amazônia
3
A restauração de florestas abandonadas e degradadas em grande escala é crucial para manter as condições climáticas da Amazônia. Isso exige a facilitação da restauração passiva através de medidas para evitar o desmatamento de florestas secundárias, e da reflorestação ativa para promover a recuperação de florestas degradadas, através do plantio de diversas combinações de espécies de árvores nativas com potencial econômico
5 Investir em ciência, tecnologia e inovação pode fortalecer a resiliência da Amazônia. Uma melhor compreensão da complexidade da Amazônia através do monitoramento a longo prazo e de modelos baseados em dados ajudará a prever como o sistema responderá às mudanças globais e aos efeitos sinérgicos das mudanças climáticas e do uso do solo. Em última análise, proteger a Amazônia requer pesquisa transdisciplinar, produzida através de abordagens éticas e justas, considerando múltiplos sistemas de conhecimento e incluindo perspectivas de povos indígenas e comunidades locais. Isso requer fortalecer a capacidade científica das instituições de pesquisa na Amazônia
8
Manter a conectividade florestal entre os Andes e a Amazônia é vital para garantir a resiliência das espécies. Eventos passados de mudanças climáticas demonstraram que a mobilidade animal é fundamental para garantir o acesso aos refúgios climáticos, com os Andes funcionando como o berço da biodiversidade amazônica
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2
Acabar com o desmatamento, a degradação e os incêndios florestais em grande escala na Amazônia é igualmente importante para mitigar as mudanças nas condições climáticas da Amazônia. Isso requer novas políticas para abordar os principais vetores de desmatamento, degradação e incêndios florestais em cada país amazônico, assim como coordenação entre os países amazônicos para evitar a internacionalização de mercados de terras ilegais
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A criação e manutenção de Áreas Protegidas e Territórios Indígenas é uma ação eficaz e de baixo custo que contribui significativamente para a redução do desmatamento e das queimadas. A demarcação e a concessão de direitos legais à terra de Povos Indígenas e comunidades locais é um passo fundamental para fortalecer a resiliência dos ativos biológicos e culturais dos ecossistemas amazônicos
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Reforçar a participação das organizações da sociedade civil com atividades socioecológicas na tomada de decisão ambiental para manter um sistema de governança resiliente. Quando as políticas públicas das instituições governamentais falham, as organizações da sociedade civil podem agir para manter e/ou fortalecer a governança amazônica
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O desenvolvimento de uma sociobioeconomia de florestas saudáveis em pé e rios fluindo pode contribuir para apoiar os Povos Indígenas e as comunidades locais que retêm o conhecimento ecológico ancestral sobre a sociobiodiversidade amazônica. Isso exige o desenvolvimento de cadeias de suprimento e de valor que utilizem infraestruturas logísticas sustentáveis , ligando comunidades e mercados remotos, bem como iniciativas de colheita sustentável
Incluir os direitos fundamentais da Amazônia na constituição dos países amazônicos. Os países amazônicos deveriam seguir o exemplo do Equador, que inseriu os direitos da natureza em sua constituição, e da Bolívia e da Colômbia, que criaram apoio jurídico e jurisprudencial para os direitos da natureza. Tais práticas podem ser instrumentos jurídicos eficazes para proteger paisagens, ecossistemas, rios, montanhas, espécies e outros elementos do sistema socioecológico de atividades humanas destrutivas ao mesmo tempo em que adotam uma perspectiva sistêmica que compreende que todos os seres estão interligados
Fonte: Nove maneiras de evitar o ponto de não retorno, Bernardo M. Flores*, Adriane Esquivel-Muelbert*, Marco Ehrlich*, Emilio Vilanova, Raquel Chaves, Marina Hirota, Michelle Kalamandeen | *Coautores principais. Policy Brief, disponível em https://www.aamazoniaquequeremos.org/spa_publication/policy-brief-2023-nove-maneiras-de-evitar-o-ponto-de-nao-retorno-da-amazonia/
Existem regiões que, de tão degradadas, exigem esforços sistemáticos e prolongados para recuperar a vegetação nativa. Em ambientes terrestres usadas para pecuária, a compactação do solo pelo gado e o adensamento de plantas exóticas resultam em redução da diversidade de espécies nativas de plantas e animais. Em áreas aquáticas, a restauração fluvial é necessária devido à contaminação por esgoto, mercúrio da mineração, derramamento de óleo, agrotóxicos e interrupção da conectividade dos rios por barragens. A restauração florestal com a técnica de sistemas agroflorestais tem viabilidade econômica comprovada na Amazônia. De fato, com a seleção de espécies e com o manejo da vegetação, esse método pode gerar lucratividade acima de US$ 500 por hectare ao ano. Isso indica que os interessados podem pagar o investimento caso uma fonte de recursos financeiros seja disponibilizada para a restauração florestal.
O potencial ambiental e econômico da recuperação da vegetação nativa surge como uma oportunidade para combater a degradação da terra. Esse potencial sustentou o lançamento da proposta dos “Arcos da Restauração” pelo Painel Científico para a Amazônia durante a COP 27 no Egito em 2022. Seu objetivo é restaurar 500 mil km² em duas regiões amazônicas que concentram a maior parte do desmatamento, uma localizada no sul da Amazônia, abrangendo territórios do Brasil e da Bolívia, e a outra, ao longo da Cordilheira dos Andes, incluindo territórios no Peru, Equador e Colômbia.
O primeiro governo da Pan-Amazônia a endossar os Arcos da Restauração foi o brasileiro. A iniciativa foi lançada na COP 28-Dubai, nos Emirados Árabes, em 2023. Ela busca restaurar 24 milhões de hectares de floresta amazônica no Brasil até 2050 em duas etapas: a primeira, com 6 milhões de hectares restaurados até 2030, e a segunda, com 18 milhões de hectares entre 2030 e 2050. O investimento foi estimado em US$ 40 bilhões.
Uma estratégia de restauração florestal em grande escala deve estar vinculada a ações de fortalecimento de cooperativas e associações. Essas medidas devem garantir a aquisição de todos os produtos madeireiros e não madeireiros oriundos da restauração florestal. Além disso, é essencial empregar tecnologias que agreguem valor aos produtos regionais, transformando o gás carbônico absorvido da atmosfera em produtos naturais e industrializados de maior valor agregado.
Por fim, o terceiro pilar refere-se a uma Sociobioeconomia de Florestas Saudáveis em Pé e Rios Fluindo. Um novo modelo econômico regenerativo, que priorize a conservação e a restauração florestal, deve emergir, colocando as comunidades locais e indígenas como protagonistas dessa transformação. Investir em sociobioeconomias de florestas saudáveis em pé e rios fluindo é uma oportunidade de unir empoderamento das populações locais e a conservação e restauração dos ecossistemas terrestres e aquáticos da Amazônia. Essa mensagem-chave parte do pressuposto de que o modelo atual de desenvolvimento econômico que não valoriza floresta em pé e incentiva sua conversão em áreas agrícolas deve ser substituído. Apesar de a Amazônia ser a maior e mais biodiversa floresta tropical do planeta, o valor econômico gerado por sua biodiversidade é extremamente baixo. No caso da Amazônia brasileira, essa biodiversidade contribui com R$ 12 bilhões ao ano. Considerando o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro de R$ 10,9 trilhões em 2023, isso representa apenas 0,1% do PIB nacional.
As sociobioeconomias são economias baseadas no uso sustentável e na restauração de florestas saudáveis em pé e rios fluindo. Elas visam apoiar o bem-estar, o conhecimento, os direitos e os territórios dos povos indígenas, das comunidades locais da Amazônia e da comunidade global. A sociobioeconomia coloca a justiça, especialmente para mulheres e jovens indígenas, assim como a diversidade biológica e cultural, como valores centrais do desenvolvimento.
Uma sociobioeconomia pode ser mais lucrativa do que as economias convencionais que contribuem para o desmatamento na Amazônia. A pastagem, por exemplo, requer de 1 a 2 trabalhadores por 100 hectares, gerando um lucro de US$ 50 a 100 por hectare ao ano. O cultivo de soja exige de 0,5 a 1 trabalhador por 100 hectares, com um lucro de US$ 100 a 300 por hectare ao ano. Em contrapartida, o manejo de sistemas agroflorestais e a coleta de produtos florestais não madeireiros demandam de 20 a 40 trabalhadores por 100 hectares, resultando em um lucro de US$ 300 a 700 por hectare ao ano.
Outro aspecto importante dessa sociobioeconomia é agregar valor aos produtos florestais por meio da bioindustrialização nas comunidades que manejam a restauração florestal e as florestas remanescentes. Essa agregação de valor é de 10 a 20 vezes maior do que a comercialização de produtos primários. Portanto, a bioindustrialização é essencial para construir uma sociedade predominantemente de classe média em toda a Amazônia.
CONSTRUIR O FUTURO QUE QUEREMOS
SEGUNDO OS MAIS DE 280 CIENTISTAS do Painel Científico para a Amazônia, esses pilares sustentam quatro recomendações ou mensagens-chave:
1. Implementar sistemas de governança que promovam conservação e manejo sustentável dos recursos naturais e fortalecimento dos direitos humanos e territoriais;
2. Interromper o desmatamento, a degradação dos ecossistemas e os incêndios florestais;
3. Conservar e restaurar as florestas e ecossistemas amazônicos;
4. Promover as sociobioeconomias baseadas em florestas saudáveis em pé e rios fluindo.
Há grandes desafios para consolidar uma sociobioeconomia na Amazônia. O maior é eliminar todo o desmatamento e a degradação das florestas remanescentes. Depois disso, é necessário aumentar significativamente os investimentos em ciência e tecnologia em toda a região amazônica. Isso é essencial porque existe uma grande lacuna tecnológica nos países amazônicos para explorar o potencial da floresta. É preciso, portanto, abandonar o atual modelo econômico, que degrada a biodiversidade, e adotar um novo modelo regenerativo e inovador, baseado na biodiversidade, reconhecido como sociobioeconomia. Nessa transição, a justiça social, a participação indígena, a ampla repartição de benefícios e a redução das desigualdades desempenham papéis fundamentais. O
NOTA
* O Painel Científico para a Amazônia (SPA, na sigla em inglês) conta com mais de 280 proeminentes cientistas e pesquisadores dos oito países amazônicos, Guiana Francesa e parceiros globais que integram o painel. Esses especialistas se reuniram para debater, analisar e sintetizar o conhecimento acumulado da comunidade científica, dos povos indígenas e de outras partes interessadas que vivem e trabalham na Amazônia e contribuir com soluções para sua conservação e uso sustentável. Em novembro de 2021, o Painel lançou seu primeiro Relatório de Avaliação da Amazônia, uma referência hoje sobre o conhecimento da floresta. Com mais de 1300 páginas, foi referido como uma “enciclopédia” da Amazônia.
Densamente ocupada no passado, a Amazônia que conhecemos hoje, incluindo suas matas e seus solos, é resultado de processos de interação com povos indígenas. Das férteis “terras pretas” ao cultivo de uma imensa diversidade de plantas e de uma impressionante variedade linguística, os cerca de 10 milhões de habitantes na região antes da colonização deixaram marcas profundas no bioma. A história da ocupação amazônica tem sido recontada pela arqueologia e pela antropologia. Você já conhece essa história?
Por Eduardo Góes Neves
EM 2008, O ARQUEÓLOGO MICHAEL HECKENBERGER e um grupo de colaboradores brasileiros e estrangeiros, incluindo indígenas como o cacique Afukaká Kuikuro, do alto Xingu, publicaram na revista Science um artigo no qual propunham que as sociedades indígenas antigas do Alto Xingu, incluindo os ancestrais dos Kuikuro, viviam há cerca de mil anos em grandes assentamentos conectados por estradas lineares. Por constituírem redes regionais, poderiam ser caracterizadas como urbanas. Em outubro de 2023, o mesmo periódico publicou um texto assinado por dezenas de cientistas, segundo o qual mais de 10 mil estruturas de terra – aterros, valas, estradas, açudes etc. – devem existir escondidas sob a espessa copa das árvores que cobrem áreas da Amazônia. É curioso que, neste último caso, a maioria dos autores sejam cientistas naturais, um grupo que sempre aceitou com relutância a hipótese, proposta pela arqueologia, de que a região amazônica foi densamente ocupada pelos povos indígenas no passado e, sobretudo, de que a Amazônia que conhecemos hoje, incluindo suas matas e seus solos, resulta parcialmente de mudanças exercidas pelos povos indígenas que a habitam há milênios.
Graças a políticas de ação afirmativa e a outras políticas públicas, há hoje na Amazônia diferentes cursos de graduação em arqueologia que têm ampliado o ingresso de estudantes, incluindo indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Esses cursos absorveram jovens profissionais egressos dos programas de pós-graduação que também se consolidaram no Brasil na mesma época. Felizmente, a estrutura se mostrou robusta para sobreviver aos ataques que a ciência brasileira sofreu nos últimos anos.
O amadurecimento da arqueologia no país também foi fator importante nessa mudança. Uma parte dos profissionais nascidos na década de 1960 fez sua formação no exterior – graças a ações induzidas de agências de fomento, como a Capes e o CNPq, porque os cursos de pós-graduação só surgiram na década de 1990. Essa oportunidade foi fundamental para inserir a pesquisa aqui realizada no campo cosmopolita que caracteriza a prática de pesquisa contemporânea internacional. Finalmente, há que destacar a con-
tribuição teórica da antropologia social: William Balée e Darrell Posey, que trabalhavam na Amazônia Oriental, no Pará e Maranhão, propunham, já nos anos 1990, que os povos indígenas exerciam um papel importante na modificação de áreas de floresta e de produção de paisagens – por meio do uso controlado do fogo nas roças, do plantio de mudas de árvores ao longo das trilhas que cortam as matas e do enriquecimento do solo pela compostagem de lixo orgânico. Em um trabalho clássico publicado em 1989, Balée propôs que cerca de 11% das matas de terra firme resultariam do manejo exercido pelos povos indígenas ao longo do tempo. Se tais hipóteses careciam à época de uma perspectiva histórica aprofundada que permitisse a compreensão do impacto dessas práticas em escalas milenares, elas proveram à arqueologia um programa que orientou a produção de conhecimento nas últimas décadas. Aprendemos, assim, que a Amazônia já era ocupada pelos ancestrais dos povos indígenas há pelo menos 13 mil anos, graças a achados feitos no Pará e na Colômbia, onde também se documentou uma arte rupestre que está entre as mais antigas do continente. Trabalhos realizados em Rondônia, em Monte Alegre e na Bolívia, mostram que há 9 mil anos plantas como a mandioca, a castanha-do-pará e a goiaba-araçá já eram consumidas e talvez cultivadas pelos povos que viviam nesses lugares. Tais achados confirmam hipóteses, antes baseadas em dados genéticos, que colocavam a Amazônia como um centro antigo e independente de domesticação de plantas – ou de “neolitização”, como se diria em contextos do Velho Mundo – e de produção de agrobiodiversidade. De fato, a quantidade de plantas hoje disseminadas pelo planeta e que foram inicialmente cultivadas na Amazônia ou em seu entorno impressiona: mandioca,
EDUARDO GÓES NEVES é arqueólogo, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, tem mais de 30 anos de experiência de pesquisa na Amazônia.
cacau, abacaxi, maracujá, mamão, amendoim, tabaco, taioba, açaí, castanha-do-pará, guaraná, ingá, cupuaçu, pimenta murupi, goiaba e pupunha, para nomear apenas algumas. A maioria é formada por tubérculos e por árvores ou arbustos: são batatas e frutos. Dos poucos grãos, o destaque vai para o milho, que, apesar de sua origem no sul do México, já estava presente na Amazônia há cerca de 6 mil anos, onde passou por um processo local de seleção genética independente de seu centro de origem. Dessas plantas, muitas se encontrariam em uma espécie de “estágio intermediário”, nas palavras de Claude Lévi-Strauss, entre sua condição selvagem e seu cultivo pleno. A partir do fim do Pleistoceno – ao redor de 12 mil anos atrás –, de maneira independente, populações humanas estabeleceram relações com plantas ou animais selvagens que levaram ao surgimento de novas espécies, processo conhecido como domesticação e que compõe uma parte importante do que, ainda na década de 1930, o arqueólogo marxista Vere Gordon Childe denominou como “revolução neolítica”.
O caso amazônico é, no entanto, particular. Embora a região tenha sido um centro importante de cultivo de plantas, muitas delas, como a castanha-do-pará ou o açaí, nunca foram domesticadas. Inúmeras outras, por sua vez, ocupam o tal “estágio intermediário”. Por muito tempo, o reconhecimento dessa condição transitória levou a comunidade arqueológica nacional a uma certa depressão teórica e nos fez propor que nossos ancestrais indígenas teriam sido algo como agricultores incipientes, a caminho de um neolítico que nunca se realizou plenamente. Tal perspectiva reflete, no fundo, mais um problema com ideias que vêm de fora do que uma espécie de incapacidade atávica dos povos daqui. Não há razão alguma pela qual processos históricos teriam acontecido de maneira universal da mesma forma no passado da humanidade. Nosso neolítico foi selvagem, baseado em ontologias que não separam de maneira clara os chamados domínios da natureza dos domínios da cultura, como não se cansam de nos lembrar os povos indígenas e seus pensadores. Um aspecto interessante desse neolítico tropical, que o antropólogo Carlos Fausto e eu chamamos de processo de familiarização, em vez de domesticação, tem a ver com a notável produção e valorização de diversas variedades de plantas cultivadas. Diversas autoras já chamaram a atenção para a quantidade imensa de variedades de plantas que são cultivadas hoje nas roças indígenas pela Amazônia. A pensadora Jerá Guarani mostra o mesmo para os povos Guarani da Mata Atlântica e vai além ao demonstrar que tais roças diversas –refúgios de agrobiodiversidade – são também espaços poderosos de resistência, de produção e circulação de práticas de conhecimentos, plasmadas nas plantas e nos espaços de cultivo, frente às forças avassaladoras que visam exterminar quaisquer formas diferentes de vida. Mas é talvez na notável diversidade linguística vista entre os povos indígenas da América do Sul tropical que tal processo de produção de diferença pode ser mais bem aferido. A quantidade de línguas faladas no norte da América do Sul tropical – incluindo a Amazônia, Orinoquia e Guianas – pode chegar a cerca de 300. Tais línguas estão agrupadas em 50 unidades que podem ser famílias, ou seja, grupos de línguas com origem comum determinada, ou línguas isoladas. A diversidade linguística da Amazônia está entre as maiores do planeta e é mais notável porque se desenvolveu em um quadro sem aparentes barreiras geográficas que poderiam ter isolado populações locais e levado à emergência dessa diversidade. Na
ausência desses fatores, bem como do Estado, há de se considerar que essa imensa diversidade emergiu como um processo ativo de valorização e cultivo das diferenças por meio das línguas.
A partir de cerca de 2.500 anos atrás, um notável processo de adensamento demográfico se verificou no que é hoje o território brasileiro. Na Amazônia os testemunhos estão registrados em sítios arqueológicos dispersos por áreas de dezenas de hectares e compostos por depósitos espessos de cerâmicas associadas a solos escuros e muito férteis, conhecidos como “terras pretas”. Embora as mais antigas datem de mais de 5 mil anos, é a partir dessa época que se tornaram disseminadas por grandes partes da Amazônia. Terras pretas são fantásticas devido à sua estabilidade; até sob as extremas condições pluviais amazônicas, não perdem sua fertilidade mesmo depois de séculos. Tais solos se formaram graças às atividades dos povos indígenas, por meio de práticas que continuam ativas. Escavei e mapeei dezenas desses sítios na Amazônia central na década de 2000, e em todos os casos os depósitos mais espessos de terras pretas em cada sítio estavam associados a áreas de atividades domésticas. Terras pretas, portanto, são um composto, lixo orgânico adicionado de carvões queimados a baixa temperatura e, em alguns casos, fragmentos de cerâmica. Trata-se de maneiras sofisticadas de produzir solos cuja lógica não foi totalmente compreendida pela agronomia contemporânea. Outras manifestações desse processo de crescimento demográfico ocorrido no primeiro milênio da Era Comum são visíveis nos sítios arqueológicos da região: aterros artificiais associados a cerâmicas altamente elaboradas na parte leste da Ilha de Marajó, o urbanismo de baixa densidade do Alto Xingu – formado por grandes aldeias conectadas por estradas lineares –, centenas de estruturas de terra de formato geométrico – quadrangular ou circular –, conhecidas como geoglifos, conectadas por estradas no leste do Acre, sul do Amazonas e oeste de Rondônia, estruturas de pedra, como se fossem menires, associadas a câmaras funerárias na costa do Amapá.
Nos últimos séculos anteriores ao início da colonização portuguesa, a diversidade de formas de vida indígena na Amazônia era muito grande. As hipóteses atuais sustentam que havia entre 8 milhões e 10 milhões de indígenas vivendo na grande Amazônia em 1492. No século XVIII, essa população havia sido drasticamente reduzida devido à propagação de doenças, à escravidão e à guerra. Quando os primeiros cientistas europeus passaram a viajar e descrever a Amazônia, a partir dessa mesma época, encontraram vazias áreas que antes eram ocupadas. A ausência da rocha como material construtivo reforçou essa imagem de vazio e atraso que, infelizmente, perdura até hoje. Para que essa perspectiva mude, será importante abandonarmos o termo “pré-história” e passarmos a falar em “antiguidade” no campo do conhecimento referente à história do Brasil antigo. Embora singela, essa simples operação garantiria aos povos indígenas o direito à História, que também lhes foi usurpado pela violência. O
PARA SABER MAIS
Amazônia, Arqueologia da Floresta, série que acompanha as pesquisas realizadas em sítios arqueológicos, por Eduardo Góes Neves. Disponível em sesctv.org.br/amazonia.
NEVES, Eduardo. Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central. Ubu Editora, 2022.
________. Arqueologia da Amazônia (Descobrindo o Brasil). Zahar, 2006.
Com quase 50% das emissões de gases de efeito estufa associadas a mudanças no uso da terra, é fundamental discutir como a promoção de uma bioeconomia sustentável pode transformar a realidade amazônica e garantir um futuro mais verde e justo
Por Bruno Kono, Gabriel Natário, Fernanda Sequeira, Gabriela Savian, Mariceli Moura, Raquel Poça, Rafaela Reis e Ricardo Azevedo
NA AMAZÔNIA BRASILEIRA, MUDANÇAS NO USO E COBERTURA do solo associadas ao desmatamento da vegetação nativa e degradação das florestas têm consequências graves para as questões climáticas e a biodiversidade em escalas regionais e globais. O desmatamento resulta de fatores inter-relacionados, incluindo questões socioeconômicas, políticas de uso da terra, desenvolvimento de infraestrutura e demandas do mercado global. Segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg), 49% das emissões brasileiras estão associadas à mudança do uso da terra.1 Nos estados amazônicos, a quase totalidade tem relação com o uso da terra ou com a agropecuária.
A posse da terra, o uso do solo e as respostas às mudanças climáticas estão intimamente interligadas, como aponta o relatório “Mudança do Clima e Terra” de 2019 do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – na sigla em inglês).2 Em estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam),3 observou-se que o risco potencial para o aumento de áreas desmatadas está associado a dois fatores importantes: os ciclos macroeconômicos e a governança na forma de designação de florestas públicas para áreas protegidas. Tais fatores podem influenciar as decisões de uso da terra, a alocação de recursos e até mesmo o ambiente regulatório.
A capacidade de implementação de estratégias de resposta aos desafios climáticos e de fazer investimentos futuros em mitigação e adaptação é efetada de maneira direta pelo acesso e uso da terra. Nisso, a segurança jurídica desempenha papel fundamental para fortalecer essas capacidades e facilitar o acesso às oportunidades emergentes na transição para o desenvolvimento de baixo carbono.
A garantia de posse segura, em especial para as populações indígenas e comunidades locais que operam sob regimes de posse con-
suetudinária ou coletiva e, deve estar resguardada e priorizada no desenho dessas políticas de transição econômica.
A regularização fundiária na Amazônia brasileira enfrenta desafios complexos que requerem uma abordagem intersetorial para a sua efetiva implementação. As ações de regularização devem ser prioritárias na formulação e execução de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento socioeconômico da Amazônia.4 Afinal, a segurança jurídica das propriedades rurais, a redução da violência no campo e a operacionalização de estratégias de ordenamento territorial e desenvolvimento rural sustentável podem garantir a criação de um ambiente seguro para investimentos, escalando caminhos para conciliar produção com conservação ambiental ao crescimento econômico necessário para a sociedade.
Os autores analisam a relação entre regularização fundiária e bioeconomia na Amazônia brasileira, mostrando como a insegurança fundiária contribui para o desmatamento e altas emissões de gases de efeito estufa. A regularização é essencial para garantir segurança jurídica às comunidades locais e indígenas, assim como para os agricultores familiares e produtores rurais para atrair investimentos em práticas sustentáveis.
A insegurança na posse da terra resulta em desmatamento e exploração ilegal, afetando tanto o meio ambiente quanto as comunidades locais. Promover uma bioeconomia sustentável pode gerar novas oportunidades econômicas e empregos verdes, incentivando práticas que respeitem o ecossistema.
Os obstáculos à efetiva implementação do ordenamento territorial e da política de regularização fundiária na região são marcados por componentes relacionados à infraestrutura física, capacidades institucionais, governança e contextos locais de disputas e conflitos agrários. Esse contexto, associado às diferentes legislações vigentes, baixo investimento tecnológico e histórico territorial, dá dimensão à complexidade regional e demonstra a necessidade de novos arranjos para a sua implementação.
