Tecnologia digital para sustentabilidade

Como fazer do design thinking uma ferramenta mais útil às comunidades
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movimentobemmaior.org.br
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POR ANNE-LAURE FAYARD E SARAH FATHALLAH
O design thinking não cumpriu a promessa de resolver os grandes desafios sociais da humanidade. Uma nova postura, mais crítica, pode ajudar designers a colocar a comunidade, e não a própria metodologia, em primeiro plano
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O movimento pelo lobby do bem
PORALBERTO
ALEMANNOMuitas organizações sem fins lucrativos e fundações rejeitam o lobby como algo suspeito. Mas um novo movimento vem defendendo essa prática como essencial para a promoção de uma mudança social
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Como os negócios podem enfrentar o populismo
POR ZENA AL-ESIA, ANDREW CRANE, KOSTAS IATRIDIS E AYŞE YORGANCIOĞLU
No mundo todo, o populismo ressurge, ameaçando diretamente não só governos democráticos, mas também empresas socialmente responsáveis. Apesar dessa ameaça, empresas ainda podem agir corretamente e apoiar forças democráticas liberais
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Sustentabilidade digital para um futuro melhor
ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Christoph NiemannPOR JULIA BINDER E MICHAEL WADE
Se aplicada da forma correta, a tecnologia pode melhorar o desempenho organizacional e a vida das pessoas e proteger o planeta
A solução para definir e, assim, proteger a sociobioeconomia pode estar na criação de uma ferramenta de certificação sensível aos modos de vida dessas comunidades.
— DE UM SELO PARA OS GUARDIÕES DA FLORESTA P. 65
4 CARTA AO LEITOR
Minha última coluna
5 EDITORIAL BRASIL
Um novo olhar
SSIR ONLINE
IA para financiadores / IA para ONGs / Contando histórias melhores / Descarbonização em pauta / Brasil nos holofotes
7 O QUE HÁ DE NOVO
Um selante sustentável / A vagina em exposição / Amputados biônicos / Um mundo com legendas
HISTÓRIAS DO CAMPO
11 Aventuras que curam
A Chicago Adventure Therapy está ajudando jovens e famílias em comunidades de alta criminalidade a se curarem por meio da conexão com a natureza
POR KATHY O. BROZEK
13 Ninguém fica para trás
Iniciativa de inclusão prioriza os resultados da preparação emergencial para dar assistência a pessoas com deficiência em catástrofes
POR MARIANNE DHENIN
15 Moradia (para todos) primeiro
A Built for Zero Canada está fazendo avanços significativos para resolver a questão da moradia no país
POR LEIF GREGERSEN
ESTUDO DE CASO
18 O poder dos relacionamentos para transformar sistemas
A Californians for Justice elevou o poder dos jovens ao estabelecer relacionamentos autênticos entre eles e professores, educadores e autoridades. Ao fazer isso, ela reformulou a educação no estado e criou um modelo para uma mudança social mais ampla
POR JOHN KANIA E JUANITA ZERDA
PONTO DE VISTA
61 Filantropia relacional
O setor precisa de uma nova estrutura para construir conexão e confiança com as comunidades que busca servir
POR KATHLEEN BOYLE DALEN E TRACY L. MCFERRIN
63 Além dos ensaios clínicos
Considerar dados qualitativos e usar a ciência comportamental em teorias de mudança amplia impacto
POR JANA SMITH E SARA FLANAGAN
65 Um selo para os guardiões da floresta
Certificar os produtos da sociobioeconomia pode proteger, além do ambiente, valores e saberes ancestrais
POR ANDRÉ BANIWA, RAIZZA MIRANDA, M. CARMEN N. BELDERRAIN, ALEJANDRO OCHOA-ARIAS, TEREZA CRISTINA M.B. CARVALHO, CARLOS NOBRE E ISMAEL NOBRE
67 PESQUISA
A violência policial e as eleições / Modos de vencer as fake news / Melhorando sistemas de saúde
LIVROS
70 Alegria negra em meio à dor
To Build a Black Future DE CHRISTOPHER PAUL HARRIS
71 Vitrine
72 ÚLTIMO OLHAR
Por elas, para elas
ESTA FOI A 72ª EDIÇÃO DA Stanford Social Innovation Review (SSIR) que eu tive o privilégio de ajudar a editar. E também minha última. Estou me aposentando como editor-chefe da SSIR a fim de começar um novo capítulo da vida, com tempo para viajar e para estar com a família e os amigos, além de escrever e achar outras maneiras de continuar engajado na transformação social.
Embora eu esteja animado com a mudança, essa partida é agridoce. Isso porque ser editor-chefe da SSIR era o emprego dos meus sonhos, motivo pelo qual dediquei mais de 17 anos para ajudar a publicação a dar certo. O cargo me possibilitou participar dos avanços no movimento global por justiça social, com o qual estive envolvido desde 1968, quando, aos 14 anos, fui a minha primeira passeata, contra a Guerra do Vietnã. Os artigos que publicamos, as conferências e webinars que organizamos e as parcerias internacionais que construímos tiveram, todos, o propósito de auxiliar organizações mundo afora a melhorar a vida das pessoas e mudar sistemas sociais desiguais.
Durante meu mandato, trouxemos à luz novas ideias e abordagens para resolver problemas difíceis e para que organizações pela transformação social se tornassem mais eficazes. Entre eles, estão textos fundamentais como O desafio de romper o círculo (2009), Design thinking para a inovação social (2010) e Impacto coletivo (2011), para ficar em apenas alguns.
Quando foi o caso, também publicamos artigos que questionaram a eficácia de abordagens que nós mesmos tínhamos ajudado a implementar. Por exemplo, Microfinance Misses Its Mark (O microcrédito erra o alvo, 2007), When Can Impact Investing Create Real Impact? (Quando o investimento de impacto cria realmente impacto?, 2013), When Innovation Goes Wrong (Quando a inovação dá errado, 2016) e The Problem with Carbon Offsets (O problema da compensação de carbono, 2023).
Uma das coisas de que mais me orgulho na SSIR é o papel que ela teve em fazer da inovação social um campo de pesquisa e prática. Quando a SSIR começou, 20 anos atrás, a inovação social ainda usava calças curtas. O termo não era amplamente compreendido, e poucas pessoas ou organizações trabalhavam nele. Hoje, tudo isso mudou. Em minhas viagens pelo mundo, sempre me surpreendo de ver quantos adotam o mesmo léxico e, muitas vezes, metodologias iguais.
Desde o começo, publicamos artigos de vários países sobre diferentes temas, organizações e abordagens à mudança social. Em consequência, pessoas do mundo todo leem nossos textos. Mais de metade das pessoas que visitam nosso site vem de fora dos Estados Unidos. E temos seis parceiros em outros idiomas – árabe, português, chinês, espanhol, japonês e coreano – que traduzem nossos artigos e também produzem outros, originais.
Uma das melhores coisas de colaborar para a construção de uma organização, em vez de trabalhar na sua própria, é que, quando você vai embora, ela continua lá. E isso é totalmente verdadeiro quanto à SSIR, que tem um corpo editorial incrível empenhado em dar seguimento à nossa missão. A partir de agora, fico feliz de me unir a você como um leitor da SSIR. – ERIC NEE
ssir.com.br publicação trimestral volume 2 I número 7 I março 2024
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Editora-chefe Francesca Angiolillo francesca@ssir.com.br
Editor-assistente Bruno Ascenso
Programador Web Daniel Miranda
Estagiária Bárbara Lopes da Silva Mídias sociais Rafael Dias
Colaboraram nessa edição:
Arte Estúdio Monearte
Tradução Ada Felix, Aracy Mendes da Costa, Frank de Oliveira, Gabriela Fróes
Revisão Mauro de Barros
Conselho Editorial
Daniela Pinheiro
Eliane Trindade
Gabriel Cardoso
Graciela Selaimen
Graziella Comini
Guilherme Coelho
Marcos Paulo Lucca Silveira
Richard Sippli
Mantenedores Institucionais
Fundação José Luiz Egydio Setúbal
Instituto Sabin
Movimento Bem Maior
Samambaia Filantropias
CIVI-CO | Negócios de Impacto Social
R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 Pinheiros, São Paulo – SP, 05415-030
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Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review
Editor-chefe Eric Nee
Editora acadêmica Johanna Mair
Editores Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride, Bryan Maygers, David V. Johnson, Marcie Bianco
Editora edições Jenifer Morgan globais
Conselho Consultivo Acadêmico
Paola Perez-Aleman, Universidade McGill
Josh Cohen, Universidade Stanford
Alnoor Ebrahim, Universidade Tufts
Marshall Ganz, Universidade Harvard
Chip Heath, Universidade Stanford
Andrew Hoffman, Universidade de Michigan
Dean Karlan, Universidade Yale
Anita McGahan, Universidade de Toronto
Lynn Meskell, Universidade Stanford
Len Ortolano, Universidade Stanford
Francie Ostrower, Universidade do Texas
Anne Claire Pache, Essec Business School
Woody Powell, Universidade Stanford
Rob Reich, Universidade Stanford
A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Universidade Stanford. Todos os direitos reservados.
A CADA TRIMESTRE, quando chega o momento de redigir esta carta, olho para os textos da edição e penso o que os une. Antes de mim, um grupo de profissionais muito competentes decidiu, sob a batuta do editor-chefe, o conjunto que formará um número da Stanford Social Innovation Review. Meu papel é compor um arranjo que traga notas nacionais e que faça compreensível e útil o que eles harmonizaram tão bem.
Nesta edição, creio que a tônica dominante seja a de lançar novo olhar sobre ideias que já estão por aí.
Assim, o artigo de capa fala de renovar o design thinking. É preciso que a metodologia, tão vastamente difundida, seja adotada com uma abordagem crítica para fazer jus às expectativas associadas a seu nome, segundo Anne-Laure Fayard e Sarah Fathallah.
Falando em nomes, pode ter chegado o momento de tirar a pecha do “lobby”. A desmistificação da atividade, associada popularmente a negócios escusos, pode ser extremamente benéfica, se a ela tiver acesso o cidadão comum, defende Alberto Alemanno.
Responsabilidade social empresarial (RSE) é outra expressão a ganhar sentido ampliado. Diante da ameaça que o populismo representa, a RSE pode ser uma força capaz de fortalecer a democracia. O artigo de Zena Al-Esia, Andrew Crane, Kostas Iatridis e Ayşe Yorgancioğlu mostra como.
Por fim, que tal olhar para a tecnologia digital e sustentabilidade não como áreas separadas, mas como uma ação conjunta que desenhe um futuro melhor para o planeta? Isso já está acontecendo, segundo os exemplos trazidos por Julia Binder e Michael Wade.
Outros artigos propõem um novo olhar sobre filantropia e educação; sobre avaliações e inclusão; sobre a possibilidade de um futuro com alegria para os negros.
Muito especialmente, ressalto a novidade trazida por um texto nacional, Um selo para os guardiões da floresta. Escrito por um grupo extenso de pesquisadores de sociobioeconomia para a seção “Ponto de vista”, propõe a criação de uma certificação que identifique e proteja os produtos desses povos – e, com isso, o ambiente e a cultura em que vivem.
A SSIR também se renova. Como você já deve ter lido na página anterior, o maestro que orquestrou quase tudo isso mudou. Esperamos que Eric Nee esteja aproveitando seu papel de leitor e damos as boas-vindas a seu sucessor, Nicholas Jackson, que vocês conhecerão a partir da próxima edição da revista. – FRANCESCA ANGIOLILLO
ARTIGO | Dez maneiras para financiadores abordarem a IA generativa Há muito a fazer se quisermos aproveitar ao máximo os benefícios da inteligência artificial (IA) com o mínimo de danos associados a ela. Kelly Born, diretora da Iniciativa por Democracia, Direitos e Governança da Fundação Packard, descreve dez formas como financiadores podem apoiar esse trabalho, desde o desenvolvimento de novas teorias políticas e jurídicas até a construção de instituições colaborativas.
ARTIGO | Oito passos para adoção da IA de maneira responsável
A IA tem o potencial de poupar às pessoas milhares de horas de trabalho mecânico, deixando-as livres para aquilo que só elas podem fazer: resolver problemas, aprofundar relacionamentos e construir comunidades. Ansiando por isso, entidades podem mergulhar na tecnologia sem pesar bem as consequências humanas ou éticas. Para se preparar, é preciso criar, agora mesmo, políticas robustas de uso ético e responsável.
ARTIGO | Como contar histórias reais sobre impacto
As organizações sem fins lucrativos e filantrópicas gostam de contar histórias sobre seu impacto. Mas muitas delas podem parecer contos de fada da mudança social, escreve Annie Neimand. Em vez disso, as organizações deveriam aprimorar as histórias que contam, recorrendo às ciências sociais e utilizando melhores técnicas narrativas. As grandes histórias são as
facebook.com/ssirbrasil
que criam tensão e incerteza e enquadram as lutas e desafios dos personagens em sistemas muito maiores.
ARTIGO | Os desafios a uma transição energética justa No ano que vem, o Brasil sediará a 30ª Conferência do Clima da ONU, em Belém, e tem a missão de se alinhar com os compromissos da 28ª COP, em Dubai, e os que virão da 29ª, que será em Baku, para uma transição energética equitativa. O texto de Cristiane Prizibisczki, que cobriu a 28ª COP para o canal ((o)) eco, traz um balanço das últimas edições da conferência, das metas a serem alcançadas e dos desafios dessa contra o tempo.
WEBINAR | Caminhos para Belém: Desafios da COP 30 Nesse evento realizado em janeiro, uma parceria entre a Stanford Social Innovation Review Brasil e ((o)) eco, especialistas convidados debateram os rumos que o país deve tomar para estar no centro dessa roda, ao sediar a COP 30 em 2025. Políticas públicas, ativismo e desafios foram discutidos à luz das conclusões da COP 28, realizada em novembro último em Dubai. Com Kamila Camilo, Brenda Brito, Stela Herschmann e Claudio Angelo. Mediação de Cristiane Prizibiscski.
MEIO AMBIENTE
Engenheiro aeronáutico filipino inventa material orgânico à base de resina de árvore local para substituir produto tóxico
ANNE LAGAMAYO POREm 2018, Mark Kennedy Bantugon, estudante de engenharia aeronáutica e estagiário nos departamentos de manutenção de aviação das companhias Philippine Airlines e da Lufthansa, notou o odor desagradável dos selantes usados para reparar aviões, evitar vazamento de combustível e proteger áreas expostas à água ou intempéries. Selantes comerciais são feitos de polissulfeto, composto químico sintético amplamente utilizado há mais de 50 anos e que, embora eficaz, é tóxico para seres humanos e causa sérias irritações dermatológicas, respiratórias e oculares. Bantugon e seus colegas de trabalho precisavam usar equipamentos de proteção individual (EPIs) completos para manuseá-los.
Em 2019, Bantugon decidiu que inventaria, para sua tese de conclusão de curso no Philippine State College of Aeronautics, um selante de aviação sustentável e não tóxico. Ele batizou este que é o primeiro selante sustentável de aeronaves a existir de Pili Seal.
Bantugon se inspirou em sua infância como filho de agricultor para inventar o material orgânico feito com a resina gasta da árvore de pili, nativa das Filipinas. A resina costuma ser usada como adesivo
O engenheiro Mark Kennedy Bantugon posa com sua invenção, o Pili Seal, o primeiro selante sustentável para aeronaves
e é como uma cola secretada pelas árvores, que se solidifica quando exposta ao ar.
Da resina bruta da árvore se destila um óleo essencial usado em perfumes. A resina gasta é considerada um subproduto desse processo de destilação.
O Pili Seal é engenhoso em sua simplicidade: é 90% resina de pili e 10% endurecedor químico, usado para fortalecer a resina à medida que se solidifica. A invenção de Bantugon passou por 20 testes de padrões diferentes, como inflamabilidade e resistência, conduzidos pelo Departamento de Energia das Filipinas e por outras agências governamentais locais. Como o selante passou no teste de toxicidade, os trabalhadores de manutenção da aviação não precisam mais de EPIs para trabalhar com ele e, diferentemente dos selantes comerciais, tem um aroma de “erva-doce com notas cítricas e amadeiradas”.
A invenção de Bantugon atraiu a atenção internacional pela primeira vez em 2021, quando venceu a categoria internacional do James Dyson Award.
Craig Douglas, gerente sênior de design e desenvolvimento da Dyson, explica que um dos principais destaques, para os jurados, foi do ponto de vista da sustentabilidade. “O projeto não apenas causa impactos ambientais diretos, mas também sociais, de saúde e econômicos, pois vimos seu potencial para beneficiar positivamente vários setores.”
Bantugon espera que seu selante crie um fluxo de renda estável para a comunidade agrícola filipina, incluindo seu pai, que cultiva árvores de pili e o inspirou. “Seu tipo de trabalho me permitiu estabelecer uma base boa e forte na educação, particularmente na pesquisa de base experimental alinhada com a agricultura e a sustentabilidade”, diz ele. Seu objetivo final é tornar as Filipinas independentes da importação de selantes de aviação.
O projeto foi patenteado em abril de 2023, e Bantugon o tem apresentado a investidores de seu país e dos Estados Unidos. Ele espera levantar capital suficiente para construir sua própria empresa de fabricação de selantes de aviação. No entanto, a captação de recursos tem se mostrado um desafio para ele. “É a minha primeira vez e não conheço os potenciais investidores. Ainda não construímos uma relação.”
Bantugon prevê a aplicação do selante em outros usos, como carros, eletrônicos, montagem industrial e até telhados. Essa última seria a mais urgente, visto que os filipinos enfrentam tufões crescentes, fortes e destrutivos devido às mudanças climáticas que danificam suas moradias. Para Bantugon, progresso e inovação caminham de mãos dadas com sustentabilidade e resolução de problemas, e ele espera que haja mais invenções como a dele.
“Precisamos de pessoas dispostas a contribuir para resolver um problema e ser parte da solução”, diz ele. "Precisamos plantar a semente certa, não apenas para nossas vidas, mas também para as próximas gerações.” O
ANNE LAGAMAYO é produtora e roteirista. Já escreveu para a CNN, The New York Times e The Atlantic. Cresceu em Manila e atualmente vive em Nova York.