A dinâmica da ocupação das terras públicas envolve questões preocupantes, como a relação de ocupações ilegais de áreas públicas não destinadas e, em alguns casos, crime organizado, tráfico de drogas e garimpo de ouro, por exemplo. A Amazônia brasileira tem ainda 56,5 milhões de hectares de florestas públicas não destinadas, área equivalente ao tamanho da Espanha.5 Para uma redução definitiva da grilagem e da pressão sobre essas florestas, é fundamental que os governos reforcem esforços nos processos de destinação dessas áreas. O sucesso do ordenamento territorial depende da destinação de florestas públicas ainda não destinadas a categorias de conservação, porque só assim é possível combater o desmatamento, a grilagem e a exploração ilegal de recursos naturais. A destinação adequada de áreas públicas configura-se como estratégia essencial para proteger as florestas, garantir o uso sustentável dos recursos e promover o desenvolvimento inclusivo das comunidades locais.6
Existe ainda a demanda de regularização fundiária das áreas rurais individuais, sejam elas em assentamentos rurais, pequenas pro-
priedades da agricultura familiar, ou propriedades maiores (médias e grandes). Pelos dados registrados no Incra, outros 16 milhões de hectares estão aptos para regularização individual, sendo que 6,3 milhões correspondem a propriedades pequenas.7
Para um ecossistema de ordenamento territorial baseado em fatores atuais de tecnologia e inovação deve-se considerar que a plena implementação só acontecerá quando forem estabelecidos um conjunto de práticas para promoção de arranjos de governança capazes de direcionar de maneira eficiente a adoção de medidas estratégicas e políticas públicas duradouras para a gestão territorial. A governança efetiva requer melhorias contínuas para assegurar o uso sustentável e a preservação dos territórios. Portanto, investimentos em ferramentas de gestão devem estar ancorados em uma política fundiária permanente como política de Estado, com mecanismos e instrumentos de governança fundiária transparente, justa e equitativa e que fortaleçam a articulação institucional envolvendo governo federal e órgãos de terra estaduais e os espaços de participação social. A intersetorialidade na sua implementação deve articular conhecimentos e experiências no planejamento, na operação e na avaliação das ações para que sejam alcançados resultados integrados no enfrentamento de situações com alta complexidade visando o, desenvolvimento social e à melhoria das condições de vida.
No contexto amazônico, para além dos investimentos em infraestruturas e tecnologias, a ausência de uma estratégia de implementação ajustada ao cenário regional e interconectada com as demais
políticas públicas, como as relacionadas à conservação ambiental, fomento à produção sustentável e desenvolvimento regional, ameaça sua ampla efetividade.
A regularização fundiária é eixo estruturante para a implementação da transição para um novo paradigma de desenvolvimento socioeconômico, contribuindo de maneira a ancorar visão de longo prazo através de programas como agropecuária de baixas emissões, mercado de carbono, bioeconomia e valorização dos ativos ambientais.
Para fortalecer as relações intersetoriais na criação de um ecossistema de governança fundiária, é necessário desenvolver instrumentos de coordenação que articulem setores, como um cadastro unificado, bases de dados integradas, sistemas de informação compartilhados e estratégias conjuntas de avaliação e monitoramento. Além disso, é fundamental ter um marco regulatório robusto e ajustado entre os setores, assegurando a sinergia entre políticas, planos e programas estratégicos para alcançar resultados de longo prazo.
O potencial produtivo da biodiversidade presente na região deve atuar para impulsionar a criação de produtos e serviços que agreguem valor econômico sem comprometer a integridade dos ecossistemas. Produtos derivados de plantas medicinais, cosméticos, alimentos orgânicos e até mesmo inovações em biotecnologia são exemplos de como a riqueza biológica da região pode ser transformada em cadeias produtivas sustentáveis.
No bojo da implementação de modelos de desenvolvimento sustentável, como solução para desafios como mudanças climáticas, segurança alimentar e perda de biodiversidade, a bioeconomia busca valorizar a biodiversidade amazônica, promovendo o desenvolvimento de cadeias produtivas inovadoras que combinam práticas tradicionais e modernas, criando valor econômico enquanto conserva o meio ambiente e fortalece as comunidades locais.
Ao unir as premissas de desenvolvimento econômico e social para a região com sustentabilidade e resiliência climática, torna-se uma estratégia de descarbonização da economia. O fim do desmatamento, o fortalecimento de práticas culturais locais milenares das populações tradicionais da região, a diversificação da produção e a valorização da biodiversidade, assim como a distribuição justa de benefícios e tomada de decisão com as comunidades locais, são considerados pilares imprescindíveis pelo Ipam para garantir a sustentabilidade ambiental, econômica e social.
Com isso, a sociobioeconomia, conceito mais aprofundado, representa um novo paradigma econômico e produtivo que vai além da produção sustentável, integrando e respeitando os conhecimentos tradicionais associados à produção, fabricação e uso de produtos oriundos da floresta.8
O acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, bem como a repartição de benefícios oriundos desse acesso, depende da segurança jurídica sobre quem detém esses direitos que estão associados ao território. Assim como a consolidação de um mercado de créditos de carbono com alta integridade socioambiental requer a garantia da segurança jurídica das terras, como forma de garantir salvaguardas socioambientais em ações relacionadas à economia de baixo carbono. A integração da bioeconomia com a regularização fundiária é essencial para assegurar que as populações locais, especialmente comunidades indígenas e ribeirinhas, possam acessar os benefícios dessa nova economia. Regularizar as posses não só assegura a integridade dos créditos
de carbono, como também combate a “grilagem” de terras, promovendo um mercado mais justo e sustentável. Com a aplicação de práticas rigorosas de rastreabilidade fundiária, é possível eliminar fraudes e garantir que os benefícios sejam direcionados a quem realmente protege a floresta.
NA ÚLTIMA DÉCADA, TEM-SE BUSCADO DESENVOLVER sistemas ágeis visando à análise processual, aprimoramento de normativos e uso de processos mais simplificados na Amazônia Legal. Esse cenário positivo cria ambiente favorável à construção de uma agenda conjunta para o desenvolvimento de políticas públicas estruturantes (ver quadro na pag seguinte).
As decisões estratégicas adotadas nos últimos anos refletem os avanços nas regularizações fundiárias e se estendem para os diferentes públicos, como agricultores familiares, produtores rurais, extrativistas e quilombolas, os quais acessam a política fundiária por diferentes modalidades, sejam elas individuais ou coletivas. A segurança jurídica, em especial de áreas ocupadas por populações tradicionais, desempenha um papel crucial junto ao Plano Estadual de Bioconomia, pois garante que as comunidades que utilizam recursos da floresta tenham a segurança necessária para desenvolver suas atividades de maneira sustentável e acessar mercados globais.
Conectado à estratégia de valorização da sociobiodiversidade, a criação do Parque de Bioeconomia da Amazônia é mais um passo que exemplifica como essa transição pode acontecer de forma prática. O Pará tem se posicionado como um líder na promoção de políticas públicas que integram a regularização fundiária e ambiental com o fortalecimento da bioeconomia, vislumbrando ainda o mercado de carbono enquanto potencial captação de financiamento climático e mecanismo financeiro de fomento à conservação florestal e produção sustentável. Essa abordagem visa não apenas à conserva-
OS AUTORES
BRUNO KONO é presidente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e coordenador da Câmara Setorial de Governança Fundiária.
GABRIEL NATÁRIO é coordenador de regularização fundiária urbana do Iterpa.
FERNANDA SEQUEIRA é procuradora do estado e diretora jurídica do Iterpa.
MARICELI MOURA é diretora de gestão de desenvolvimento agrário e fundiário (Deaf) do Iterpa.
RICARDO AZEVEDO é procurador do Iterpa e coordenador da mesa quilombola.
GABRIELA SAVIAN é diretora adjunta de Políticas Públicas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
EDIVAN CARVALHO é pesquisador e coordenador estadual do Ipam no estado do Pará.
RAQUEL POÇA é analista de pesquisa e coordenadora de projetos do Ipam.
RAFAELA REIS é analista de pesquisa e coordenadora de projetos do Ipam.
EM ÂMBITO FEDERAL, desde 2023
foram retomadas estratégias federais de ordenamento territorial através da reestruturação de órgãos públicos direcionadores, como o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), nos quais estão ancoradas instâncias de elaboração, implementação e acompanhamento das políticas públicas concernentes ao tema. Neste foi retomada a Câmara Técnica de Destinação de Terras Públicas (Decreto Federal nº 11.688/2023), responsável pela interlocução com diferentes órgãos e agentes governamentais para a destinação de glebas e florestas. Em escala regional, o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Legal, autarquia representativa dos nove estados amazônicos, busca ser referência em articulação, estratégia e governança para trazer o pleno desenvolvimento socioeconômico e ambiental da região até 2030. Para isso, tem quatro alicerces de atuação: economia verde, competitividade e inovação; integração regional; gestão; e serviços públicos e governança territorial e ambiental. Este último eixo abrange estratégias para promoção do planejamento, ordenamento e gestão do território; modernização e eficiência da gestão, normas, procedimentos e processos ambientais. O consórcio busca, através de troca de experiência e interlocução entre os diferentes atores, estabelecer segurança jurídica, territorial e ambiental adequada para promover a implantação de projetos, obras e atividades públicas e privadas.
Nos estados amazônicos emergem experiências exitosas de implementação e operacionalização da política fundiária que apontam caminhos possíveis para uma governança fundiária plena. A articulação entre políticas públicas de desenvolvimento sustentável, aliada a uma economia de baixo carbono, é estratégia que endereça as demandas socioeconômicas aos desafios da região no que tange à redução do desmatamento e consolidação de um ambiente com segurança jurídica para investimentos sustentáveis.
Nesse nível subnacional, destaca-se o desenvolvimento de uma arquitetura estratégica de políticas, planos e programas no estado do Pará, trazendo em seu escopo a conciliação das agendas fundiária, ambiental e econômica alinhada a uma visão de longo prazo de desenvolvimento socioeconômico de baixas emissões. Desde 2019, com a publicação do Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA) (Decreto Estadual no 941/2020), o estado tem conduzido a implantação de um conjunto de ações orientadas pela governança climática da Política Estadual de Mudanças Climáticas (Pemc) (Lei Estadual no 9.048/ 2020), para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs). Instrumentos operativos como o Programa Regulariza Pará (Decreto Estadual no 2745/2022), o Territórios Sustentáveis (Decreto Estadual no 2.744/ 2022) e o Plano Estadual de Bioeconomia (Decreto Estadual no 2.746/2022) são exemplos de programas que visam integrar a agenda de ordenamento territorial associado ao cumprimento das metas climáticas ao desenvolvimento sustentável.
ção, mas também à criação de uma economia inclusiva que ofereça oportunidades reais de desenvolvimento para as populações locais. Essa estratégia também pavimenta o caminho para a criação de arranjos pré-competitivos, que permitem a colaboração entre diferentes atores, como empresas, governos e comunidades locais, em prol de objetivos comuns de desenvolvimento sustentável. Esses arranjos criam um ambiente propício para a atração de investimentos, o que potencializa a geração de empregos verdes e o aumento da renda das populações locais. Ao fortalecer essa rede de cooperação e promover a bioeconomia, o Estado não apenas estimula a transição para uma economia de baixo carbono, como também contribui para uma transformação econômica inclusiva e resiliente, ancorada na conservação ambiental e proteção do patrimônio genético e conhecimento tradicional associado.
Posto de forma transversal, o ordenamento territorial (fundiário e ambiental) demonstra que as diretrizes adotadas pelo Pará na execução da política agrária colocam a governança fundiária como plataforma político-estratégica de atuação. Destaca-se o Instituto de Terras do Pará – Iterpa com avanços no desenvolvimento e incorporação de capacidades e conhecimento organizacional, mapeamento e ajustes dos fluxos e processos executados como maneira de garantir a harmonização legislativa e ações coordenadas às ações realizadas, com vistas à eficiência dos resultados. Os resultados alcançados se consolidam na titulação de mais de 31 territórios quilombolas até agosto de 2024, o que beneficiou mais de 2.600 famílias. Durante a gestão 2019-2024, o Iterpa já identificou, arrecadou e matriculou mais de 11 milhões de hectares de terras devolutas que passaram a incorporar o patrimônio público do estado. Tudo isso contribui para postular o Pará como referência para o Brasil, credenciando também seu protagonismo na agenda internacional. As políticas públicas em curso reforçam a importância da regularização fundiária como um pré-requisito para a implementação de iniciativas que valorizem a sociobiodiversidade. Além disso, criam as condições necessárias para que o estado se torne um polo de referência em sustentabilidade e inovação, oferecendo aos investidores oportunidades em mercados de carbono, produtos da biodiversidade e inovação em tecnologias sociais. Em última análise, esse modelo de desenvolvimento pode contribuir para uma transição econômica na Amazônia, transformando a exploração prejudicial em um ciclo virtuoso de desenvolvimento sustentável.
Para garantir resultados e impactos de longo prazo, é fundamental reforçar a governança de todas essas iniciativas. A criação de mecanismos claros de monitoramento, transparência e participação social é essencial para consolidar os arranjos pré-competitivos e assegurar que os investimentos, políticas públicas e ações voltadas à bioeconomia e à conservação ambiental sejam efetivos. Uma governança robusta permitirá que as decisões sejam tomadas de forma coordenada, garantindo a continuidade das ações, o cumprimento das metas climáticas e a geração de benefícios sustentáveis para as futuras gerações, consolidando um modelo de desenvolvimento inclusivo e duradouro. Com vistas às oportunidades da COP 30 que se aproxima, este é um importante legado que se estrutura para toda a Amazônia. O
As notas e referências deste artigo estão disponíveis na versão digital, em ssir.com.br
Seringueiros pobres, iletrados, ocultos na distante floresta amazônica, sem representação política nacional nem meios de comunicação, construíram uma alternativa estrutural que evitou migrações para as cidades e assegurou a permanência e a proteção da floresta. Criadas há mais de três décadas, as reservas extrativistas resultantes dessa luta representam muitos outros valores que podem explicar a resiliência de uma política pública inovadora. Conheça essa história contada por quem participou de sua construção
Por Mary Allegretti
CONCEBIDAS POR SERINGUEIROS DA AMAZÔNIA, as Reservas Extrativistas (Resex) são uma modalidade de unidade de conservação original do Brasil. Uma articulação do Conselho Nacional dos Seringueiros, com apoio técnico do Instituto de Estudos Amazônicos (IEA) e de pesquisadores acadêmicos, as transformou em realidade em 1990. Também teve peso no processo a habilidade política do primeiro presidente do IBAMA, o jornalista Fernando César Mesquita, de convencer o então presidente da República, José Sarney, a assinar o Decreto no 98.897, de 30 de janeiro de 1990.
As quatro primeiras Resex – Chico Mendes e Alto Juruá no Acre, Rio Ouro Preto em Rondônia e Rio Cajari no Amapá - foram criadas tendo como referência demandas coletivas específicas, fundamentadas pelo conhecimento de pesquisadores e técnicos locais dos estados.
À época, não havia um mapeamento do potencial de criação de outras unidades nem expectativas de formulação de uma política pública para moradores distantes e ocultos pelas florestas amazônicas de então. Entendia-se que as quatro reservas haviam resultado do impacto na sociedade e nas instituições públicas causado pelo assassinato do líder seringueiro Chico Mendes dois anos antes, em 1988.
Entretanto, o decreto assinado continha todos os elementos necessários para a formulação de uma política pública inovadora que conciliava objetivos ambientais, sociais e econômicos for-
O texto mostra o processo de criação das Reservas Extrativistas (Resex) na Amazônia, uma política pública inovadora que surgiu a partir da mobilização de seringueiros para preservar a floresta e garantir seus direitos de uso dos recursos naturais. O artigo narra a luta desses trabalhadores, que viviam em condições precárias e sem representação política, e o processo de articulação que culminou na criação das primeiras Resex em 1990. Ao conciliar preservação ambiental e justiça social, as reservas são um modelo de desenvolvimento sustentável que protege as florestas e as comunidades tradicionais que delas dependem.
Marco na luta por justiça social e ambiental no Brasil, a mobilização dos seringueiros e o legado de Chico Mendes mostram como comunidades marginalizadas e invisíveis, conseguiram se organizar e influenciar políticas públicas que garantissem sua sobrevivência, seu modo de vida e a preservação da floresta. Essa experiência revela como o desenvolvimento sustentável pode ser construído a partir das demandas e conhecimentos locais, servindo como um modelo para políticas que equilibram a conservação da natureza e o bem-estar social.
mulados, debatidos e aprovados em inúmeras reuniões realizadas depois do 1º Encontro Nacional dos Seringueiros em outubro de 1985, em Brasília.
À medida que novas áreas demandadas foram sendo criadas em diferentes regiões da Amazônia e em estados do sul e do nordeste, a confirmação de que se tratava de uma modalidade original e consistente com a expectativa dos moradores da floresta amazônica passou a ficar clara aos poucos.
Atualmente, o resultado dessa forma de proteção e uso dos recursos naturais e de reconhecimento dos direitos de posse de comunidades está consolidado em duas modalidades de regularização fundiária e socioambiental, Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável, em 96 unidades que abrangem 23 milhões de hectares. E a demanda de criação de 93 novas unidades está em análise nos órgãos ambientais.
Como explicar esse fenômeno socioambiental? Seringueiros pobres, iletrados, ocultos na distante floresta amazônica, sem representação política nacional nem meios de comunicação, conseguem construir uma alternativa estrutural que evitou migrações para as cidades e assegurou a permanência da floresta, ativo ambiental tão valorizado na realidade de hoje? Só a barreira de floresta protegida evitando a expansão do desmatamento já seria um grande resultado. Mas as Resex representam muitos outros valores e resultados que podem explicar a resiliência de uma política pública que já alcançou 34 anos de vida.
NA FORMULAÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA tudo começa com o conhecimento do que existe hoje, da história e dos fatos que sustentam essa realidade e das expectativas e aspirações de mudança. Para captá-lo, não é suficiente organizar consultas públicas genéricas nem realizar uma assembleia com o público interessado e sistematizarsuas aspirações em um documento. Adquirir esse conhecimento requer métodos específicos que permitam entender a história, o contexto atual e a visão de futuro de diferentes perspectivas dos que demandam soluções ao Estado.
Na década de 1970, em alguns estados da Amazônia, a maior parte dos antigos seringais havia sido transformada em fazendas de médio e grande porte em mãos de herdeiros locais ou fazendeiros do centro-sul do país, e em lotes de reforma agrária para pequenos produtores e/ou sem terra também originários de fora da Amazônia. A política do governo militar de “ocupar a Amazônia” estava fundamentada na falsa premissa de que a região era um imenso território vazio, repleto de riquezas e objeto de disputa por diferentes países. Era uma questão de segurança nacional.
Essa política alcançou resultados positivos, com níveis variados de eficácia, em parcelas do território de estados amazônicos, especialmente quando destinadas para famílias de pequenos produtores rurais migrantes do centro-sul do país.
Nos estados onde a economia da borracha se estendeu após o 1º ciclo (1870-1912), e se expandiu durante a Segunda Guerra Mundial, em decorrência dos Acordos de Washington (1942-1947), os seringais continuavam produzindo e vendendo borracha, com novos arranjos produtivos. Nas duas décadas seguintes, a proteção aos preços da borracha foi assegurada por políticas governa-
mentais que permaneceram até 1967. Em alguns rios, os antigos “patrões” foram substituídos por gerentes de barracão que administravam um conjunto de regras coercitivas para manter a fidelidade de entrega da borracha. Em outros, os patrões tradicionais, endividados pelo baixo preço da borracha, abandonaram áreas que administravam mas não tinham a titularidade fundiária.
Três estados encontravam-se nessa situação, cada um com suas peculiaridades: Acre, Rondônia e Amazonas. Ali, especialmente em lugares mais distantes, onde predominavam florestas e rios, os seringueiros continuavam produzindo e vendendo borracha (ou trocando por mercadorias) para intermediários. Eles estavam “libertos” dos patrões, como afirmavam. Coube aos estados amazônicos criar suas políticas de atração de grandes empresas para explorar a madeira e implantar agricultura de larga escala.
A história clássica em várias regiões do Brasil caminhava para a substituição de culturas tradicionais por produção de mercado e as pessoas que viviam nessas áreas (a Amazônia não era um espaço vazio) eram expulsas, ou recebiam uma indenização irrelevante e iam embora para as cidades.
Foi nesse contexto que, em 1975, teve início um movimento sindical no Acre, organizado com apoio da Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Por iniciativa do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasiléia, liderado pelo seringueiro Wilson Pinheiro, os seringueiros decidiram não sair do local onde moravam e trabalhavam nas plantações de subsistência (as chamadas colocações de seringa). E assim iniciaram o “empate às derrubadas”, manifestação pacífica organizada por seringueiros que convenciam os peões, contratados por latifundiários, a não derrubar a floresta para a formação de pastos. O movimento inviabilizou a implantação de fazendas onde havia seringueiros.
Depois do assassinato de Wilson Pinheiro, em 1981, Chico Mendes deu sequência e expandiu esse movimento de resistência. Seringueiro de Xapuri, Chico se diferenciava dos demais por ter sido alfabetizado por um refugiado político e trabalhado como professor do Mobral. Líder sindical perseguido por fazendeiros por organizar e liderar os empates, deu origem a uma nova categoria social, o seringueiro “liberto”. Embora isso tenha mudado a rota de migração para as periferias da capital do Estado, Rio Branco, faltava segurança para os seringueiros viverem na floresta: a borracha tinha perdido valor, as fazendas continuavam derrubando a floresta e expulsando seringueiros, não havia escolas nem benefício algum, e a violência imperava.
MARY ALLEGRETTI é antropóloga, doutora em Desenvolvimento Sustentável e consultora em projetos socioambientais. Ao lado de Chico Mendes e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, criou a primeira experiência de alfabetização de adultos na floresta. Em 1986, fundou o Instituto de Estudos Amazônicos (IEA), organização não governamental responsável pela sistematização do conceito de Reserva Extrativista e pelos estudos que viabilizaram a criação das primeiras reservas. Assumiu funções públicas como Secretária de Coordenação da Amazônia no Ministério do Meio Ambiente de 1999 a 2003 e Secretária de Planejamento e Meio Ambiente do Estado do Amapá entre 1995 e 1996.
Em síntese, os seringueiros queriam continuar a viver na floresta, assegurar educação para os filhos, lutar por melhores preços para a borracha e outros produtos da floresta e proteger o meio ambiente em parceria com o poder público
Os seringueiros eram um grupo social que lutava por conta própria contra forças econômicas e políticas, locais e nacionais, com escassos aliados além da Igreja Católica e das poucas organizações da sociedade civil que existiam então. Em comparação com os indígenas, que tinham apoio da Funai, e de indigenistas dedicados à causa, os seringueiros viviam em alta vulnerabilidade, desprovidos de alternativas, sobrevivendo na subsistência, abandonados e invisíveis para o poder público. O que lhes dava alguma expectativa, era o conhecimento da floresta e a possibilidade de viver com a subsistência obtida na mata e a proteção das plantas contra as doenças.
Chico Mendes tinha planos e iniciativas concretas que queria implantar para melhorar a qualidade de vida e a organização da produção e da comercialização da borracha e de outros produtos. Podia contar com a Igreja e com a Contag. Resolveu pedir ajuda para organizar uma escola dentro da floresta nas áreas onde ocorriam os empates, para os seringueiros terem a oportunidade de aprender a ler e escrever e fortalecer a organização sindical. E queria também organizar uma cooperativa para a venda dos produtos das comunidades de seringueiros. Convidou um pequeno grupo de pessoas para esse desafio, no qual me encontrava e, em conjunto com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, concretizamos o Projeto Seringueiro de Educação que, posteriormente, foi incorporado às políticas públicas do Governo do Estado do Acre.
Perseguido pelas suas iniciativas, Chico Mendes não tinha receio de avançar. E o contexto passou a ser mais favorável quando o regime militar enfraqueceu e ele obteve apoio federal para continuar seu projeto de educação e assegurar a continuidade da vida nos seringais libertos. A retomada da democracia, o fortalecimento da sociedade civil e o contexto criado pela Constituinte poderiam abrir inúmeras novas oportunidades. Mas a floresta e os seringueiros não faziam parte dessa mudança; ninguém os mencionava nem lembrava de perguntar o que eles precisavam para se integrar ao Brasil pós-ditadura (ver quadro pag 38).
O cenário começou a mudar quando convidei Chico Mendes para ir a Brasília com o intuito de iniciar a organização de um evento que pudesse abrir espaço para um pequeno grupo de seringueiros se manifestar diante do futuro governo. A ideia era que, ao contarem como viviam à margem do poder público, conseguissem um espaço em alguma das múltiplas mudanças e propostas que estavam sendo consolidadas no novo poder.
Com apoio do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), da Universidade de Brasília (UnB) e de fontes doadoras, organizamos o 1º Encontro Nacional dos Seringueiros em outubro de 1985 no campus da UnB. Para isso, foram planejadas reuniões prepara-
tórias em várias cidades da Amazônia. Em uma delas, em Rondônia, um grupo de seringueiros colocou um novo conceito na pauta no meio de um dos mais importantes debates que trazia à tona a necessidade de regularização da forma de vida que haviam conquistado. A mensagem era simples e clara: “Se os índios têm suas reservas indígenas, nós, que somos extrativistas, queremos as nossas reservas extrativistas”.
Durante o Encontro Nacional os principais mecanismos de autonomia e organização foram definidos: criaram o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), entidade nacional representativa até hoje; e não acataram o modelo de reforma agrária aprovado pelo governo, embora ainda não tivessem clareza em como conseguir o modelo definido de reserva extrativista.
Encerrado o 1º Encontro, e já com aliados inseridos nesse processo, era necessário iniciar a organização de um movimento para formular, criar e assegurar o cumprimento dos objetivos que haviam definido: a ideia de permanecer nas florestas onde viviam, mantendo o modo tradicional de viver e produzir, melhorando a qualidade de vida e a autonomia conquistada, com a proteção do Estado e o acesso à educação, para adultos, jovens e crianças, à saúde e à segurança das comunidades nos lugares onde sempre haviam vivido, com apoio do governo federal.
Em uma reunião de lideranças e assessores técnicos, realizada perto do Natal de 1986, em Brasiléia, a diretoria do CNS convidou técnicos identificados com a agenda do movimento e organizou uma reunião para consolidar suas demandas e decidir uma estratégia de interlocução com o governo. Em dois dias de debates, depois de ouvir as alternativas apresentadas pelos especialistas em reforma agrária, a decisão dos seringueiros se consolidou:
• Não concordavam com o modelo vigente de reforma agrária que adotava a divisão de uma área pública em lotes familiares de até 100 hectares; o tamanho dos lotes não seria compatível com a dispersão das árvores de seringa que, para ser economicamente viável, requereria no mínimo 300 hectares; não estavam acostumados a espaços privados dentro da floresta; cada família tinha uma colocação, cujos limites eram respeitados por todos.
• Pelos mesmos motivos, entendiam que a propriedade privada não seria adequada para o modo de vida que sempre tiveram na floresta, com liberdade de caçar, pescar, coletar.
• O modelo mais adequado seria transformar os seringais em terras públicas, na modalidade de unidade de conservação, denominada de Reserva Extrativista com objetivos próprios e específicos.
Em síntese, os seringueiros queriam continuar a viver na floresta, assegurar educação para os filhos, lutar por melhores preços para a borracha e outros produtos da floresta e proteger o meio ambiente em parceria com o poder público.
No Brasil, dois grupos sociais têm direitos assegurados na Constituição de 1988: os indígenas e os quilombolas. O Art. 231 assegura direitos originários sobre territórios para povos indígenas, que têm o usufruto exclusivo das terras que ocupam; o Art. 68, das Disposições Transitórias reconhece as comunidades quilombolas – fundadas por negros que resistiram à escravidão e à exclusão durante e após o regime escravista – como grupo étnico com direito à propriedade definitiva de suas terras.
As demais comunidades rurais, especialmente as que vivem em florestas e na condição de posseiros, tiveram que conquistar o direito de obter o reconhecimento dos direitos de posse em modalidades apropriadas às características econômicas, ambientais e culturais que apresentam. Para isso, definiram e construíram socialmente os instrumentos jurídicos e as políticas públicas necessários para tornar essas conquistas universais. O exemplo mais relevante é o dos seringueiros, que formularam uma política específica de reforma agrária e proteção ambiental, as Reservas Extrativistas, depois de mais de dez anos de confrontos em torno da terra e dos recursos naturais.
Ao transformar a proposta dos seringueiros em política pública, o governo brasileiro criou uma modalida-
de original de regularização de direitos fundiários e proteção de territórios e recursos naturais. Foi o resultado de um histórico processo de mobilização social ocorrido na Amazônia nas últimas décadas do século passado. Os atores principais – seringueiros, extrativistas, ribeirinhos, pescadores, castanheiros, quebradeiras de coco babaçu – são grupos sociais pobres e marginalizados, sem poder econômico nem força política, que têm em comum o fato de depender dos recursos naturais (lagos, florestas, rios, mar, cerrados) para obter a própria subsistência.
As Reservas Extrativistas foram concebidas como territórios contínuos que não deveriam ser divididos, como ocorria com a reforma agrária convencional, de propriedade da União, para usufruto
Esse era o modelo. A alternativa não existia, não estava no escopo jurídico da reforma agrária nem nos pressupostos e nas regras das unidades de conservação vigentes naquele momento.
Cientes de que representava as demandas aprovadas pelos seringueiros durante do 1º Encontro Nacional e, com apoio de assessores técnicos e acadêmicos, o movimento organizou uma agenda a ser cumprida junto aos órgãos públicos em Brasília, a partir de janeiro de 1987.
Com a força da identidade consolidada, o CNS deu início ao processo de construção do futuro com base nas decisões do encontro. Visitaram inúmeras instituições públicas para apresentar a demanda de regularização dos seringais para os seringueiros. Em cada órgão público que visitavam, o titular tentava convencê-los,
de comunidades com tradição no uso sustentável dos recursos naturais, por meio de contratos de concessão de uso, condicionados a planos de manejo dos recursos. Em reconhecimento a esse novo status que estava sendo formulado por estas comunidades, assim referiu-se Ailton Krenak, pela União das Nações Indígenas: “Nós queremos a possibilidade da vida para os povos indígenas da Amazônia, para as populações ribeirinhas e, especialmente, para... os seringueiros que estão conscientes de que defender a floresta, defender o meio ambiente onde eles vivem, é resgatar o direito das pessoas de continuar vivendo lá. Eles sabem disso, acima de tudo, pelo ensino que eles tiveram dos povos indígenas e da natureza mesma.” O
que as modalidades de unidades de conservação existentes preenchiam os requisitos que eles demandavam, como as Florestas Nacionais, as Áreas de Proteção Ambiental, modelos que permitiam a permanência dos seres humanos no meio ambiente protegido. Os modelos de gestão dessas áreas não atendiam às suas expectativas de autonomia na vida na floresta, em parceria com o Estado brasileiro, e foram descartados.
Apenas um modelo foi aceito, no âmbito do Ministério da Reforma Agrária: a transformação dos seringais em áreas públicas seguindo as regras que eles sugeriram e adotando como solução de gestão um contrato de concessão que estava sendo proposto pela representação da reforma agrária no Acre. Em poucas semanas, uma portaria criou os Projetos de Assentamento Extrativistas (PAEs), sendo o
Mesmo sem alcançar os resultados socioeconômicos planejados há mais de 30 anos, as gerações atuais defendem o modelo e continuam nas Resex lutando pelos mesmos objetivos. Talvez queiram mudanças estruturais, em muitos casos, sem sair de onde vivem. E é possível que as mudanças climáticas tornem mais difícil a sobrevivência nas florestas
primeiro deles estabelecido nos seringais onde moravam os familiares de Chico Mendes, em Xapuri, meses antes do seu assassinato. Os PAEs existem até hoje, com o nome de Projetos Agroextrativistas.
A conquista do modelo de unidade de conservação que planejaram foi mais difícil. Foi preciso criar um grupo de trabalho com o objetivo de definir com os seringueiros, passo a passo, o modelo jurídico dessa nova modalidade de conservação da natureza com a presença humana. Com assessoria jurídica do IEA, que havia sido criado em dezembro de 1986, com o objetivo de apoiar, em nível nacional e internacional, o movimento dos seringueiros, foi definido o modelo de Contrato de Direito Real de Uso como o mais adequado para garantir as regras apropriadas para a proteção do meio ambiente e do modo de vida dos seringueiros com divisão de responsabilidades de gestão dos territórios tradicionalmente ocupados, assegurando o que aspiravam: viver na floresta por conta própria, livre dos patrões, vendendo os produtos da floresta e viabilizando um futuro para os filhos, dentro ou fora da floresta, com apoio do governo federal na educação, na economia, na saúde e na infraestrutura.
De 1986 a 1990 o CNS lutou pelas Reservas Extrativistas como o modelo de reforma agrária apropriado para a Amazônia. Mas o movimento alcançou esse objetivo só após o assassinato de Chico Mendes em 22 de dezembro de 1988. A repercussão internacional e o processo de transição política em curso na retomada da democracia no país, com o término da gestão de José Sarney, foram fatores que facilitaram a formalização das Reservas Extrativistas como áreas protegidas para comunidades tradicionais.
A consistência de uma política pública é confirmada quando sobrevive a mudanças políticas, institucionais e administrativas e permanece sendo solicitada, independentemente das mudanças geracionais dos beneficiários.
Essa resiliência pode ter várias explicações particulares, conjunturais, eventuais. Mas alguns poucos fatores são essenciais e se aplicam a todos os casos. O primeiro é a identificação clara e precisa da demanda social que poderá dar origem a uma iniciativa do poder público. Nenhuma política pública subsiste se não conseguir entender, respeitar e reconhecer a origem social que a sustenta. Os meios podem não existir para atender a demanda social e precisarão ser criados, de acordo com as características apresentadas pelos demandantes.
O segundo fator determinante para uma política pública ser consistente exige a determinação do agente público de criação do modelo da forma como foi demandado pelos futuros beneficiários, mesmo que aparentemente inexistam os meios jurídicos ou institucionais necessários para concretizar a demanda.
O terceiro fator é a combinação da demanda social com a aplicação das regulamentações específicas do setor público ao caso em questão.
O quarto fator é o respeito, por parte do poder público, aos anseios, demandas, sugestões e pedidos da população e a tradução da demanda em uma solução permanente.
Esses modelos existem, ou não passam de ficção? Todos esses aspectos estavam presentes quando o modelo de Resex foi formulado, foram incluídos e funcionam até hoje, no que se refere à parte que cabe aos seringueiros extrativistas. Vale registrar que, mesmo sem alcançar os resultados socioeconômicos planejados há mais de 30 anos, as gerações atuais defendem o modelo e continuam nas Resex lutando pelos mesmos objetivos. Talvez os jovens de hoje e os de amanhã queiram mudanças estruturais, em muitos casos, sem sair de onde vivem. E é possível que as mudanças climáticas tornem mais difícil a sobrevivência nas florestas e em outros ecossistemas vulneráveis.
No que se refere ao desenvolvimento socioeconômico, em harmonia com o meio ambiente e em parceria com o poder público, não se pode afirmar o mesmo. O governo federal tem sido omisso em suas responsabilidades com os extrativistas. Ao longo das décadas, o significado central do conceito de Reserva Extrativista foi sendo diluído pela padronização das diferentes modalidades de unidades de conservação (UCs) em duas categorias principais: unidades com gente e unidades sem gente, que correspondem tecnicamente às Unidades de Conservação de Proteção Integral e de Uso Sustentável. Na prática, as ações públicas foram sendo unificadas e restringidas a políticas denominadas de comando e controle, ou seja, de fiscalização do impacto humano sobre o ambiente.
As UCs de Uso Sustentável requerem investimentos em educação, saúde, infraestrutura, tecnologias e modelos adequados de gestão compartilhada entre as comunidades locais e o Estado brasileiro. Mais de 30 anos depois de ter sido criado, continua sendo um conceito avançado e coerente com os tempos atuais.
A diferença essencial, no caso das Resex, está na escolha original que fizeram, de transformar os territórios onde já moravam em uma área pública e assumirem um compromisso de, em parceria com o Estado, cuidarem daquele ambiente natural. A criação de uma Resex é resultado de uma decisão comunitária, antes de se transformar em uma área da União ou de um estado da federação. Conceitualmente, a Resex não é mais uma modalidade de unidade de conservação com gente dentro que precisa ser fiscalizada para não destruir o patrimônio público. A Resex é um território tradicionalmente ocupado, cujos moradores decidem e optam por um modelo de regularização fundiária que mantém a tradicionalidade e, em contrapartida, assumem o compromisso de contribuir com o Estado brasileiro na proteção daquele espaço. Cabe aos extrativistas manter um modo de vida compatível com o uso sustentável dos recursos naturais e, ao Estado, viabilizar os meios para essa parceria original e necessária, se consolidar e se perpetuar pelas novas gerações. O
A Meta Florestal 2030 da Vale torna evidente o potencial de parcerias entre empresas, pesquisadores e o setor público em cooperações que conciliam a conservação e a recuperação de áreas com o desenvolvimento socioeconômico. Por meio de uma abordagem inovadora, o objetivo é não apenas alcançar as metas estabelecidas, mas também servir de modelo para outras iniciativas, contribuindo para a construção de um futuro mais sustentável para o Brasil e o mundo
Por Bia Marchiori, Gustavo Luz, Juliana Vilhena e Nathalia Cipoleta
DESDE O LANÇAMENTO DO DESAFIO DE BONN, em setembro de 2011, diversos compromissos de proteção e recuperação ambiental foram assumidos em todo o mundo para o cumprimento da meta proposta. Organizado pelo governo alemão e pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês), o desafio propôs a restauração de 150 milhões de hectares de paisagens degradadas até 2020 e 350 milhões de hectares até 2030, visando não apenas recuperar ecossistemas, mas também combater as mudanças climáticas e promover a biodiversidade. Pelo seu tamanho, esse desafio só poderia ser superado com a mobilização de governos, organizações do terceiro setor, comunidades e o capital privado. No Brasil, a Vale assumiu o protagonismo dessa agenda em 2019 com o compromisso voluntário de proteger e recuperar 500 mil hectares de áreas além de suas fronteiras, por meio da Meta Florestal 2030.
A iniciativa da Vale se baseia naquilo que já é consenso na comunidade científica: reduzir as emissões de gases de efeito estufa e proteger as florestas são as principais ações humanas voltadas para lidar com as causas do aquecimento do planeta. Segundo Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), uma autoridade em ecologia tropical e impactos ambientais, não podemos esperar a Amazônia ser ainda mais degradada para agir.
O foco principal da Meta Florestal é proteger a floresta em pé – são 400 mil hectares destinados a iniciativas de proteção de florestas – e, para as áreas que já sofreram algum tipo de degradação, o objetivo é recuperar 100 mil hectares por meio de negócios sustentáveis.
A Meta Florestal 2030 é um compromisso voluntário e ambicioso da Vale, estabelecido em 2019, que visa proteger e recuperar 500 mil hectares de florestas no Brasil até 2030. Deste total, 400 mil hectares serão destinados à proteção de florestas existentes, enquanto 100 mil hectares serão recuperados por meio de sistemas sustentáveis. Este objetivo está alinhado com a Agenda 2030 da ONU e contribui para a meta da Vale de se tornar neutra em carbono até 2050. A iniciativa se soma a uma tradição de mais de 40 anos em projetos de proteção florestal, especialmente na Amazônia e na Mata Atlântica, onde a Vale ajuda a preservar cerca de 1 milhão de hectares de áreas verdes. Para alcançar a Meta Florestal 2030, a Vale, por meio do Fundo Vale, em parceria com a Reserva Natural Vale (RNV) e o Instituto Tecnológico Vale (ITV), está estruturando investimentos e negócios de impacto socioambiental positivo que promovam a recuperação de áreas. O compromisso busca promover o desenvolvimento econômico sustentável para além das regiões de atuação da companhia, e também contribuir com metas nacionais relacionadas ao tema, como a de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares até 2030, anunciada pelo Brasil na Conferência do Clima de 2015, em Paris..
CRIAÇÃO DO FUNDO VALE
Lançamento da Política de Sustentabilidade da Vale e criação do Fundo Vale como veículo para viabilizar o pilar da política posicionando a empresa como um “agente global pela sustentabilidade”
INÍCIO DA OPERAÇÃO COM FOCO EM FOMENTO
Atuação nos programas Municípios Verdes, Monitoramento Estratégico e Áreas Protegidas e Biodiversidade. Apoio a projetos aliando políticas públicas ambientais, conservação, recuperação florestal e desenvolvimento de cadeias da sociobiodiversidade
INICIATIVAS PIONEIRAS E RECURSOS PARA ORGANIZAÇÕES SOCIOAMBIENTAIS Fomento a uma pecuária mais sustentável na Amazônia e a cadeias produtivas e sistemas agroflorestais; manejo florestal responsável em unidades de conservação; reservas extrativistas e terras indígenas e aceleração de negócios de base comunitária, tecnológica e de impacto
O Fundo Vale desempenha um papel fundamental na implementação da Meta Florestal. Há 15 anos ajudando a construir uma nova realidade econômica, investindo no desenvolvimento de negócios, na geração de conhecimento e em arranjos financeiros voltados à conservação e recuperação de biomas, com especial atenção para a Amazônia, o Fundo Vale é responsável por estruturar e financiar negócios e projetos que promovam impactos socioambientais positivos. Por isso as soluções inovadoras que envolvam recurso financeiro catalítico para as frentes de recuperação e proteção são conduzidas pelo Fundo.
Um dos grandes desafios no que diz respeito à floresta em pé é que hoje os ganhos econômicos de curto prazo provenientes de práticas degradantes ao meio ambiente e, em muitos casos ilegais, são com frequência maiores do que aqueles obtidos por meio de iniciativas que envolvam sua conservação. Nesse contexto, novas abordagens – na mesma escala econômica – são essenciais para gerar maior valor compartilhado a partir do uso sustentável do solo.
Como parte de suas estratégias, o Fundo Vale se debruça sobre um programa para avaliar novas formas de “pensar a economia florestal”, no qual atrela a redução de custos da reposição de floresta a modelos de negócios baseados na criação intencional de valor de florestas em pé e/ou recuperadas. Além disso, mantém o foco em iniciativas de geração de valor compartilhado capazes de contribuir
OS AUTORES
2017
2009 2010 2018
APROXIMAÇÃO DO ECOSSISTEMA DE INVESTIMENTOS E NEGÓCIOS DE IMPACTO Foco na conexão do mundo de investimentos e negócios de impacto ao da conservação ambiental
NOVOS FORMATOS DE ATUAÇÃO Fortalecimento e aceleração de negócios de impacto por meio do apoio ao Programa de Aceleração da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA); ao Desafio Conexsus; e ao Desafio Logística e Comercialização dos Produtos da Sociobiodiversidade
com o desafio de conceber uma abordagem com aspectos econômicos e socioambientais em equilíbrio.
A partir da constatação da insuficiência do modelo tradicional de recuperação de áreas degradadas para a escala pretendida, a Vale passou a avaliar negócios agroflorestais regenerativos como alavanca para o atingimento da meta 2030. Nesse cenário, por meio do Fundo Vale, teve início um projeto de análise, fortalecimento e financiamento em um portfólio de negócios que entregam uma combinação ótima entre custo e impacto socioambiental para que se possa escalar e recuperar os 100 mil hectares, reduzindo custos da reposição florestal e saindo de projetos pontuais para uma maior escala com oportunidades de geração de renda para as comunidades. O objetivo final é demonstrar como os setores público e privado, bem como as comunidades locais, podem se unir para gerar retornos atrativos e compartilhados a partir de negócios sustentáveis e avaliar a real escala de cadeias produtivas sustentáveis.
Para alcançar esse propósito, os esforços se voltam para compreender como mobilizar investimentos, desenvolver e conectar mercados e fornecer apoio financeiro e técnico para iniciativas em diferentes níveis de maturidade, visando potencializar negócios que ofereçam impactos positivos sobre o uso do solo e um equilíbrio atrativo entre riscos e benefícios para todos as partes envolvidas. Atualmente, o processo de recuperação pode ocorrer a partir
BIA MARCHIORI é engenheira agrônoma formada pela UFRRJ, tem especialização em economia circular (PUC/RS), MBA em gestão de negócios (Esalq-USP) e cursando MBA em Agronegócios: indústria, produto e inovação (PUC/RS). Possui experiência no planejamento, implementação e desenvolvimento de projetos relacionados a desenvolvimento sustentável, recuperação e proteção de áreas. Atua no Fundo Vale na frente de sistemas sustentáveis, principalmente como responsável pelo acompanhamento técnico, de conhecimento e salvaguardas socioambientais da Meta Florestal 2030 da Vale.
GUSTAVO LUZ é diretor-executivo do Fundo Vale Engenheiro e administrador, com especialização em finanças na Fundação Dom Cabral, estratégias de impacto positivo na Wharton School e MBA em mercado de capitais pela PUC-MG. Ingressou na Vale pela Diretoria de Energia e, após um período trabalhando em consultoria de gestão no Brasil e no exterior, retornou passando por várias diretorias, estando atualmente à frente do Fundo Vale. É liderando o desenvolvimento de modelos inovadores de investimento de impacto florestal e tese de carbono de impacto para a estratégia Net-Zero Vale, e também membro do conselho de administração da Biomas S.A.
JULIANA VILHENA é gerente de estratégia, gestão e impacto no Fundo Vale, arquiteta e urbanista, mestre em engenharia civil com ênfase em gestão de empreendimentos e MBA em Gestão de Projetos pelo IETEC. Responsável pela gestão estratégica de impacto no Fundo Vale e coordenação do monitoramento, reporte e verificação (MRV) da Meta Florestal 2030 Vale (componente de recuperação).
NATHALIA CIPOLETA é mestre em agroecologia e desenvolvimento rural pela UFSCar, com MBA em gestão de projetos, bacharel em engenharia ambiental e pós-graduanda em ESG. Desde 2014 trabalha no setor social por meio do voluntariado. Foi responsável financeira da operação nacional da AIESEC na Nicarágua entre 2017 e 2018. É especialista em gestão de projetos socioambientais, certificada Project DPro e trabalha com foco em gestão estratégica de impacto.
META VOLUNTÁRIA FLORESTAL 2030
Estratégia inovadora que une recuperação e proteção a uma economia de baixo carbono e compromisso de proteger e recuperar 500 mil hectares de florestas, uma das maiores iniciativas voluntárias de recuperação de áreas em curso no país. Incubação dos primeiros negócios apoiados pela Meta Florestal: Belterra Agroflorestas e Caaporã Agrosilvopastoril
TEORIA DA MUDANÇA 2030
Depois de dez anos de atividades, o Fundo Vale reúne parceiros, especialistas, lideranças da Vale e seu time para repensar a estratégia e as metas de longo prazo. Nasce a Teoria da Mudança 2030 do Fundo Vale
GESTÃO DO IMPACTO SOCIOAMBIENTAL
Desenvolvimento de uma Teoria da Mudança específica para o componente de recuperação de áreas por meio de negócios agroflorestais da Meta Florestal 2030 e recuperação de 5.125 hectares no ano. Elaboração de um Plano de Negócios REDD+3
do financiamento ou aceleração em negócios sustentáveis e fundos florestais. Iniciativas que não apenas apresentam potencial de recuperação de serviços ecossistêmicos, mitigação das mudanças climáticas, mas também podem gerar benefícios econômicos para as comunidades locais. Desde 2019, os negócios apoiados já implantaram áreas nos biomas Amazônia, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica.
Ao longo dos anos, o Fundo Vale fez aportes que ultrapassam a R$ 160 milhões, sendo mais de R$ 30 milhões em suporte não financeiro. O fundo foi também responsável pela implantação de sistemas sustentáveis em mais de 12 mil hectares, 44% dos quais na Amazônia. Mais de quatro mil pessoas foram, direta ou indiretamente, impactadas – 3,7 mil foram capacitadas para o cultivo sustentável do cacau em 2023 e, desde 2021, uma média de 400 postos de trabalhos gerados ao ano.
Em 2021, uma Teoria de Mudança específica para a iniciativa foi formulada para direcionar as estratégias de implementação das ações de recuperação de áreas com a atuação direta dos negócios. No âmbito socioeconômico, a expectativa é que as iniciativas contribuam para a geração de novos postos de trabalho e, sobretudo, para o incremento na renda dos trabalhadores e agricultores envolvidos na recuperação das áreas. Espera-se também que, com a geração de retorno financeiro, ocorra uma distribuição justa dos benefícios financeiros aos parceiros. Já no âmbito ambiental, é esperado que as áreas recuperadas apresentem um incremento de qualidade ambiental e aumento do fornecimento de serviços ecossistêmicos. O balanço de carbono dos arranjos, o aumento da cobertura vegetal e da melhora da qualidade do solo são acompanhados no processo.
Uma parceria com o Instituto Tecnológico Vale (ITV) resultou no desenvolvimento de uma metodologia para o cálculo do índice de qualidade de solo (IQS). Por meio dela, é possível avaliar a capacidade do solo de funcionar dentro dos limites de um ecossistema natural ou manejado, para sustentar a produtividade de plantas e animais e de manter ou aumentar a qualidade dos serviços ecossistêmicos. Nas áreas implantadas entre 2020 e 2021, já é possível ver o solo melhorado.
Em outra frente, as quantidades das espécies plantadas em cada área são acompanhadas para mensurar a contribuição efetiva para o aumento da cobertura vegetal e uso de espécies nativas em cada arranjo. Para a avaliar a diversidade de espécies, índices de diversidade usados consideram, além do número de espécies (riqueza), a abundância dessas espécies e o número total de indivíduos plantados em cada área. Os negócios apoiados já implementaram mais de 60 espécies diferentes, sendo cerca de 58% delas nativas do Brasil.
DESAFIOS PARA DESENVOLVER NEGÓCIOS DE IMPACTO POSITIVO COM ESCALA
Além dos programas de aceleração em parceria com a AMAZ, com o Instituto Conexsus e na Jornada Amazônia, desenvolvimento de um programa de aceleração da Meta Florestal para enfrentar o desafio de desenvolver negócios de impacto regenerativos em escala
FUNDO VALE FAZ 15 ANOS
NFORTALECIMENTO DO ECOSSISTEMA E DOS NEGÓCIOS
O PLANO OPERACIONAL, um dos principais desafios é o fato de o Brasil não dispor de projeto de recuperação em escala que tenha esse modelo de integração. Foi preciso testar e desenvolver diferentes soluções em regiões com características tão distintas que pudessem viabilizar o necessário potencial de crescimento para o alcance da meta de 100 mil hectares recuperados.
Como a característica principal dos negócios apoiados é conciliar projetos de recuperação de áreas por meio de sistemas sustentáveis com o uso de soluções inovadoras financeiras para alavancagem e escala, o Fundo Vale foi buscar parceiros e experiências atuando no ecossistema para solucionar ou fortalecer iniciativas que apoiassem um crescimento sustentável dessa agenda.
A estrutura adotada pela Meta Florestal 2030 permite que as empresas testem seus modelos de negócio em pequena escala antes de receberem investimentos mais robustos para expansão. Durante a fase de estruturação da Prova de Conceito (PoC), os empreendimentos experimentam suas soluções em áreas delimitadas, ajustam suas estratégias conforme necessário e demonstram a viabilidade técnica e econômica de suas abordagens.
Além da estruturação da PoC, o Fundo Vale se dedica ao fomento e à aceleração de negócios selecionados. A atuação não se restringe ao apoio financeiro aos negócios selecionados, mas inclui suporte técnico e estratégico, ajudando na superação de desafios operacionais e no alcance de uma escala maior de impacto. Mentoria em gestão e estratégia até a articulação de parcerias que possam fortalecer os modelos de negócio são atividades que podem ser implementadas.
Parceiro do programa desde o início, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) é responsável por analisar as operações em termos de conformidade com as legislações trabalhistas e ambientais e todos os critérios de manutenção de direitos humanos nas áreas. O acompanhamento acontece por meio do diagnóstico técnico e documental dos empreendimentos, de suas práticas socioambientais e de uma análise de dados georreferenciados das áreas em recuperação. Isso permite ao Fundo Vale mitigar riscos relacionados a compliance social e ambiental dos negócios e oferecer aos empreendimentos a oportunidade de melhorias relacionadas ao sistema de gestão nas áreas em recuperação.
ALCANÇADOS ENTRE 2020 E 2023
META FLORESTAL VALE 2025 – RECUPERAÇÃO
9 negócios agroflorestais
(Belterra Agroflorestas, Caaporã Agrosilvipastoril, Bioenergia Orgânicos, ReGenera, Inocas, CAMTA, Radix, Futuro Florestal e Courageous Land)
mais de 120 propriedades rurais envolvidas
12.615 hectares em recuperação por meio de negócios de impacto e fundos florestais
4 sistemas de plantio adotados [agroflorestais sucessionais/ biodiversos, consórcio simplificado, integração lavoura, pecuária, floresta (ILPF) e silvicultura diversificada]
50 municípios em 9 unidades federativas
Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Rondônia, Roraima, São Paulo, Tocantins
META FLORESTAL VALE 2025 – PROTEÇÃO
165 mil hectares, sendo 115 mil em parceria com unidades de conservação (gerenciados pela RNV – Reserva Natural Vale) e 50.000 em projeto de REED+
META FLORESTAL VALE 2030 – RECUPERAÇÃO
66 espécies vegetais plantadas, sendo 58% nativas do Brasil
32.380 tCO2e balanço de carbono entre 2020 e 2022
mais de 4 mil pessoas impactadas, sendo 3.700 capacitadas e média de 400 postos de trabalho gerados ao ano
META FLORESTAL VALE 2030 – PROTEÇÃO
313.638 mil créditos de carbono (volume potencial)
Já a consultoria de gestão de propriedades rurais Provalia auxilia os integrantes do portfólio de recuperação da Meta Florestal 2030 na melhor condução dos projetos em aspectos operacionais, de gestão ou financeiros. A Palladium, implementadora líder de programas de desenvolvimento internacional, uniu-se à iniciativa para mapear negócios e organizar um portfólio com oportunidades de investimentos de impacto, construir um plano de negócios para a iniciativa e apoiar na gestão da Meta.