Museu em Londres educa o público sobre saúde ginecológica e reprodutiva para dissipar mitos sexistas e desafiar políticas normativas do corpo
POR MARIANNE DHENINDécadas de vieses de pesquisa e subfinanciamentos, a persistente falta de educação ginecológica e crescentes ataques aos direitos de mulheres, pessoas trans e queer impedem que muitas busquem atendimento médico ou mesmo informações sobre como seus corpos funcionam.
Para apagar o estigma em torno do corpo e da anatomia ginecológica, a comunicadora científica Florence Schechter lançou, em 2017, o Museu da Vagina, o primeiro do mundo dedicado à anatomia ginecológica e à saúde. É um espaço acessível, feminista e transinclusivo cujas exposições e eventos respondem ao clima político antitrans atual, aumentando a conscientização, desafiando comportamentos normativos e crenças sobre gênero e sexualidade e promovendo fóruns para a organização LGBTQ+ e dos direitos das mulheres.
Schechter criou o Museu da Vagina depois de ficar sabendo da existência do Museu do Pênis em Reykjavik, Islândia. “Começou como uma ideia divertida”, diz ela. “Mas, à medida que conversava com mais pessoas, percebi que poderia fazer muito bem. Muitas se preocupavam com a conscientização e o ativismo em saúde, e isso é muito do que o Museu da Vagina faz hoje.”
O museu já havia feito uma série de exposições temporárias e eventos antes de ter seu primeiro espaço
em novembro de 2019. Em poucos meses, no entanto, a pandemia de covid-19 o obrigou a fechar as portas. No início de 2022, reabriu em um novo local temporário e, em abril de 2023, lançou uma campanha de financiamento coletivo para obter 85 mil libras para ter uma sede. O endereço permanente foi aberto ao público em outubro do mesmo ano. “Como as coisas têm sido instáveis, não conseguimos crescer, nos estabelecer ou atender nosso público da melhor maneira possível”, diz Schechter.
Outro desafio é a censura online recorrente, que mina sua missão educacional e limita o alcance a possíveis fãs e financiadores. Postagens que incluam palavras como vagina e clitóris são frequentemente sinalizadas como conteúdo adulto e removidas das redes. Schechter diz que o museu precisa recorrer das remoções e não pode fazer publicidade paga nas plataformas. No entanto, conseguiu aumentar o número global de seguidores por meio de uma estratégia inteligente de mídia social, cartazes e anúncios de outdoor digital em Londres, com atenção significativa da imprensa. Em 2023, ela também publicou um livro inspirado pelo trabalho do museu, V: An Empowering Celebration of the Vulva and Vagina (V: Uma celebração empoderadora da vulva e da vagina).
Os seguidores do museu ajudaram a impulsionar o financiamento da sede, arrecadando quase 90 mil libras por meio de mais de 2.500 doações individuais em apenas dois meses. A empresa The Body Shop também deu seu apoio, patrocinando a exposição Periods: A Brief History (Menstruação: uma breve história), bem como o grupo de investimento filantrópico sueco The Case for Her, cuja missão é abordar questões em torno da menstruação, da saúde feminina e do prazer sexual das mulheres.
“As pessoas querem aprender sobre o corpo”, diz Polly Cohen, pesquisadora clínica acadêmica em saúde sexual e reprodutiva comunitária no University College Hospital e no Mortimer Market Centre, em Londres. Ela, que passou a integrar o conselho de curadores do Museu da Vagina neste ano, diz que as exposições e recursos do museu “ajudam as pessoas a se empoderarem sobre sua saúde”.
Graças ao financiamento coletivo, a instituição conseguiu uma sede no leste de Londres, com três galerias, espaço multiuso e café. A exposição inaugural foi sobre endometriose, e em breve o local ganhará uma edição ampliada de sua exposição permanente, From A to V (De A a V), que aborda anatomia, saúde, diversidade de vulvas e ativismo.
O museu também planeja investir em novas atividades de extensão e parcerias, como a colaboração com a Endometriosis CaRe Oxford e o Wellcome Centre for Human Genetics, da Universidade de Oxford, para uma exposição temporária. “Queremos criar oportunidades para que nossos pesquisadores falem diretamente com o público e ouçam diretamente as pessoas afetadas por qualquer condição que estudem”, diz Brian Mackenwells, responsável pelo engajamento público do Wellcome Centre.
Para Nura Fitnat Topbas Selcuki, pesquisadora do grupo Endometriosis CaRe que está contribuindo com pesquisas sobre adenomiose para a exposição por vir, trabalhar com o Museu da Vagina é empolgante porque fornece “uma zona confortável para falar, aprender ou ver coisas que são estigmatizadas em outros espaços”. O
MARIANNE DH E NIN é jornalista e historiadora premiada.
Com abordagem holística para cuidados protéticos, a oqni está ajudando veteranos armênios a se reintegrarem à sociedade POR
LEONARDO DELFANTI E HUGH BOHANEAArmênia perdeu 3.825 soldados e aproximadamente 75% de seus territórios dentro e no entorno de Nagorno-Karabakh para o Azerbaijão, na guerra de Nagorno-Karabakh, em 2020. A infraestrutura de saúde, a tecnologia e os serviços médicos precários no país limitaram severamente a capacidade de fornecer cuidados adequados aos 5.000 amputados civis e militares da guerra. Diante dessa necessidade, o investidor de risco Hajk Bagradjans e a psicóloga e cientista de dados Haikouhi Oroudjian, especializada em inteligência artificial, fundaram a oqni em 2020. A ONG oferece, gratuitamente, próteses biônicas para membros superiores e inferiores e apoio psicológico. A oqni é estruturada como um coletivo igualitário e emprega em torno de uma dúzia de funcionários – engenheiros mecatrônicos, fisioterapeutas ou especialistas médicos. “Promete-
mos a nós mesmos e às pessoas que se uniram à equipe de que veríamos uns aos outros como um grupo, e não como indivíduos, porque o poder absoluto pode ser uma coisa aterrorizante”, explica Oroudjian.
A avó dela era amputada e essa foi, em parte, a inspiração para fundar a ONG. “É uma questão pessoal para mim e estou animada para fazer algo que possa ajudar pessoas como ela.”
Enquanto próteses tradicionais exigem esforço físico, o que pode levar a deformidades na coluna e a outras complicações, próteses biônicas exigem menos do corpo. Elas são construídas com tecnologia de feedback sensorial neurológico, que se comunica com o sistema nervoso do usuário para se adaptar à memória muscular do corpo, dando a sensação de ter o membro perdido devolvido.
As próteses da oqni são produzidas na capital da Armênia, Ierevan. Os membros biônicos são feitos na TUMO Labs, instituição educativa e industrial que treina profissionais de TI. A oqni usa uma impressora 3D para lixar, preparar e pintar as capas protéticas em sua sede, no centro tecnológico do país, Engineering City. Cada prótese custa até US$ 7.000 e tem uma vida útil média de três anos –para cobrir essas despesas, a oqni faz captação contínua de recursos.
Bagradjans e Oroudjian começaram arrecadando o equivalente a US$ 24.000 por meio de uma campanha do GoFundMe em 2020. Desde então, ampliaram seu alcance e, no final do primeiro ano, ganharam apoio financeiro de organizações como a Fundação Calouste Gulbenkian e o Saint Sarkis Charity Trust, bem como de doadores individuais. Emile Ghessen, ex-comando da Marinha Real Britânica e cineasta de 45 Days: The Fight for a Nation, foi um deles e resolveu doar porque “não se trata só de dar um membro a alguém, mas de devolver a vida aos armênios para que possam sustentar suas famílias”.
As redes sociais e o boca a boca ajudaram a oqni a encontrar seu público. A confiança foi quase imediata, diz Oroudjian. “Quando começamos a criar nossos produtos e a nos encontrar com os amputados, as pessoas acreditavam no que estávamos fazendo.”
A equipe da oqni se reúne com os amputados – seja em sua sede ou na residência do beneficiado – para tirar medidas por meio de scanners 3D e iniciar o processo de produção das próteses.
Confundadora e COO da oqni, Haikouhi Oroudjian posa com uma prótese de membros inferiores, no escritório da empresa
Como a oqni acredita que a reabilitação envolve mais do que apenas fornecer próteses gratuitas, eles também se reúnem com cada beneficiado a fim de discutir o apoio psicológico mais adequado às suas necessidades.
A oqni produziu um guia de reabilitação para amputados e suas famílias com tópicos variados, desde cuidados com as próteses até informações sobre como lidar com o transtorno de estresse pós-traumático, bem como depoimentos escritos de outros amputados armênios. O guia foi concebido para pessoas de localidades menores que não possam acessar os serviços médicos encontrados em cidades maiores. Ele está disponível em versão impressa e online, em armênio e em inglês.
Em 2022, a ONG lançou a fase de testes do Oqni Physio, um aplicativo de fitness gratuito e gamificado para fisioterapia em casa. O app ajuda amputados a gerenciar sua saúde mental e a encontrar sua comunidade, usando jogos interativos. Oroudjian observa que esses recursos “tornam o processo de cura mais divertido”.
Neste ano, o coletivo está se expandindo para a Europa com uma plataforma digital com fins lucrativos chamada MOD, que vende capas protéticas. Parte dos lucros, explica Oroudjian, será destinada a tornar a oqni autossustentável. “Assim poderemos continuar a ajudar o maior número possível de pessoas.” O
LEONARDO DELFANTI é jornalista freelancer e vive na Grécia.
HUGH BOHANE é jornalista freelancer.
TECNOLOGIA
Combinando óculos de realidade aumentada e transcrição em tempo real, a XRAI Glass quer traduzir a fala para pessoas surdas
POR EMMA WOOLLACOTTDurante uma visita a sua família nas férias de inverno de 2021, Dan Scarfe, profissional de TI, ficou chateado porque seu avô, que tinha então 96 anos, não conseguia participar totalmente das conversas devido à sua surdez crescente.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 1,5 bilhão de pessoas em todo o mundo – quase 20% da população global – vivem com algum tipo de perda de audição, e 430 milhões dessas pessoas têm deficiência auditiva. Além disso, embora muitos surdos possam se comunicar por meio da língua de sinais ou ouvir com dispositivos como aparelhos auditivos ou implantes cocleares, o isolamento social como o vivido pelo avô de Scarfe é comum.
Scarfe queria ajudar. “Já temos legendas em tempo real no [Microsoft] Teams e no Zoom, e começamos a pensar nos novos óculos de realidade aumentada (AR)”, lembra ele. “Por que não podemos simplesmente combinar os dois e criar legendas ao vivo?” Scarfe montou uma parceria com seis amigos e ex-colegas de trabalho com experiência em aprendizado de máquina, marketing e trabalho de caridade para fundar a XRAI Glass em julho de 2022. Sua missão, diz ele, é “legendar o mundo”
O XRAI Glass é um aplicativo que permite que os óculos de realidade aumentada se conectem a serviços de transcrição baseados em nuvens da Amazon, Microsoft e Deepgram para criar legendas em tempo real na tela dos óculos.
“Basta carregar o software no celular e você pode vê-lo conectado aos serviços de nuvem”, explica Scarfe. “Literalmente, trata-se de projetar conteúdo digital no mundo real bem diante dos seus olhos.”
O software tem recursos de gravação e reprodução e pode até identificar um alto-falante em meio a um grupo de pessoas.
Em apenas um ano, a empresa alcançou 5.000 usuários no mundo todo. Carol Cover, profissional de gestão educacional cuja audição se deteriorou rapidamente após um implante coclear fracassado, elogia a tecnologia por ajudá-la a participar de conversas em restaurantes movimentados e a se confessar na igreja com privacidade, como os demais fiéis. “É como um milagre para mim”, diz ela.
O financiamento da empresa vem de vários investidores privados, entre os quais já levantou alguns milhões de dólares. Instituições de caridade como o Royal National Institute for Deaf People, do Reino Unido, e a DeafKidz International também deram apoio financeiro.
Uma das primeiras preocupações de Scarfe e dos demais fundadores é a privacidade, e a política da XRAI tem sido a de se abster de coletar dados dos dispositivos dos usuários. Em vez disso, o utilizador do aplicativo é o controlador oficial dos dados e o responsável por garantir que seus interlocutores consintam com a transcrição de suas palavras, de acordo com as leis de privacidade de cada local.
A fase de inicialização também contou com uma série de atualizações de software, incluindo os serviços de tradução do aplicativo e seu assistente virtual. O app agora pode processar 76 idiomas e 140 dialetos diferentes, traduzi-los e transcrevê-los em tempo real. O novo assistente virtual é executado no ChatGPT, que permite que os usuários façam perguntas do tipo “Como vai ser o tempo hoje?” e tenham as respostas exibidas como legendas nas telas de seus óculos. O assistente também pode reproduzir conversas anteriores e criar um resumo de seu conteúdo.
Os fundadores da XRAI estão desenvolvendo um software de tradução reversa que permitirá que os dispositivos falem e transcrevam. Essa pode ser uma característica importante para, por exemplo, aqueles que são surdos de nascença e incapazes de falar sozinhos – cerca de 70 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com a OMS.
Uma vez que muitos surdos preferem usar a língua de sinais para se comunicar, Scarfe está interessado em desenvolver uma versão do software que possa traduzir a Língua Americana de Sinais (ASL), projetando a palavra falada em uma imagem de realidade aumentada dentro dos óculos. Ele tem conversado com uma empresa que pode concretizar essa ideia nos próximos meses.
Scarfe conta que recebe regularmente mensagens de usuários encantados por poder ouvir podcasts, conversar durante o jantar e se confessar sem ter que usar mensagens escritas. “Para uma empresa pequena como a nossa, é incrível o feedback que tivemos de todo o mundo.” O
EMMA WOOLLACOTT é jornalista britânica e já contribuiu para a BBC, para a revista Forbes e outros veículos.
A Chicago Adventure Therapy está ajudando jovens e famílias em comunidades de alta criminalidade a se curarem por meio da conexão com a natureza
POR KATHY O. BROZEKEm 2022, pelo 11º ano consecutivo, Chicago teve a maior taxa de homicídios dos Estados Unidos, com 18,4 por 100 mil habitantes. Esse índice é cinco vezes o de Nova York e duas vezes e meia o de Los Angeles, as duas maiores cidades do país. Nos primeiros sete meses de 2023, o número de crimes graves em Chicago superou em 34% o de 2022.
Essas estatísticas alarmantes contam apenas uma parte da história. Os moradores dos bairros mais violentos de Chicago passam por experiências angustiantes, têm poucas opções para aprender a lidar com isso no dia a dia e ainda menos de se desenvolverem bem.
Em 2008, Andrea Knepper, assistente social clínica licenciada, fundou a organização sem fins lucrativos Chicago Adventure Therapy (CAT) destinada a oferecer esportes de aventura ao ar livre para curar e reconstruir comunidades das zonas sul e oeste da cidade, nas quais a criminalidade é mais alta. A base dessa missão vem do conjunto único de habilidades de Knepper, que, além de ser assistente social, tem várias certificações em caiaque em águas bravas, canoagem e instrução de liderança ao ar livre.
“A maioria dos jovens é impactada pela [...] violência armada, pela atividade de gangues e por crimes de ódio”, observa Knepper, que atua como diretora-executiva da CAT. “Nós fornecemos terapia de aventura [...] que ajuda os jovens a se curarem e a reconfigurarem um cérebro alterado pelo trauma. A CAT oferece esportes ao ar livre e práticas clínicas como mindfulness, de
forma a integrar as respostas emocionais, físicas e cognitivas dos participantes.” Pesquisas do Serviço Florestal do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Associação Americana de Psicologia apoiam a ideia de que a exposição à natureza pode afetar positivamente a saúde mental, sendo capaz de diminuir o risco de depressão, aumentar a conexão social, facilitar e acelerar a recuperação psicológica do estresse e reduzir a violência na comunidade.
No entanto, esses benefícios atingem os americanos de forma desproporcional. Segundo o Relatório de Tendências de Participação ao Ar Livre de 2021 da Outdoor Foundation, as taxas nacionais de recreação ao ar livre entre os americanos são mais baixas entre pessoas não brancas: 46% dos hispânicos e 38% dos negros, ante 74% dos brancos, praticaram esportes ao ar livre em 2020.
A CAT aplica uma abordagem terapêutica baseada na natureza para ajudar jovens e adultos negros e hispânicos, que são maioria nessas regiões em que atua, a se manterem saudáveis mental e fisicamente, criando laços comunitários e de amizade em meio às altas taxas de violência em seus bairros.
Knepper fundou a CAT porque não havia nenhum programa parecido em Chicago. A organização sem fins lucrativos levantou cerca de US$ 7.000 em um evento de arrecadação, que cobriu principalmente os custos de algumas saídas e seguro para 35 participantes em seu primeiro ano.
A CAT opera cinco programas direcionados a diferentes parcelas da comunidade. Os dois mais importantes, que compreendem cerca de 90% dos serviços, miram a juventude: a programação principal oferece atividades ao ar livre como caiaque, caminhadas e escaladas para jovens em áreas como o Porto Jackson, no lago Michigan, e o rio Fox; e a programação extracurricular oferece instrução em escolas para educação ao ar livre, reflexões na natureza e atividades de desenvolvimento de habilidades, bem como excursões ocasionais.
Esses dois programas principais funcionam por meio de colaborações com outras organizações sem fins lucrativos que atendem a grupos demográficos específicos. A CAT e seus parceiros têm objetivos semelhantes, concentrando-se em fornecer op-
ções seguras e saudáveis para os jovens em questão passarem o tempo. As organizações parceiras remuneram a CAT segundo uma escala variável, determinada por seus recursos disponíveis, e se encarregam do transporte para suas equipes de supervisão e para os participantes das atividades.
O Impact 180, projeto de liderança e mentoria para jovens de comunidades de alto risco, é parceiro de um programa extracurricular da CAT desde 2020. A CAT chamou a atenção da fundadora e diretora-executiva do projeto, Elaine Marthel, que, quando era uma jovem da zona oeste de Chicago, teve apoio de organizações locais.
“Estamos semeando o amor deles pela natureza”, diz Marthel a respeito dos benefícios da parceria para os jovens. “Em nossos bairros turbulentos, onde tiros são uma trilha sonora sombria e nos quais desviar de balas se torna uma habilidade, esses momentos calmos são como uma tábua de salvação para a esperança e para a cura.”