A Reserva Natural Vale (RNV) e o Instituto Tecnológico Vale (ITV) oferecem experiências em recuperação e gestão de áreas e pesquisas nos âmbitos sociais e ambientais, contribuindo como organizações consultivas dentro do arranjo. Em 2022, os negócios apoiados tiveram a oportunidade de ser acelerados por meio do Programa de Aceleração de Negócios de Impacto, executado pela Fundação Certi e pela Darwin Startups. Com o objetivo de retratar o estágio de cada empreendimento, buscando entender os principais pontos fortes, riscos e gargalos, o processo teve início com um Diagnóstico de Negócios para Aceleração (DNA).
A partir da identificação dessas necessidades, uma análise dos negócios para definir as ações estratégicas e apoiar a construção dos planos de aceleração foi feita, permitindo que cada negócio pudesse trilhar um caminho específico com base em suas necessidades. O programa foi composto por três sprints, totalizando seis meses de duração. Contou com mentorias de especialistas, workshops, acompanhamento psicológico e palestras temáticas. Ao longo do processo, todos os negócios tiveram oportunidades de estabelecer conexões, bem como de desenvolver habilidades de liderança.
Negócios como Belterra e Caaporã, por exemplo, foram pioneiros na implementação de sistemas sustentáveis para recuperação de áreas nessa escala, combinando diferentes espécies com culturas com potencial de mercado crescente como o cacau, ou com produção animal. As duas empresas foram apoiadas para iniciar em 2019 um projeto-piloto para o plantio de 1.053 hectares para recuperar áreas com esses sistemas produtivos. No ano seguinte, juntaram-se ao trabalho a INOCAS (plantio consorciado de macaúba), a Regenera (sistemas agroflorestais, silvipastoris e silvicultura) e a Bioenergia (fruticultura consorciada). De 2020 a 2022, foram recuperados 7.393 hectares.
Em 2023, por meio do Mapeamento de Negócios Agroflorestais, a Cooperativa Agrícola Mista de Tomé-Açu (CAMTA), Courageous Land, Futuro Florestal e a Radix Investimentos, em formato de PoC, foram integradas à iniciativa. Cada uma dessas empresas traz soluções distintas para a recuperação de áreas, desde sistemas agroflorestais complexos até a criação de títulos florestais destinados ao financiamento da atividade. O êxito dessas iniciativas é crucial para determinar quais delas estão prontas para ampliar suas operações e contribuir em maior escala para as metas traçadas.
Além do financiamento para implantação das áreas e da aceleração dos negócios por meio de suporte de parceiros, o Fundo Vale buscou estabelecer parcerias com outros atores do ecossistema como o CocoaAction (Word Cocoa Foundation) para fortalecimento de cadeias produtivas, apoiando a criação de iniciativas como Curso EAD de Sistema Sustentável de cacau (Senar), treinamentos de trabalho seguro, práticas de viveiro e sistemas sustentáveis de cacau (Imaflora).
AO ACELERAR E FORTALECER O ECOSSISTEMA de negócios de impacto que trabalham na recuperação de áreas, o Fundo Vale contribui diretamente para o cumprimento de metas estabelecidas pelo governo brasileiro. Uma delas está prevista no Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que abrange 12 milhões de hectares de paisagens e florestas até 2030. O Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono, por sua vez, envolve 15 milhões de hectares no mesmo período, incluindo o incremento de 5 milhões de hectares do sistema Integração Lavoura Pecuária e Florestas (ILPF).
Nas ações de proteção, a Meta Florestal 2030 é conduzida, até o momento, por parcerias firmadas entre a Reserva Natural Vale e quatro Unidades de Conservação (UCs), áreas estabelecidas pelo governo federal com o objetivo de preservar e promover o uso sustentável e a recuperação dos ambientes naturais. São 52 mil hectares, distribuídos em três UCs no Espírito Santo (Floresta Nacional de Goytacazes, Reserva Biológica de Duas Bocas e Monumento Natural Serra das Torres) e uma no Rio de Janeiro (Parque Estadual Cunhambebe).
Como parte de uma ação conjunta com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foram também implantadas iniciativas de conservação em mais 62 mil hectares de Mata Atlântica localizados em três estados brasileiros, conduzidos pelas reservas biológicas de Mata Escura (MG), Augusto Ruschi (ES) e Rebio União (RJ). Em 2022, um projeto de remuneração daqueles que mantêm suas florestas em pé, sem desmatar, e com isso evitam as emissões de gases de efeito estufa associadas ao desmatamento e degradação florestal, promovendo atividades de conservação e manejo sustentável das florestas (REDD+), passou a integrar esse conjunto, acrescentando ao total a proteção de cerca de 50 mil hectares.
Com os resultados já alcançados, a Meta Florestal 2030 da Vale torna evidente o potencial de parcerias entre empresas, pesquisadores e o setor público, cooperações que conciliam a conservação e a recuperação de áreas com o desenvolvimento socioeconômico. Ao longo dos próximos anos, a expectativa é que essa abordagem inovadora não apenas alcance as metas estabelecidas, mas também possa servir de modelo para outras iniciativas, contribuindo para a construção de um futuro mais sustentável para o Brasil e o mundo. O
O fim do desmatamento e a promoção da restauração florestal se apresentam como soluções centrais e necessárias para reverter os riscos de vermos a maior floresta tropical do mundo se degradar tão severamente a ponto de perder sua estrutura ecológica e funcional e por isso deixar de ser floresta. No entanto, essas soluções não podem ser entendidas de forma isolada e desconectada de outras agendas, como o desenvolvimento social e econômico justos, a geração de emprego e renda para as comunidades locais, a promoção da qualidade de vida e a agregação de valor via as cadeias produtivas
Por Rodrigo Mauro Freire
O BRASIL SE PREPARA PARA RECEBER A TRIGÉSIMA Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a COP 30, em novembro de 2025, em Belém do Pará, na Amazônia brasileira. Neste momento, o alerta que os principais cientistas climáticos do mundo têm feito de forma cada vez mais intensa fica ainda mais contundente: a janela de tempo para a humanidade redirecionar sua forma de consumir e desenvolver está se fechando. Isso porque, em termos planetários, seis dos nove limites que mantêm a estabilidade e a resiliência terrestre já foram ultrapassados, entre os quais as mudanças climáticas, a integridade da biosfera (perda da biodiversidade e a extinção de espécies)e a mudança de uso do solo (desmatamento).1
O maior risco à segurança e à permanência da vida para a humanidade está na mudança do clima e na perda da biodiversidade. Segundo os cientistas, a perda da biodiversidade atingiu proporções tão graves que estaríamos vivenciando a sexta extinção em massa da vida na Terra. Desta vez a causa não é um meteoro gigante ou a erupção de grandes vulcões, como ocorreu milhões de anos atrás e matou os dinossauros. Agora temos uma única espécie responsável pela ameaça de todas as outras – o ser humano, que tem degradado praticamente todos os ecossistemas e poluído os solos, as águas e o ar da nossa casa comum por causa da sua miopia desenvolvimentista e ganância de curto prazo. A COP 16 da Biodiversidade, que acontece na Colômbia no fim de outubro
de 2024, tem como objetivo planejar a execução das estratégias do Marco Legal de Biodiversidade, definido em 2022.
A maior floresta tropical do mundo é um tema essencial quando se pensa nos fatores de estabilidade do planeta. Além de deter cerca de 20% da biodiversidade terrestre e a mesma proporção de volume de água doce da Terra, a Amazônia é um dos principais biomas que garantem a estabilidade climática da nossa biosfera.
Na mesma ordem de grandeza de seus ativos e serviços ecossistêmicos, estão os problemas que a afligem, como as maiores taxas de desmatamento e de incêndios florestais do mundo e a grande exploração ilegal de madeira e de minérios, como o ouro. Nas últimas cinco décadas, cerca de 20% da Amazônia já foram derrubados (mais de 70 milhões de hectares segundo o MapBiomas), em decorrência de políticas públicas desconectadas das necessidades das populações locais, baseadas na ocupação desordenada do território e em modelos de exploração dos recursos naturais, como a pecuária bovina de corte de baixa tecnologia, diretamente associada a mais 80% do desmatamento no território.2
Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC),3 se o desmatamento atingir cerca de 25% do bioma, a Amazônia entrará em um ponto de não retorno ecológico e climático. A partir desse ponto, conhecido como “tipping point”, haverá um processo de transição da estrutura florestal para um contexto progressivo de um ecossistema não florestal, assemelhado ao cerrado. Esse cenário, além de irreversível, teria consequências devastadoras para o equilíbrio climático global, agravando as crises de biodiversidade e colocando em risco as populações locais que dependem diretamente dos recursos naturais.
Nesse contexto, o fim do desmatamento e a promoção da restauração florestal se apresentam como soluções centrais e necessárias para reverter esses riscos da maior floresta tropical do mundo. No entanto, essas soluções não podem ser entendidas de forma isolada e desconectada de outras agendas tão importantes como o desenvolvimento social e econômico justo, a geração de emprego e renda para as comunidades locais, a promoção da qualidade de vida e a agregação de valor via as cadeias produtivas.
Segundo análises do governo federal brasileiro, apresentadas no texto em revisão do Plano Nacional de Recomposição da Vegetação Nativa (Planaveg 2.0), a maior parte dos passivos ambientais a serem restaurados no Brasil está na Amazônia (algo em torno de 14 milhões de hectares dos 24 milhões necessários de serem recompostos).
PROMOÇÃO DO BEM-ESTAR-SOCIAL
ARESTAURAÇÃO DA PAISAGEM FLORESTAL desempenha um papel crucial na recuperação dos serviços ecossistêmicos da maior floresta tropical do planeta e pode afastá-la do ponto de não retorno climático, principalmente pela perspectiva de viabilizar o sequestro e estoque de 16 gigatoneladas de carbono da atmosfera.4
Além disso, as soluções baseadas na restauração florestal também podem alavancar cadeias produtivas sustentáveis, como os sistemas agroflorestais, silvicultura de espécies nativas, a agricultura regenerativa, a pecuária de baixo carbono e o manejo de pro-
dutos florestais madeireiros e não madeireiros que aliam conservação ambiental com a geração de riquezas. Essas atividades de restauração têm o potencial de gerar 2,5 milhões de empregos até 2030 no Brasil,5 sendo que uma parcela significativa disso deve ocorrer na Amazônia.
A cadeia da restauração amazônica precisará se integrar fortemente à cadeia da pecuária extensiva de gado de corte, ofertando soluções de baixo custo e modelos de retorno financeiro positivos para o setor, que possui a grande maior parte dos passivos ambientais a serem restaurados, quando se aplica o Código Florestal (lei de proteção da vegetação nativa brasileira).
No entanto, quando se olha para o viés social e de equidade, a agenda da restauração amazônica precisa gerar soluções direcionadas ao bem-estar social dos povos indígenas e comunidades tradicionais que tiveram seus territórios e recursos naturais degradados.
Os desafios para o engajamento dos atores que possuem passivos ambientais e áreas desagradadas a serem recompostos (produtores rurais, agricultores familiares e comunidades tradicionais) são muitos e bastante significativos. Isso porque a adequação ambiental de imóveis rurais e a restauração ainda são percebidos muitas vezes apenas como obrigação legal, algo custoso e que não gera benefícios econômicos e sociais tão concretos. Essas são percepções que precisam ser mudadas, via estratégias de sensibilização social e demonstração prática em campo que a restauração pode ser de baixo custo e/ou permitem retorno financeiro bastante interessante via arranjos produtivos, como comercialização de sementes nativas, mudas, produtos agroflorestais madeireiros e não madeireiros, créditos de carbono, pagamentos por serviços ambientais, entre outros.
Além disso, ainda vivemos no Brasil uma ideologização e polarização política, relacionada ao meio ambiente e desenvolvimento sustentável, principalmente junto à parte do setor agropecuário. O Congresso, em destaque, tem sido palco de propostas de leis e normas focadas no ataque e desconstrução das políticas ambientais e de sustentabilidade. Se esse contexto não mudar, será muito difícil criar condições para que o desenvolvimento coerente que facilite a concretização da cadeia da restauração na escala e tempo que precisamos.
A cadeia produtiva da restauração ainda está em fase inicial de estruturação na região e enfrenta diversas barreiras e desafios para o seu desenvolvimento, como, por exemplo, a) elevado grau de desconhecimento dos produtores rurais e comunidades locais a respeito dos benefícios dos serviços ecossistêmicos providos pela floresta e a importância de recomposição de paisagens degradadas; b) o não cumprimento efetivo de políticas públicas
O AUTOR
RODRIGO MAURO FREIRE é biólogo formado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e mestre em zoologia. Foi Chefe do Departamento de Florestas e Serviços Ambientais do Ceclima, do Estado do Amazonas. Atualmente é líder de áreas privadas da The Nature Conservancy (TNC) do Brasil e atua como secretário executivo pela Aliança pela Restauração na Amazônia, desde 2022.
Na visão estratégica da Aliança pela Restauração na Amazônia, a restauração precisa estar intimamente vinculada à conservação da floresta em pé e conectada à promoção do desenvolvimento local e melhoria dos índices sociais e econômicos, por meio de cadeias produtivas florestais e seus serviços ecossistêmicos vinculados
estruturantes como os Programas de Regularização Ambiental (PRAs) de responsabilidade dos estados e que orientam os produtores rurais na adequação ambiental de seus imóveis rurais; c) recursos de investimentos ainda distantes da necessidade real para a restauração de qualidade e em larga escala; e d) poucas iniciativas maduras e estruturadas em seus modelos de negócio, já que a cadeia da restauração ainda está em fase inicial de operação e de reconhecimento da sua importância.
AS REDES E COLETIVOS DA RESTAURAÇÃO – como a Aliança pela Restauração na Amazônia, a Sociedade Brasileira de Restauração ecológica (Sobre), o Pacto da Mata Atlântica, entre outras – têm se destacado nos últimos 15 anos no Brasil, mostrando uma capacidade de altíssimo valor e relevância, principalmente em relação ao engajamento dos diversos atores e tomadores de decisões; facilitação na integração de trabalho entre diferentes setores (público, privado, instituições financeiras, academia e sociedade civil organizada); recomendação estratégica de políticas públicas; orientação de linhas de pesquisas e desenvolvimento, assim como direcionamento de mecanismos de implementação via programas e projetos de restauração.
A Aliança pela Restauração na Amazônia, coletivo de múltiplos atores, criada em 2017, conta atualmente com mais de 130 membros e tem o objetivo de promover a recomposição florestal em larga escala e de qualidade no bioma brasileiro. Em sua visão estratégica construída em 2021, destaca que a restauração precisa estar intimamente vinculada à conservação da floresta em pé, assim como conectada à promoção do desenvolvimento local e melhoria dos índices sociais e econômicos, por meio de cadeias produtivas florestais e seus serviços ecossistêmicos vinculados. A Aliança reconhece que a temática de restauração ainda é recente na Amazônia e muito ainda se tem o que fazer para popularizar essa solução e desenvolver suas cadeias produtivas. Nesse sentido, esse coletivo tem produzido e divulgado muitas análises e recomendações estratégicas para tomadores de decisão dos setores público, privado, instituições de fomento e pesquisa, assim como junto a agentes financeiros.
Para os próximos anos, a Aliança deseja avançar em importantes ações estruturantes para a consolidação de um ecossistema de atores da restauração na Amazônia brasileira. Dentre os principais destaques, vale mencionar: o programa de treinamento em capacitação em restauração direcionados a centenas de produtores rurais, povos indígenas, comunidades tradicionais, técnicos e gestores públicos; a publicação de lições aprendidas
do plano de restauração do estado do Pará, em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente desse estado, com objetivo de estimular outros atores públicos no desenvolvimento de seus planos; a publicação de casos e negócios de sucesso da restauração, com a intenção de dar visibilidade ao empreendedorismo de impacto, oportunidades de captação de investimentos e acesso aos mercados de interesse; e, por fim, o coletivo também tem como meta facilitar a discussão e promover orientações estratégicas em como o Brasil pode desenvolver melhor suas cadeias florestais de espécies amazônicas, via silvicultura de espécies nativas e arranjos agroflorestais.
A Aliança se propõe, cada vez mais, a ser uma instância de integração de soluções inovadoras multiatores e de orientação estratégica para importantes iniciativas, programas e projetos direcionados à restauração florestal na Amazônia brasileira.
A restauração florestal é um caminho necessário de se concretizar para mitigar os impactos das mudanças climáticas, reduzir a crise de perda de biodiversidade e promover o desenvolvimento sustentável de base florestal na Amazônia. No entanto, a implementação em larga escala dessa estratégia requer a superação de desafios como o investimento financeiro apropriado, a implementação efetiva das políticas públicas existentes, a capacitação técnica de profissionais e a construção de um ecossistema de empreendedorismo que auxilie no desenvolvimento de novos negócios orientado à bioeconomia da restauração. As Redes e Coletivos como a Aliança pela Restauração na Amazônia desempenham um papel central na promoção dessas agendas, articulando esforços coletivos e orientando a construção de um ecossistema de atores em prol da restauração com inclusão e justiça social.
A restauração não é apenas uma solução à crise ambiental: é parte integrante e fundamental do desenvolvimento econômico e social na Amazônia brasileira, garantindo o bem-estar junto às populações locais, geração emprego, renda e o devido protagonismo das populações amazônidas em suas decisões políticas, tecnológicas e culturais. O
1 Richardson, J., Steffen W., Lucht, W., Bendtsen, J., Cornell, S.E., et al. 2023. Earth beyond six of nine Planetary Boundaries. Science Advances, 9, 37.
2 https://brasil.mapbiomas.org/wp-content/uploads/sites/4/2024/09/MBIInfograficos-Amazonia-9.0-BR-scaled.jpg
3 Ihttps://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/ relatorios-do-ipcc/arquivos/pdf/srcl-port-web.pdf
4 Carbono e o Destino da Amazõnia - Amazõnia 2030 e Climate Policy Initiative 2023 (https://amazonia2030.org.br/carbono-e-o-destino-da-amazonia/)
5 https://www.pactomataatlantica.org.br/wp-content/uploads/2022/06/Peopleand-Nature-2022-Brancalion-Ecosystem-restoration-job-creation-potential-inBrazil.pdf
A restauração é fundamental mas para alcançar uma mudança transformacional duradoura, é necessário ampliar a visão e tratá-la como um processo integrado dentro de sistemas socioecológicos mais amplos
Por Mariana Oliveira
ATENDER ÀS NECESSIDADES SOCIAIS, estabelecer novas relações e formar colaborações são pontos-chave para criar soluções que promovam tanto a recuperação ambiental quanto o fortalecimento das comunidades locais. Tal processo está em curso na Amazônia, expandindo o acesso a recursos e oportunidades e impulsionando mudanças sistêmicas. Cabe aos diferentes setores integrar essas inovações, desenvolvendo abordagens que atendam a diversas necessidades de investimento e que ofereçam benefícios compartilhados.
A promoção de ações e incentivos para restauração de áreas degradadas não é tema novo para a sociedade. Existem relatos da utilização de diferentes abordagens e técnicas sendo utilizadas no Brasil que remontam ao início da colonização no país1 e que demonstram a intencionalidade por parte do proprietário da terra, da comunidade ou mesmo do governo para que ela aconteça.
Na Amazônia, povos originários já desenvolviam técnicas para conservar e enriquecer a floresta para produção de espécies alimentícias, aumento da disponibilidade de produtos madeireiros e não madeireiros para sua sobrevivência.
Nesse sentido, é importante reconhecer que as diferentes abordagens, técnicas, modelos e o desenvolvimento dessa agenda de uma forma mais estruturada passam por avanços tecnológicos e, dada sua importância, por uma compreensão das ciências sociais e ecológicas.
O Brasil ocupa um papel de destaque em diversos acordos e compromissos globais das agendas climáticas e de conservação, ecom metas de restauração já desenhadas, bem como planos para garantir avanços e assim alcançar os objetivos estabelecidos.2 Além disso, o país apresenta, historicamente, sofisticadas políticas de conservação
MARIANA OLIVEIRA é gerente de florestas do WRI Brasil. Graduada em geografia, tem pós-graduação em gestão ambiental pela Universidade de São Paulo (USP) e certificação em paisagens de florestas tropicais pela Universidade de Yale. É mestranda em gestão de recursos naturais e desenvolvimento local na Amazônia na Universidade Federal do Pará (UFPA).
e relativo sucesso na redução das taxas de desmatamento na Amazônia no passado recente.3 Por outro lado, a Amazônia Legal e sua economia atual ainda é deficitária nas transações comerciais e excedente em emissões, com transações altamente intensivas em carbono.4
Evitar a perda de florestas é a prioridade absoluta. Porém ações que busquem ampliar e acelerar a restauração são necessárias. Seja sob a perspectiva das populações locais, como parte do reconhecimento de seus meios de vida e para a melhoria da produtividade das propriedades e geração de renda, seja sob a égide econômica, viabilizando mercado para diferentes cadeias produtivas e valorizando ativos ambientais do país. Ou ainda sob a ótica climática, na qual o país busca neutralidade de suas emissões, além do cumprimento Lei de Proteção da Vegetação Nativa (LPVN) (Lei 12.651/2012). Ou seja, razões para restaurar não faltam. Mas e as motivações?
Na Amazônia, temos o exemplo do caso do estado do Pará, que instituiu a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas (PEMC) (Lei 9048/2020), seguida do Plano Estadual Amazônia Agora (PEAA) e do Plano de Recuperação da Vegetação Nativa (PRVN-PA) para apoiar na mobilização de esforços para implementação da restauração em larga escala.5 Nele, considerando o processo de desenvolvimento, ficou demonstrado que uma das formas de motivar a agenda no estado é também aumentar a participação social na agenda de recuperação da vegetação nativa, garantindo a inclusão social, ampliando esforços de comunicação com foco em agricultores, população urbana, credores, líderes de opinião, tomadores de decisão e Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais (PIQCTs). Esse é também um espaço para impulsionar a inovação social.
As experiências da Aliança pela Restauração da Amazônia já demonstram que essa mobilização de esforços e a alavancagem de recursos para a restauração é essencial para promover avanços.6 O Brasil tem políticas públicas que obrigam e incentivam a restauração, além de compromissos e metas assumidos nacionalmente. Explorar suas conexões para motivar e sustentar estruturas de governança para implementação são dimensões sociais cruciais.
A restauração é fundamental para a recuperação e sustentação dos sistemas socioecológicos. Porém, para alcançar uma mudança transformacional duradoura é necessário ampliar a visão, tratando a restauração não apenas como projeto isolado, mas também como um processo integrado dentro de sistemas socioecológicos mais amplos.7
E então chegamos no ponto: os atores querem restaurar. É preciso restaurar. Recursos (financeiros, humanos, biológicos, entre outros) são necessários. Para que as ações de restauração sejam efetivas, é fundamental garantir a proteção das áreas restauradas contra incêndios e fatores degradantes, além de implementar um monitoramento eficaz que assegure o sucesso das iniciativas. A conexão entre restauração e inovação social se torna essencial para criar soluções que promovam tanto a recuperação ambiental quanto o fortalecimento das comunidades locais.
Atender às necessidades sociais, estabelecer novas relações e formar colaborações torna-se chave nesse processo. O processo está em curso, impulsionando mudanças sistêmicas. Cabe aos diferentes setores integrar essas inovações, desenvolvendo abordagens que atendam a diversas necessidades de investimento e que ofereçam benefícios compartilhados.
O mapeamento de paisagem social da restauração é um esforço importante para reconhecer, quantificar e qualificar a extensão da oportunidade de inovação social no âmbito da restauração. Esse mapeamento, prestes a ser lançado pela Aliança pela Restauração da Amazônia, emerge como uma ferramenta essencial para compreender e abordar as complexas interações entre os aspectos sociais, políticos, econômicos, ambientais e culturais. Permite também compreender o número de organizações envolvidas e trazer contribuições para lidar com a densidade de suas conexões.
Ao entender os diferentes atores envolvidos na restauração, suas redes de colaboração e os desafios enfrentados, será possível identificar oportunidades para fortalecer a governança e promover mudanças estruturais para o desenvolvimento da região.
Compartilhar conhecimento, habilidades e valores é fundamental para fomentar a inovação e a resolução colaborativa de problemas. Um exemplo é o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis,8 do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que exemplifica como esforços coordenados podem gerar impactos significativos – inclusive na Amazônia.
Ao combinar as demandas, vivência e a luta das famílias rurais com expertise técnica e científica com diferentes organizações, exemplo que acontece na região metropolitana de Belém, trabalham em conjunto para restaurar florestas degradadas e promover a produção de alimentos saudáveis. Essa abordagem não apenas fortalece a capacidade coletiva, mas também fomenta a criação de um modelo replicável que integra, por exemplo, a regeneração natural assistida e os sistemas agroflorestais, ampliando o alcance das iniciativas de restauração e beneficiando diretamente as comunidades envolvidas.
A Rede de Sementes do Portal da Amazônia e a Associação Rede de Sementes do Xingu são exemplos de organizações envolvidas na coleta de sementes e restauração ecológica na Amazônia brasileira. Elas concentram-se em atividades como a coleta, distribuição e uso de sementes nativas para projetos de restauração, promovendo a colaboração entre comunidades, ONGs e outros atores.
Estudo lançado recentemente9 mostra que essas redes são instrumento eficiente para conectar organizações de múltiplos interesses ligados às sementes nativas com demandas sociais e o conhecimento ecológico de comunidades tradicionais e grupos marginalizados. O aprendizado social e a ação coletiva – considerado inovação social – promovidos por essas redes têm estimulado um intenso fluxo de troca de conhecimento, cooperação para ações políticas e execução de projetos, ativando a capacidade de agência local.