A CAT oferece três outros programas para diferentes públicos: “aventuras familiares”, que são atividades gratuitas para membros de comunidades marginalizadas
Para melhor representar e atender as comunidades, a CAT prioriza a contratação de pessoas racialmente marginalizadas. Quatro dos oito membros da equipe foram contratados como voluntários, sendo considerados para vagas remuneradas, de tempo parcial ou integral, quando estas surgem.
O presidente do conselho da CAT, Simon Shapiro, que é negro, tornou-se um participante ativo da CAT quando, na juventude, morava em um abrigo para sem-tetos na cidade. Funcionários da entidade e do Night Ministry, organização de serviços sociais com sede em Chicago, conheceram Shapiro seis anos atrás durante visitas ao abrigo. “Um acampamento de cinco dias com a CAT restaurou grande parte da confiança que eu havia perdido quando estava nas ruas", lembra ele.
Cerca de oito meses após o primeiro contato com as duas organizações, Shapiro encontrou moradia estável. No prazo de um ano, tornou-se voluntário da CAT porque demonstrou potencial de liderança. Agora, aos 26 anos, Shapiro está para concluir um curso universitário e trabalha em tempo integral com serviços financeiros.
“Encontramos as pessoas onde elas estão naquele momento, mostramos que há quem se importe com elas”
que perderam parentes para a violência armada; “festivais comunitários”, nos quais a equipe e os voluntários da CAT fazem demonstração de equipamentos ao ar livre em parques, festas de quarteirão e outros encontros de vizinhança; e “comunidades de aventura”, atividades ao ar livre como caiaque, para ex-participantes da CAT (que tenham sido atendidos, mas que já não estejam mais no escopo dos programas principais e familiares), vindos de grupos marginalizados, como a comunidade LGBTQ+ e refugiados.
Os programas são gratuitos. As despesas são cobertas sobretudo por doações individuais, mas também com financiamento de fundações e de agências governamentais. A CAT agora busca fundos sem restrições para criar nova infraestrutura e processos internos destinados a expandir suas operações e atender mais residentes.
Hoje, ele utiliza as habilidades que cultivou nos programas para desenvolver qualidades semelhantes em outros participantes da CAT. “É mais fácil para eles dar o primeiro passo quando estão com pessoas de sua própria comunidade”, explica. “Em muitas ocasiões, somos o único grupo com remadores ou escaladores negros e hispânicos, e o encorajamento que estimulamos é não só para esportes ao ar livre, mas também para enfrentar desafios da vida – incluindo a violência comunitária – de maneira geral.”
Os aspectos terapêuticos dos programas da CAT emergem organicamente ao longo do tempo e são efeitos positivos do cuidado consistente e da confiabilidade da equipe. A cura não pode ser ditada; ela ocorre apenas quando os participantes sentem confiança
e respeito entre os grupos participantes na comunidade da CAT.
“Deixamos as relações se formarem e permitimos que o processo de compartilhamento aconteça de forma natural”, diz Zorbari Nwidor, diretor-executivo associado da CAT. “Criamos um espaço seguro e permitimos que o participante que enfrentou traumas fale ou não sobre isso. Mostramos às pessoas que há quem se importe com elas.”
Esse espaço seguro é chamado pela CAT e seus parceiros de “contêiner” e serve para que os participantes compartilhem quaisquer traumas que possam ter vivenciado –e não é incomum jovens aparecerem para uma atividade durante sua recuperação da violência armada. Não há a expectativa de que os participantes revelem seus traumas.
Nwidor compartilhou a história de um jovem de 16 anos que foi baleado uma semana antes de participar de um programa de canoagem: “Como ele ainda tinha uma bala alojada em seu corpo, nós o pusemos no meio de uma canoa, para que ele não precisasse remar, mas ainda pudesse encontrar paz na água”.
A prática clínica de mindfulness está no cerne da terapia de aventura da CAT. Knepper explica que a maioria das intervenções gira em torno do trauma que um participante viveu. “Quando nossos jovens aprendem um resgate de caiaque ou ficam presos no ponto mais difícil de uma escalada, eles precisam fazer uma pausa porque o padrão de luta ou fuga não funciona. Essa pausa ajuda a acessar o córtex cerebral, não partindo para a ação imediata, mas sim reconfigurando um cérebro alterado pelo trauma crônico.”
A CAT mostrou seu papel crucial nas comunidades em que atua. De 35 pessoas atendidas em 2008, foi para mais de 1.200 em 2022. Dados internos indicam que cerca de 80% dos participantes frequentaram quatro ou mais atividades. Um dos aspectos que definem a programação da CAT é a busca por construir resiliência: os programas são estruturados para ajudar os participantes a desenvolver perseverança, força e coragem, que lhes serão muito úteis no futuro. O
KATHY O. BROZEK, consultora, é autora de The Transformation of American Agriculture [A transformação da agricultura americana]. Seu trabalho foi publicado em The Guardian, Community Development Investment Review e em GreenBiz.com.
Iniciativa de inclusão prioriza os resultados da preparação emergencial para dar assistência a pessoas com deficiência em catástrofes
POR MARIANNE DHENIN
Depois que o furacão Maria atingiu Porto Rico, em setembro de 2017, equipes de intervenção de emergência acorreram em massa para amparar os sobreviventes da tempestade mais mortífera e mais destruidora a se abater sobre a ilha até hoje. Entre elas estava uma equipe de voluntários com deficiência que saíram de vários locais dos Estados Unidos e viajaram para Porto Rico para proporcionar assistência e ajuda humanitária a outras PCDs (pessoas com deficiência). O grupo foi criado pela organização não lucrativa Portlight Inclusive Disaster Strategies e por um de seus projetos mais recentes, a Partnership for Inclusive Disaster Strategies (Pids; em português, parceria para estratégias inclusivas para desastres).
“A parceria foi estabelecida porque sabíamos que era necessária uma organização com foco específico em direitos, necessidades e inclusão de pessoas com deficiência antes, durante e depois de desastres e emergências”, explica Shaylin Sluzalis, codiretora-executiva da Pids. Hoje a Pids é uma organização independente, a única dirigida por deficientes a trabalhar com gestão de emergências inclusiva em escala nacional.
O público-alvo da organização são os 42,5 milhões de pessoas com deficiência nos Estados Unidos, os americanos idosos e as pessoas com necessidades especiais funcionais e de acessibilidade, que se mostram mais vulneráveis durante catástrofes ambientais e climáticas, crises de saúde pública, como a pandemia de covid-19 e outras emergências, como mortes e ferimentos em ataques armados. Nos Estados Unidos, as pessoas com deficiência têm de duas a quatro vezes mais probabilidade de morrer ou sofrer ferimentos graves durante uma catástrofe do que pessoas sem deficiência. Isso se deve, segundo Sluzalis, “em larga medida, à falta de acesso a recursos, informação e assistência ao longo de todo o processo de catástrofe”.
Os codiretoresexecutivos da Parceria para Estratégias de Desastres
Inclusivas, Germán Parodi (à esquerda) e Shaylin Sluzalis, em missão nas Bahamas para ajudar no socorro ao desastre do furacão Dorian, setembro de 2019
A Lei dos Americanos com Deficiências (ADA, no acrônimo em inglês), de 1990, e a Lei de Reabilitação, de 1973, exigem que os governos locais e estaduais garantam às pessoas com deficiência oportunidades iguais de se beneficiarem de programas públicos e proíbem a discriminação em sistemas públicos e programas que recebam assistência financeira federal. Em outras palavras, os governos estão obrigados a fazer com que sua resposta a catástrofes seja acessível. No entanto, isso raramente acontece.
Só em 2007, a Fema (sigla em inglês para a agência federal de gerenciamento de emergências) indicou um coordenador para PCDs dentro de seu Escritório de Direitos Iguais, como uma exigência da Lei de Reforma do Gerenciamento de Emergências pós-Katrina, do ano anterior. O cargo foi criado em resposta ao número grandemente desproporcional de pessoas com deficiência e
adultos mais velhos entre as vítimas relacionadas ao furacão. A Associação Americana de Pessoas Aposentadas (AARP, na sigla em inglês) estimou que 73% das mortes relacionadas ao Katrina na área de Nova Orleans ocorreram entre pessoas de 60 anos ou mais, embora elas correspondessem a apenas 15% da população da cidade quando a tempestade a atingiu, em 2005. Pessoas mais jovens com deficiência também estão sobrerrepresentadas na listagem de mortes. Em 2010, a Fema lançou o Escritório de Coordenação e Integração de Pessoas com Deficiência (Odic, na sigla em inglês), para apoiar o trabalho do coordenador.
Germán Parodi, codiretor-executivo da Pids, diz que o fato de as pessoas com deficiência serem excluídas dos processos relevantes de tomada de decisões está na raiz das atuais dificuldades do país quanto à preparação, resposta e recuperação emergen-
ciais. “Na maior parte das vezes, os gestores de emergências só nos veem como pacientes, não como colaboradores”, observa.
Movendo-se em sentido contrário ao de muitas forças que ignoram ou barram pessoas com deficiência, a Pids foi criada para empoderar membros dessa comunidade e garantir sua inclusão no processo de gerenciamento. Para a organização, as PCDs não apenas são capazes de contribuir na gestão de emergências, como também se mostram, devido à sua própria experiência, especialmente aptas para tornar mais inclusivos os esforços de preparação, resposta e recuperação.
GERENCIAMENTO DE EMERGÊNCIAS
LIDERADO POR PCD s
A Portlight Inclusive Disaster Strategies, organização fundadora da Pids, foi criada em 1997 para viabilizar e facilitar vários projetos envolvendo pessoas com deficiência. Ela respondeu a dúzias de emergências, inclusive liderando parcerias com organizações locais para atender a necessidades relacionadas a PCDs logo após a invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, e ao terremoto de 2010 no Haiti.
A Portlight lançou a Pids em 2016, mas o projeto não ganhou vida até o ano seguinte, de acordo com Marcie Roth, sua primeira diretora-executiva. Um de seus primeiros projetos foi a organização de uma linha direta para desastres e PCDs, destinada a apoiar a resposta ao furacão Harvey no Texas e em Louisiana, em agosto de 2017, poucas semanas antes de o furacão Maria atingir Porto Rico.
ria liderada por PCDs, em especial quanto ao que acontece a essas pessoas antes, durante e depois de catástrofes”, diz Roth. Ela viu a liderança da Pids como uma oportunidade para preencher essa lacuna e levar sua experiência junto ao governo para o mundo das organizações não lucrativas, de modo a fortalecer os dois âmbitos. Em 2017, Roth começou seu trabalho na Pids construindo pontes entre representantes de grupos, como organizações voltadas para os direitos de PCDs, funcionários do governo e outras partes interessadas.
A Pids continuou a operar como um projeto da Portlight, absorvendo seu trabalho de reação a desastres, até 2019, quando foi reestruturada como uma organização independente; desse modo, pôde buscar mais oportunidades de financiamento e formar seu próprio corpo diretivo. Sluzalis e Parodi tornaram-se codiretores-executivos nessa ocasião. Atualmente, a organização conta com seis funcionários e dezenas de voluntários.
A linha direta criada por Roth teve seus objetivos ampliados e passou a fornecer informações, assistência técnica e recursos para PCDs, suas famílias e organizações que apoiam pessoas com deficiência na sequência de catástrofes. Além disso, a organização recebe regularmente reuniões nas quais o governo, entidades não lucrativas e representantes do setor privado interessados nos direitos e necessidades de PCDs relacionados a catástrofes se reúnem para discutir barreiras sistêmicas, compartilhar recursos e melhores práticas e fortalecer a resiliência das comunidades.
Em agosto de 2023, a Pids apoiou grupos de resposta em campo nos incêndios que devastaram Maui
De 2017 a 2019, a Pids foi liderada por Roth, hoje diretora-executiva do World Institute on Disability (WID, acrônimo para Instituto Mundial sobre Deficiência). Antes da Pids, Roth foi nomeada pelo presidente Barack Obama para a Fema, onde serviu de 2009 a 2017 em vários cargos, entre eles o de primeira diretora da Odic.
“Quando eu estava na Fema, pude observar uma completa falta de gestão comunitá-
A Pids também continua organizando equipes de resposta em campo que atuam ao lado de organizações locais para proporcionar assistência em desastres, no que é chamado de “DisabLED Response” [o nome funde as palavras “disabled”, termo para PCD, e “led”, que significa conduzido em inglês]. Em agosto de 2023, a Pids apoiou grupos de resposta em campo nos incêndios que devastaram Maui e no impacto do fura-
cão Idalia, na Flórida. Sua primeira missão estrangeira foi nas Bahamas, logo após o furacão Dorian, em 2019. Os grupos conectam-se a organizações locais e sobreviventes com deficiência para identificar e responder às necessidades da comunidade. Fornecem suprimentos de emergência e ajudam os sobreviventes a acessar, na internet, apoios, como os programas de assistência da Fema. A Pids também estabelece ligação com agências governamentais e outras organizações não lucrativas para pressioná-las a garantir um engajamento equitativo e inclusivo de organizações conduzidas por PCDs.
A Portlight financiou a Pids até 2019. Agora, seus recursos provêm, em parte, da prestação de serviços a outras organizações não lucrativas e pequenos negócios. Importantes fundações filantrópicas, entre elas a Fundação Ford, também subvencionaram a Pids.
NACIONAL
A missão da Pids poderia ganhar um impulso significativo a partir da aprovação de uma nova legislação federal, de cuja elaboração a entidade participou. A lei de acesso emergencial real para a inclusão de idosos e pessoas com deficiência (Reaadi, na sigla em inglês) prevê o estabelecimento de uma comissão nacional destinada a estudar as necessidades de PCDs, idosos e pessoas com necessidades especiais de acessibilidade e funcionais, bem como fazer recomendações para garantir sua inclusão em conversas sobre a preparação para catástrofes.
O projeto de lei também estipula a criação de uma rede nacional de centros para treinamento e assistência técnica a fim de ajudar localidades a envolver PCDs e apoiálas de forma mais eficaz em cada etapa do processo de gerenciamento de emergências.
Enquanto a Reaadi avança no Congresso, a Pids continua seu trabalho. Em maio de 2023, a organização recebeu uma bolsa de US$ 250 mil da Fundação John D. and Catherine T. MacArthur, para uma de suas mais ambiciosas missões até o momento: apoiar PCDs na Ucrânia durante a invasão russa. Em fevereiro de 2022, poucos dias após os primeiros ataques russos, a Pids começou a trabalhar no país. O
MARIANNE DHENIN é historiadora e jornalista premiada.
A Built for Zero Canada está fazendo avanços significativos para resolver a questão da moradia no país
POR LEIF GREGERSENEm julho de 2023, Vanessa completou cinco anos sóbria, após um longo período vivendo em uma névoa de trauma e uso de drogas. Ela atribui sua persistência, em grande parte, ao fato de ter obtido uma moradia estável – de 2019 a 2022, Vanessa viveu nas ruas em Edmonton, capital da província canadense de Alberta.
Vanessa é uma das 2.700 pessoas que, a cada ano, entram na conta dos que vivem, em Edmonton, o problema da falta de moradia crônica – que significa não ter casa por pelo menos um ano e/ou repetidamente. Ainda, outras 8.600 pessoas experimentam, ao ano, a falta de moradia
tivos e intergeracionais do colonialismo também resultaram em taxas desproporcionalmente altas de falta de moradia para os povos indígenas: embora representem apenas 8% da população de Edmonton, eles são 58% dos sem-teto da cidade.
Em 2022, uma assistente social conectou Vanessa, que havia engravidado, à Edmonton City Centre Church Corporation (E4C). Voltada para serviços sociais e moradia, a E4C havia se associado em 2019 à Built for Zero Canada (BFZC) para ajudar pessoas, como Vanessa, que precisam de uma habitação imediata. Em duas semanas, Vanessa obteve um local para morar por meio da Civida, uma organização de moradia subsidiada que trabalha com a BFZC e a E4C.
A BFZC foi fundada em março de 2019 pela Canadian Alliance to End Homelessness (Caeh), como iniciativa de liderança para educar e treinar líderes e organizações comunitárias sobre meios de garantir habitação para populações sem moradia, especialmente as vulneráveis como jovens, mulheres, veteranos de guerra e indígenas. A BFZC defende o princípio de
soas em falta de moradia crônica por um período de três meses ou mais.
A BFZC atualmente trabalha com 58 comunidades em todo o Canadá e alcançou sua meta entre veteranos de 3 delas. A entidade também reduziu drasticamente o índice em 11 comunidades e, em 1 delas, zerou o indicador. Em Edmonton, com financiamento governamental e de filantropia, a BFZC capacitou e acompanhou funcionários e agências que atuam nesse campo, ajudando mais de 8.500 pessoas cronicamente sem moradia, entre as quais Vanessa. “É ótimo ter um lugar para morar”, diz ela, olhando com olhos brilhantes para seu bebê. “Isso me dá esperança.”
Trabalhadores imobiliários de diferentes comunidades participam da sessão de aprendizagem da Built for Zero Canada em março de 2023, Toronto
transitória, que é a que decorre de uma mudança de vida importante ou de um evento catastrófico. No Canadá, estima-se que de 25 mil a 35 mil pessoas se vejam sem moradia em algum momento. Pessoas que enfrentam a pobreza, o vício, questões legais e problemas de saúde mental ou física têm mais probabilidade de entrar para essa estatística. Os efeitos cumula-
housing first, ou seja, garantir habitação para as pessoas antes de tratar de qualquer outra questão, como vício ou desemprego. Baseando-se em dados, identifica e documenta pessoas sem-teto com dificuldade para encontrar moradia permanente. Seu objetivo é zerar funcionalmente a falta de moradia crônica – o que significa que, em uma comunidade, haja menos de três pes-
A inspiração para a BFZC veio do outro lado da fronteira. Em 2011, a Community Solutions, uma organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos, lançou a campanha 100 Mil Lares, com o objetivo de abrigar 100 mil pessoas e criar consciência sobre a falta de moradia. Em 2014, a Community Solutions havia superado os 100 mil. Inspirada por esse sucesso, a Caeh criou, em 2015, a campanha 20 Mil Lares, com meta de três anos e ajuda do governo federal do Canadá.
“No final da nossa campanha, em março de 2019, tínhamos abrigado 21.254 pessoas”, diz Tim Richter, CEO da Caeh. “Os números de falta de moradia, porém, não estavam diminuindo.” A Caeh abrigou pessoas com base em contagens pontuais. Nesse método, as pessoas sem moradia são contadas em uma única rodada, em um só momento. A contagem não inclui nenhuma informação pessoal, nem mesmo nome. As pessoas são meros números.
Com a campanha, a Caeh notou que as contagens pontuais não permitiam registrar novos casos, acompanhá-los e rastrear as pessoas sistematicamente negligenciadas pelos serviços de moradia. Também ficou claro que pessoas sem-teto preferiam viver em áreas onde pudessem acessar facilmente serviços sociais e de saúde. Foi com isso em mente que a BFZC foi criada. A iniciativa usa dados em tempo real e uma lista por nomes, em que as informações sobre as pessoas sem moradia são atualizadas com base em diferentes fontes – como agências, abrigos e cozinhas
populares – de forma contínua. A diretora da BFZC, Marie Morrison, diz que essa combinação de informações ajudará a levar a “um fim mensurável e equitativo da falta de moradia”.
A BFZC tem 11 funcionários em tempo integral. Além de Morrison, são sete mentores e três consultores de dados. Cada mentor responde por sete ou oito comunidades. Eles realizam reuniões mensais e duas conferências por ano (uma virtual, outra em Ontário), nas quais treinam os membros de suas comunidades segundo novos insights vindos da prática e sobre como criar planos de ação com base nos últimos esforços de coleta de dados.
A BFZC também criou um kit de ferramentas online para comunidades que queiram se associar a ela. Trata-se de uma coleção de recursos e diretrizes adaptáveis, incluindo informações sobre formação de equipes (“Como recrutar voluntários”) e coleta de dados (“Mapeando locais de pesquisa”).
diz Daisy Vazquez, gerente de concessão da Porticus. “Antes da BFZC, não havia nenhum sistema coordenado e baseado em evidências em funcionamento.”
Em junho de 2021, a cidade de Medicine Hat, em Alberta, tornou-se a primeira do Canadá a conseguir zerar funcionalmente a falta de moradia crônica. A Medicine Hat Community Housing Society (MHCHS) tinha participado de reuniões de estratégia para a campanha 20 Mil Lares em junho de 2015. Em dezembro de 2017, a associação se uniu à Caeh para trabalhar pela eliminação funcional da falta de moradia crônica em Medicine Hat. Após o lançamento da BFZC, as entidades se associaram à nova iniciativa e, juntas, desenvolveram um plano de cinco anos pensado para usar dados em tempo real e a lista de nomes no combate ao problema.
A Built for Zero Canada permanece comprometida em tornar a falta de moradia rara, breve e não recorrente
As comunidades que se associam assinam um acordo de dois anos. Para cidades pequenas e médias, a parceria é gratuita; as maiores, como Edmonton e Calgary, pagam uma taxa. Cada comunidade tem um mentor e um consultor de dados. As decisões sobre quais planos implementar, quais estratégias adotar e quais deixar de usar são tomadas com base nas análises dos consultores sobre as tendências dos dados.
A BFZC é financiada pela Veterans Affairs Canada, pelo governo de Ontário e por organizações filantrópicas como a Ottawa Community Foundation e a Porticus. Esta última investiu na BFZC especificamente por causa de sua abordagem centrada na comunidade e baseada em dados.
“A Porticus acredita em fortalecer a resiliência das comunidades, e a BFZC é um programa que proporciona às organizações comunitárias a agência e os recursos para colaborar na resposta aos problemas de falta de moradia em sua comunidade”,
Para Jaime Rogers, gerente de desenvolvimento de moradia e sem-teto da MHCHS, o que o atraiu para se associar à BFZC foi a valorização da colaboração entre setores. No caso de Medicine Hat, isso significou que as partes interessadas locais – representantes do governo, especialistas em saúde, policiais, trabalhadores de abrigos, líderes comunitários indígenas e pessoas sem moradia – tiveram poder de decisão na hora de estabelecer metas e no plano de ação. Eles priorizaram a necessidade com base na lista de nomes, com moradia fornecida pelo governo, instituições de caridade, organizações sem fins lucrativos e fontes privadas.
“A BFZC tem uma forma estruturada de determinar como fazer coletivamente as comunidades e a BFZC melhores”, explica Rogers. “Com a ajuda da BFZC, conseguimos construir um sistema realmente robusto e expansivo que não só foi capaz de enfrentar a pandemia de covid-19, mas também de zerar funcionalmente a falta
de moradia crônica durante a pandemia, em julho de 2021.”
De fato, a cidade de Medicine Hat foi capaz de alcançar a meta nesse período porque permaneceu comprometida com o plano quinquenal de housing first desenvolvido com a BFZC. Há que considerar que, com 63 mil habitantes, a cidade é menor que muitas outras associadas e ter alcançado o zero funcional não significa que todas as pessoas sem-teto conseguiram um lar permanente. “Ainda temos algumas pessoas dormindo ao relento”, observa Rogers. Parte dessas pessoas vive sem nenhuma proteção além de uma barraca ou um abrigo improvisado; “algumas lidam com seu vício em opioides, enquanto outras enfrentam problemas de saúde mental não tratados”, diz ele.
Ainda assim, Medicine Hat foi uma exceção no período. Durante a pandemia, o movimento da BFZC perdeu terreno significativo porque as comunidades associadas tiveram de mudar seu foco para responder à crise sanitária. Recursos previstos para abrigar pessoas sem moradia foram destinados a cuidar de sua saúde. Da mesma forma, as agências que atendem aos sem-teto foram de súbito adaptadas para agências sanitárias, assumindo responsabilidades que o sistema público canadense não foi capaz de fornecer. A consequência foi palpável: em uma amostra de 13 comunidades da BFZC, a falta de moradia crônica aumentou 50% de fevereiro de 2020 a fevereiro de 2023.
O sucesso da BFZC em Medicine Hat atraiu a atenção da mídia, impulsionando seus esforços de recrutamento em todo o país, o que, por sua vez, aumentou as apostas do movimento. “Nosso objetivo é ter, em três anos, 80 cidades na BFZC e zerar funcionalmente a falta de moradia crônica em 15”, diz Richter.
Para isso, a BFZC aposta em conscientização e, mais criticamente, em convencer a opinião pública e líderes comunitários de que a falta de moradia é uma emergência nacional e que combatê-la é possível. Embora Richter reconheça que a falta de moradia é um problema dinâmico, a BFZC permanece comprometida em tornar a falta de moradia rara, breve e não recorrente. O
LEIF GREGERSEN é escritor, professor e palestrante que trabalha principalmente na área da saúde mental.
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Um olhar profundo para o interior de uma organização
EM UMA ESCALDANTE tarde de maio, numa sala de aula da Lakewood High School, em Long Beach, Califórnia, dez pessoas estão sentadas juntas em um círculo. Oito delas são professores, que fazem perguntas e ouvem as respostas das outras duas, que são estudantes.
Não é uma avaliação. O tema da conversa é a relação entre um grupo e outro, e os professores estão recebendo orientação dos alunos. Eles parecem bastante engajados, exceto por um, que expressa hesitação e frustração.
“Escuta”, diz um dos alunos, “eu sei que você tem medo, mas nós também temos”. A discussão então passa para o que significa ser honesto uns com os outros e como construir relacionamentos saudáveis.
Essa conversa aconteceu em 2021, durante um workshop organizado pela Californians for Justice (CFJ), uma organização comunitária com sede em Oakland, Califórnia, dedicada a empoderar jovens marginalizados dentro do sistema público de educação. Em seus 25 anos de trabalho, a entidade ampliou de forma significativa a representação e a voz da juventude nas mesas de decisão, tanto em escolas quanto em nível distrital e estadual. Ao longo do caminho, a CFJ deixou de lutar contra o sistema e passou a trabalhar com ele, mas sem perder a capacidade de pressionar por mudanças.
A Californians for Justice elevou o poder dos jovens ao estabelecer relacionamentos autênticos entre eles e professores, educadores e autoridades. Ao fazer isso, ela reformulou a educação no estado e criou um modelo para uma mudança social mais ampla
POR JOHN KANIA E JUANITA ZERDAEssa transformação é uma história de sucesso e humildade, de evolução contínua para melhor atender a juventude preta e parda. No centro dela está a abordagem da CFJ para empoderamento e mudanças sociais por meio dos relacionamentos, alimentados por uma herança de lutas, reveses, vitórias e um senso de comunidade impulsionado pela capacidade de sonhar, amar e cuidar uns dos outros. Seu trabalho demonstra a possibilidade radical de transformação sistêmica ao se voltar para jovens não brancos, construir relações entre alunos e funcionários, nutrir a comunidade e dar voz aos marginalizados.
ACalifornians for Justice foi fundada em San José em 1995 pelos ativistas Rebecca Gordon e Jan Adams com o apoio do Center for Third World Organizing (CTWO), a fim de construir o poder político de comunidades tradicionalmente marginalizadas e lutar contra políticas injustas e desiguais.
Jovem fala sobre o trabalho da CFJ para transformar a educação no estado, destacando sua contribuição para um relatório acerca de equidade entre professores e seu êxito em garantir financiamento para escolas com menos recursos
A CFJ foi, desde o início, uma organização multirracial com alcance estadual. Seu trabalho se articula em torno de múltiplos grupos mobilizadores, que reúne para aumentar o impacto das campanhas eleitorais.
Em seus primeiros anos, a CFJ se dedicou a confrontar aqueles em posições tradicionais de poder. Procurou impedir que tomadores de decisão – em especial por meio da organização de campanhas em comunidades locais de maioria não branca – implementassem políticas que a entidade via como racistas, anti-imigrantes e prejudiciais a indivíduos e famílias da classe trabalhadora. Entre as propostas legislativas às quais a CFJ se opôs estão a que, em 1996, defendia acabar com as ações afirmativas na Universidade da Califórnia e em agências estaduais e a que, em 2000, estabelecia que jovens a partir de 14 anos fossem julgados e condenados como adultos em determinados crimes.
Após sete anos dessa estratégia, a CFJ tornou-se bastante hábil em mobilizar campanhas bem-sucedidas em prol da equidade e da justiça. Em 2003, por exemplo, foi fundamental para que os eleitores da Califórnia rejeitassem a proposta que buscava proibir a coleta e o uso de dados envolvendo raça e etnia na educação e no emprego e contratação do governo.
Apesar desses triunfos, o propósito original da organização começou a evoluir. A equipe e a liderança tornaram-se cada vez mais conscientes de que precisavam deixar de reagir e se opor às políticas promulgadas para se tornarem mais proativas na adoção de abordagens alternativas.
“Muitos grupos de organização de jovens são unidimensionais, contando com estudos de organizações externas e implementando estratégias que muitas vezes não levam a mudanças sistêmicas de longo prazo”, diz Omar Cardenas, diretor de organização da CFJ. “Era assim nos primeiros anos. Estávamos constantemente
batendo cabeça, com uma raiva justa, tentando criar mudanças e responsabilizar os tomadores de decisão. Pressionávamos sem parar por políticas mais justas sem perceber que, sem ter a transformação no coração, na mente e no espírito, essas políticas desapareceriam em pouco tempo.”
Em meados dos anos 2000, deu-se início a primeira transformação crítica da CFJ sob a coliderança de Abdi Soltani, atualmente diretor-executivo da American Civil Liberties Union (ACLU, união americana por liberdades civis do norte da Califórnia), e de Mimi Ho, que viria a dirigir importantes organizações ativistas. A CFJ observou que a maioria de seus voluntários era composta por jovens de cor que demonstraram maior paixão e disposição para se engajar em campanhas eleitorais de oposição durante seus primeiros anos de contestação política. Assim, a liderança, a equipe e a diretoria decidiram iniciar um processo imersivo de feedback e reflexão com esses stakeholders. Isso desencadeou duas mudanças críticas: a CFJ decidiu se concentrar especificamente no setor de educação, de importância central para a juventude, e deixar de ser defensiva e oposicionista para se tornar proativa, colaborativa e pragmática.
Com esse novo foco estratégico, a CFJ iniciou uma série de campanhas bem-sucedidas que atraíram os jovens. Por exemplo, em 2002, lançou a campanha “So Fresh, So Clean” (Tão fresco, tão limpo), que obteve importantes melhorias nas instalações dos distritos escolares de Long Beach e Oakland. Em 2004, ajudou a apoiar a aprovação do Williams Settlement, que determinou que o estado destinasse mais de US$ 1 bilhão para garantir que todos os alunos tivessem acesso a livros didáticos, escolas mais seguras e limpas e professores mais qualificados.
Nessas campanhas, a CFJ contou com a colaboração de importantes grupos estaduais, como o InnerCity Struggle (ICS) e o Public Advocates (PA). Com isso, não apenas expandiu ainda mais sua rede, mas também viu que, para fortalecer suas relações, precisava cortejar novas partes interessadas – mais especificamente, legisladores, o conselho escolar estadual e líderes distritais. Percebeu também que precisava se tornar mais hábil em fazer de estudantes e líderes comunitários tomadores de decisões. Apesar do ímpeto vindo das vitórias políticas dos anos 2000, a organização sabia que vencer batalhas isoladas não seria suficiente para transformar o sistema educacional.
Em 2013, a CFJ evoluiu de uma operação de campanha para uma organização de construção de relacionamentos, com um conjunto mais amplo de stakeholders. A entidade formou fortes coalizões com organizações locais e estaduais, como o California State PTA e o The Education Trust-West, e investiu na construção de vínculos estreitos e de apoio direto entre tomadores de decisão legislativos e governamentais tanto no estado, como membros-chave do Conselho Estadual de Educação, quanto nos distritos, como superintendentes e membros do conselho educacional do condado local.
Ainda assim, não estava claro se teria recursos para o sucesso. Em 2013, quando Taryn Ishida, conselheira da CFJ e voluntária da organização por mais de uma década, assumiu como diretora-executiva, a organização estava em déficit. Tinha 12 funcionários em tempo integral e 2 em tempo parcial, a maioria jovens na faixa dos 20 anos, e precisava diminuir de tamanho. Sob a liderança de Ishida, a equipe e a diretoria analisaram como causar o maior impacto possível com recursos tão limitados. Era preciso cortejar aliados e parceiros e encontrar maneiras de fazer com que seus esforços deixassem de ser para criar relacionamentos e fossem para construir capacitação. As reflexões que empreenderam para enfrentar essa crise ajudaram a abrir caminho para os sucessos significativos que vieram na década seguinte.
A florescente abordagem relacional da CFJ se concretizou quando uniu forças com a Public Advocates, uma firma jurídica e de defesa sem fins lucrativos, para liderar uma coalizão de direitos civis, defesa de direitos, organizações estudantis e de pais que pressionam pela aprovação da Fórmula de Financiamento de Controle Local (Local Control Funding Formula, LCFF). A LCFF ajudou a Califórnia a se afastar da abordagem tradicional de alocação de recursos educativos, baseada em uma fórmula ponderada, para uma que levasse em conta o número de alunos de baixa renda, de estudantes que aprendem inglês como segunda língua e de jovens
em acolhimento familiar, a fim de estabelecer um sistema de financiamento mais equitativo. A legislação também deu às localidades maior flexibilidade para usar o financiamento estatal.
Mesmo assim, a organização sabia, a partir de vitórias políticas anteriores, que a aprovação da LCFF, embora importante, não seria suficiente para transformar a cultura escolar, incluindo suas visões de mundo, dinâmicas de poder e relações. Assim, a CFJ deu sequência a uma nova iniciativa chamada Campanha Voz Estudantil (Student Voice Campaign), que contou com o apoio de mais de 30 organizações de todo o estado, como a ACLU e a Associação de Professores da Califórnia (CTA, na sigla em inglês), representando mais de 850 mil alunos em 27 distritos. A campanha visava garantir que a implementação da LCFF considerasse alunos e pais fora da tomada de decisões. Em novembro de 2014, o Conselho Estadual de Educação da Califórnia determinou que os distritos incluíssem pais, alunos e outras partes interessadas no desenvolvimento de Planos Locais de Controle e Responsabilização (LCAP, na sigla em inglês), que estabelecem metas, tarefas e diretrizes de despesas para apoiar os resultados dos alunos. A campanha foi bem-sucedida.
A LCFF tornou-se um marco significativo para a entidade. A vitória política garantiu melhorias para as comunidades com poucos recursos, que viram seus valores incorporados aos LCAPs, elevando a importância da voz local para definir rumos e tomar decisões. A CFJ ganhou importância no sistema educacional do estado, tornando-se uma organização com ampla gama de influência, capaz de coalizões poderosas e com visão de longo alcance do que é uma profunda mudança sistêmica.
“Nós nos tornamos um pouco como a água”, diz Cardenas. “Paramos de tentar forçar o caminho pela resistência e começamos a nos concentrar em ser mais eficazes de forma mais suave. O resultado foi que hoje somos muito mais influentes e mais poderosos no campo educacional.”
OUVINDO A JUVENTUDE
No final de 2014, a CFJ já era conhecida por seu forte histórico de campanhas ativistas e processos bem afinados para pressionar pessoas no poder. Além disso, a infraestrutura de captação de votos estava solidamente implantada, com uma forte base de pais e jovens que poderiam ser mobilizados e um conjunto de organizações aliadas com as quais trabalhou efetivamente para ampliar seu impacto coletivo. Apesar disso, na hora do triunfo, a liderança e a equipe se sentiram esgotadas.
Apesar dos esforços para alcançar a equidade nas escolas, a maioria dos estudantes de comunidades com recursos escassos viu poucas mudanças positivas, e os jovens ainda estavam, em sua maioria, excluídos do poder e da influência. Além disso, por toda
“Ganhamos a política, conseguimos financiamento, governança e tivemos voz, mas nada estava realmente mudando. Como garantir que nossa visão se tornaria realidade?”
parte a CFJ ouvia que muitos jovens se sentiam perdidos e privados de direitos na escola. Nesse sentido, a California Healthy Kids Survey (Pesquisa Jovens Saudáveis da Califórnia) ouviu 6,2 milhões de estudantes no estado entre 2013 e 2015 e foi um grande acerto. Realizada pela WestEd sob contrato do estado, a pesquisa indicou que um em cada três estudantes (mais de 20 milhões de jovens) não conseguia mencionar o nome de um adulto atencioso na escola. A constatação chocou a CFJ e a fez refletir e reavaliar seu trabalho.