A conexão da agenda da restauração com a bioeconomia também não pode ficar de fora dessa abordagem, considerando que ela deve se ajustar à biocapacidade do bioma, desenvolvendo-se a partir de atividades econômicas que não quebrem os complexos equilíbrios ecológicos que garantem a saúde da floresta e dos rios e unam tradição e inovação.10 E, portanto, da cadeia do açaí ao cacau, passando pela andiroba, uxi ou qualquer outro produto da biodiversidade, assegurar o protagonismo dos arranjos locais, ao menos na produção e escoamento da matéria-prima, garantindo a alta capacidade de gerar empregos e renda, é chave para investidores interessados na Amazônia.
Vale dizer que a inovação não vem só vinculada a produtos, mas também a processos e técnicas. Os esforços recentes de encorajar a adoção e o incentivo da regeneração natural assistida como abordagem inovadora para os proprietários de terras podem ser chave na escalagem da restauração e no engajamento dos diferentes setores.
É conhecido que a taxa de adoção de uma inovação, que é o caso da restauração, está ligada, no geral, à compatibilidade com os valores, convicções e experiências passadas de indivíduos no âmbito do sistema social.11 Que tal trabalhar para fornecer contribuições e direcionamentos práticos para a implementação de políticas e programas mais eficazes, com potencial para impactar positivamente a agenda da restauração na Amazônia e contribuir para os objetivos de sustentabilidade ambiental e socioeconômica do bioma e sua população? O
1 Hanson, C. et al. The Restoration Diagnostic: A Method for Developing Forest Landscape Restoration Strategies by Rapidly Assessing the Status of Key Success Factors. p. 96, 2015. https://www.wribrasil.org.br/publicacoes/diagnostico-darestauracao.
2 Adams, Cristina et al. Governança da restauração florestal da paisagem no Brasil: desafios e oportunidades. Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 58, p. 450-73, 2021.
3 Pinto, L. F. G. et al. Governance lessons from the Atlantic Forest to the conservation of the Amazon. Perspectives in Ecology and Conservation, v. 21, n. 1, p. 1-5, 2023.
4 Nobre, C. A. et al. (2023) Nova Economia da Amazônia. São Paulo: WRI Brasil. Relatório. Disponível em: <www.wribrasil.org. br/nova-economia-da-amazonia>.
5 Pará. Plano de Recuperação da Vegetação Nativa do Estado do Pará (PRVN-PA). –Belém: SEMAS, 2023. Disponível em: < https://semas.pa.gov.br/prvn/upload/pdf/ relatorio-completo-PRVN-versao03.pdf>.
6 Aliança pela Restauração na Amazônia. Panorama e Caminhos para a Restauração de Paisagens Florestais na Amazônia. Position paper: 16p. 2020. ISBN 97865-00-12760-7. Disponível em: < https://aliancaamazonia.org.br/wp-content/ uploads/2020/12/PAPER_ALIANCA_2020_01.pdf>.
7 Tedesco, A. M. et al. Beyond ecology: ecosystem restoration as a process for socialecological transformation. Trends in Ecology & Evolution, v. 38, n. 7, p. 643-653, 2023.
8 https://mst.org.br/especiais/plantar-arvores-produzir-alimentos-saudaveis/
9 Padovezi Aurelio et al. Native seed collector networks in Brazil: Sowing social innovations for transformative change. People and Nature, 2024.
10 Costa, F. A. et al. (2022). Uma bioeconomia inovadora para a Amazônia: conceitos, limites e tendências para uma definição apropriada ao bioma floresta tropical. São Paulo: WRI Brasil. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/publicacoes/ umabioeconomia-inovadora-para-amazoniaconceitos-limites-e-tendencias-para-uma
11 Rogers, E. M. Diffusion of Innovations. London: SAGE Publications Ltd., ed. 5, 2003.
As conexões entre conhecimentos ancestrais, tradicionais e acadêmicos é cada vez mais essencial não apenas para o desenvolvimento de inovações, mas também para promover soluções que acelerem a transição socioeconômica na Amazônia. Essa transição deve ter como princípio central o fortalecimento dos modos de vida e do bem-viver das populações, além de garantir seu protagonismo no desenho e implementação de arranjos biosocioeconômicos enraizados nos territórios. Com essa convicção, a iniciativa Saberes Sociobio defende a criação de espaços conceituais, metodológicos e físicos que permitam o surgimento de uma ciência equitativa e inovadora, que dialogue de forma horizontal com os saberes tradicionais
Por André Baniwa, Floriana Breyer, Luciana Villa Nova, Luiz Ricardo Marinello e Simone Athayde Coautores e pesquisadores da Iniciativa Saberes Sociobio: Chicoepab Suruí Dias, Danilo Nelson Santos Miranda, Dionatas Ulises de Oliveira Meneguetti, Elizângela da Silva Costa, Elizeth Marques de Souza, Jéssica Martins de Albuquerque, Josiane dos Santos Carmo, Lúcia Tereza Ribeiro do Rosário, Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves, Miqueias Santos de Souza e Ruth Helena Cristo Almeida
AS SOCIOBIOECONOMIAS AMAZÔNICAS representam uma oportunidade única para os grandes desafios de conservação, desenvolvimento e bem-estar social e econômico de povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais, e de toda a população amazônica. No momento em que as mudanças climáticas estão afetando todos os seres no planeta, alterando modos de vida, em especial de grupos mais vulneráveis, é muito importante “buscar soluções inovadoras, uma vez que não existe hoje uma economia em escala global, ou mesmo amazônica ou nacional, que valorize os produtos da floresta”, como afirma o climatologista Carlos Nobre.1
O impacto econômico direto de produtos, serviços e processos de base biológica é estimado em cerca de US$ 4 trilhões por ano globalmente nos próximos dez anos.2 De que forma, porém, a Amazônia e suas populações locais estarão inseridas nesses mercados?
O texto discute a importância da integração de saberes tradicionais, indígenas e acadêmicos na construção de uma sociobioeconomia sustentável e justa na Amazônia, enfatizando o protagonismo dos povos indígenas, populações quilombolas e tradicionais. A iniciativa Saberes Sociobio promove o diálogo equitativo entre diferentes tipos de conhecimento para gerar soluções socioeconômicas inclusivas, respeitando os direitos dos povos tradicionais e valorizando suas práticas culturais. O artigo também destaca a necessidade de uma governança participativa que envolva esses povos na criação de soluções para o futuro da Amazônia.
A integração de saberes ancestrais com o conhecimento científico é fundamental para desenvolver soluções sustentáveis que respeitem a diversidade cultural e ecológica, ao mesmo tempo que promovem justiça social. A sociobioeconomia oferece uma oportunidade de repensar modelos econômicos predatórios, mas sem um diálogo equitativo e inclusivo com os povos indígenas e comunidades tradicionais, corremos o risco de perpetuar práticas exploratórias. Portanto, valorizar a troca de saberes é essencial para criar um futuro mais sustentável e justo, tanto para a Amazônia quanto para o planeta.
Modelos de uma economia predatória, perpetuados ao longo de muitas décadas de ocupação do território,3 são um grande desafio à promoção de uma economia baseada no potencial da riqueza da biodiversidade e dos saberes locais amazônicos. Algumas estratégias de bioeconomia baseadas na biotecnologia e na produção de bioinsumos vêm sendo desenvolvidas por meio de lógicas e práticas convencionais de mercado, comprometendo os direitos e o bem-estar de povos indígenas, comunidades afrodescendentes e outras populações locais.4 Diante desse cenário, é fundamental adotar modelos de bioeconomia ecológica, assim como um olhar mais sistêmico para a bioeconomia. Essas lentes revelariam processos com maior integração de parâmetros de produção sustentável, como a otimização de recursos e energia, a promoção de produtos e serviços gerados por comunidades locais, práticas agrícolas sem monoculturas ou degradação do solo e a garantia dos serviços ecossistêmicos, como estoques de carbono, fluxos de água etc., essenciais para a manutenção da vida de maneira geral.5/6 Nestes modelos, formas inovadoras de produção são identificadas para conciliar uso do solo e conservação da biodiversidade.
Sabemos que modos de vida locais, dinâmicas rurais-urbanas e identidades socioculturais resultam de intrincadas conexões e fluxos socioecológicos que geram oportunidades de valorização e participação social de povos e comunidades tradicionais, produtores familiares e empreendedores rurais e agroflorestais.7/8/9 A “economia da sociobiodiversidade” ou a sociobioeconomia é uma proposta de potencializar as vertentes econômicas desses povos, com base em sua relação com a natureza, respeito e interação sociocultural com os ecossistemas e a biodiversidade, valorizando as suas visões de mundo, diversidade linguística, organização social e estratégias próprias de produção e reprodução.10
A profusão da chamada nova bioeconomia corre o risco de se tornar uma forma de “greenwashing” para práticas de mercado predatórias. Um exemplo disso pode ser observado nos mercados de carbono, onde projetos de comercialização de créditos muitas
OS AUTORES
vezes não consideram os direitos das comunidades locais de modo adequado. Josiane dos Santos Carmo, quilombola da região de Oriximiná, no Pará, considera preocupante a falta de informação sobre esse mercado nos territórios. Ela destaca a necessidade urgente de encontrar formas de comunicação e linguagem adequada para informar as comunidades e chama a atenção para o fato de que essa é uma oportunidade valiosa para a academia contribuir com os territórios. Trata-se, afinal, de projetos que podem resultar em deslocamento forçado, perda de acesso a recursos naturais e outras violações de direitos humanos.11 Por tudo isso, as iniciativas de bioeconomia devem ser equitativas, transparentes, e respeitar os direitos das populações tradicionais. A complexidade da questão demanda uma imersão, além do reconhecimento da pluralidade das sociobioeconomias amazônicas.
As populações tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que possuem formas próprias de organização social e que utilizam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, conforme definição no Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. O decreto institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT).
Discussões recentes no âmbito de organizações indígenas, quilombolas e de outras populações tradicionais, em comunidades acadêmicas, novas iniciativas, fóruns e eventos, inclusive pan-amazônicos, têm levantado preocupações sobre quais conhecimentos, referenciais, tecnologias e políticas devem formar os alicerces de uma bioeconomia de raiz amazônica.
A conexão de diferentes saberes ancestrais tradicionais e acadêmicos será fundamental não só para o desenvolvimento de inovações, mas também para apoiar a criação de soluções que consigam dar a celeridade necessária para a transição socioeconômica, tendo como princípio central o fortalecimento dos modos de vida e bem-viver das populações, bem como o seu protagonismo no desenho e implementação de arranjos socioeconômicos a partir dos territórios.12
ANDRÉ BANIWA é indígena, empreendedor social, formado em Gestão Ambiental. Atuou como liderança na organização da escola intercultural Baniwa e Koripako. É vice-presidente da Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI). Autor do livro Bem Viver e Viver Bem: Segundo o Povo Baniwa no Noroeste Amazônico Brasileiro. Pesquisador da Iniciativa Saberes Sociobio.
FLORIANA BREYER é especialista em tecnologias sociais e gestão de comunidades. Fundadora da consultoria Biodiversas Lab, focada na ativação de ecossistemas colaborativos. Mestre em conservação da biodiversidade e desenvolvimento sustentável e integrante da frente de Bioeconomia do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ). Coordenadora-executiva da Iniciativa Saberes Sociobio.
LUCIANA VILLA NOVA é farmacêutica, especialista em bioeconomia. Tem mestrado na área e mais de 25 anos de experiência em inovação e sustentabilidade pelo setor privado. É fundadora da empresa Mangará, onde atua como consultora independente. É membro do Comitê Diretor Científico do Painel Científico para Amazônia (SPA). Diretora-executiva da Iniciativa Saberes Sociobio.
LUIZ RICARDO MARINELLO é sócio do escritório Marinello Advogados, mestre em Direito pela PUC/SP, presidente do Conselho Científico-Tecnológico da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) e coordenador da Comissão de Estudos de Bioeconomia e Sustentabilidade daAssociação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI). Consultor jurídico da Iniciativa Saberes Sociobio.
SIMONE ATHAYDE é antropóloga ambiental, com mais de 25 anos de experiência na Amazônia, e especialista em justiça ambiental e sociobioeconomias. É membro do Comitê Diretor Científico do Painel Científico para Amazônia (SPA). Atualmente é líder de integridade em pesquisa do Instituto de Recursos Mundiais (WRI - World Resources Institute), pesquisadora do Programa Fulbright Amazônia e professora visitante da Universidade Federal do Amazonas. É diretora de ciências da Iniciativa Saberes Sociobio.
Discussões recentes no âmbito de organizações indígenas, quilombolas e de outras populações tradicionais, em comunidades acadêmicas, novas iniciativas, fóruns e eventos, inclusive pan-amazônicos, têm levantado preocupações sobre quais conhecimentos, referenciais, tecnologias e políticas devem formar os alicerces de uma bioeconomia de raiz amazônica
Foi com essas inquietações que a Saberes Sociobio surgiu. A iniciativa prevê a promoção de diálogos simétricos e descolonizadores entre diferentes sistemas de conhecimento e atores sociais a fim de cocriar abordagens e princípios para subsidiar políticas e práticas para a articulação equitativa entre conhecimentos tradicionais e acadêmicos, incluindo propostas e políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), na promoção de sociobioeconomias amazônicas. Com foco inicial na Amazônia brasileira, a Saberes Sociobio, que conta com o apoio e parceria do Instituto Tecnológico Vale – ITV, destaca a importância de criar espaços participativos conceituais, metodológicos e físicos para a emergência de uma ciência equitativa e inovadora que dialogue com os saberes tradicionais de igual para igual.
HISTORICAMENTE INCLUÍDOS EM PROCESSOS de pesquisa como “objetos de estudo” ou fontes de informação, os conhecimentos de povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais são transferidos e transformados por meio da ciência e tecnologia em produtos e serviços para a sociedade. Porém uma voz crescente desses povos vem emergindo. A inovação a partir de um novo olhar, em que os saberes e tecnologias ancestrais e seus detentores têm papel central, começa a ser cada vez mais debatida.13 Modos de vida e saberes tradicionais têm sido negligenciados em diversos projetos, nos quais são impostas soluções que desconsideram as culturas e os valores locais. Ailton Krenak, primeiro escritor indígena membro da Academia Brasileira de Letras, discute como os modelos ocidentais de desenvolvimento com frequência desconsideram as perspectivas indígenas, levando à degradação ambiental e à perda cultural. Seu trabalho enfatiza a importância da sabedoria indígena na criação de estratégias de bem-viver que consideram a reciprocidade entre humanos e natureza a partir de referenciais ancestrais: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”. 14
Além da proteção e devida valorização por tratados e regulamentações que buscam corretamente reconhecer, resguardar e valorizar esses saberes e seus povos, há uma necessidade premente de que estes sejam genuinamente incluídos nos processos de pesquisa e inovação, não como objetos de estudo, mas como
protagonistas na geração de soluções. Tais soluções apontam caminhos para o bem-viver não somente das próprias populações locais, seus territórios e modos de vida, mas também para as plantas, os animais, os rios, o clima e a humanidade.15
Um caso emblemático é a pimenta Baniwa. As mulheres do povo Baniwa, do Amazonas, fizeram uma reivindicação à Associação Indígena da Bacia do Içana (OIBI) para terem seus próprios trabalhos de geração de renda. O que as motivou foi o resultado positivo de renda obtida por meio das cestarias de arumã, trabalho exclusivo dos homens. Os projetos de produtos, cestaria e pimenta dos Baniwa atende a algumas de suas lutas, entre as quais a geração de renda para as comunidades por meio de comércio justo e solidário e valorização de produtos culturais, ambientais e sociais.
Para que projetos como esses se expandam e ampliem seu potencial de impacto, é vital conectar conhecimentos ancestrais com a ciência acadêmica promovendo um desenvolvimento endógeno, inclusivo e justo em tempos de emergência climática, insegurança alimentar e erosão de conhecimentos e práticas ancestrais da sociobiodiversidade. Também é crítico colocar a tecnologia a serviço das necessidades dos territórios e sociedades amazônicas.
Para integrar esses saberes, no entanto, é preciso enfrentar desafios significativos e complexos, como a falta de reconhecimento e valorização dos saberes tradicionais, a resistência institucional, a ausência de políticas públicas que promovam essa interação, bem como a pouca visibilidade dos modos de produção e governança das populações locais diante da lógica de mercado. Sem mencionar a apropriação da biodiversidade e conhecimentos ancestrais por atores externos e alheios às complexas realidades amazônicas.16
No contexto brasileiro, soma-se a isso o preconceito e racismo estrutural contra povos indígenas, afrodescendentes e populações ribeirinhas e extrativistas, entre outras. Desde os primórdios da colonização, a visão eurocêntrica prevalecente perpetuou a ideia de uma hierarquia cultural, colocando, por exemplo, os povos originários em uma posição de suposta inferioridade. O binômio “civilizado e selvagem” ou “civilizado e primitivo” serviu como justificativa para a subjugação sistemática dos povos originários, uma narrativa que persiste até os dias de hoje.17 O “epistemicídio” como processo instalado por séculos levou à marginalização de conhecimentos nativos: uma cultura se impôs à outra, o que resultou em uma grave desvalorização de saberes tradicionais e práticas culturais.
A falta de formação adequada para educadores e a resistência a mudanças nas práticas pedagógicas18 representam obs-
Historicamente considerados “objetos de estudo” ou fontes de informação, os conhecimentos de povos tradicionais são transferidos e transformados por meio da ciência e tecnologia em produtos e serviços para a sociedade. A inovação a partir de um novo olhar, em que os saberes e tecnologias ancestrais e seus detentores têm papel central, começa a ser cada vez mais debatida
táculo para a educação intercultural, que poderia servir como uma ponte entre esses diferentes tipos de conhecimento. Um processo semelhante aconteceu com os modelos educacionais das instituições de ciência, tecnologia e inovação, para os quais “importamos” os padrões ocidentais, sem considerar algo tão inerente e peculiar na Amazônia como a intrínseca relação dos saberes ancestrais com a natureza. Chicoepab Suruí, do povo Paiter Suruí, um dos pesquisadores da Saberes Sociobio, decidiu fazer mestrado e doutorado, para que pudesse criar as pontes necessárias e ampliar o diálogo dos conhecimentos de seu povo, que vive em Rondônia e Mato Grosso, com os conhecimentos externos. Ele enfatiza os desafios para que processos culturais dos povos indígenas estejam incluídos nas universidades e centros de pesquisa.
Não se trata aqui de discutir o que tem maior ou menor valor. Queremos sim promover formas de geração e transformação de conhecimentos de origens diferentes, acumuladas de forma empírica, prática, vivida no território, na relação intrínseca com a natureza e transmitidas de geração a geração desde tempos imemoriais. Elizangela da Silva Costa, indígena da etnia Baré, levanta uma questão importante nos diálogos da Saberes Sociobio sobre a dificuldade de registrar as práticas tradicionais: “Nosso desafio é que tudo o que o nosso povo faz está na oralidade e na prática! Precisamos rabiscar como queremos a bioeconomia sustentável”.
AINICIATIVA SABERES SOCIOBIO começou a ser idealizado em 2023 dentro do contexto dos debates e acordos pré-Cúpula Amazônica, que ocorreu em Belém no mês de agosto, unindo os líderes dos países amazônicos. Durante a Conferência Pan-Amazônica de Bioeconomia, realizada em junho do mesmo ano, representantes de povos indígenas, afro-descendentes e outras populações locais levantaram questões fundamentais sobre a invisibilidade dos saberes ancestrais e tradicionais, das ciências indígenas e quilombolas, nos processos de CT&I da sociedade ocidental. Além disso, enfatizaram a ausência das visões de povos tradicionais na construção da agenda de bioeconomia, mercados de carbono e outras “soluções”.
André Baniwa foi um dos importantes porta-vozes dessa inquietação durante as mesas de debate e preparação de documentos à Cúpula. Para ele, os povos indígenas vêm sendo cada vez mais acessados para transferência de conhecimento, com pouco e,
muitas vezes, nenhum acesso e participação nos resultados dessas pesquisas e inovações. Muito além de terem seus direitos respeitados, o líder indígena entende que poderiam também ser protagonistas criando soluções, produtos e serviços. A invisibilidade do trabalho indígena, quilombola e das comunidades tradicionais gera consequências não apenas para as próprias comunidades, mas também para a sociedade, ao não reconhecer e valorizar processos e métodos tradicionais de conservação ambiental. Como vários estudos demonstram, populações tradicionais potencialmente protegem e conservam mais efetivamente a biodiversidade.19
Líderes indígenas como André, bem como líderes de comunidades locais, têm manifestado de forma recorrente suas preocupações sobre o discurso e a agenda política da bioeconomia na Amazônia. Iniciativas como o Painel Científico para a Amazônia (SPA) e a Iniciativa Amazônia 4.0, que propõe a criação de Institutos tecnológicos de base amazônica (AmIT), por exemplo, exemplificam a necessidade da construção de princípios, processos e novos modelos para a articulação simétrica entre conhecimentos tradicionais e acadêmicos em arranjos de sociobioeconomia.20/21 No entanto, é fundamental garantir o protagonismo dos povos amazônicos nessa construção, a partir do reconhecimento da pluralidade de saberes ligados às visões de mundo, aos modos de vida e às várias sociobioeconomias existentes na Amazônia. A partir dessa inquietação, um grupo de pesquisadores articulou uma proposta. Desde o início, vislumbraram a necessidade de inovar justamente nos processos e formatos de condução desse tipo de iniciativa, em que pesquisadores amazônicos, de povos tradicionais e comunidades locais, fossem os responsáveis pelos estudos, sendo protagonistas na articulação inovadora de saberes e na construção das propostas, processos e metodologias.22 Se a memória da espécie humana é biocultural e expressa-se na diversidade de genes, línguas e saberes, essa memória vem sendo mantida pelos povos tradicionais ao longo de milênios.23 Ela guarda a sabedoria daqueles que por gerações souberam manter seus meios de vida em harmonia com a natureza. Os ecossistemas mais preservados e de maior biodiversidade do planeta24 estão justamente nas áreas ocupadas tradicionalmente por essas comunidades.
O propósito de realizar estudos que tragam propostas práticas para a evolução dos processos e estruturas de inovação, mais inclusivos e equitativos, em ações ligadas à promoção da sociobioeconomia na Amazônia,25 é o que alimenta a iniciativa Saberes Sociobio. Seus integrantes entendem a necessidade de apoiar processos de diálogo, colaboração e articulação de conhecimen-
tos tradicionais e acadêmicos no fomento a processos de CT&I na Amazônia brasileira. E valorizam a memória e a perpetuação dos saberes desses povos como algo fundamental para enfrentar os desafios globais.
O relato de Danilo Nelson Santos Miranda, afrodescentende e quilombola residente da da comunidade de Santana do Capim, no Pará, e membro do Círculo de Conhecimento (ver adiante), é emblemático. Inspirando-se em saberes tradicionais de comunidades da Nigéria, a comunidade inovou nos modos de produção da mandioca ao resgatar a solidariedade comunitária e promover a produção coletiva de 52 famílias, sem perder a essência dos seus modos tradicionais de produção.
Depois de inaugurar a iniciativa com um mapeamento de lideranças relacionadas com o tema e um levantamento de demandas, a Saberes Sociobio elaborou uma chamada aberta para pesquisadores, oriundos de saberes tradicionais e acadêmicos. O desafio geracional e a questão de gênero foram critérios cruciais considerados para o futuro da sociobioeconomia. Contribuindo com a discussão intergeracional, Elizeth Marques de Souza, ribeirinha, integrante da iniciativa, destaca a mulher como elo estruturante das relações de cuidado e transmissão de conhecimentos entre gerações.
COMO CONSTRUIR A EQUIDADE DE SABERES?
ENFRENTAR OS DESAFIOS DE PROCESSOS estruturais normalmente excludentes dos saberes tradicionais é parte da jornada da Saberes Sociobio. A própria formação do Círculo do Conhecimento, por exemplo, se fez valer de alguns critérios aplicados aos candidatos, como, por exemplo, engajamento e atuação no tema de integração e articulação de saberes para economia da sociobiodiversidade; atuação em distintos elos do processo de CT&I da sociobioeconomia, bem como geração de conhecimento de saberes locais, geração de produtos e serviços da sociobio, sistemas e metodologias de integração de saberes e diversidade territorial e geográfica (seja de origem ou atuação). A primeira chamada da iniciativa recebeu 134 inscrições de pesquisadores e após entrevistas foram selecionados 12 representantes: três de comunidades indígenas, três de quilombolas e afrodescendentes, três ribeirinhos e/ou extrativistas e três acadêmicos com uma grande abrangência da Amazônia Legal brasileira.
Uma das abordagens para desafiar o grupo num modelo não hierárquico de construção, foi a organização de círculos, com inspiração em sabedorias indígenas ancestrais. De acordo com o pensador e pesquisador indígena Donald Fixico, membro da Nação Sac & Fox nos Estados Unidos,25 “o conceito de circularidade nas culturas indígenas é central para a compreensão do mundo. O círculo da vida inclui todas as coisas e elas consistem em energia espiritual. Ao nosso redor estão círculos e ciclos”. Assim, estabeleceram-se o Círculo Gestor (administração e gestão), o Círculo do Conhecimento (estudos e cogeração de conhecimentos) e o Círculo Consultivo (apoio e aconselhamento). Todos colaboram em um modelo de governança participativa e equitativa, em que as decisões são tomadas de forma simétrica e colaborativa, envolvendo tanto os saberes tradicionais quanto os acadêmicos. Esse processo de coautoria entre pesquisadores, conhecedo-
res tradicionais e especialistas busca criar soluções inovadoras que respondam às necessidades locais e globais de sustentabilidade. Maria do Perpétuo Socorro Rodrigues Chaves, professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), salienta: “Fundamental para o diálogo dos saberes é a articulação de arranjos e sistemas produtivos locais, considerando os parâmetros da existência e a valorização dos saberes tradicionais”.
Um encontro presencial marcou o início da primeira etapa dos trabalhos em agosto de 2024. Na imersão que aconteceu em Brasília, foram levantadas temáticas prioritárias e organizados seis grupos de trabalho. As temáticas que emergiram para o Círculo do Conhecimento estão voltadas à promoção dos produtos e serviços da sociobiodiversidade, do grupo Ciências, Inovação e Tecnologia para a Bioeconomia da Sociobiodiversidade; busca de processos e inovações para adaptação e mitigação das mudanças climáticas, do grupo Mudança e Justiça Climática; e a promoção da equidade de gênero e juventude do grupo Gênero, Juventude e Novas Linguagens. Outros três grupos com temáticas transversais e que endereçam processos estruturantes, como Políticas Públicas, Diálogos Intersaberes e Comunicação, Engajamento e Advocacy estão sob responsabilidade de André Baniwa e Grupo Gestor, com Luciana Villa Nova, Simone Athayde e Floriana Breyer, com parceria jurídica de Luiz Ricardo Marinello.