“Ganhamos a política, conseguimos financiamento, governança e tivemos voz, mas nada estava realmente mudando”, diz Taryn Ishida. “Como garantir que nossa visão se tornaria realidade?”
Sem mudanças mais drásticas na cultura do sistema educacional, não apenas em nível estadual, mas também distrital e nas escolas, as transformações estruturais que a organização estava alcançando não melhorariam substancialmente a experiência cotidiana dos alunos. A CFJ estava determinada a fazer mais do que apenas dar voz e arbítrio aos estudantes – aqueles que vivenciam diretamente o problema. Era preciso garantir que todos os outros no sistema realmente valorizassem os alunos e seu bem-estar. Para colocar isso em prática, a organização teve que mudar a percepção dos adultos (professores e gestores) quanto a priorizar as vozes dos alunos não brancos e investir em sua educação, em seus planos e esperanças de sucesso na vida. Também foi preciso ensinar os adultos a fazê-lo.
“Tínhamos que confiar que os jovens realmente sabiam quais eram os maiores problemas e quais seriam as soluções mais importantes, que eles eram os especialistas”, diz Ishida. “Foi uma mudança radical, particularmente para os adultos que, nas escolas, tinham posições de autoridade e grande poder sobre os alunos. Para eles, foi um desafio enorme.”
A fim de entender melhor como o trabalho afetou a experiência diária na escola, a organização realizou em 2015 uma pesquisa de dez meses, conduzida por jovens, com mais de 2.000 alunos e 65 líderes escolares em todo o estado. Ela confirmou que relacionamentos profundos e autênticos são essenciais para o sucesso dos alunos, em especial os pretos e pardos. Especificamente, conforme documentou a Associação Americana de Psicologia, os alunos que têm relacionamentos positivos com seus professores têm melhor desempenho e demonstram melhores habilidades sociais e emocionais, motivação e resiliência.
Esses resultados ecoam os de outros estudos educacionais. Por exemplo, os pesquisadores de educação Anthony S. Bryk e Barbara Schneider, da Universidade de Chicago, descobriram que, quando os alunos tinham forte “confiança relacional” em administradores e professores de suas escolas, as chances de que melhorassem seu desempenho acadêmico aumentavam em 50%.
pesquisa despertou na CFJ uma visão para uma nova abordagem educacional dirigida a preparar alunos, professores e administradores para relacionamentos autênticos. Essa ideia foi chamada de Relationship Centered Schools (RCSs), escolas centradas em relacionamentos.
As RCSs buscam transformar as dinâmicas de poder na educação, criando um sistema que não só valorize, mas também possa honrar e estimular a voz dos alunos. Elas criam espaços para a construção de elos e fornecem aconselhamento e treinamento para que os funcionários apoiem os alunos e se conectem melhor com eles. Esse treinamento inclui estratégias de escuta ativa e reflexão antipreconceito.
“Poder e comunidade estão interligados. Quanto mais me comunico com adultos que normalmente me intimidariam, mais chance tenho de sentir meu poder, em especial quando noto que se importam com o que tenho a dizer”, diz Melanie Huizar, líder estudantil da CFJ, sobre as RCSs. “Sem esse sentimento, minha voz é apenas barulho.”
Nos distritos em que a CFJ atua, o modelo de RCSs foi absorvido na operação do sistema educacional e nos valores que ele defende. Em termos práticos, os distritos firmam acordos formais com a CFJ para que os organizadores comunitários trabalhem com educadores, administradores e alunos para ajudar as escolas a trabalhar as relações interpessoais. Em termos formais, isso se dá por meio de resoluções de conselhos locais de educação ou de um Memorando de Entendimento (MOU), assinado pela liderança da organização e pelos conselhos. Os documentos definem níveis de flexibilidade para o investimento e o compromisso do distrito com a mudança. Essas resoluções e MOUs não apenas especificam papéis e estabelecem expectativas para a capacitação nas escolas, como também explicitam metas e compromissos com a transformação da cultura.
Por exemplo, os MOUs exigem que escolas específicas apoiem redes de aprendizagem profissional (PLNs) compostas por diretores ou diretores-assistentes, administradores escolares, alunos e pais que representam populações carentes, treinadores escolares, administradores, líderes instrucionais e representativos de pais e famílias. O objetivo das PLNs não é apenas desenvolver programas e estruturas escolares equitativas, mas também garantir que diferentes níveis de liderança e influência nas escolas empreendam, de forma coletiva, a transformação pessoal e profissional e adotem princípios antirracistas.
Ao criar as PLNs, a CFJ se inspirou nos líderes educacionais Shane Safir e Jamila Dugan. Em seu livro Street Data: A Next-
Para ajudar a mudar a dinâmica de poder nas escolas, a CFJ emprega diferentes práticas, como entrevistas de empatia, auditorias de equidade lideradas por alunos e educadores, investigação conjunta de dilemas de equidade e construção de narrativas
Generation Model for Equity, Pedagogy, and School Transformation (Dados das ruas: um modelo da próxima geração para equidade, pedagogia e transformação escolar), publicado em 2021, eles observam: “A equidade não é um destino, mas um compromisso inabalável com uma jornada. Pode ser fácil mirar onde esperamos chegar e perder de vista as ações conscientes que diariamente constituem o processo”. Atualmente, a CFJ tem MOUs em 4 distritos, com 16 escolas, envolvendo diretamente de 150 a 200 educadores e 164 alunos, beneficiando indiretamente a vida de pelo menos 38 mil jovens e criando um forte senso de pertencimento e cultura positiva nesses estabelecimentos.
Não foi sem desafios que a CFJ passou de ir contra o sistema para trabalhar com ele. “A mudança do exterior para os relacionamentos internos foi uma dança muito delicada e complexa”, diz Ishida. A CFJ viu essa dificuldade de cara.
“Em uma das escolas, viam-nos como se estivessem nos pagando para fazer um serviço”, lembra Ishida. “Mas os lembramos de que estávamos entrando para fazer mudanças. Estávamos lá porque a comunidade vinha exigindo essa mudança para os jovens havia anos. Porque tanto nós quanto a escola devemos à comunidade o favor de fazer o melhor para mudar.”
Com as RCSs, a organização começou a explorar uma abordagem nova e mais profunda acerca das dinâmicas de poder na educação. Muitas organizações se concentram em pressionar os tomadores de decisão, o que pode levar a relações transacionais entre grupos comunitários e o sistema educacional. A CFJ, por outro lado, adota uma abordagem de construção de poder potencialmente mais inclusiva, impactante e transformadora. Apoia o desenvolvimento de valores compartilhados entre os stakeholders, melhorando a qualidade de suas interações e tornando os jovens que representa mais conectados ao sistema educacional.
As escolas centradas no relacionamento (RCSs) aprofundam elos entre jovens, famílias, professores e funcionários para que os estudantes se sintam integrados ao sistema educacional e se empoderem para moldar a cultura vigente nele
A CFJ tem trabalhado bastante para deixar claro para seus parceiros e colaboradores o que é mudar o sistema por meio de melhores relacionamentos. Valerie Cuevas, diretora de educação da California Community Foundation, experimentou essa abordagem relacional tanto como apoiadora e financiadora quanto como conselheira. “Participei de muitos conselhos e os deixei porque eles muitas vezes refletem a hierarquia que a organização está tentando desmontar”, diz ela. “Mas cada esforço e estrutura da CFJ fala da disposição da organização para com esse profundo compromisso com diversidade, equidade e inclusão.”
Esse impacto não é apenas devido ao poder de organização e relacionamentos. A entidade também é capaz de resumir isso em um conceito acessível, com princípios e práticas que outros podem aplicar. O trabalho das escolas centradas em relacionamentos pode variar muito, dependendo de quão prontos alunos e educadores estejam para a mudança. Muitos desses formatos possíveis estão disponíveis na página de recursos do site da CFJ.
Para ajudar a mudar a dinâmica de poder nas escolas, a CFJ emprega diferentes práticas, como entrevistas de empatia, auditorias de equidade lideradas por alunos e educadores, investigação conjunta de dilemas de equidade e construção de narrativas.
As entrevistas de empatia são conversas individuais usando perguntas abertas para elicitar experiências e histórias pessoais. O objetivo é aumentar as habilidades de escuta ativa e compreensão e formar conexões mais profundas entre pessoas com origens e papéis diversos. As auditorias de equidade são lideradas por professores e alunos e incluem ferramentas que ajudam as escolas a interromper o viés inconsciente e abordar as desigualdades estruturais. Uma dessas ferramentas é o Student Voice Continuum, que contém diretrizes desenvolvidas para avaliar a profundidade e a extensão do engajamento dos alunos na tomada de decisões. Dilemas de equidade são investigações conduzidas por alunos e professores ou administradores sobre as narrativas ocultas que perpetuam as disparidades vividas por alunos marginalizados. Eles visam romper barreiras que predizem o sucesso, examinar a identidade pessoal e o preconceito para garantir a alocação equitativa de recursos e cultivar uma cultura baseada em pontos fortes nas escolas. As práticas de construir narrativas para mudar a dinâmica de poder normalmente empregam arte ou técnicas de respiração e movimento para envolver a mente, o coração e o espírito, visando abrir espaço para a cura coletiva.
A abordagem da CFJ procura tornar a transformação responsabilidade de todos. “Quando nós, como sistema, nos comprometemos a servir aqueles que não foram bem atendidos, tornamos o sistema mais forte para todos”, diz Tiffany Brown, superintendente-assistente do distrito escolar de Long Beach. “O sistema não é um bolo, do qual, se damos mais a um, tiramos dos outros. É mais
como um rio que precisa mudar de curso e vazão, dependendo de onde estão as oportunidades e os desafios.”
Para os educadores, a CFJ se mostra uma parceira confiável que pode ajudá-los a desmantelar o racismo sistêmico de uma maneira que eles sabem não poder fazer sozinhos. A entidade tem ajudado os professores na conexão com os alunos, especialmente os negros. Isso significa, por exemplo, quebrar velhos estereótipos segundo os quais os professores são os donos da autoridade e do conhecimento, criando um novo ponto de vista no qual eles são aliados e catalisadores das próprias forças e dos conhecimentos dos alunos
AUTENTICIDADE E PERTENCIMENTO
Embora o trabalho das RCSs apoie os alunos no avanço de suas habilidades acadêmicas, a CFJ também acredita que a cultura escolar predominante privilegia as formas tradicionais de sucesso em detrimento de outros avanços dos alunos. Assim, concentra-se em cultivar um sistema educacional mais justo e libertador que permita aos alunos criar narrativas pessoais em escolas que reflitam suas próprias experiências. Nas palavras da organização, o programa promove “uma nova narrativa em torno da raça e das relações que humaniza alunos, famílias e educadores para que nossas comunidades possam liderar juntas para criar as escolas que [nossos] alunos merecem”.
Por exemplo, a CFJ organiza atividades para que alunos e professores traduzam e informem o que devem aprender, de modo a dividir o peso e as recompensas da transformação. Essa construção estimula valores como esperança e amor. “Eu me organizei como jovem a partir de um lugar de raiva”, diz Jamila Rice, ex-gerente de capacitação. “Minha transformação foi deixar isso de lado e abraçar a ideia de que podemos criar nossas próprias narrativas e nossa própria realidade. Essa libertação é linda!”
Além dos alunos, as RCSs atendem pais, professores e administradores do sistema escolar. Elas estão mudando a forma como o estado promove equidade na educação e ensinando como jovens e adultos podem criar conexões interpessoais mais profundas para trabalharem juntos por confiança e inclusão, concordem entre si ou não.
Isso não significa que tudo seja negociável ou superável. Alguns valores são essenciais. Foi necessário, em certos momentos, estabelecer limites para proteger valores e identidade, mostrando força e convicção, mesmo que isso significasse levar os relacionamentos quase ao ponto de ruptura. Nesses casos, o trabalho de construir confiança e respeito ajudou a superar as tensões.
Por exemplo, com a onda de protestos em resposta ao assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis em 25 de maio de 2020, a CFJ reafirmou publicamente sua posição antirracista por meio de mídias sociais, manifestações e cartas abertas sobre a violência contra comunidades negras,
alinhando-se estreitamente a organizações ativistas, como o Movement for Black Lives e BYP100, ajudando a organizar protestos nos estabelecimentos de ensino e reforçando seu apoio a escolas livres da polícia.
Depois que a estudante Manuela (Mona) Rodriguez foi baleada e morta por um oficial de segurança escolar da LBUSD em 27 de setembro de 2021, no estacionamento da Millikan High School, líderes da CFJ assinaram uma carta de apoio ao Black Lives Matter (BLM), que também exigia a eliminação de oficiais armados nas escolas. Mas, antes de tornar a carta pública, eles honraram as relações que tinham com o sistema escolar, engajando os administradores da LBUSD em diálogo antes de sua divulgação pública, e expressaram empatia pelas tensões que a carta causaria com a liderança da escola. É importante ressaltar que eles também argumentaram que era primordial apoiar as demandas do BLM, como a remoção de todas as armas nas escolas, treinamento adicional dado aos funcionários para conter situações difíceis, revisão e reformas de todas as ações punitivas e promoção de práticas restaurativas.
Esse compromisso com a autenticidade é um valor central da CFJ. Ele emana não apenas de suas origens de organização comunitária, mas também da maneira como constrói relacionamentos para apoiar seu trabalho. Por exemplo, toda reunião, não importa a formalidade ou urgência, começa com um exercício, que podem ser perguntas simples para conferir como todos estão se saindo, a fim de promover a intimidade na conversa e fortalecer os laços entre as pessoas, independentemente de seus papéis ou posições de autoridade.
“É verdade que, há dois anos, eu pensava: ‘O que é isso?’ Não faço isso em nenhuma reunião que vou”, diz Melanie Brown, superintendente-assistente do LBUSD. “Mas, agora, esses encontros são sem dúvida os meus favoritos, porque eles insistem em priorizar relacionamentos, e isso faz com que você queira se unir a eles.”
Estudante conduz reunião da CFJ em sua escola, em maio de 2019
“É lindo ver aquele momento em que alunos e professores finalmente conseguem baixar a guarda e começam a confiar uns nos outros e entender o quanto se necessitam mutuamente para continuar crescendo”
A abordagem da CFJ para construir interações autênticas profundas e duradouras pode decepcionar aqueles que priorizam mudanças rápidas e revolucionárias. O paradoxo aqui é que a entidade usa as RCSs, uma abordagem muito lenta e incremental, para mudar o sistema; mas, quando começarem a treinar equipes escolares em maior escala, o desafio de manter conexões aumentará. Diante dessa contradição, a entidade aposta em desacelerar o trabalho para que ele possa ser verdadeiramente transformador.
Ter paciência pode ser difícil, especialmente para aqueles cujo desejo de mudança é urgente. Najla Gomez Rodriguez, diretora de capacitação, explica esse desafio quanto aos jovens e funcionários: “Eles entram na comunidade se organizando com fervor e querendo que as coisas se movam em uma certa velocidade para combater a injustiça – porque é urgente!”. Rodriguez conta que, no entanto, uma vez que testemunham transformações se arraigando nas escolas e mudanças estruturais e de liderança duradouras, essa relutância inicial começa a se dissipar. A verdade, ao provocar mudanças sociais, como Rodriguez certamente sabe, é que é preciso ir devagar para ir rápido.
No mundo de hoje, muitos jovens, independentemente da comunidade ou país em que vivem, chegam ao ensino médio já tendo vivido traumas. Podem ter sido vítimas de um pai ou de outro relacionamento abusivo, testemunhas de violência ou terem sido expostos a uma tragédia devastadora – por exemplo, um tiroteio na escola ou uma overdose de um amigo. Os que são negros carregam o fardo adicional de sofrer racismo.
Eventos traumáticos passados permanecem presentes no corpo e no espírito do jovem, caso não haja recursos ou apoio para ajudá-lo a se curar. Em muitas das comunidades atendidas pela CFJ, eles com muita frequência não estão muito disponíveis. Some-se a isso o fato de que questões não resolvidas devido à falta de atenção e cuidado muitas vezes podem ser passadas para um filho ou neto, tornando-se um trauma intergeracional.
Muitos jovens atendidos pela CFJ entram no ensino médio com traumas significativos, passando a maior parte do dia em um ambiente escolar despreparado para ajudá-los. Mais especificamente, as abordagens educacionais em geral não têm uma visão bem informada sobre trauma, e educadores e professores atenciosos costumam estar ocupados ou esgotados demais para criar uma cultura de cuidado.
A CFJ apoia estudantes e adultos na adoção de novas narrativas e comportamentos que começam a ajudá-los a se curar. O ponto central desse trabalho é capacitar os jovens a se sentirem mais seguros e no controle de seu próprio ambiente, além de apoiar a criação e a confiança de relacionamentos entre eles e os adultos.
“Para que realmente comecemos a quebrar os ciclos de violência e de trauma, temos que investir em ciclos de cura, empoderamento e amor”, diz Cardenas. “Minha esperança é que continuemos a quebrá-los, cercando os jovens com adultos amorosos e carinhosos que querem vê-los prosperar e que estão dispostos a ajudá-los a se curar.”
A abordagem para a construção de relacionamentos começa e termina com amor, em uma conexão que nutre a intimidade entre alunos e adultos e abre possibilidades para o propósito coletivo. Os métodos da CFJ lembram aos professores e alunos que pequenos atos, como fazer contato visual, observar atentamente as emoções ou instituir rituais de boas-vindas, como círculos ou diários, somam-se para mostrar quanto eles se importam uns com os outros. Ao vivenciar o amor por meio de relacionamentos autênticos, os alunos podem começar a sentir esperança no futuro.
“É lindo ver aquele momento em que alunos e professores finalmente conseguem baixar a guarda e começam a confiar uns nos outros e entender o quanto se necessitam mutuamente para continuar crescendo”, diz Jasmine Ramirez, bolsista de capacitação da CFJ. “Esses momentos fazem você sentir esperança e se sentir amado, acreditar que vai dar tudo certo.”