Segundo Miqueias, pesquisador de origem extrativista da Saberes Sociobio, o conceito de governança policêntrica envolve múltiplos atores, como governos, ONGs, empresas e comunidades, e promove uma gestão descentralizada com múltiplos centros de poder, o que garante maior adaptabilidade e resiliência aos processos de conservação e desenvolvimento sustentável.26
OGRANDE DIFERENCIAL DA SABERES SOCIOBIO é o engajamento de lideranças e pesquisadores de povos tradicionais e de comunidades locais, trazendo representantes das mesmas na formação de um corpo transdisciplinar, multicultural e multiétnico para o centro da produção e difusão de conhecimentos.
Isso abre espaço para uma visão integrada de mundo dentro da ciência, promovendo o surgimento de novos formatos, mais inclusivos e diversos, como explica André Baniwa.
As comunidades tradicionais ativam suas memórias coletivas para enfrentar os novos desafios da modernidade e definir estratégias inovadoras em defesa de seus modos de vida. Dionatas Ulises de Oliveira Meneguetti, docente do Programa de Pós-graduação em Ciência, Inovação e Tecnologia para Amazônia (Ufac), e membro do Círculo de Conhecimento Saberes Sociobio, aponta a necessidade de aprimorar os objetos das pesquisas em áreas temáticas relevantes para atender à interação de saberes e de fontes de financiamento e garantir a sustentabilidade dessas iniciativas para chegar a estes objetivos.
As chamadas novas economias sustentáveis desafiam, no caso da Amazônia, a lógica da escala. A literatura recente sobre casos de bioeconomia na Amazônia brasileira tem mostrado que sistemas produtivos não sustentáveis podem levar a efeitos contrários aos esperados de conservação e desenvolvimento das populações
locais. A chamada “açainização” é um desses processos em questionamento atualmente, já que a crescente demanda de mercado por açaí resulta em aumento da escala produtiva em campo, aumentando a pressão para desmatamento de outras espécies com ameaça aos costumes culturais e qualidade de vida.27 Para Lúcia Tereza Ribeiro do Rosário, de origem ribeirinha,, pesquisadora do Círculo do Conhecimento, durante anos envolvida em estudos na cadeia do açaí, hoje muitos extrativistas e ribeirinhos estão focados na produção da cadeia de valor, perdendo a conexão com seus modos de vida e costumes. “As experiências mais exitosas são as coletivas, onde comunidades são protagonistas.”
Ruth Helena Cristo Almeida, socióloga, professora da Universidade Federal Rural da Amazônia, destaca outro desafio para as novas economias: a incorporação da Economia do Cuidado, com a visibilidade e valorização dos trabalhos das mulheres nas comunidades, que precisam ser consideradas dentro de uma sociobioeconomia verdadeiramente inclusiva e justa.
Abiodiversidade da Amazônia tem sido alvo de geração de artigos de pesquisa e patentes por países estrangeiros, o que levanta questões sobre a apropriação de recursos naturais e conhecimentos tradicionais associados. Muitas espécies da Amazônia foram patenteadas por empresas estrangeiras, que utilizam esses recursos para desenvolver produtos, muitas vezes sem o devido reconhecimento ou compensação para as comunidades locais.28 Conhecido como biopirataria, esse fenômeno representa um desafio significativo para a conservação da biodiversidade e a justiça social na região.29 É crucial que as políticas de bioeconomia incluam mecanismos para proteger os direitos das comunidades locais e garantir que os benefícios derivados da biodiversidade sejam compartilhados de maneira justa e equitativa.
O Protocolo de Nagoia é um exemplo de política internacional que visa reconhecer os direitos dos países provedores e detentores dos saberes (povos indígenas e comunidades locais). Adotado em 2010, o protocolo estabelece diretrizes para o acesso aos recursos genéticos e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados de sua utilização. O Brasil ratificou o Protocolo em 2021, mas em 2015 já havia estabelecido princípios para aplicação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) na Lei da Biodiversidade.30 Apesar disso, há ainda uma longa jornada de aplicação prática da lei e reverberação e mudanças para povos e comunidades tradicionais.
Ao longo da história, os direitos de propriedade intelectual têm sido um tema central em discussões internacionais, mas, frequentemente, ignoram as necessidades e os direitos dos povos originários. A Convenção da União de Paris (CUP), iniciada em 1880 e oficialmente estabelecida em 1883, previu um sistema internacional para a proteção da propriedade industrial. Durante o desenvolvimento da CUP, os povos originários não tiveram voz nas discussões sobre patentes e demais direitos de propriedade industrial, sendo excluídos das decisões que moldaram o sistema global de propriedade intelectual.
Após anos de negociações, a aprovação do Tratado de Patentes
pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), em 24 de maio de 2024, surgiu como um marco para a proteção dos direitos dos povos originários. Esse tratado foi resultado de 25 anos de diálogo intenso, que buscou alcançar um consenso entre países do Norte Global e nações megadiversas, além de representantes de povos indígenas e comunidades tradicionais. Os países do Norte Global alertaram sobre os potenciais riscos que novas regras poderiam trazer ao desenvolvimento científico e à inovação, enquanto as nações megadiversas e os povos originários defendiam que a origem dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais fosse claramente indicada nas solicitações de patentes.
Os principais objetivos do tratado incluem aumentar a transparência e a qualidade do sistema de patentes, além de impedir que invenções não originais que utilizem recursos genéticos ou conhecimentos tradicionais recebam patente. Isso representa uma mudança significativa, pois a partir da sua implementação os depositantes de patentes estarão obrigados a declarar a origem dos recursos genéticos utilizados e a fornecer informações sobre os povos e comunidades que detêm os conhecimentos associados, uma esperança de mudanças para a geração de inovações referentes aos saberes amazônicos.
Além de aumentar a transparência e prevenir erros na concessão de patentes, o tratado também visa reforçar, subliminarmente, as obrigações de acesso e repartição de benefícios, conforme estipulado na Convenção sobre Diversidade Biológica e no Protocolo de Nagoia.
A frente de Políticas Públicas do Saberes Sociobio irá apoiar a análise de quais são os arcabouços legais relevantes no Brasil e como podem promover a interação de saberes interculturais.
O FUTURO: REDES DE VALOR NA AMAZÔNIA
ALÓGICA DE MERCADO TENDE A VALORIZAR as inovações tecnológicas que podem ser facilmente comercializadas, enquanto os conhecimentos tradicionais associados, que têm mantido as florestas em pé e os rios fluindo desde tempos imemoriais, são frequentemente negligenciados. Isso cria uma disparidade na valorização e recompensa dos diferentes tipos de conhecimento, perpetuando a invisibilidade dos modos de vida e governança tradicionais. Para Jéssica Martins de Albuquerque, jovem quilombola e também pesquisadora da Saberes Sociobio, o engajamento da juventude com seus territórios de origem faz dos jovens peças fundamentais para a perpetuação dos valores e legados ancestrais. Nesse contexto, é muito importante que haja inovação nos modelos econômicos locais para que sejam mais atrativos para os jovens e viabilizem sua permanência nos territórios.
A partir da geração de instrumentos, protocolos e/ou metodologias, a iniciativa Saberes Sociobio visa mobilizar atenção e recursos para agendas priorizadas. Nas suas pautas de ações, estão propor pilotos de validação e implantação nos territórios, ajudar a transformar estratégias de advocacy em políticas públicas e fomentar, junto a institutos de ciência e tecnologia (novos ou existentes), novos processos e formatos voltados à educação e pesquisas mais inclusivos e simétricos em relação aos saberes ancestrais e acadêmicos.
O mercado tende a valorizar as inovações tecnológicas que podem ser facilmente comercializadas, enquanto os conhecimentos tradicionais associados, que têm mantido as florestas em pé e os rios fluindo desde tempos imemoriais, são negligenciados. Isso cria uma disparidade na valorização e recompensa dos diferentes tipos de saberes, perpetuando a invisibilidade dos modos de vida e governança tradicionais
Frente aos desafios que se impõem ao nosso tempo, as soluções precisam emergir de uma conexão equitativa entre diferentes saberes, inaugurando uma nova era de decisão e ações pautadas nas Ciências Ancestrais e Acadêmicas. Cabe a nós criar os instrumentos e reformar as estruturas para cocriar este caminho, como nos alertam os autores indígenas no artigo Somos Amazônia:31 “Os povos indígenas não vão salvar a Amazônia sozinhos. O conhecimento indígena e das comunidades tradicionais pode sustentar o conhecimento científico. Esta combinação pode oferecer respostas concretas a problemas críticos da Amazônia e além, criando um esforço intergeracional e multicultural numa nova trilha onde indígenas, povos de matriz africana, ribeirinhos, extrativistas e demais comunidades tradicionais brasileiras caminharão juntos no conhecimento e na implementação das soluções”. O
PARA SABER MAIS www.saberesssociobio.com
NOTAS
1 https://agencia.fapesp.br/para-cientistas-novo-modelo-de-desenvolvimentoe-essencial-nao-so-para-salvar-a-amazonia-mas-o-mundo/40181
2 Gallo, M. E. 2021. The Bioeconomy: A Primer. Congressional Research Service:30.
3 Abramovay, R., J. Ferreira, F. de Assis Costa, M. Ehrlich, A. M. Castro Euler, C., C. E. F. Young, D. Kaimowitz, P. Moutinho, I. Nobre, H. Rogez, E. Roxo, T. Schor, and L. Villanova. 2021. Chapter 30: Opportunities and challenges for a healthy standing forest and flowing rivers bioeconomy in the Amazon. Page Amazon Assessment Report 2021.
4 Athayde, S., G. Shepard, T. M. Cardoso, H. van der Voort, S. Zent, M. Rosero-Peña, A. A. Zambrano, G. Surui, and D. Larrea-Alcázar. 2021. Critical Interconnections between Cultural and Biological Diversity of Amazonian Peoples and Ecosystems. Page in C. A. Nobre and A. C. Encalada, editors. Science Panel for the Amazon. The United Nations Sustainable Solutions Network, New York.
5 Bugge, M. M., T. Hansen, and A. Klitkou. 2016. What Is the Bioeconomy? A Review of Literature. Sustainability 2016, Vol. 8, Page 691 8(7):691.
6 Silva, L. V. N. Promoção de bioeconomia da sociobiodiversidade amazônica: o caso da Natura Cosméticos S.A. com comunidades agroextrativistas na região do Baixo Tocantins no Pará/ Luciana Villa Nova Silva. – 2020. 159 p. Dissertação (mestrado profissional MPGC) – Fundação Getúlio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo.
7 Athayde, S.; Silva, L. V. N. Whose bioeconomy, whose knowledge, and whose profit? SDG Action, November 20, 2023. Online: https://sdg-action.org/whosebioeconomy-whose-knowledge-and-whose-profit/.
8 Hajjar, R. Amazon: Biodiversity Conservation, Economic Development and Human Impact. Chapter: Community Forestry in the Brazilian Amazon: An Examination of Power, Challenges and Goals. s/l: Nova Publishing, 2013.
9 Costa, F. D. E. A., C. Nobre, C. Genin, C. Medeiros, R. Frasson, D. A. Fernandes, H. Silva, I. Vicente, I. T. Santos, R. Feltran-barbieri, R. Ventura, and N. E. Ricardo. 2022. Bioeconomy for the Amazon: concepts, limits and trends for a proper definition of the Tropical Forest Biome. São Paulo.
10 Osociobio (Observatório das Economias da Sociobiodiversidade). Recomendações de políticas para o desenvolvimento da economia da sociobiodiversidade. Brasília, 2022.
11 Garrett, R., Ferreira, J., Abramovay, R. et al. Transformative changes are needed
to support socio-bioeconomies for people and ecosystems in the Amazon. Nat Ecol Evol (2024). https://doi.org/10.1038/s41559-024-02467-9
12 Nobre, C.A. et al. (2023) Nova Economia da Amazônia. São Paulo: WRI Brasil. Relatório. Disponível online em: www.wribrasil.org. br/nova-economia-daamazonia https://doi.org/10.46830/wrirpt.22.00034
13 Silva, B. P. de T.; Araújo, O., M. I. Diálogos sobre interculturalidade, conhecimento científico e conhecimentos tradicionais na educação escolar indígena. Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 11, n. 18, p. 153-176, 2014. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/praxis/article/view/805
14 Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras.
15 Baniwa, André Fernando. Bem viver e viver bem: segundo o povo Baniwa no noroeste amazônico brasileiro André Fernando Baniwa; João Jackson Bezerra Vianna, Aline Fonseca Iubel, orgs. - Curitiba: Ed. UFPR, 2019. 64 p.: il. ; 22 cm. (Série pesquisa, n. 356).
16 Berkes, F. (2017). Encontros e desencontros: como os conhecimentos indígena e tradicional interagem com o meio universitário. ComCiência. Retrieved from ComCiência.
17 Smith Tuhiwai, L. Descolonizando metodologias: pesquisas e povos indígenas. Paraná: Editora UFPR, 2021.
18 UNESCO. (2020). Education for Sustainable Development: A Roadmap. https:// unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000370508
19 Nobre, C.A. et al. (2023) Nova Economia da Amazônia. São Paulo: WRI Brasil. Relatório. Disponível online em: www.wribrasil.org.br/nova-economia-daamazonia; https://doi.org/10.46830/wrirpt.22.00034
20 https://www.theamazonwewant.org/
21 Amazônia 4.0/AmIT: https://amazonia4.org/
22 Com apoio do Instituto Vale (ITV), organização que também apoia a permanência de estudantes indígenas na universidade com apoio financeiro e pedagógico, o projeto começou em 2024
23 Breyer, Floriana. Territórios Regenerativos: da fragmentação a regeneração territorial. 2023, 237 p. Trabalho Final (mestrado): IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas.
24 Toledo, V. M. A memória biocultural: a importância ecológica das sabedorias tradicionais./ Victor M. Toledo; Narciso Barrera-Bassols; tradução de Rosa L. Peralta. -1.ed.-São Paulo Expressão popular, 2015
25 Fixico, D. (2015). Coming Around Again: Cyclical and Circular Aspects of Native American Thought. Southeastern Oklahoma State University. Retrieved from SE.edu
26 Souza, Miqueias – 2024 Governança das Reservas da Biosfera: Uma Análise dos Modelos de Gestão para a Reserva Da Biosfera da Amazônia Central / Miqueias Santos de Souza – Manaus (S.N), 2024
27 Freitas et al. Intensification of açaí palm management largely impoverishes tree assemblages in the Amazon estuarine forest, Biological Conservation, v. 261, 2021, https://doi.org/10.1016/j.biocon.2021.109251.
28 https://atmos.earth/at-colombias-convention-on-biological-diversity-afrodescendant-people-need-a-voice/
29 https://rightsandresources.org/publication/afro-descendant-peoplesbiodiversity-hotspots/
30 https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI&numero=13123&ano =2015&ato=9a0ITU65UNVpWTc7bsaberes-desafios-e-visao-de-futuro-dospovos-da-floresta/
31 André Baniwa, Gasodá Paiter Suruí, Beka Munduruku e Nadino Calapucha (2023). Somos Amazônia: saberes, desafios e visão de futuro dos povos da floresta. Artigo originalmente publicado na Agência Bori e no Nexo Políticas Públicas. Disponível em: https://abori.com.br/artigos/somos-amazoniasaberes-desafios-e-visao-de-futuro-dos-povos-da-floresta/
A complexidade dos desafios socioambientais da Amazônia exige soluções financeiras inovadoras. Entre as novas abordagens, produtos e serviços que transformam a forma como o capital é mobilizado, investido e gerenciado, o blended finance emerge como ferramenta estratégica para mobilizar e otimizar o capital em prol da sociobioeconomia, combinando recursos de diferentes fontes e naturezas para impulsionar projetos de impacto positivo. No entanto, é essencial conhecer o ecossistema e os clusters alvos da intervenção, não só para originar projetos elegíveis para receber capital, mas para estruturar soluções financeiras que sejam aderentes aos projetos
Por Marco Gorini
MAIOR BIOMA DO PLANETA, a Amazônia enfrenta desafios complexos e multifacetados que exigem soluções inovadoras e urgentes. O desmatamento desenfreado, a degradação ambiental, as mudanças climáticas e a crise social colocam em risco a integridade do ecossistema amazônico, o futuro das comunidades que dependem dele e o de todos nós. Para reverter essa situação e construir caminhos mais sustentáveis para a região, a sociobioeconomia desponta como um novo paradigma de desenvolvimento.
A mobilização do capital adequado e a sua alocação assertiva são fatores críticos para viabilizar a transição rumo a esse paradigma, no qual as dimensões social, econômica e ambiental estão integradas de forma harmônica. Este artigo apresenta reflexões sobre o que deve ser considerado para o planejamento e execução dessa jornada, assim como abordagens de inovação financeira com elevado potencial para acelerar o processo no contexto da floresta amazônica.
A Floresta Amazônica enfrenta desafios graves. Desmatamento, degradação ambiental, mudanças climáticas e crises sociais ameaçam seu ecossistema e as comunidades locais, com consequências globais. Para superar essa situação e garantir um futuro sustentável, a sociobioeconomia surge como um novo modelo de desenvolvimento, unindo aspectos sociais, econômicos e ambientais. Na transição rumo ao novo modelo, o blended finance pode ter papel determinante na mobilização e correta alocação de capital ao permitir a criação de estruturas financeiras personalizadas que atendam às especificidades de cada projeto, mitigando riscos e otimizando retornos.
O tema das inovações financeiras e do novo paradigma de desenvolvimento para a Amazônia é crucial porque as soluções tradicionais não são suficientes para reverter os problemas que a região enfrenta. Inovações como o blended finance emergem como ferramentas essenciais para mobilizar e alocar capital de forma inteligente, integrando interesses públicos, privados e filantrópicos para promover uma sociobioeconomia sustentável, que harmoniza conservação ambiental com justiça social e desenvolvimento econômico.
EM SUA ESSÊNCIA, A SOCIOBIOECONOMIA busca compreender e analisar as dinâmicas socioeconômicas em relação aos ecossistemas, reconhecendo a interdependência entre o bem-estar humano, a prosperidade econômica e a saúde do planeta. Esse campo transcende as fronteiras tradicionais da economia, incorporando perspectivas sociológicas, ecológicas e éticas para construir um arcabouço teórico e prático que permita a construção de um futuro regenerativo, inclusivo e equitativo.
Tal visão se insere no modelo proposto por Kate Raworth em A Economia Donut: Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Para a economista britânica, encontrar o espaço seguro e justo para a humanidade, garantindo um alicerce social que respeite as necessidades e promova a dignidade humana e, ao mesmo tempo, um teto ecológico que garanta o equilíbrio saudável dos ecossistemas ambientais, seria o papel mais adequado para os atores públicos, privados e sociais em termos de estratégias e políticas de desenvolvimento.
Em uma época de crise sistêmica como a que vivemos, é preciso buscar soluções que transcendam as abordagens convencionais, já que adotar os mesmos padrões que nos colocaram nessa situação não é saída para a crise. Por isso, ao oferecer um quadro conceitual e metodológico para a construção de modelos sustentáveis que enderecem soluções mais responsivas e assertivas, a sociobioeconomia ganha relevância como paradigma inovador.
A inovação é uma alavanca estratégica para criar e adotar novos modelos, e, frente à complexidade dos desafios postos, atores públicos, privados e sociais devem atuar de forma convergente e sinérgica na busca de respostas. Daí a necessidade de repensar os papéis desses atores em prol do futuro comum da nação e da Amazônia em especial.
Na agenda de inovação, o Estado deve ser um protagonista como indutor e fomentador, tanto gerando quanto capturando valor no exercício desse papel, como mostrou Mariana Mazzucato, professora de Economia da Inovação e Valor Público na University College London, em sua obra. Todas as potências globais adotam poderosas políticas públicas norteadoras e promotoras dos seus ecossistemas de inovação. As mudanças, vale lembrar,
MARCO GORINI é investidor e empreendedor social. Cofundador e CEO da Din4mo. É pioneiro em mobilização de capital via finanças híbridas e blended finance no Brasil. Membro do GT de Mobilização de Capital da Enimpacto, do GT Blended Finance do Lab de Inovação Financeira (CVM), conselheiro da Aliança pelo Impacto e coordenador do movimento Go!Blended – www.goblended.com.br. O autor agradece aos especialistas consultados para este artigo e, em especial, às contribuições de Andrea Alvarez, do Fundo Fama Gaia Sociobioeconomia, Iara Vicente, da Nossa Terra Firme Consultoria, Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa e Mariano Cenamo, da Amaz – Aceleradora e Investidora de Negócios de Impacto da Amazônia.
são altamente dependentes do contexto de governança, que possibilita ou impede que aconteçam.
O Brasil tem hoje uma “janela de oportunidade” para avançar nessa agenda. O país vive um momento singular em termos de fóruns estratégicos de governança: além de um governo federal que é promotor dessa agenda, estão com o Brasil as presidências do G20, que reúne os países das maiores economias do mundo, do Banco Interamericano de Desenvolvimento(BID) e do New Development Bank (NDB, o banco dos BRICS), dois dos mais relevantes bancos de desenvolvimento do planeta. Ademais, não menos relevante, seremos os anfitriões da COP 30 em 2025.
A relevância brasileira aumenta ainda mais quando se trata de floresta amazônica, não apenas pelo fato de a maior parte do bioma se estender por aqui, mas também pela sua importância para o planeta. É difícil imaginar um contexto no qual o país não esteja “à mesa” como um dos principais atores influenciadores no tema. Não se pode ignorar também que a dinâmica da nova geopolítica global, multipolar, clama por lideranças fortes regionais.
Diante desse contexto, três perguntas são essenciais: o que é estratégico para a nação? Qual o papel da Amazônia nessa visão? Quais planos serão capazes de levar o modelo de desenvolvimento amazônico do mercantilismo para o século 21, saltando, como provoca o especialista Gustavo Pinheiro, o modelo que marcou as últimas décadas e causou a crise sistêmica que vivemos?
UM TESOURO NATURAL EM RISCO
COM 5 MILHÕES DE km 2 , a Amazônia Legal representa 67% das florestas tropicais do planeta, ocupa 60% do território brasileiro e, se fosse um país, seria o 6º maior do mundo em extensão territorial (ver gráfico na pág XX). Ademais, apesar de prestar serviços ecossistêmicos cruciais na manutenção do equilíbrio ecológico e climático do planeta, esse tesouro natural enfrenta uma série de ameaças que colocam em risco sua integridade e a vida das comunidades que dele dependem.
O desmatamento e a degradação ambiental, os impactos climáticos e a vulnerabilidade das comunidades locais são dimensões representativas do risco e dos desafios crescentes. A perda da biodiversidade gerada por esses vetores representa uma ameaça não apenas para a riqueza natural da região, mas também para a estabilidade dos ecossistemas e para o bem-estar humano. Alguns exemplos ilustram essa questão:
• O desmatamento na Amazônia Legal ainda é preocupante. Apesar de uma queda de 21% em relação a 2022, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em 2023 foram desmatados 9.064 km², uma área equivalente a cerca de 1.280 campos de futebol.
• O agronegócio, impulsionado pela demanda por carne e soja, continua sendo um dos principais vetores do desmatamento, representando cerca de 70% das áreas desmatadas.
• A mineração, especialmente a ilegal, também causa impactos significativos, contaminando rios e solos, afetando a biodiversidade e gerando conflitos sociais.
• A Amazônia, que já foi um sumidouro de carbono, está se aproximando de um ponto de inflexão, podendo se tornar uma fonte emissora de carbono devido ao desmatamento e à degradação.
• As mudanças climáticas já afetam a região, com aumento da frequência e a intensidade de secas, incêndios florestais e enchentes, impactando a biodiversidade e as comunidades locais.
• A perda da capacidade da floresta de regular o clima pode ter consequências globais, intensificando o aquecimento global e seus efeitos em todo o planeta.
• Comunidades indígenas e ribeirinhas sofrem com a perda de seus territórios e recursos naturais, impactando sua segurança alimentar, saúde e cultura.
• O garimpo ilegal em terras indígenas causa contaminação por mercúrio, afetando a saúde das populações e a qualidade da água.
• Conflitos territoriais entre madeireiros, grileiros e comunidades tradicionais aumentam a violência e a insegurança na região.
Para além da sabedoria encontrada na natureza – como apontam os estudos da biomimética – evidenciada nos serviços prestados pela floresta, a sabedoria ancestral das comunidades e povos locais configura um acervo rico em conhecimentos críticos para o modelo da sociobioeconomia.
HROTAS DE PRÁTICAS E INOVAÇÕES
Á INFINITAS POSSIBILIDADES quando pensamos em inovação, desenvolvimento e sociobioeconomia, as quais, combinadas com a perspectiva dos múltiplos subsistemas (aqui chamadas de “clusters”), elevam a potência de um futuro promissor. Entre elas, o plantio direto (técnica para plantar em áreas de produção de larga escala, para manter o solo e a biodiversidade protegidos); a agricultura regenerativa (técnica para restaurar a saúde do solo até as camadas mais profundas, para que as raízes possam crescer e acessar múltiplos nutrientes e a água do lençol freático); o controle biológico (desenvolvimento de defensivos biológicos a partir de organismos ou substâncias naturais (não sintéticas), alternativos aos químicos); as agroflorestas de múltiplas culturas (fortalecimento dos sistemas agroflorestais, SAFs, que promovem o cultivo de policulturas simbióticas em um mesmo espaço); os polinizadores (técnica para promover o habitat
É possível que a compreensão mais relevante para o futuro da Amazônia seja sobre a existência de “Amazônias”, suas relações sistêmicas e sinérgicas. Dada a sua magnitude continental e diversidade singular, é essencial compreendermos que existem miríades de “Amazônias” coexistindo no território amazônico
As comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas da Amazônia têm um vasto conhecimento acumulado ao longo de gerações sobre a biodiversidade, os ciclos naturais e as interações ecológicas da floresta. Suas práticas culturais de manejo sustentável, como a agricultura de pequena escala, o extrativismo de produtos florestais não madeireiros e a pesca artesanal, demonstram como é possível viver em harmonia com a natureza, garantindo a subsistência e a preservação dos recursos naturais.
Portanto, a inclusão das comunidades na governança dos projetos de desenvolvimento, desde o planejamento até a implementação e o monitoramento, garante que suas necessidades e perspectivas sejam consideradas, promovendo a equidade e a justiça social de um lado e, ao mesmo tempo, garantindo a integração dos saberes acumulados por séculos de prática.
O biocomércio permite a comercialização de produtos florestais não madeireiros, como óleos essenciais, castanhas, frutas e fibras, de forma sustentável e com agregação de valor, gerando renda para as comunidades e incentivando a conservação da floresta. Um exemplo interessante é o projeto da Natura Ekos, que utiliza o óleo de palma produzido de forma sustentável por comunidades ribeirinhas da Amazônia em seus produtos cosméticos, gerando renda para essas comunidades e promovendo a conservação da biodiversidade.
para a presença dos insetos polinizadores, indispensáveis para a produção de frutas, legumes e oleaginosas); a integração Lavoura – Pecuária – Floresta (ILPF)(rotação em uma mesma terra da cultura agrícola, rebanho bovino e árvores); a agroecologia (promoção da agricultura familiar de base ecológica); e a rastreabilidade (conhecimento da origem dos alimentos, para garantir que a forma de cultivo e produção atenderam aos requisitos de sustentabilidade).1
Segundo o Fórum Mundial de Bioeconomia, os negócios no setor são estimados em USD 4 trilhões ao ano, com expectativas de atingir USD 30 trilhões até 2050, sendo que o PIB global atual é de aproximadamente USD 100 trilhões.
Há premissas importantes a serem consideradas na viabilização desse novo modelo e na forma de financiá-lo. A seguir, abordamos as quatro que consideramos principais.
Mais que uma lente, um caleidoscópio: É possível que a compreensão mais relevante para o futuro da Amazônia seja sobre a existência de “Amazônias”, suas relações sistêmicas e sinérgicas. Dada a sua magnitude continental e diversidade singular, é essencial compreendermos que existem miríades de “Amazônias” coexistindo no território amazônico.
A diversidade não é apenas biológica e ambiental, mas também cultural, antropológica, sociológica e econômica e, portanto, não podemos adotar a perspectiva de uma única lente, mas sim a
de um caleidoscópio quando o tema é Amazônia. Atores que ignoram essa perspectiva e tentam pasteurizar essa riqueza diversa, flertam com o risco de um fracasso rotundo.
A partir das diferentes dimensões de diversidade, temos a potência de clusters, compostos por personas bem definidas interagindo intra e entre clusters.
Nesse sentido, compreender as características, identidades e singularidades de cada cluster significa aceitar que nem todas as soluções serão passíveis de “industrialização e massificação”, pois parte delas serão artesanais, não escaláveis. Além disso, o fato de que nem todas irão maximizar sua eficiência e produtividade não significa que devam ser ignoradas e excluídas, não só pela sua existência per se, mas pelo papel sistêmico que elas desempenham para garantir a homeostase do ecossistema amazônico.
Para além da árvore está a floresta: Pensar desenvolvimento é mais que pensar economia. Pensar economia, é mais que pensar cadeias de valor. Pensar cadeias de valor, é mais que pensar modelos de negócio. Pensar modelos de negócio é mais que pensar produtos e serviços.
Quando estamos diante de cadeias e mercados desestruturados, ainda mais relevante é adotarmos essa visão sistêmica. O olhar estratégico deve estar ao longo de toda a cadeia produtiva e suas relações, e não apenas em partes dela, sob o risco das lacunas mais frágeis, ao serem ignoradas, inviabilizarem ou reduzirem os modelos de desenvolvimento possíveis.
Como cada cluster amazônico lida de forma particular com a realidade dada pelo contexto local, conhecer os desafios e oportunidades oferecidas pela capacidade instalada de infraestrutura logística, de comunicação, de conhecimento e competências, de tecnologia e das relações nas suas cadeias de valor é essencial para desenvolver e qualificar projetos e iniciativas de forma adequada. Essa é uma abordagem de mitigação de risco (de-risk) sistêmico, alicerce de uma metodologia de project finance, essencial para as finanças no contexto amazônico e de que voltaremos a tratar mais adiante.
Preço e Valor: A floresta provê serviços ecossistêmicos e biorrecursos fundamentais para a vida saudável no planeta e para o bem estar da humanidade. Será necessário aprendermos cada vez mais rápido e melhor como valorar esses serviços e recursos, de modo a que sejam incorporados na precificação das cadeias de valor pertinentes. Esse “acervo de valor” deve ser pago e pode elevar de forma positiva a viabilidade e a atratividade econômica de diversas cadeias, impulsionando o desenvolvimento.
Tudo é equilíbrio, inclusive quanto ao capital: Mobilizar capital é necessário, mas não suficiente. Esse capital deve ser bem alocado, para que gere os frutos que impulsionarão uma espiral virtuosa no desenvolvimento. Vemos muita celebração no volume de fundos mobilizados pró-Amazônia, mas falamos pouco sobre quanto, onde e como a alocação está sendo realizada, e menos ainda sobre a avaliação dos resultados que está gerando.
Não adianta mobilizar bilhões se não há capacidade de absorção, pois ficaremos com capital empoçado, gerando evidências negativas, como se não houvesse demanda. Pior do que isso, corremos o risco de forçar a alocação de capital de forma equivocada, causando danos nas cadeias de valor.
Este artigo defende a tese de que é essencial conhecer o ecossistema e os clusters alvos da intervenção. A competência de origi-
PIB GLOBAL 2023
aproximadamente
USD 100 TRILHÕES
ATIVOS FINANCEIROS TOTAIS
aproximadamente
USD 350 TRILHÕES
RIQUEZA TOTAL GLOBAL 2023
aproximadamente
USD 463 TRILHÕES
ATIVOS FINANCEIROS NA MÃO DO SETOR PRIVADO
aproximadamente
USD 240 TRILHÕES (70% do total)
VOLUME DE NEGOCIAÇÕES
NO MERCADO FINANCEIRO GLOBAL (MOEDAS, AÇÕES, TÍTULOS E DERIVATIVOS)
1 PIB GLOBAL
a cada 10 dias
nar projetos elegíveis para receberem capital é estratégica nesse contexto, assim como a competência de estruturar soluções financeiras que sejam aderentes aos projetos. Na maior parte das vezes, produtos financeiros de “prateleira” não irão funcionar, podendo até mesmo prejudicar o desenvolvimento local.
Muitos gestores de capital, erroneamente, adotam uma postura de “você não está pronto para receber meu capital” e de fato, há situações em que é verdade. Entretanto, é necessária uma dose de humildade a esses gestores, pois também é verdade que há situações em que eles não estão prontos para financiar uma solução, por assumirem hipóteses muito distantes da realidade local.
Parte da inovação para viabilizar esse novo modelo compete ao mundo das finanças.
PARA CONTEXTUALIZAR O PAPEL DAS FINANÇAS na promoção de uma nova economia, voltemos a 2015. Foi então que os principais atores financiadores do planeta se reuniram na Etiópia, para pensar como criar estratégias de financiamento orientadas aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Dessa reunião emergiu a Agenda dos Acordos de Adis Abeba de 2015 (AAAA), evidenciando ao mundo a necessidade de um novo pacto civilizatório pautado pelos princípios de equidade na esfera social, da regeneração na esfera ambiental e da inclusão e viabilidade na esfera econômica.
É nesse contexto que entram as inovações financeiras - novas abordagens, produtos e serviços que transformam a forma como o capital é mobilizado, investido e gerenciado. Elas podem incluir desde novas tecnologias, como blockchain e inteligência artificial, até novos modelos de negócios, novas arquiteturas, estratégias e instrumentos financeiros. A seguir, focaremos mais a atenção nas estratégias de blended finance
Para potencializar ecossistemas de inovação exitosos, é preciso mobilizar volumes adequados de capital e alocá-los de forma coordenada, “cirúrgica” e estratégica. Dito isso, como nos mostram os dados do box da pag 54, não faltam recursos no mundo e, portanto, o nosso desafio como sociedade não é de escassez, mas de escolhas sobre como alocar de forma mais inteligente e assertiva os recursos existentes, especialmente nos países emergentes.
Apesar da existência dos recursos, estudos e pesquisas apontam que a principal barreira para o alocação do capital privado na agenda 2030 é a assimetria real (ou percebida) na atratividade da relação risco x retorno dos projetos. Blended finance procura oferecer uma resposta inovadora para esse problema.
BLENDED FINANCE É O USO ESTRATÉGICO de capital catalítico (filantrópico/ de fomento/ público) para mobilizar capital com interesse comercial (público e/ou privado), com o propósito de financiar o desenvolvimento de mercados e soluções na fronteira da inovação para alavancar impacto positivo e viabilizar a agenda dos ODS. Em outras palavras, é uma caixa de ferramentas para criar estratégias de de-risking sistêmico que promovam a convergência dos diferentes atores financiadores – filantrópico, fomento, comercial que precisam estar engajados no financiamento das soluções.
O quadro abaixo apresenta exemplos de alternativas sobre como usar essas ferramentas, que têm como característica a sua diversidade e flexibilidade. Quando entendemos a natureza dos clusters que desejamos promover, podemos criar as soluções financeiras a partir dessa compreensão, de modo a elevar as chances de êxito na mobilização dos capitais necessários, dado que equalizamos as expectativas de retorno, risco e impacto dos diferentes atores.
A escala dos desafios socioambientais da Amazônia exige soluções financeiras engenhosas e inovadoras. Nesse contexto, o blended finance emerge como ferramenta estratégica para mobilizar e otimizar o capital em prol da sociobioeconomia, combinando recursos de fontes e naturezas diversos para impulsionar projetos de impacto positivo.
Ao combinar diferentes tipos de capital, como subvenções, empréstimos, equity e capital filantrópico, essa abordagem permite criar estruturas financeiras personalizadas que atendam às especificidades de cada projeto, mitigando riscos e otimizando retornos.
Entre as principais vantagens, podemos destacar:
• Alavancagem de recursos: o capital público, de fomento e/ou filantrópico atua como catalisador, atraindo investimentos privados e ampliando o impacto dos projetos.
• Compartilhamento de riscos: a combinação de variadas fontes de financiamento permite distribuir os riscos entre os diferentes atores, tornando os projetos mais atrativos para investidores privados.
• Maximização do impacto: a combinação de diferentes tipos de capital permite financiar diferentes fases e componentes de um projeto, desde a pesquisa e desenvolvimento até a implementação e o monitoramento, maximizando seu impacto socioambiental.
• Sustentabilidade financeira: ao combinar fontes de receita e mecanismos de retorno variados, as finanças híbridas aumentam a sustentabilidade financeira dos projetos, reduzindo a dependência de recursos públicos e garantindo sua continuidade a longo prazo.
Há um espectro de atores que podem compor essas estruturas, cada um com uma percepção do que é valor. A arte dessa modalidade de financiamento está em viabilizar as coalizões adequadas que garantam o êxito do financiamento (ver “O papel da academia nas inovações financeiras para impacto”, de Samir Hamra, em Stanford Social Innovation Review Brasil, especial Finanças inovadoras).
• Fundos de equity ou fundos de dívida com concessão de capital público ou privado, filantrópico ou fomento, atraindo investimento institucional comercial
• Emissão de títulos ou notas, muitas vezes para projetos de infraestrutura, com garantias ou seguro de financiadores públicos ou filantrópicos
• Financiamento a fundo perdido de financiadores públicos ou filantrópicos para construir capacidade de investimento para alcançar retorno financeiro e social
• Financiamento a fundo perdido de financiadores públicos ou filantrópicos para desenhar ou estruturar projetos para atrair investimento institucional
Finance
Tendo em vista que projetos inovadores podem estar em estágios da maturidade distintos e, portanto, terem maior ou menor percepção de risco e retorno para os investidores, cada estágio precisa de um perfil aderente de financiamento, para que possa ser superado de forma fluida e sem traumas pelos empreendedores.
O quadro abaixo nos convida a compreender essa visão e a composição dinâmica entre capital catalítico e comercial à medida que os projetos avançam em maturidade comercial.
PELA REPRESENTATIVIDADE HISTÓRICA que possuem no fomento da economia, fortalecer o papel das Instituições Financeiras de Desenvolvimento, a fim de facilitar o investimento em projetos sustentáveis através do uso do blended finance, traz uma oportunidade para ampliar a construção e implementação de políticas públicas e estratégias privadas de inovação que tenham a capacidade de criar contextos favoráveis e atrativos, carregados de uma força magnética poderosa para alavancar a mobilização de alto volume de recursos privados, tanto comerciais quanto sociais.
A figura da pag 57 apresenta o ecossistema de financiadores possíveis para a viabilização dessa visão e nos ajuda a compreender as várias potencialidades de coalizões a serem formadas nas estruturas blended.
Um exemplo notável de blended finance na Amazônia é o Fundo Amazônia, que combina recursos dos governos norueguês e brasileiro para financiar projetos de prevenção e combate ao desmatamento, conservação da biodiversidade e promoção do desenvolvimento sustentável na região. O fundo utiliza uma variedade de instrumentos financeiros, como subvenções, empréstimos e inves-
timentos de impacto, para apoiar projetos de diferentes portes e naturezas, desde iniciativas comunitárias de manejo florestal até grandes projetos de infraestrutura sustentável.
Outras quatro iniciativas inovadoras têm o potencial de inspirar a aceleração rumo ao novo modelo. São elas:
• EcoAustrália (Exemplo Internacional/ Créditos de Biodiversidade da Austrália): projeto criado em 2019 em uma área de 200 hectares, em que cada crédito corresponde a uma tonelada de carbono equivalente de emissões evitadas mais 1,5 m2 de vegetação nativa protegida e credenciada pelo governo, medida que é chamada de ABU (unidade de biodiversidade australiana, na sigla em inglês). Esses créditos podem ser transacionados tanto nos mercados já estabelecidos de carbono quanto no sistema de compra e venda de offsets (compensações) de biodiversidade, criado em 2016 para fomentar a conservação de territórios estratégicos. Em 2022, o governo local constituiu um fundo de USD 106 milhões para compra desses certificados, incentivando a participação de proprietários de terra.
• Créditos de Biodiversidade (Exemplo Nacional/ Setor Privado): lançado em junho de 2024 pelo Instituto Homem Pantaneiro (IHP) e pela consultoria Ecosystem Regeneration Associates (ERA), o crédito de biodiversidade é associado ao bioma do pantanal e é pioneiro no país.
• Programa EcoInvest Brasil (Exemplo Brasil/ Setor Público): iniciativa do governo brasileiro, criada recentemente e em fase de refinamento, cujo objetivo é facilitar a atração de investimentos estrangeiros privados. O projeto é parte do Programa de Transformação Ecológica do Brasil e foi instituído no âmbito do Fundo Nacional sobre a Mudança do Clima (FNMC).
• AMAZ (Exemplo Brasil/ Setor Privado): Maior aceleradora e investidora de impacto do norte do Brasil, com 100% de dedicação
Doações ou assistência técnica para conduzir a preparação do projeto
Investimentos de capital em estágio inicial com primeira perda de capital significativa para pagar custos legais e outros custos iniciais
combinação de dívida comercial / investimento em equity de uma facility com first loss no capital catalítico
Ilustra a proporção de capital catalítico versus comercial no estágio inicial
Dívida comercial e equity com garantia no capital catalítico para reduzir o custo de financiamento do operador
Saída para um comprador puramente comercial do ativo
Fonte: Adaptado de Convergence Finance
Financiamento internacional
Financiamento nacional
ECOSSISTEMA DE FINANCIADORES
Fundos climáticos internacionais
Fundos climáticos nacionais
Financiamento público
Governo federal
Governos estaduais
Governos municipais
Bancos multilaterais e bilaterais
Instituições financeiras de desenvolvimento nacional e regionais
Financiamento privado
Fundos e investidores
Atores corporativos
Bancos comerciais Setor privado nacional
Plataformas de crowd
ISP – Institutos e fundações
Projetos biossocioeconômicos
Fonte: Adaptado de “Guia para financiamento climático de cidades no Brasil”. Projeto Felicity / MME, GIZ
à Amazônia, tem muita experiência na originação e qualificação de negócios locais, com uma profunda compreensão do que neste artigo chamamos “clusters”. A AMAZ estruturou um fundo Blended de R$25 milhões, para investir nos próximos anos.
UMA VISÃO OTIMISTA DO FUTURO
AMAIS RELEVANTE “INOVAÇÃO” de que precisamos para resolver os problemas sistêmicos do século 21 é a regeneração de modelo mental. Ressignificar o que define êxito é essencial para regenerar mentes e modelos que viabilizarão um mundo mais inclusivo, equitativo e regenerativo. Para isso, precisamos reconhecer e valorar a diversidade e a equidade como pedras fundamentais e inspiradoras do nosso futuro comum.
Adotar uma visão sistêmica nos planejamentos e execuções das iniciativas escolhidas nos convida a promover a sinergia e a convergência entre os diferentes atores que compõem os ecossistemas objeto da ação e, assim, potencializar e elevar as chances de êxito na elaboração de estratégias de longo prazo.
Termos a vontade e as competências necessárias para mobilizar e alocar o capital adequado para financiar esse futuro, ou seja, o capital no volume, prazo, custo e risco adequado para as iniciativas indutoras do novo modelo, é parte da equação vencedora. Sem isso, dificilmente conseguiremos corrigir a rota que nos trouxe até este contexto de crise sistêmica.
No mundo financeiro muito se fala sobre o custo de oportunidade do capital para o processo de decisão de investimentos. Estamos vivendo um momento histórico, irreversível e inevitável, rumo à ampliação desta mentalidade para a incorporação da dimensão de impacto no processo de tomada de decisão.
Não se trata de negar o custo de oportunidade do capital. Ele existe e é importante. A questão é incorporar aos processos de decisão e alocação o custo de oportunidade da pobreza, da fome, da desigualdade, da ignorância, da violência, da tristeza, da extinção das espécies, da poluição, do aquecimento global, da injustiça climática, entre outros. A recente tragédia do Rio Grande do Sul deixa uma boa evidência sobre o custo da miopia nos processos de decisão públicos e privados.
Ampliar essa visão nos faz pragmaticamente otimistas rumo a essa transformação, dado que, do contrário, ficamos diante de um cenário de extrema incerteza sobre a sobrevivência, humana e planetária. A sua adoção pode nos conduzir a um mundo mais fraterno, próspero, justo e sustentável. A escolha é nossa.
Nesse contexto, a Amazônia pode ser uma janela de oportunidade singular, servindo como um imenso e potente “laboratório de inovação” inspirador para um novo modelo de construção do nosso futuro comum, menos capital centrado e mais biocentrado. Essa visão pode servir de norte, transversalmente, para todas as políticas públicas e privadas, assim como para posicionar o Brasil como um país que lidera, inspira, mobiliza e apoia essa causa, que é local, mas também global. O
Conceito emergente que busca integrar sustentabilidade ambiental e desenvolvimento econômico e social, a bioeconomia se apresenta como uma alternativa viável para enfrentar os desafios impostos pela crise climática e as desigualdades sociais. No entanto, para que as iniciativas a partir desse modelo sejam realmente benéficas e sustentáveis, é essencial uma abordagem colaborativa que integre conhecimentos tradicionais das comunidades locais com inovações científicas. Mais que uma estratégia econômica, a bioeconomia é um caminho para promover justiça social e equidade
Por Francisco de Assis Costa
EM UM CONTEXTO DE CRESCENTE PREOCUPAÇÃO GLOBAL com a degradação ambiental e a desigualdade social, o Relatório de Brundtland foi um marco importante na história do desenvolvimento sustentável (DS). Também conhecido como Nosso Futuro Comum, o documento da Organização das Nações Unidas (ONU) publicado em 1987 estabeleceu um novo paradigma ao integrar as dimensões econômica, social e ambiental e definir desenvolvimento sustentável como aquele que “atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atenderem suas próprias necessidades”.
O conceito incorporou ideias como “crescimento verde” e “bioeconomias”, expressões de um novo enfoque ambiental global associado a políticas de desenvolvimento e, ao longo do tempo, importantes movimentos de ideias deram propulsão, de um lado, ao reconhecimento de uma crise ambiental global inerente aos padrões de crescimento das sociedades industriais e, de outro, à necessidade de se definirem os princípios orientadores de um DS na contramão dessa crise.
Inicialmente com foco na exaustão de recursos naturais, a visão de crise ambiental evoluiu para incluir as externalidades do crescimento dependente de combustíveis fósseis, como o aquecimento global e a perda de biodiversidade. Em paralelo, ficou mais evidente que desigualdades sociais intensificam a crise ambiental.
O artigo analisa a tensão entre os modos de produção patronais, que seguem o paradigma mecânico-químico com altos índices de desmatamento e emissão de CO2, e os camponeses, que, com base em sistemas agroflorestais, oferecem modelos mais sustentáveis e inclusivos. Destaca a necessidade de políticas públicas que promovam essas bioeconomias, aproveitando o conhecimento tradicional das populações indígenas e ribeirinhas, enquanto corrige assimetrias de mercado e apoia iniciativas voltadas para a preservação ambiental e a inclusão social.
A bioeconomia oferece uma solução para conciliar desenvolvimento econômico com a preservação ambiental. Com os desafios crescentes de desmatamento, mudanças climáticas e desigualdade social, é urgente repensar os modelos produtivos dominantes que degradam os recursos naturais. Ao valorizar as bioeconomias locais, que integram o conhecimento tradicional e práticas sustentáveis, é possível promover um desenvolvimento que respeite a biodiversidade, fortaleça as comunidades locais e ofereça alternativas mais justas e ecológicas aos modelos de produção intensiva e destrutiva. A bioeconomia passa a ser uma ferramenta essencial para garantir um futuro sustentável.
Este artigo analisa a economia agrária da Amazônia Legal na perspectiva do DS, discutindo a evolução do conceito, o debate teórico e as políticas associadas a ele, como as orientadas pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e por portfólios de bioeconomias. O texto também explora a diversidade estrutural da Amazônia Legal, focando em trajetórias sóciotecnológicas patronais e camponesas, além das tensões entre formas destrutivas e modos alternativos de desenvolvimento. Por fim, tratamos das prioridades políticas no contexto do DS e bioeconomias referidas ao bioma.
DEPOIS DO RELATÓRIO BRUNDTLAND, o conceito de desenvolvimento sustentável se firmou como um ideário, uma articulação de valores primários, cuja força ideal, proporcional ao grau de compartilhamento que desfruta na sociedade, orienta, como referência ética, a construção das mentes e instituições que moldam o devir. Nessa perspectiva, o DS equivaleria aos valores éticos e normativos de “liberdade, igualdade e fraternidade” que, exigindo democracia, vêm orientando por mais de dois séculos as rotas da modernidade.1
O DS desafia a visão tradicional de progresso e submete os imperativos do progresso à consideração de suas implicações sociais e ambientais, revisitando e atualizando o ideário modernista. E vai além da igualdade formal entre os membros das gerações presentes, exigindo que se preservem as condições operantes da natureza como precondição de uma equidade substantiva, material, entre essas e as futuras gerações.2
As evidências de insustentabilidade nos modelos de produção e consumo das sociedades contemporâneas têm feito a busca por valores sustentáveis algo cada vez mais urgente. Também crescente é a consciência sobre a insustentabilidade dos modelos atuais de desenvolvimento, o que tem pressionado a sociedade a adotar valores que priorizem a sustentabilidade e a justiça social.
A percepção dos riscos concretizados nas crises sistêmicas da economia mundial exacerbadas por Wall Street em 2007-2008 e pela covid-19 em 2020 e pelos alarmantes fenômenos de mudança climática, como exposto no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) de outubro de 2018, intensificou a oposição cada vez mais flagrante entre sustentabilidade e insustentabilidade. Nesse contexto, surgiram novas abordagens teóricas e práticas que sustentam o pensamento do DS.3 De um lado, operadores teórico-metodológicos são aqueles que, pelo enunciado positivo ou crítica, dão consistência ao ideário por meio da capacidade acumulada pela ciência. De outro, os programáticos, considerando o que indica a ciência e outras formas de conhecimento, se oferecem como programas de ação. Ambas
FRANCISCO DE ASSIS COSTA é professor titular na Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador da Rede de Pesquisa em Sistemas e Arranjos Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Foi visiting fellow no Centre for Brazilian Studies (CBS) da Universidade de Oxford. É membro do Painel Científico da Amazônia (SPA).
as dimensões são essenciais, não apenas em debates acadêmicos e em instituições multilaterais que buscam implementar políticas de Estado eficazes em diferentes níveis.14
Parte importante das operações teórico-metodológicas foca na criação de meios de leitura do insustentável-sustentável, envolvendo tanto as referências teóricas necessárias para abordar suas determinações quanto as métricas para visualizar os fenômenos inerentes.5
Um núcleo neoclássico, representado pela economia ambiental e pelos recursos naturais, vê as causas da insustentabilidade apenas como falhas de mercado, tratadas como externalidades.6 Essas falhas seriam corrigidas pela internalização dos efeitos externos nas estruturas de custos e receitas das empresas, expressando em preços as perdas e ganhos ambientais resultantes das atividades econômicas. Segundo essa visão, um novo ponto de equilíbrio se alcançaria, garantindo um nível ótimo de sustentabilidade sancionado pelo mercado e seus critérios de eficiência.7
Críticos apontam que os princípios pressupostos por essa abordagem – como a transitividade das formas de capital, a utilidade baseada na escassez e a homogeneidade dos agentes – limitam a expressão dos anseios do DS, esvaziando seu conteúdo ético-normativo. A suposição de racionalidade padrão e substantiva de agentes homogêneos resulta na incapacidade de tratar diferenças, dificultando a garantia de equidade social e justiça ambiental intergeracional. Para tanto, grupos sociais distintos e estruturas produtivas diversas devem ser vistos em suas especificidades e historicidades, com responsabilidades e direitos compatíveis.8
Outra crítica surge como economia política, endogenizando a dimensão natural dos processos econômicos ao destacar a inerência da entropia do mundo físico a esses processos, particularmente sob o capitalismo industrial.9 Com a noção de entropia, cada ato produtivo é visto como uma afirmação da segunda lei da termodinâmica, onde a desordem dos fundamentos vitais cresce. O capitalismo aprofundou a divisão do trabalho e a industrialização da agricultura, resultando em maior uso de energia fóssil e substituição de biomas, aumentando a entropia.10
Nessa perspectiva, os níveis de entropia refletem respostas técnicas do sistema produtivo, que podem ser expressas através de modelos evolucionários similares ao paradigma tecnológico de Giovanni Dosi, de 1982: um modelo baseado em princípios científicos e tecnologias reconhecidas, incorporado nos sistemas de inovação de uma época, definindo problemas e soluções. A liberação de hidrocarbonetos e a redução da biodiversidade associam-se às trajetórias tecnológicas operantes sob um paradigma tecnológico que induz os agentes a recorrer instantânea e acriticamente a soluções mecânicas e químicas, desde inovações incrementais até as que reciclam trajetórias com os recursos oferecidos pelos motores a combustão, eletricidade, eletrônica, computação e cibernética.