Para a CFJ, engajar-se nesse espírito de amor, especialmente com quem vê as coisas de modo diferente, requer investimento regular em transformação pessoal e resiliência. Assim, também apoia o trabalho restaurador para seu time, como faz com os jovens, por meio de práticas somáticas como exercícios de respiração, meditação e ioga; obras de arte coletivas para expressar objetivos e aspirações comuns; conexão e experiências de cura através da música e da dança – entre outras modalidades.
“Trabalhar com pessoas que refletem a opressão de nossa sociedade… Não podemos jogar fora essas pessoas quando nos tratam mal”, diz Ishida. “Então, precisamos nos armar para continuar com o trabalho – duro e transformativo – todos os dias.”
PODER TRANSFORMADOR
Um objetivo central da CFJ desde a sua criação tem sido transferir o poder para a juventude. Mas o modo de buscar esse objetivo evoluiu ao longo do tempo. Como muitas outras organizações estão aprendendo, o poder nunca tem um lugar fixo dentro de um sistema. Ele é fluido, coletivo, relacional e se espalha em muitos nódulos. O poder não precisa ser um jogo de soma zero. No entanto, para que seja transformador, ele deve estar centrado em todo o sistema de relações, e não apenas em partes do sistema. Essa visão do poder dá maior atenção à qualidade das interações entre pessoas diversas e nos valores que fundamentam e nutrem essas interações.
No início, a CFJ identificou três condições para alcançar o sucesso com as RCSs, de acordo com Geordee Mae Corpuz e Saa’un Bell, que foram líderes de equipe: “Primeiro, seria necessária uma estratégia para mudar a cultura dos adultos nas escolas. Segundo, exigiria que, como organizadores, praticassem a justiça racial. E terceiro, requereria uma estratégia ‘interna’ para transformar relacionamentos e construir massa crítica dentro das escolas”. Em seu trabalho de escolas centradas em relacionamentos, a CFJ reconhece a qualidade coletiva, relacional e interativa do poder e como ele é exercido em um sistema como um todo.
A organização não apenas transformou as condições e as relações entre alunos e educadores no nível escolar, mas também forjou relações e expandiu sua influência com legisladores e formuladores de políticas nos níveis distrital e estadual. Ao fazê-lo, a entidade mudou o poder, em diferentes escalas.
“Eles realmente mudaram a cultura das reuniões dos conselhos estaduais de educação, criando a expectativa de que os jovens e a família vão estar lá e contar histórias”, diz Angélica Jongco, vice-procuradora-geral da Defensoria Pública. “Lembro-me do dia em que Skye Lowe, na época organizadora estudantil, pediu a todos em uma reunião estadual que fechassem os olhos e revivessem sua experiência como estudantes, o que significava ter um funcionário ou professor realmente vendo-os e perguntando como eles estavam e que diferença essa relação fez na sua experiência escolar. Isso teve nos tomadores de decisão um impacto totalmente diferente do que as palavras em qualquer uma de nossas cartas de defesa.”
Uma parte crítica de apoiar uma mudança de perspectiva entre aqueles que estão no poder é trabalhar para que os líderes educacionais entendam por si sós que uma realidade diferente é possível. Por exemplo, a CFJ conseguiu convencer lideranças de distritos e escolas a deixar que os alunos liderassem o desenvolvimento profissional – um passo altamente incomum na maioria dos sistemas escolares. Na experiência deles, quando os líderes escolares participam dessas oficinas conduzidas pelos jovens, sua perspectiva sobre os alunos e seu potencial muitas vezes se transforma. Em vez de apenas falar sobre a voz e a participação dos alunos, esses adultos ficam ansiosos para tê-los como parceiros iguais na formação de escolas melhores. Por exemplo, depois de uma oficina dessas, um líder escolar pode ver com mais facilidade que ter um aluno em um comitê de contratação traria uma perspectiva totalmente nova à avaliação de aptidão dos candidatos a vagas de emprego.
É claro que deixar de trabalhar contra o sistema para trabalhar dentro do sistema pode desagradar algumas pessoas. Najla Gomez Rodriguez conta que, quando a CFJ adotou essa abor-
dagem centrada no relacionamento, outros começaram a dizer: “Isso não é organizar! Organizadores se saem melhor quando lutam contra o sistema”. Mas eles têm mostrado por meio das RCSs como o sistema público de ensino pode ser transformado por dentro.
“Tem sido desafiador para as organizações e até para alguns dos funcionários fazer essa mudança e entender e assimilar quão mais longe podemos chegar com essa abordagem coletiva, em vez de forçar os outros a fazer o que queremos que eles façam”, diz Rodriguez. “Mas acho que as pessoas estão começando a ver o impacto e gostar dos resultados e, portanto, estão ficando mais curiosas sobre nossos métodos.”
A CFJ agora desempenha um papel cada vez mais poderoso em nível estadual. No ano passado, o Conselho Estadual de Educação da Califórnia a selecionou para integrar a equipe do estado – ao lado do Escritório de Educação do Condado de Alameda, do Centro de Educação Comunitária da UCLA e da Associação Nacional de Educação – que estará à frente da implementação do Programa de Parceria de Escolas Comunitárias da Califórnia, iniciativa de US$ 3 bilhões que prioriza modelos de escola comunitária racialmente justos e centrados no relacionamento em todo o estado.
A participação da organização confirma o valor que seu trabalho de liderança juvenil e equidade racial ganhou ao longo dos anos. Há 27 anos, poucas pessoas teriam pensado que seria possível para aquela pequena organização de mobilização comunitária que lutava por jovens de cor liderar uma iniciativa estadual em grande escala destinada a transformar o sistema educacional da Califórnia.
ACFJ está bem posicionada para continuar esse trabalho no futuro. Nos dez anos desde que Ishida se tornou diretora-executiva, a organização passou de um modelo de receita totalmente dependente da filantropia para um que combina subsídios e receita de consultoria, vinda do trabalho de capacitação nas escolas. O aumento do financiamento, por sua vez, permitiu que investisse em sua própria capacitação interna, o que inclui uma forte ênfase no bem-estar de seus funcionários e dos jovens que participam da organização. A entidade informa e educa regularmente a equipe a respeito de estratégias de autocuidado. O esforço também inclui priorizar o tempo para que a equipe se ajude por meio do apoio em grupo.
A organização aumentou a capacidade da equipe de contar sua história – uma dimensão importante para apoiar o trabalho relacional nas escolas e também fundamental para esclarecer e ilustrar seu trabalho para os financiadores. E graças ao seu sucesso na
A organização se concentra em reformular os valores e esperanças para o sistema, reorientar mentes e corações, quebrar ciclos de trauma e preparar o terreno para esperança e libertação
Muitos dos programas da CFJ são conduzidos por jovens, como foi o caso desse evento de arrecadação de recursos realizado em maio de 2023, em Oakland
última década, é capaz de mostrar a eles uma visão mais ampla de seu impacto. “Como diretora-executiva, sempre senti a pressão de precisar mostrar resultados para nossas bolsas e para nosso trabalho em geral”, diz Ishida.
Mas é claro que a mudança de sistemas rumo à equidade e à justiça não é linear nem previsível em lugar algum. E a forma como o progresso é avaliado requer uma compreensão matizada da dinâmica em jogo. Ser capaz de se envolver com financiadores em dimensões mais amplas da mudança de sistemas – mudanças de visões de mundo, dinâmicas de poder e influência relacional – é um produto direto da maneira evoluída de trabalhar a serviço da juventude preta e parda.
Um aspecto crucial do trabalho de construção efetiva de poder dos jovens é reconhecer que se trata do processo, e não só dos resultados. A forma como as pessoas se envolvem umas com as outras é o trabalho, não apenas um meio para um fim. A CFJ não se contenta em criar mudanças incrementais nas escolas. A organização se concentra em reformular os valores e esperanças para o sistema, reorientar mentes e corações, quebrar ciclos de trauma e preparar o terreno para esperança e libertação. Ela de-
monstra que essa transformação é possível, reduzindo o medo das pessoas de serem vistas como vulneráveis aos olhos dos outros e rompendo com os hábitos e a inércia que as impedem de trabalhar umas com as outras para benefício mútuo e por uma sociedade melhor. Isso significa criar um espaço onde as pessoas possam aprender a entender e abraçar o fato de que seu bem-estar individual depende do dos outros – e também perceber que as decisões de apoiar os outros devem ser baseadas na solidariedade, e não na caridade.
“A CFJ pede um sistema que reflita nossos corações, almas e mentes e conexão espiritual para que vejamos nossa humanidade conectada com igual dignidade e respeito”, diz Valerie Cuevas, da California Community Foundation. “Eles têm sido sempre os primeiros em nos lembrar disso.” O
JOHN KANIA é fundador e diretor-executivo do Collective Change Lab. Antes, foi diretor global da FSG, onde continua a atuar como membro do conselho de administração
JUANITA ZERDA é diretora do Collective Change Lab. Ocupou cargos de gestão em diversas organizações governamentais e de justiça social. Atualmente faz parte do conselho da Utec
O design thinking não cumpriu a promessa de resolver os grandes desafios sociais da humanidade. Uma nova postura, mais crítica, pode ajudar designers a colocar a comunidade, e não a própria metodologia, em primeiro plano
ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS, governos e agências internacionais volta e meia recorrem ao design thinking para abordar problemas sociais complexos e buscar soluções inovadoras “com” – e não só “para” – o público. O conceito de design thinking foi proposto há mais de quatro décadas no artigo Designerly Ways of Knowing, publicado em 1982 na revista Design Studies pelo acadêmico Nigel Cross. A abordagem, que foi popularizada e traduzida para o grande público pela consultoria de inovação e design IDEO, rapidamente tornou-se a ferramenta de inovação favorita do mundo empresarial – e, logo depois, do setor social e da comunidade de desenvolvimento internacional – devido ao compromisso de colocar a comunidade no centro de um processo colaborativo de design.
A aplicação do design thinking ao setor social foi defendida em um artigo em 2010 na Stanford Social Innovation Review (Design Thinking para a inovação social) por Tim Brown, à época presidente da IDEO, e Jocelyn Wyatt, à frente do braço de inovação social que resultaria na IDEO.org. O texto virou referência para o modelo no setor social. Encampada por grandes nomes da filantropia como Melinda Gates, cofundadora da Bill & Melinda Gates Foundation, e Jacqueline Novogratz, fundadora e CEO da Acumen, a ideia ganhou força por prometer mudanças sociais profundas. Brown chegou a afirmar, em um artigo na Harvard Business Review em 2014, que o design thinking poderia aperfeiçoar o próprio capitalismo democrático.
Infelizmente, o design thinking não honrou sua promessa. Em um texto para a MIT Technology Review em 2023, a autora e designer Rebecca Ackerman sustentou que, embora a abordagem supostamente tivesse vindo para “consertar o mundo”, as ideias que o processo gera raramente são implementadas – devido à compreensão inadequada tanto do problema como da complexidade do contexto institucional e cultural. Ackerman dá o exemplo do San Francisco Unified School District (SFUSD), órgão de gestão escolar que contratou a IDEO em 2013 para repensar os refeitórios de escolas públi-
POR ANNE-LAURE FAYARD E SARAH FATHALLAH
Ilustrações de Christoph Niemann
cas do distrito. O processo de design thinking durou cinco meses e culminou em dez recomendações, incluindo a criação de uma cozinha coletiva e o uso da tecnologia para reduzir filas nos espaços. Contratada pelo SFUSD para colocar em prática as recomendações, a consultora Angela McKee Brown disse a Ackerman, no entanto, que a IDEO não computou aspectos operacionais e regulatórios necessários à implementação.
Rejeitamos o design thinking como instrumento isolado para a solução de problemas sociais. Neste artigo, explicamos por que a metodologia, como comumente praticada, mostrou-se incapaz de criar soluções sustentáveis e de impacto para questões sociais complexas. O que propomos é, antes, uma visão crítica do design – e por crítica entenda-se tanto “criteriosa” quanto “importante”. A nosso ver, o designer deve adotar uma postura de constante reflexão e questionamento, similar ao que a acadêmica e ativista Angela Davis chamou de “um modo de pensar, um modo de estar no mundo que exige que sejamos constantemente críticos, constantemente conscientes”.
Uma postura crítica de design demanda uma série de valores e compromissos – como ser relacional, reflexiva e politicamente comprometida. Essa atitude traz princípios para nortear o uso de métodos do design thinking, mas garantindo a flexibilidade quanto a por que, como, quando e por quem deveriam ser usados. Para mostrar como pôr em prática essa postura, veremos projetos do setor social que se valem do design thinking de formas distintas sem deixar de lado a visão crítica
pOR ENVOLVER UMA MULTIPLICIDADE de atores em diferentes contextos, tempos e realidades políticas, o setor social é inerentemente complexo. Qualquer abordagem que pretenda dar cabo com facilidade dessa complexidade tende a ser reducionista e, portanto, ineficaz. Ao menos três características do design thinking o tornam propenso a simplificações excessivas.
Ele segue uma fórmula. | O design thinking normalmente é apresentado como uma ferramenta que prescreve uma série determinada de passos, esquemas padronizados e processos que podem ser seguidos, reproduzidos e até convertidos em modelos de consultoria. A quantidade e a denominação dos passos em cada abordagem variam, mas a meta é sempre a mesma: dar ao usuário – designer ou não – um passo a passo fácil de seguir para resolver um problema. O processo normalmente inclui atividades de investigação e definição do problema, seguidas da geração de ideias, que são então convertidas em protótipos e testadas reiteradamente antes de serem implementadas. O design thinking prega que isso seja feito com uma atitude positiva, com curiosidade e com mente aberta.
Esse caráter de fórmula pronta sugere que aplicar o design thinking é simples. Nossa experiência com a pesquisa, o design e a educação no setor social nos últimos 12 anos revela que muitas organizações aplaudem essa aparente simplicidade com a esperança de que traga soluções rápidas para desafios complexos. Algumas lançam projetos de design thinking para enfrentar problemas que se arrastam há gerações – como acesso à saúde
ou discriminação de gênero – na suposição de que será possível formular soluções em questão de meses. Apresentar o design thinking como fórmula também minimiza a importância de ter a cultura organizacional certa e a qualificação adequada para a prática da metodologia. Uma organização avessa a riscos, apegada à hierarquia e que delega a consultores a responsabilidade por novas ideias em geral tem dificuldade para testar, colaborar e adotar uma abordagem não só centrada no ser humano, mas que também coloque os beneficiários no cerne do processo de geração de ideias. E tudo isso é essencial para o design thinking.
Ele é descontextualizado. | Embora declarem estar atentos ao contexto, proponentes do design thinking nem sempre têm uma visão sistêmica e estrutural de como as questões que pretendem abordar estão ligadas à comunidade como um todo e à sua história. Essa falta de contexto pode causar danos involuntários à comunidade e a seu entorno, ao interpretar problemas como falhas individuais em vez de sistêmicas.
Essa descontextualização também perpetua o mito de que o design thinking é uma abordagem objetiva e apolítica, com o designer como agente imparcial no projeto. Só que o designer não é neutro. Seus vieses e crenças influenciam o modo como vê e interpreta o mundo – e, portanto, seu trabalho. Em um artigo para a edição especial da Design Museum Magazine sobre a ação da polícia,1 Sarah Fathallah (coautora deste artigo) mostra os limites dessa abordagem descontextualizada com a análise de vários projetos recentes em que designers colaboraram com órgãos de segurança pública. A ideia era tentar aumentar a confiança dos cidadãos na polícia por meio de atividades como reuniões em bairros, acompanhamento de patrulhas (“ride-along”) e uso da realidade virtual para desmistificar o trabalho de policiais. Para Fathallah, todas as soluções propostas partiam do pressuposto de que a população desconfiava da polícia por falta de empatia ou desconhecimento do trabalho policial. Uma análise mais profunda, no entanto, teria incluído falhas sistêmicas do policiamento, explica Fathallah, mostrando como a desconfiança da comunidade tem raízes na “realidade presente e histórica da ação policial, a qual inclui uso de violência, discriminação, criminalização da pobreza, assédio e agressão sexual”.
O projeto Makeright Initiative, um estudo realizado entre 2015 e 2017 no Reino Unido e na Índia, expõe as limitações do design thinking quando não se considera o contexto. Na iniciativa, 85 detentos do Reino Unido e 25 da Índia participaram de oficinas para aprender a confeccionar bolsas à prova de roubo como parte de um projeto de design thinking. Segundo Lorraine Gamman e Adam Thorpe, ambos professores de design na faculdade londrina Central Saint Martins e responsáveis pelo projeto, a ideia era dar aos detentos a oportunidade de desenvolver empatia e a capacidade de colaboração e resolução de problemas. Em um artigo de 2018 na She Ji: The Journal of Design, Economics, and Innovation sobre a iniciativa, Gamman e Thorpe afirmam que esse aprendizado “poderia sustentar a ambição [de detentos] de trabalhar por conta própria no futuro” e contribuir para seu “engajamento social e facilitar sua reinserção na sociedade”.2 Ao encarar a “integração social” e a “abstenção do crime” como uma questão de desenvolvimento individual, Gamman e Thorpe ignoram as circunstâncias que contribuíram para a prisão do indivíduo em primeiro lugar e as barreiras estruturais à sua reintegração, incluindo a dificuldade de acesso
a emprego, moradia e outras necessidades básicas devido à ficha criminal. Além disso, retratam a criminalidade como questão de escolhas erradas do indivíduo, não como um conjunto de decisões políticas para mirar e punir certos segmentos da população.