A dominância desse paradigma mecânico-químico produziu desestruturação da base material da vida, revelando a temeridade dos diagnósticos de “sustentabilidade fraca” da economia neoclássica, que pressupõe, com a absorção das externalidades pelo aparelho produtivo, plena reversibilidade dos equilíbrios. Frente aos riscos de perda de condições materiais essenciais para a vida no planeta, a economia ecológica exige avaliações por critérios de “sustentabilidade forte”, que consideram a entropia física dos processos sociais e ressaltam as incertezas e indeterminações nas crises sistêmicas.11
Entretanto, na oposição sustentabilidade-insustentabilidade, surgem possibilidades de dinâmicas de entropia baixa, nula ou negativa (negentrópicas, sintrópicas), sugerindo vias de desenvolvimento com ampliação das fontes de energia livres de hidrocarbonetos e criação de sistemas abertos à entrada de energia solar, especialmente os de base biológica.12 Reconhecendo os riscos de irreversibilidade na ultrapassagem de fronteiras naturais críticas e as limitações do paradigma vigente, essa perspectiva sugere outros paradigmas que possibilitem coevolução sustentável entre sistemas econômicos e ecológicos,13 exemplificada por populações indígenas e caboclas na Amazônia.14
No contexto da transição verde – do insustentável de sistemas de alta entropia para um futuro sustentável baseado em sistemas negentrópicos ou de baixa entropia – surgem movimentos densos de ideias. Convergências teóricas das heterodoxias keynesianas, schumpeterianas e institucionalistas, inicialmente em torno da categoria de trajetória tecnológica,15 ganham amplitude e densidade. A mudança ecológica e social pretendida pelo DS ocorre por trajetórias tecnológicas concorrentes, conduzidas por racionalidades diversas, subsidiárias de paradigmas tecnológicos ou sociotécnicos concorrentes, em territórios específicos, sujeitos a lock-ins, indeterminação e irreversibilidade.16
O papel do Estado e das políticas públicas é central,17 exigindo uma atuação mais intensa e frequente em um arranjo moderno em que o Estado, em diversas esferas de governo, especifica diretrizes e arregimenta financiamentos, enquanto reconhece a necessidade de experimentações locais densamente participativas.18 Nessas bases, constroem-se grandes operadores programáticos do desenvolvimento sustentável.
Os operadores programáticos, valendo-se das avaliações geradas pelos operadores teórico-metodológicos,19 delineiam panoramas de possibilidades, organizam portfólios de alternativas e realizam planos e linhas de ação que, ao abordar aspectos específicos da insustentabilidade, dão sentido concreto ao ideário da sustentabilidade.
Economias, crescimento e acordos verdes: Organizações multilaterais elaboraram grandes programas como o “Crescimento Verde” do Banco Mundial e a “Economia Verde” da ONU, lançados com grande expectativa na virada para os anos 2010, como orientação para programas de recuperação e desenvolvimento pós-crise de 2008.20 Apoiadas por essas posições, as operações realizam-se em sentido top-down e referem-se ao paradigma dominante – centrado na mecânica e na química de hidrocarbonetos, potenciadas pela eletricidade e cibernética –, buscando mecanismos que levem governos, empresários e consumidores a empreender atividades ambientalmente prudentes, realocar trabalho, capital e tecnologia e garantir suporte a inovações ecológicas.21
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável: Os ODS da ONU, lançados em 2015, são uma continuação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que vigoraram entre 2000 e 2015. Enquanto os ODM focavam em áreas específicas como erradicação da pobreza extrema e combate a doenças, os ODS ampliam o escopo para 17 objetivos integrados que abordam questões sociais, econômicas e ambientais. Esses objetivos incluem erradicação da pobreza, igualdade de gênero, ação climática, educação de qualidade, entre outros, e visam promover um desenvolvimento global sustentável até 2030.22
Esses apelos a compromissos globais refletem a urgência em encontrar soluções para problemas que afetam todos os países, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, reforçando a ideia de que a sustentabilidade é uma responsabilidade coletiva. As formas como tais inputs se transformam em políticas efetivas variam no tempo, países e regiões. Destacam-se as iniciativas dos governos chinês e coreano em programas próprios de economia-verde,23 que aplicavam, já na primeira metade dos anos 2010, 34,3% e 80,5% dos respectivos orçamentos de pesquisa e desenvolvimento em tecnologias limpas.24 As iniciativas norte-americana e da União Europeia, a partir de seus programas green new deal, ganharam novo fôlego desde 2019, após um período de arrefecimento.25
Bioeconomias: Empresas e suas organizações, em fluxos bottom-up, interagem com os grandes movimentos top-down, gerando dinâmicas que as noções correntes de bioeconomia expressam. As operações referem-se às trajetórias tecnológicas filiadas ao paradigma mecânico-químico vigente.
Os movimentos top-down e bottom-up de organizações, governos e empresas ocorrem no interior dos sistemas nacionais de inovação, configurando-os à imagem do DS. Os conceitos e práticas vêm se desenvolvendo com o sentido de transição ecológica: das trajetórias sóciotécnicas insustentáveis para outras, presumivelmente sustentáveis. Onde as técnicas produtivas, por seus conteúdos mecânicos e químicos, mostram-se degradantes para a vida, desenvolvem-se tensões que configuram ambientes de inovações em processos biológicos – biotecnologias. Onde os impactos à vida humana e aos ciclos naturais resultam de processos produtivos inorgânicos ou finitos, desenvolve-se o foco em produtos de base biológica e renovável – bioprodutos.
Esse movimento reflete-se em noções de bioeconomias que constituem rotas mainstream. Na Europa, a ênfase está nas inovações biotecnológicas aplicáveis em setores diversos, como as biorefinarias na indústria.26 Nos Estados Unidos, o foco é em bioprodutos, visando substituir insumos industriais não renováveis por recursos biológicos renováveis.27
Tais trajetórias – bioeconomias de processo e de produtos – buscam soluções tecnológicas baseadas na natureza, complementando os esforços na superação dos desafios impostos pela crise ecológica global aos padrões mecânico-químicos na indústria e agricultura.
OSETOR RURAL É FUNDAMENTAL para toda a problemática. Diferentemente da indústria, a natureza viva opera como força produtiva no meio rural. A lógica industrial-capitalista busca reduzir essa presença e controlar seu significado, assim como faz em relação ao trabalho humano. Tal esforço induziu a modernização agrícola pela industrialização, dominada pelo paradigma mecânico-químico, que se afirma por meio de soluções para controlar a natureza para atender às necessidades industriais e capitalistas.28
Em contraponto, verifica-se um paradigma agroecológico-florestal, marginal, orientado para soluções tecnológicas harmoniosas com a natureza, gestão da diversidade dos sistemas botânicos e sua autonomia em relação às fontes exógenas de energia e nutrientes.29 Nele, residem possibilidades de soluções negentrópicas,
guiadas pelo princípio de entropia negativa, que orientam o desenvolvimento com esperança de sustentabilidade.
Associadas ao paradigma mecânico-químico na agricultura, observam-se, no plano mundial, variantes de duas grandes trajetórias: uma, preponderante em áreas com restrições fundiárias, eleva a rentabilidade com maior produtividade da terra, intensificando o uso da química; a outra atende ao imperativo econômico majoritariamente pelo aumento da produtividade do trabalho, com maior uso da mecânica potenciada por motores a combustão interna, eletricidade, eletrônica e informática.30 Soluções biológicas, como o desenvolvimento de variedades de maior rendimento em plantios homogêneos, fazem parte desse paradigma, potenciando as soluções mecânicas ou químicas dominantes.31
As noções de bioeconomias biotecnológicas e de bioprodutos mencionadas anteriormente referem-se, no caso da agricultura, a essas variantes de biologização, ou esverdeamento, das trajetórias mecânico-químicas. Elas focam na redução da “pegada de carbono”, mobilizando diferentes possibilidades em portfólios técnicos de descarbonização, reflorestamento, valorização de produtos energéticos e domesticação de espécies botânicas.
Aassociadas ao paradigma agroecológico-florestal, desenvolvem-se trajetórias tecnológicas focadas na valorização de processos ecológicos que otimizam o uso de energias e nutrientes com base em biodiversidade, contrapondo-se à monocultura e à degradação do solo.32 Trata-se de uma bioeconomia bioecológica, guiada por princípios agroecológicos ou agroflorestais, referida a biomas originários e aderentes às necessidades de inclusão e equidade social.
OPERAÇÕES NOS MOLDES DOS PROGRAMAS Green New Deal devem ser desenhadas para o Brasil, com o objetivo de reduzir a “pegada de carbono” por meio da reciclagem de trajetórias mecânico-químicas, baseadas em inovações biotecnológicas e no uso de biorecursos na indústria, nos serviços e na agricultura. Essas adaptações devem também contemplar a correção das desigualdades sociais inerentes a tais processos, espelhando os programas internacionais nesse aspecto.33
É fundamental adotar uma abordagem programática que promova trajetórias alinhadas ao paradigma agroecológico-florestal, com foco na dinâmica rural voltada para bioeconomias bioecológicas baseadas nos biomas nacionais, destacando a importância da Amazônia.
A Amazônia Legal é um espaço de significativas transformações agrárias, críticas para o DS do Brasil. Entre 1970 e 2017, 81 milhões de hectares de terras públicas foram privatizadas, sendo 80% desse total durante a ditadura militar, no contexto da “Operação Amazônia”. Entre 1985 e 2006, houve uma pausa nas apropriações, mas de 2006 a 2017 esse processo foi retomado com grande intensidade, liderado por grandes propriedades. Em 2017, a área total ocupada por estabelecimentos agrícolas alcançou 131 milhões de hectares.
Nesse contexto, a economia agrária cresceu aceleradamente. A taxa de crescimento do Valor Bruto da Produção (VBP) agrário foi de 5,2% ao ano entre 1995 e 2006, aumentando para 7,7% entre 2006 e 2017 e atingindo 13,6% ao ano posteriormente. Em termos absolutos, esse valor saltou de R$ 34 bilhões para R$ 250 bilhões a preços constantes de 2020. Esse crescimento implicou uma pro-
funda reestruturação produtiva, acompanhada por intensa movimentação fundiária e um aumento catastrófico no desmatamento, resultando em elevadas emissões de gases de efeito estufa.
D OIS MODOS DE PRODUÇÃO PREDOMINAM no agrário da Amazônia: o patronal, baseado no assalariamento, e o familiar, ou camponês, baseado no trabalho familiar. A produção patronal passou de 53% do VBP agrário em 1995 para 83% em 2017, enquanto a produção familiar caiu de 47% para 17% no mesmo período. Em 2022, o agronegócio patronal dominava 90% da economia agrária da região.
As trajetórias patronais: O agronegócio patronal na Amazônia segue três principais trajetórias sociotecnológicas, todas orientadas pelo paradigma mecânico-químico de desenvolvimento agrícola: produção de grãos (TSTPat-Grãos), pecuária de corte (TSTPat-Pecuária) e plantações permanentes homogêneas (TSTPat-Plantations).
As trajetórias de grãos e de pecuária são as de maior peso e dinâmicas. A produção de grãos, dominada pela soja e milho, foi a que mais cresceu, com um aumento anual de 10% no VBP entre 1995 e 2017, multiplicando-se por 2,5 nos anos seguintes. A demanda global, especialmente da China, foi um fator crucial para esse crescimento, como indicado pelo aumento dos preços, que explicou 5% do crescimento do VBP em 2019, 10% em 2020 e 45% em 2021 e 2022. Desde 2017, para dar conta de tal dinâmica, a produção de grãos demandou cerca de adicionais 7 milhões de hectares de terras desmatadas.
A produção pecuária, por sua vez, cresceu a uma taxa anual de 3,8% entre 1995 e 2006, dobrando para 7,8% entre 2006 e 2017. Em 2022, representava 25% da economia agrária da Amazônia. Nos últimos cinco anos, necessitou de outros 7 milhões de hectares de terras desmatadas. No total, cerca de 14 milhões de hectares de novas terras desmatadas foram incorporadas por essas trajetórias nos cinco anos seguintes ao último censo agropecuário.
Numa contabilidade estrita, a TSTPat-Pecuária foi responsável por 60% das emissões de CO2 da agropecuária entre 1995 e 2006, aumentando para 65% entre 2006 e 2017.34 Contudo, ambas trajetórias cresceram de forma interligada, com a primeira absorvendo terras já desmatadas pela segunda, resultando em ganhos econômicos significativos para ambas. A interação entre essas trajetórias impulsionou a expansão e competitividade do agronegócio na região.35 A trajetória TSTPat-Plantation cresceu modestamente, a uma taxa de 0,7% ao ano, mantendo uma participação de 3% na economia agrária em 2017. Embora dependente de insumos químicos e mecânicos, apresenta um perfil ambiental mais favorável em comparação às demais trajetórias patronais, com 50% de suas áreas desmatadas mantidas com coberturas permanentes, resultando em emissões de carbono consideravelmente menores.36
As trajetórias camponesas: Na Amazônia, são representadas pela TSTCamp-Agricultura, caracterizada por sistemas de produção que tendem à especialização agrícola, particularmente em culturas temporárias; pela TSTCamp-Pecuária, cuja produção é cada vez mais dependente da pecuária de corte e de leite; e pela TSTCamp-SAFs, baseada em sistemas agroflorestais. As duas primeiras refletem modos camponeses de incorporação de soluções mecânico-químicas para seus desafios produtivos, enquanto a última se alinha ao paradigma agroecológico e agroflorestal.
As dinâmicas mais notáveis entre os camponeses referem-se aos processos de conversão da TSTCamp-Agricultura, parte para a TSTCamp-Pecuária e parte para a TSTCamp-SAFs. Enquanto a primeira trajetória declinou ao longo de todo o período, a uma taxa de -1,6% ao ano entre 1995 e 2017 e -4,0% até 2022, a TSTCamp-Pecuária cresceu a uma taxa média de 4,8% ao ano entre os censos e continuou crescendo a 4% ao ano. A par disso, sua participação relativa na área desmatada total mais que dobrou, de 6% para 13% . Por outro lado, a TSTCamp-SAFs cresceu a taxas significativas de 3,5% ao ano até 2017. Desde então, porém, vem decrescendo a -2,9% ao ano, com o crescimento positivo da produção, a 2,6% ao ano, sendo contrabalançado por uma queda nos preços a -5%.
Sob a perspectiva do DS, seria esperado que a política pública se concentrasse no fortalecimento enfático da TSTCamp-SAFs, dados seus atributos de baixa entropia física, elevada capacidade de produzir negentropia e alto potencial distributivo (correção de desigualdade), mobilizando as capacidades tecnológicas já existentes no contexto do paradigma agroflorestal e agroecológico. Também seria desejável fortalecer a TSTPat-Plantation, considerando sua baixa emissão líquida de CO2, reorientando-a para um maior nível de diversidade e complexidade, além de reorientar a TSTCamp-Agricultura para uma maior diversidade e complexidade e conter a TSTPat-Pecuária, reorientando fortemente a TTP7 e a TTP3.
No entanto, a política atual segue em direção contrária: privilegia as TSTPat-Pecuária, TSTPat-Grãos e TSTCamp-Pecuária como são, oferecendo-lhes maiores fluxos de crédito e suporte tecnológico, em detrimento das TSTCamp-SAFs, TSTCamp-Agricultura e TSTPat-Plantation. Os órgãos de fomento, por sua vez, ignoram os portfólios e repertórios técnicos do paradigma agroflorestal ou agroecológico, pois as fontes de conhecimento que formam e orientam seus técnicos não os reconhecem.
Um programa de DS para a Amazônia precisa reverter essa situação. Por um lado, mobilizando os recursos das bioeconomias de esverdeamento, que incluem inovações biotecnológicas, como técnicas de coberturas vivas e outras baseadas na natureza para grãos e outras commodities, além de bioprodutos como técnicas de reflorestamento, dentro das trajetórias guiadas pelo paradigma mecânico-químico, sem perder de vista os limites dessas variantes dentro dos princípios do paradigma.
Por outro lado, é necessário fortalecer o paradigma agroecológico, recorrendo aos portfólios do paradigma agroflorestal, visando à conversão das trajetórias patronais, como o repertório já existente da agricultura sintrópica de grande escala.37 E impulsionando a bioeconomia bioecológica representada pela TSTCamp-SAFs, a única expressão do paradigma agroecológico na Amazônia, que discutiremos a seguir.
AÊNFASE NA BIOECONOMIA BIOECOLÓGICA, ou da sociobiodiversidade, referida ao bioma da Amazônia como base para políticas de DS traz questões específicas. É importante reconhecer que tais economias já existem e que representam segmentos significativos tanto em escala – em termos de valor de produção e emprego – quanto em escopo, abrangendo cadeias curtas e longas de uma grande variedade de produtos. Portanto, o objetivo principal não é criar novas economias ou varian-
tes mais sustentáveis de trajetórias insustentáveis, mas sim fortalecer as estruturas e trajetórias já existentes (como a TSTCamp-SAFs), que são inclusivas por natureza devido às suas relações sociais distributivas ou domésticas e ambientalmente saudáveis devido às características bioecológicas de suas técnicas.
Assim, as questões fundamentais envolvem fortalecer economias socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis já existentes, superando as profundas assimetrias nas atuais relações com o mercado e com políticas que lhes proporcionam bases infraestruturais, organizacionais e mercadológicas precárias. É preciso que essas economias façam a transição para novas situações em que tais interações sejam cumulativamente virtuosas, elevando seus recursos e capacidades de vida e trabalho.
Os grupos camponeses, frequentemente denominados populações tradicionais na Amazônia, são os protagonistas da bioeconomia da sociobiodiversidade. Esses camponeses se dividem em:38 Campesinato Caboclo Originário (CbO); Campesinato Caboclo Imigrante (CbI); Campesinato Imigrante Pós-Borracha (CpB);Campesinato Imigrante Recente (ReC).
Um dos desafios mais significativos da economia baseada em bioma está em seus fundamentos técnicos e nas inovações nesse campo. As capacidades e os conhecimentos acumulados nas universidades e institutos de pesquisa, para onde se estima grosseiramente irem acima de 95% dos recursos de geração e difusão de conhecimento, são voltados para a produção padronizada em larga escala, baseada em mecânica e química, com a biologia atuando como uma engenharia de controle e padronização que potencializa o uso da mecânica e da química. No entanto, a economia baseada em bioma requer um conhecimento que seja primordialmente embasado em biologia viva e operante, com uso subordinado de mecânica (flexível) e química, para gerir a diversidade e ter nela o fundamento de eficiência social, ecológica e econômica. Essa tensão reflete um conflito paradigmático entre um modelo mecânico-químico e um paradigma orgânico de organização e evolução técnica da produção.39
Podemos identificar duas variantes tecnológicas rurais da economia baseada em bioma (TSTCamp-SAFs): 40
• SAFs-F: Inicia com o manejo da floresta e evolui, através de um extrativismo dinâmico, pela incorporação gradual de novos componentes florestais, agrícolas ou pecuários, sejam locais ou exógenos.
• SAFs-A: Parte de uma agricultura homogênea e evolui por meio de composições cada vez mais complexas de variedades locais ou exógenas.
Mudança técnica e inovações nos SAFs-F: A variante da economia baseada em bioma que maneja recursos botânicos, fundiários e aquáticos originais – as terras, as florestas e os rios – (SAFs-F) é dotada de sistemas produtivos diversos e complexos. Na Amazônia, esses sistemas combinam, nas várzeas do estuário, o extrativismo de coleta com plantios de culturas permanentes e pesca; nas várzeas do baixo e médio Amazonas, desenvolvem uma pecuária de várzea de alta peculiaridade; na terra firme, o extrativismo de coleta se articula primordialmente com culturas temporárias e permanentes.
O manejo dos recursos florestais e sua associação com diferentes formas de agricultura é uma capacidade ancestral das populações amazônicas, enraizada em seus conhecimentos tácitos e internalizada em suas culturas. Desde a segunda metade dos anos 1990, diversos estudos demonstram ser possível a interação dessas capacidades
com conhecimentos laboratoriais, como os da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) no Amapá e no Pará, ou do Museu Paraense Emilio Goeldi no Pará. Todavia, essas são iniciativas marginais; o sistema nacional de inovação, em geral, e o voltado à agricultura, em particular, moldados pelo paradigma mecânico-químico dominante, dedicam pouca de suas capacidades a essa direção. Mudança técnica e inovações nos SAFs-A: A economia baseada em bioma que desenvolve sistemas botânicos semelhantes à floresta após uso agrícola ou pecuário intenso, que levou à supressão da cobertura original (SAFs-A), tem se desenvolvido em associação com grandes experiências de colonização agrícola. Essas incluem a Bragantina, protagonizada por nordestinos desde o fim do século XIX e que avançou sobre a Guajarina durante a primeira metade do século XX; a microrregião de Tomé-Açu, conduzida por imigrantes japoneses desde 1929; e as experiências da Transamazônica e de Rondônia, iniciadas no começo dos anos 1970 com a presença de colonos de várias partes do Brasil, especialmente do Sul e Sudeste. Nessas áreas, desenvolveram-se capacidades para gerir SAFs complexos, onde pesquisadores notaram que as sequências de culturas se assemelham à sucessão natural do bioma, permitindo o uso contínuo dos campos agrícolas.
ALITERATURA RECENTE SOBRE BIOECONOMIA frequentemente foca na articulação entre biodiversidade e inovações industriais, baseadas em pesquisas científicas de ponta e conduzidas por profissionais altamente qualificados. Esses avanços são em geral aplicados em grandes plantas industriais, que exploram os recursos da biodiversidade e estão conectadas a cadeias de produtos e serviços globais. Muitas vezes, essas grandes empresas colaboram com firmas menores, que têm maior capilaridade no território e capacidade de inovação. No entanto, essa perspectiva de industrialização apresenta trade-offs significativos para a economia baseada em bioma na Amazônia. Por um lado, a eficiência industrial pressuposta, que depende de grandes escalas de operação, tende a favorecer mercados distantes e exigir uma uniformização das fontes de insumos, o que pode comprometer o caráter bioecológico da economia. Por outro lado, a economia baseada em bioma na Amazônia se concentra na oferta de uma vasta gama de produtos da biodiversidade para mercados locais, por meio de cadeias curtas que atendem grande parte da população rural e urbana da região.
Portanto, uma estratégia para fortalecer a economia baseada em bioma deve promover uma industrialização flexível, adaptada à diversidade e à capacidade das bases de suprimento. Esta estratégia deve integrar inovações globais ou frugais ao conhecimento local, buscar a promoção de bases de exportação e, ao mesmo tempo, atender às necessidades domésticas por meio de arranjos produtivos territorialmente delimitados.
Uma estratégia de inovação na produção rural e industrial deve ser acompanhada de uma abordagem mercadológica, do que deve fazer parte um marketing territorial que valorize a diversidade e a especiação dos produtos. A valorização por especiação envolve a diferenciação das qualidades objetivas e simbólicas permitidas pela própria diversidade do território do bioma.
Nas cadeias curtas: reconhecimento e codificação dos critérios
culturais que qualificam os produtos, por exemplo o açaí, e definem seus usos; valorização do repertório local de usos culturalmente estabelecidos; ampliação das oportunidades criativas para diversificação de usos, incluindo aqueles que dialogam com tendências globais; fortalecimento simbólico da identidade territorial do açaí.
Nas cadeias longas: levar ao mundo a identidade territorial amazônica dos produtos relacionados ao seu bioma, integrando elementos culturais aos produtos e explorando sua exportação; trazer o mundo para vivenciar o território por meio do turismo; impregnar o valor global com conteúdos locais.
Garantias fundiárias: As economias baseadas em bioma frequentemente envolvem recursos de uso comum. Movimentos identitários e étnicos, juntamente com a ambientalização da questão agrária, ajudaram a promover o reconhecimento, proteção e titulação de terras de uso comum em países do hemisfério Sul.41 No Brasil, isso gerou políticas de reconhecimento e valorização dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, resultando na criação de terras indígenas (TI), territórios quilombolas, reservas extrativistas (Resex), florestas nacionais e assentamentos de reforma agrária, como os Projetos de Assentamento Agroextrativistas (PAE), bem como suas versões estaduais.
No entanto, a partir de 2009, o foco das políticas fundiárias estaduais e federais mudou para a regularização fundiária de posses individuais, muitas vezes envoltas em disputas possessórias e passivos ambientais, como o Programa Terra Legal. É crucial desenvolver inovações institucionais que garantam a titularidade das terras para os campesinatos históricos e recentes e os povos originários que sustentam a sociobiodiversidade.
As políticas de assistência técnica e crédito de fomento no Brasil são predominantemente moldadas pelo paradigma mecânico-químico.42 Inovações institucionais são necessárias para garantir um financiamento adequado à economia baseada em biomas, focadas em SAFs, e não apenas em produtos, e lastreadas em propriedade comum e pertencimento associativo e cooperativo.
A pesquisa em economia urbana destaca que os processos de urbanização e as características dos centros urbanos desempenham um papel crucial na criação e manutenção de economias dinâmicas e inovadoras. A abordagem dos problemas ambientais do ponto de vista urbano também é um debate consolidado. Portanto, a produção social do espaço urbano na Amazônia é fundamental para desenvolver uma agenda para economias baseadas em bioma.
As grandes áreas urbanas oferecem vantagens da aglomeração humana e da escala urbana, proporcionando alternativas para superar os desafios de integração econômica e ambiental entre sistemas produtivos baseados em escala, especialização e alta tecnologia e as bases naturais intensivas em biodiversidade.
A inovação infraestrutural para a economia da sociobiodiversidade envolve a identificação e dinamização dos nexos entre a diversidade das economias urbanas e a diversidade natural, aproveitando a capacidade dos sistemas vivos da natureza para fundamentar processos de expansão e diversificação da vida material e social. Essa perspectiva ainda é pouco explorada nas políticas de desenvolvimento sustentável O
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