Ele pensa a curto prazo. | Projetos de design thinking em geral são realizados por consultorias em prazos curtos, e suas entregas são propostas, não ações implementadas. O modelo de consultoria, aliado ao financiamento de projetos por prazo determinado por organismos internacionais no setor social e de desenvolvimento, premia a eficiência e a brevidade. No livro Design for Social Innovation, Mariana Amatullo, Bryan Boyer, Jennifer May e Andrew Shea – designers e educadores – analisam 45 projetos em distintos setores, em seis continentes, para chegar a critérios culturais, econômicos e organizacionais essenciais para o sucesso na implementação do design voltado à inovação social. Os autores concluíram que diversos fatores determinam o impacto do modelo a longo prazo, incluindo uma ênfase na rapidez e a compreensão limitada de sistemas complexos. Um exemplo: um projeto da IDEO.org para orientação de adolescentes sobre saúde reprodutiva e acesso a contraceptivos em salões de beleza na Zâmbia, batizado de Diva Centres, não conseguiu ganhar escala devido à complexidade de mecanismos de custeio e de canais de acesso da saúde pública no país. Jocelyn Wyatt, Tim Brown e Shauna Carey, líderes da IDEO e da IDEO.org, refletiram sobre esse projeto em um artigo em 2021 na Stanford Social Innovation Review, no qual falaram da evolução do design thinking para a inovação social.3 O trio admitiu que o Diva Centres não levou em conta a multiplicidade de prestadores de serviços públicos e privados e a complexa engrenagem de custeio da saúde pública que fizeram com que a expansão do projeto se tornasse “proibitivamente cara e complicada.”
ESAFIOS DE INOVAÇÃO SOCIAL são complexos – e assim deve ser a maneira de enfrentá-los. Por isso propomos que designers parem de fundamentar o design thinking em um ferramental único e, em vez disso, cultivem, com outros stakeholders, uma postura crítica que oriente um uso mais matizado e duradouro do design.
Essa perspectiva se baseia em uma rica linhagem de tradições e em estudiosos do design que defendem a imersão e o diálogo com comunidades e sistemas. Em Design – Quando todos fazem design [publicado no Brasil pela Unisinos], o acadêmico Ezio Manzini propõe abrir o design a quem não é da área e convida o designer a ser um facilitador de conversas e elo de recursos para a comunidade. Manzini sugere, por exemplo, que o profissional que trabalha com o tema do envelhecimento da população incentive o idoso a ser agente da mudança, reconhecendo suas necessidades e habilidades e envolvendo o indivíduo na criação de serviços que satisfaçam essas necessidades. Manzini explica que essa inclusão já levou à criação de programas de coabitação intergeracionais, como o da organização sem fins lucrativos Meglio Milano. O projeto milanês, chamado Prendi in Casa (acolhe em casa), liga idosos com espaço de sobra e estudantes em busca de um teto, reduzindo o custo da moradia e o isolamento social tanto para jovens como para velhos.
A capacidade da comunidade de desenvolver as próprias soluções com o apoio do designer, que aportaria os recursos e as condições para implementar as soluções, é o que o antropólogo Arturo Escobar chama de “reorientação do design”.5 Para que o designer não fique só na boa intenção e atue a serviço da comunidade e de
Para que o designer não fique só na boa intenção, é preciso prestar contas à comunidade. Convidamos nossos leitores a considerar relacionalidade, reflexividade e compromisso político ao desenvolverem uma postura crítica de design
O desejo de acelerar a inovação fez proliferar eventos pontuais como hackathons e jornadas de inovação aberta que normalmente empregam o design thinking. Voltadas para a geração de ideias, essas iniciativas não costumam considerar o destino das ideias após o evento. Estudos recentes, incluindo um publicado por Anne-Laure Fayard (uma das autoras deste artigo) em 2023 na Organization Science, mostram que hackathons e desafios de inovação aberta funcionam, sim, para a geração de ideias – mas não para a prototipagem e a implementação.4 Para incentivá-las, organizadores e patrocinadores deveriam buscar maneiras de apoiar indivíduos ou times após a conclusão desses eventos, produzindo impacto a longo prazo. Do mesmo modo, designers e profissionais no setor social deveriam montar seu calendário com base nos valores que, a seu ver, deveriam pautar o trabalho. Isso significa, por exemplo, reservar um tempo para cultivar relações na comunidade e gerar confiança ou permitir que os cidadãos decidam como e quando o projeto poderia se alinhar a prioridades e marcos da comunidade
movimentos sociais, como diz a designer Sasha Costanza-Chock, é preciso prestar contas a esses atores.6 Nessa reorientação da prática do design, convidamos nossos leitores a considerar três valores: relacionalidade, reflexividade e compromisso político.
RELACIONALIDADE: Na sabedoria indígena, todas as coisas vivas – o ser humano, os animais, a natureza – existem e são definidas umas em relação às outras. Estudiosos e designers que trabalham com metodologias de design indígena e decolonial mostram que essa visão relacional se contrapõe à distinção ocidental entre aqueles que sabem (“especialistas”) e aqueles que não sabem, entre sujeito e objeto e entre humanos e não humanos. No contexto do design, a perspectiva relacional reconhece que atividades fundamentais do design – como o ato de indagar, de imaginar e de criar – não são seara exclusiva do profissional. Adotar uma postura relacional significa indagar quais saberes, competências e conhecimentos são incluídos ou excluídos, distorcidos ou erroneamente representados, silenciados, desvalorizados ou contestados. Mais ainda, exige que o designer assuma o papel de ouvinte e facilitador e trabalhe com integrantes
da comunidade com um espírito de mutualismo e respeito pelo conhecimento e pelo saber de cada um no processo de design thinking.
REFLEXIVIDADE: O designer leva seu ser – suas premissas e posicionalidades – ao trabalho, o que influencia o modo como interage com a comunidade e como se envolve no processo de design. A reflexividade – a consciência da própria identidade e a capacidade de examinar sua perspectiva e suas premissas – pode ajudá-lo a questionar o mito da neutralidade e a indagar, a reconhecer a própria posicionalidade e a assumir a responsabilidade por seu trabalho. Para cultivar essa consciência crítica, é preciso entender a reflexividade como uma prática contínua, que evolui, que não se limita a um punhado de eventos ou controles e vai examinar um vasto leque de questões. No livro Power and Participation: A Guidebook to Shift Unequal Power Dynamics in Participatory Design Practice, Hajira Qazi sugere que o designer considere como sua posicionalidade se manifesta em distintas dinâmicas de poder, gerando possíveis conflitos de interesse em seu trabalho.
COMPROMISSO POLÍTICO: O design sempre se situa dentro de alguma pauta política. Se não reconhecer o papel político da atividade, o designer pode acabar agindo como dita o statu quo. Ser politicamente comprometido significa identificar a agenda política do trabalho e daqueles envolvidos nele, em vez de ocultá-la por trás da miragem da “objetividade” ou da “neutralidade”. E pode significar, também, a adoção de objetivos políticos alinhados com as metas da comunidade e de movimentos sociais.
Na verdade, o design tem uma longa história de engajamento político. A escola escandinava de design foi fundada na década de 1960 com a missão política de envolver o público em melhoramentos no local de trabalho e no compromisso com a democracia nesse espaço. Essa orientação política teve continuidade com o trabalho
Pensar de forma crítica sobre a participação. | Quando o designer quer adotar uma postura relacional, é natural que pense em chamar membros da comunidade para participar do processo de criação. No entanto, um erro recorrente dessa estratégia é envolvê-los sem analisar e remediar eventuais prejuízos trazidos por essa participação. Quando a comunidade sente que está sendo reiteradamente convocada a relatar sua experiência, mas não enxerga as mudanças prometidas pelas organizações que pedem tal relato, sua participação se torna tokenização, uma conduta extrativista e revitimizadora. O ato de participar como um fim em si mesmo, sem nenhuma ação correlata, desvaloriza o saber das pessoas e provoca fadiga e trauma nos envolvidos.
Colaborar em um projeto de design traz custos para o indivíduo. No plano material, a pessoa pode ter não só despesas, mas também custos de oportunidade – como o tempo que deixou de dedicar ao cuidado dos filhos ou ao trabalho –, e não receber remuneração alguma, nem sequer o reembolso por essas despesas. No caso da extração de conhecimento, membros da comunidade podem até ficar sem saber o que foi feito com as informações obtidas a partir de seu relato. Podem interagir com designers e profissionais sem receber qualquer capacitação. Além disso, a atividade pode ser emocionalmente desgastante para a pessoa. Para garantir que a participação de membros da comunidade ocorra de maneira relevante e responsável, é preciso oferecer benefícios, como a remuneração dos participantes pelo tempo dedicado e o saber transmitido, acesso a recursos e oportunidades que não teriam por outra via e a adoção de práticas para proteger as pessoas de possíveis traumas.8
Outro erro é adotar uma abordagem que, embora participativa, não dê a membros da comunidade autonomia e poder de decisão no processo. Um exemplo: o designer Victor Udoewa foi convidado por
A postura crítica questiona se priorizar a novidade serve aos anseios e necessidades da comunidade. Criar serviços ou produtos inovadores não é imprescindível para gerar impacto, que pode vir do manejo de recursos existentes
de designers que se concentraram na sustentabilidade e na justiça e que atuaram na interseção do design e de certos projetos políticos libertários, como a decolonização, o anticapitalismo e a abolição.7
Pensar criticamente
MA POSTURA DE DESIGN CRÍTICA não é prescritiva. Em vez de limitar a abordagem e os resultados de um projeto específico de design, essa postura pode ajudar na definição do método a adotar e dar subsídios a ele. Os exemplos a seguir buscam tratar decisões do processo de design – como participação, remuneração, escala, impacto e financiamento – de modo mais crítico. É bom lembrar que nada deve ser interpretado como um “padrão de excelência” ou um receituário, uma vez que, ao adotar uma postura crítica, o design pode ter de fazer escolhas segundo o contexto e as circunstâncias específicas.
uma entidade sem fins lucrativos que trabalha com o órgão gestor da rede de ensino pública na capital americana, Washington, para reformular o currículo de um programa de intercâmbio internacional voltado a estudantes do ensino médio. O projeto adotou uma abordagem participativa radical, com o envolvimento de membros da comunidade em todas as fases do processo de design (a equipe do projeto incluía dois designers e quatro estudantes). Mas ele não deu certo – como explicou Udoewa em um artigo de 2022 no Journal of Awareness-Based Systems Change –, pois a entidade ignorou as decisões dos estudantes. Ou seja, o projeto abriu espaço para essa participação, mas não deu aos alunos autoridade para decidir quais soluções seriam implementadas, resultando em desilusão
A desigualdade de poder também reduz o potencial da participação. Uma postura crítica de design pede, portanto, que o designer aborde a relacionalidade não só buscando a contribuição de membros da comunidade, mas também interrogando de forma reflexiva o papel que cada um desempenha no projeto e como se
relaciona com os outros. Isso é essencial para que o profissional identifique e neutralize potenciais consequências negativas da participação. Para determinar quem detém poder e quem não, a investidora de impacto Chicago Beyond incentiva organizações comunitárias, acadêmicos e fontes de capital a refletir sobre diversos fatores, incluindo quem determina o processo, quem tem acesso a indivíduos e informações, quem tem o poder de validar e atribuir valor a fatos e ideias, quem recebe crédito e reconhecimento por ideias e quem é responsável perante a sociedade.9
Pensar de forma crítica sobre o problema. | No processo de design thinking, a organização que inaugura o projeto ou os profissionais do design que nele atuam normalmente articulam o problema logo de início. No entanto, atores externos que não vivenciam o problema em primeira mão recorrem a premissas falhas para determinar a existência, a validade ou a importância relativa do problema. Se ninguém questiona essas premissas no início do processo de design, o restante do processo pode acabar sendo irrelevante para as comunidades – quando não prejudicial.
Uma maneira de questionar essas premissas é convocar aqueles mais afetados pelo problema para defini-lo em suas próprias palavras. Um exemplo é o do Mahali Lab, programa do International Rescue Committee (IRC) com o qual Fathallah trabalhou, que chamou refugiados sírios e jordanianos em situação vulnerável para buscar soluções para os desafios de suas respectivas comunidades. O princípio do laboratório era simples: toda decisão, em toda etapa do processo, seria conduzida pela comunidade. Durante 18 meses entre 2017 e 2018, o laboratório deu aos participantes um espaço de coworking, apoio financeiro e acesso a mentores e especialistas para reforçar suas ideias através de pesquisa estruturada, de prototipagem e do planejamento da implementação. Isso feito, o IRC deu financiamento e suporte para a implantação em escala das ideias consideradas mais promissoras por membros da comunidade e especialistas. O laboratório iniciou, ainda, uma série de sondagens de três meses para que os próprios membros da comunidade indicassem quais seus problemas mais agudos. Esse processo começou com uma prospecção para identificar indivíduos com liderança em suas comunidades e com acesso a redes em três localidades urbanas com alta concentração de refugiados na Jordânia: Amã, Irbid e Mafraq. Posteriormente, houve uma série de entrevistas abertas, semiestruturadas, além de grupos de discussão com membros da comunidade. As primeiras entrevistas foram individuais, feitas por esses mediadores na casa dos próprios entrevistados; só depois vieram grupos de discussão maiores, com a participação do restante do time do Mahali Lab. Os problemas apontados pela comunidade foram sintetizados pela equipe e apre-
sentados de volta aos indivíduos para validação e priorização, tanto pessoal quanto virtualmente, por WhatsApp e grupos do Facebook com sírios radicados na Jordânia. Os problemas que a comunidade priorizava – geração de renda, serviços de apoio e ensino infantil –tornaram-se alvo do trabalho do Mahali Lab.
Pensar de forma crítica sobre inovação. | Ao escolher as ideias que serão prototipadas e testadas em projetos de design thinking, em geral se prioriza o que é “novo” ou “original”. Confundir novidade com inovação, no entanto, pode levar o designer a validar ideias que parecem novas em detrimento de coisas que talvez não o sejam, mas que sabidamente dão resultado.
A postura crítica questiona se priorizar a novidade coloca prioridades organizacionais e a liberdade de criação de designers acima de necessidades e anseios da comunidade. Criar serviços ou produtos inovadores não é imprescindível para gerar impacto, que pode vir simplesmente do manejo de recursos para apoiar iniciativas existentes na comunidade – como descobriu o conselho regional de Southwark, em Londres, ao trabalhar com a consultoria Engine Service Design, em 2009. A consultoria colaborou com o conselho e cidadãos na solução de problemas ligados à saúde e ao ambiente doméstico. Para surpresa do time de Southwark, que esperava que os moradores pedissem novos serviços ou tecnologias, várias das ideias da população reciclavam conhecimentos e recursos que a comunidade já tinha. Uma delas, por exemplo, era aproveitar espaços abertos e fechados da região para atividades sociais abertas à população. Outra sugeria que especialistas em nutrição e saúde na comunidade orientassem a população no preparo de uma dieta
saudável. Nos dois exemplos, a população não queria novidades, mas acesso a recursos que já existiam para atingir suas metas.10
Pensar de forma crítica sobre o compromisso com a comunidade. | Um designer que se compromete a prestar contas à sociedade pode sentir a necessidade de aderir a objetivos políticos contrários aos de atores do setor em questão. Um exemplo: em 2021, a ONG de assistência à infância e juventude Think of Us analisou a experiência de menores em serviços de acolhimento institucional, como lares coletivos, nos Estados Unidos. O estudo revelou sérios problemas nesse modelo, com práticas punitivas, traumáticas e prejudiciais – como menores submetidos a contenção física ou abusos, coagidos a tomar medicamentos psicotrópicos ou privados de qualquer contato com amigos e parentes. Diante disso, a equipe da Think of Us se recusou a dar ideias para melhorar a experiência do menor nesses ambientes institucionais, como camas melhores e mais atividades externas. Com base no relatório do estudo, a equipe afirmou que, “embora algumas dessas mudanças pudessem tornar o ambiente mais agradável, poucas delas melhorariam de forma significativa as condições materiais e as perspectivas futuras do jovem ao deixar esses lugares”.11 Em vez disso, a equipe propôs o fim do acolhimento em instituições, algo que ia ao encontro de um movimento crescente de atores da sociedade – incluindo mães e famílias afetadas pelo sistema de acolhimento, organizações de acolhida e ativistas ligados à justiça para pessoas com deficiência – pela redução ou o fim da institucionalização de menores vulneráveis. Apesar das críticas recebidas, o projeto levou vários estados americanos a reduzir ou eliminar a institucionalização, além de gerar novos processos, atualmente em fase de concepção, teste e implementação. Pensar de forma crítica sobre escala e impacto. | Organizações sem fins lucrativos e empreendedores sociais precisam mostrar a potenciais financiadores que o impacto de um projeto pode ser multiplicado. Essa visão nasce de uma lógica capitalista que busca ampliar continuamente o número de beneficiários – assim como plataformas tecnológicas buscam aumentar o de usuários. No entanto, uma postura crítica de design poderia indagar se ganhar escala deveria realmente significar aumentar o número de beneficiários. Por que não consolidar ou aprimorar o que uma organização faz a serviço de um mesmo grupo de pessoas? Em conversas com entidades sem fins lucrativos e empreendedores sociais, vimos que essa suposta necessidade de ganhar escala gera uma forte pressão para a entidade “mostrar impacto” por meio de números, em vez de “causar impacto” com mudanças na vida dos beneficiários.
Uma organização que resolveu mostrar impacto de maneira distinta é a Amartha, uma plataforma de financiamento ponto a ponto (P2P) para micro, pequenas e médias empresas geridas por mulheres na zona rural da Indonésia. A Amartha começou a operar em 2010 em um vilarejo em Bogor, Java Ocidental, como uma empresa tradicional de microcrédito. Nos primeiros cinco anos, optou por aprofundar o relacionamento com a clientela existente, pois queria montar uma carteira de alta qualidade com os recursos limitados que tinha. Durante esse período, seu fundador, Andi Taufan Garuda Putra, percebeu que poderia oferecer mais serviços não só às mulheres, mas também a suas famílias – porém a organização tinha uma capacidade financeira limitada e dificuldade de atender à demanda de crédito (a Amartha tinha uma taxa de retenção de 90%, e a maioria das clientes buscava empréstimos maiores). Pu-
tra decidiu, então, criar serviços complementares, como educação, para as mulheres que a entidade já atendia – e só então partir para outras regiões da Indonésia. Putra passou a explorar modelos de marketplace para atrair mais investidores individuais e bancos, o que levou a Amartha a virar uma plataforma de empréstimos P2P em 2016. Depois de incrementar seus serviços em diversos vilarejos de Java Ocidental, finalmente entrou em outras partes do país. Em vez de buscar um número crescente de beneficiários para mostrar impacto, a entidade tinha optado por produzir um impacto profundo fazendo mais pelas mesmas comunidades em uma única região.
Pensar de forma crítica sobre financiamento e prazos. | Na hora de avaliar projetos para liberação de verbas – incluindo projetos-piloto e intervenções resultantes do design thinking –, financiadores normalmente utilizam critérios que definem o sucesso, como crescimento linear. Já projetos de design no mundo do desenvolvimento internacional e no setor social avaliam o sucesso por mudanças no desenvolvimento e no comportamento das pessoas, bem como na sociedade como um todo, a longo prazo. Em seu trabalho com gente que usa o design para a inovação social, Joyce Yee, professora de design e inovação social da Universidade de Nortúmbria, constatou que esses indivíduos sentem um descompasso entre os critérios de avaliação dos financiadores (com base em modelos de custos, eficiência e cifras) e o trabalho que fazem com a comunidade.12 Yee propõe que essas avaliações não se fiem em critérios estritos de sucesso, mas sejam pensadas como oportunidades de aprendizado nas quais os resultados do projeto possam ser continuamente redefinidos e cocriados com a comunidade. Na prática, significa flexibilizar o financiamento e desvinculá-lo de resultados predeterminados, o que reduziria o ônus de relatórios de avaliação e garantiria mais agilidade e capacidade de reação a novas circunstâncias.
Estruturas de financiamento no setor social e no desenvolvimento internacional não contribuem para o engajamento comunitário duradouro. Uma postura crítica de design reconhece a necessidade de cultivar confiança e relacionamentos nesse trabalho. Na Índia, por exemplo, a Dalberg Design e a Project Concern International India atuaram juntas em dois programas para aumentar a participação de homens em iniciativas de planejamento familiar e nutrição. Os projetos começaram em janeiro de 2020 e duraram mais de dois anos. O piloto, que incluiu 2.000 domicílios no estado de Bihar, no leste da Índia, demonstrou um possível impacto na diversidade alimentar de crianças, no uso de contraceptivos modernos e na participação do homem em tarefas normalmente reservadas à mulher, como alimentar os filhos. O cofundador da Dalberg Design, Robert Fabricant, observou que “fazer parcerias de longo prazo com organizações da comunidade é essencial”, mas disse também que “manter essas parcerias com um time pequeno e recursos limitados não é fácil”. Manter o envolvimento e a confiança da comunidade exige vastos recursos, o que nem toda entidade sem fins lucrativos tem.
CRÍTICAS AO DESIGN THINKING não são novidade. Há quem proponha, inclusive nesta publicação,13 alternativas como o design de sistemas. Embora fundadas em críticas parecidas às nossas, essas
alternativas partem do princípio de que é preciso um novo instrumental metodológico – ou um instrumental melhor
O que sugerimos, no entanto, é que quem utiliza o design thinking o pratique com uma postura crítica e encare intenções, atos e efeitos de seu trabalho de forma reflexiva e consciente. Para iniciar essa jornada, é preciso considerar as seguintes questões e recomendações:
QUEM VAI PARTICIPAR DO PROJETO — E DE QUE FORMA?
• Defina bem como será a participação no trabalho e como se darão o envolvimento e o engajamento da comunidade no processo.
• Questione o mito da neutralidade do designer. Reconheça e aborde a dinâmica da desigualdade de poder e reflita sobre sua posicionalidade, suas premissas e seus vieses – e como isso tudo pode influenciar o trabalho e seu relacionamento com a comunidade.
• Fique atento ao impacto que a participação no trabalho pode ter sobre a comunidade e adote mecanismos para evitar a revitimização e minimizar possíveis efeitos negativos.
• Busque melhorar as condições materiais da população com a qual trabalha. Inclua alguma forma de remuneração no orçamento do projeto para garantir que todos sejam devidamente compensados pela participação.
QUEM VAI DEFINIR A ESTRUTURA E O ESCOPO DO PROJETO?
• Busque o envolvimento de todos os interessados, especialmente membros da comunidade, na definição da estrutura e do escopo do projeto e preveja tempo no cronograma para essa participação.
QUE RESULTADOS DEVEM SER PRIORIZADOS?
• Não embarque em um projeto que busca a inovação apenas pela inovação. Esteja aberto a desfechos que, ainda que não tragam nenhuma novidade, deem resultado para a comunidade.
A QUEM O PROJETO VAI PRESTAR CONTAS?
• Entenda todas as partes e todos os stakeholders envolvidos no trabalho para saber que objetivos cada um tem e como se beneficiarão do projeto. Determine se a proposta pode legitimar sistemas que prejudicam os mais marginalizados.
• Prepare-se para a possibilidade de que o projeto aponte para uma direção que não deve ser seguida caso conflite com os objetivos da comunidade. Adote critérios de controle para evitar que se cogitem ou implementem medidas que estejam em desacordo com tais metas.
COMO MEDIR O IMPACTO DO PROJETO?
• Defina o que será considerado sucesso no projeto, equilibrando o grau de impacto com metas de escala ditadas pelo mercado. Avalie sua definição de impacto e escala à luz disso, alinhando suas decisões a elas na hora de determinar onde investir seus recursos.
QUE MECANISMOS DE FINANCIAMENTO E CRONOGRAMAS CONTRIBUIRIAM PARA UM IMPACTO CONTÍNUO?
• Considere estruturar o financiamento e o cronograma com prazos mais flexíveis para acomodar imprevistos na implementação e, ante uma nova realidade, poder responder com agilidade.
• Invista em relacionamentos na comunidade. Identifique e trabalhe de forma solidária com organizações comunitárias e reserve um tempo no cronograma para cultivar relações e conquistar sua confiança. Use seu tempo e sua energia para criar parcerias de longo prazo, que sigam vivas depois de concluído o projeto.
Para aguçar ainda mais sua postura crítica, sugerimos a busca
de outras informações e o foco em práticas e movimentos de design liderados pela comunidade, decoloniais e de alguma maneira libertadores e contra a opressão, como “design justice”, design decolonizador e design pluriversal.14 E esperamos sinceramente que o designer siga enxergando além da natureza prescritiva de ferramentas e métodos para chegar a valores capazes de embasar seu trabalho e seu compromisso com as comunidades às quais serve. O
ANNE-LAURE FAYARD é titular da cátedra ERA Chair in Social Innovation na NOVA School of Business and Economics (NOVA SBE) e pesquisadora-visitante na Universidade de Nova York (NYU). É coordenadora do Laboratório de Design para Inovação Social e Sustentabilidade da NOVA SBE e cofundadora do laboratório de design no MakerSpace da NYU e da iniciativa Design for America, na mesma universidade.
SARAH FATHALLAH é designer social, pesquisadore e educadore. Seu trabalho se concentra em considerações éticas e de sensibilidade ao trauma no contexto das pesquisas e do design. É pesquisadore da organização Think of Us e docente de diversas instituições de ensino como California College of the Arts, UC Berkeley Extension School e Pratt Institute.
NOTAS
1 Sarah Fathallah e A.D. Sean Lewis, “Abolish the Cop Inside Your (Designer’s) Head: Unraveling the Links Between Design and Policing”, Design Museum Magazine, vol. 18, 2021.
2 Lorraine Gamman & Adam Thorpe, “Makeright - Bags of Connection: Teaching Design Thinking and Making in Prison to Help Build Empathic and Resilient Communities”, She Ji: The Journal of Design, Economics, and Innovation, vol. 4, no. 1, 2018
3 Jocelyn Wyatt et al., “The Next Chapter in Design for Social Innovation”, Stanford Social Innovation Review, vol. 19, issue 1, 2021.
4 Anne-Laure Fayard, “Making Time for Social Innovation: How Open IDEO Combined Clock-Time and Event-Time to Nurture Idea Generation and Social Impact”, Organization Science, 28 de setembro de 2023.
5 Arturo Escobar, “Designing as a Futural Praxis for the Healing of the Web of Life”, in Design in Crisis: New Worlds, Philosophies and Practices, ed. Tony Fry e Adam Nocek, Londres, Routledge, 2020.
6 Sasha Costanza-Chock, Design Justice: Community-Led Practices to Build the Worlds We Need, Cambridge, Mass., MIT Press, 2020.
7 Muitos estudiosos e designers poderiam ter seu trabalho mencionado aqui. Por economia, nos limitamos a três exemplos. Sobre sustentabilidade, veja-se Victor Papanek, Design for the Real World: Human Ecology and Social Change, New York, Pantheon Books, 1971; sobre decolonialidade, veja-se Elizabeth Tunstall, Decolonizing Design: A Cultural Justice Guidebook, Cambridge, Mass., MIT Press, 2023; e sobre anticapitalismo, veja-se Matthew Wizinsky, Design After Capitalism: Transforming Design Today for an Equitable Tomorrow, Cambridge, Mass., MIT Press, 2022.
8 Sarah Fathallah, “Why Design Researchers Should Compensate Participants”, Notes Off the Grid, Medium, 7 de abril de 2020; Sarah Fathallah, “Confronting the Power Designers Wield”, UX Collective, 10 de setembro de 2021; Sarah Fathallah, “Trauma Responsiveness in Participatory Research”, Think of Us, 9 de setembro de 2022; Sarah Fathallah, “An Ethic of Care for Research Participants as Trauma Survivors”, Think of Us, 3 de abril de 2023.
9 Chicago Beyond, Why Am I Always Being Researched?, Equity Series, vol. 1, 2018.
10 Cf. Anne-Laure Fayard et al., “Designing Services at Engine (B): Co-designing for Health and the Domestic Environment”, Case Reference 411-021-1, The Case Centre, 2011.
11 Sarah Fathallah & Sarah Sullivan, Away From Home: Youth Experiences of Institutional Placements in Foster Care, Think of Us, 21 de julho de 2021.
12 Joyce Yee et al., “Measuring Impact”, in Design for Social Innovation: Case Studies from Around the World, ed. Mariana Amatullo et al., Nova York, Routledge, 2022.
13 Thomas Both, “Human-Centered, Systems-Minded Design”, Stanford Social Innovation Review, 9 de março de 2018.
14 Além das referências citadas neste artigo, sugerimos uma lista de leituras adicionais: Arturo Escobar, Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds, Chapel Hill, N.C., Duke University Press, 2018; Batya Friedman e David G. Hendry, Value Sensitive Design: Shaping Technology with Moral Imagination, Cambridge, Mass., MIT Press, 2019; Kat Holmes, Mismatch: How Inclusion Shapes Design, Cambridge, Mass., MIT Press, 2020; Claudia Mareis et al., eds., Design Struggles: Intersecting Histories, Pedagogies, and Perspectives, Amsterdam, Valiz, 2021; Ron Wakkary, Things We Could Design for More Than Human-Centered Worlds, Cambridge, Mass., MIT Press, 2021; e os já citados Design for the Real World, de Victor Papanek, e Design in Crisis, editado por Tony Fry e Adam Nocek.
Muitas organizações sem fins lucrativos e fundações rejeitam o lobby como algo suspeito. Mas um novo movimento vem defendendo essa prática como essencial para a promoção de uma mudança social
OS LÍDERES DAS ORGANIZAÇÕES sem fins lucrativos veem o lobby, tal como ele é praticado e compreendido atualmente, como uma conduta corrupta que exerce influência indevida em detrimento de um fazer político justo, imparcial e eficiente. A imaginação popular associa o lobby a negócios escusos em salas escondidas cheias de fumaça.
Mas, na realidade, o lobby pode ser um antídoto para tais negociações secretas. A prática do lobby diz respeito a fornecer ideias e partilhar preocupações com os formuladores de políticas públicas para fazer com que eles – e o processo de formulação como um todo – sejam mais eficazes em produzir respostas. O lobby permite à sociedade lidar com as causas profundas dos principais desafios com que nos deparamos, e não com os sintomas. Na verdade, é um dos meios mais eficientes para instaurar a mudança política, econômica e social.
Sem dúvida, hoje, a prática do lobby é dominada pelas grandes corporações e por representantes de interesses especiais. Isso bloqueia o progresso em temas críticos, que vão da ação climática até a regulamentação da inteligência artificial. Poucas organizações sem fins lucrativos praticam lobby e menos ainda são as que sabem fazê-lo. Nos Estados Unidos, só 31% das organizações não rentáveis relatam ter feito advocacy ou lobby ao longo dos últimos cinco anos, o que corresponde a menos da metade do percentual das que relataram ter feito lobby em 2000 (74%).1 Na Europa, apenas uma fração mínima das reuniões com funcionários públicos ocorre com a presença de organizações não rentáveis.2 Ao fracassar em dar voz às pessoas mais pobres, sub-representadas, e aos interesses que defendem, as organizações sem fins lucrativos estão abrindo mão do direito ao lobby. Essa lacuna intensifica o impacto dos representantes de interesses especiais, que já dominam o processo de formulação de políticas públicas. Também reforça as desigualdades políticas, ao deslegitimar ainda mais a prática aos olhos do público e, em última instância, mina a confiança no processo político. Não tem de ser assim.
Hoje, um grupo diverso de atores – vindos de organizações sem fins lucrativos, empresas sociais e iniciativas cívicas e tecnológicas, e até de algumas entidades filantrópicas de apoio, bem como de companhias e investidores por todo o mundo – está desafiando esse preconceito. O crescente movimento pelo lobby do bem está moldando uma nova compreensão do público sobre o que é realmente a prática: o meio mais rápido e mais poderoso para fazer com que ideias inovadoras ou programas para o bem comum ganhem escala. Em uma democracia vibrante, o lobby é o meio de fazer com que a prática cotidiana dos governos responda melhor às aspirações populares.
RGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS e outros adeptos da mudança social têm suas razões para ficar longe da prática do lobby. Como poderia uma atividade percebida como egoísta e corrupta auxiliar o progresso da missão de uma nobre organização não rentável? De forma reveladora, mesmo quando fazem lobby, as organizações sem fins lucrativos e as entidades filantrópicas evitam usar a palavra, preferindo empregar o termo “advocacy”, menos carregado, que designa a prática de advogar por uma causa a fim de influenciar a formulação de políticas públicas.
Em vez disso, o setor social deveria reivindicar o lobby como uma forma legítima de inovação política, definida por Johanna Mair, Josefa Kindt e Sébastien Mena como “um esforço contínuo e coletivo tendo como base um compromisso compartilhado com princípios democráticos e com a mobilização de uma massa crítica de pessoas e ideias para efetuar mudanças políticas”.3 O lobby do bem pode transformar o campo da mudança social.
Uma ampla variedade de organizações já está tentando desmistificar a prática do lobby, tornando-a mais corriqueira e benigna. A Open Government Partnership (OGP) – uma colaboração única, de múltiplas partes interessadas, entre governos, corpos legislativos, a sociedade civil e o setor privado, que defende um governo aberto em escala mundial – fornece um exemplo adequado. Desde sua criação, em 2011, a OGP defendeu o lobby como uma “atividade legítima, que permite a diferentes grupos de interesse demonstrar suas perspectivas para funcionários públicos”. Na visão de seus 75 países membros, “em uma democracia forte, essa prática pode reforçar a qualidade da elaboração de políticas e o debate público, bem como apoiar a livre expressão”.4 Para desmistificar o lobby, a OGP está promovendo a adoção de regulamentos que visam enfatizar transparência e acessibilidade.
Outras organizações sem fins lucrativos mundo afora realizam esforços similares. Por exemplo, o Citizens’ Climate Lobby (CCL) – organização não rentável, não partidária, de raízes populares, destinada a influenciar a elaboração de políticas públicas e voltada para a mudança climática – encoraja os voluntários a estabelecer relações com representantes eleitos, por meio de reuniões com líderes do Congresso americano, da publicação de cartas e artigos de opinião e da organização em centenas de grupos locais nos Estados Unidos e em escala internacional.
Essa nova compreensão não se limita ao setor social, ela atinge parte do setor privado. Ainda que muitas companhias possam ter concebido a prática como um instrumento privilegiado para fazer
avançar seus interesses próprios, outras estão atendendo às expectativas do público de que façam lobby pela mudança social positiva.
“Os consumidores cada vez mais vão considerar as empresas responsáveis por seu impacto ambiental”, diz Fred Krupp, presidente do Environmental Defense Fund. “Os CEOs precisam reduzir a poluição climática gerada pelas operações de sua própria companhia e acionar o instrumento mais poderoso de que dispõem: sua influência política.” As companhias estão ouvindo tais demandas. “Queremos usar nossa voz – e a estamos usando – para pressionar pelas políticas que pensamos que o mundo necessita”, diz a diretora de sustentabilidade da Microsoft, Melanie Nakagawa.
Essas companhias e organizações exemplificam uma tendência mundial que reivindica o lobby como uma atividade legítima, aberta a todos, que possibilita a diferentes grupos comunicar suas visões aos funcionários públicos. Nessa perspectiva, o lobby é uma prática democrática fundamental. Em primeiro lugar, pode fortalecer a qualidade da elaboração de políticas e do debate público, ao fornecer enorme riqueza de informações aos formuladores para moldar a legislação. Em segundo lugar, ela move a agenda política, ao chamar a atenção dos elaboradores de políticas para problemas antigos e novos e ao partilhar possíveis soluções. Em terceiro, a prática também desempenha uma função de controle democrático, ao responsabilizar os tomadores de decisões e “cutucar” os funcionários para que façam seu trabalho.
Mais ainda, o lobby ajuda a todos a fazer parte do processo político, por manter um canal adicional de contato entre os representantes eleitos e o público. Em uma famosa observação do economista e filósofo Amartya Sen, ganhador do Prêmio Nobel em 1998, a participação tem um valor intrínseco para os cidadãos, que aprendem sendo expostos à elaboração de decisões coletivas e veem revigorados seu senso de autoeficácia e sua autonomia.5
Democratize
PARA LIBERTAR A PRÁTICA de concepções errôneas, devemos torná-la acessível a todos. Para muitas pessoas e organizações, em especial as pouco familiarizadas com o modo como se constroem políticas nas capitais, o lobismo parece uma atividade fora de seu alcance. Mas uma nova onda de organizações cívicas e tecnológicas vem tentando possibilitar aos cidadãos comuns fazerem lobby junto a seus representantes.
São exemplos a Cicero, que diz ser “a mais precisa base de dados sobre funcionários eleitos e distritos eleitorais no mundo”; a VoteSpotter, que rastreia votos dos funcionários eleitos nos Estados Unidos e servidores em unidades federativas selecionadas; e a Parliament Watch (Abgeordnetenwatch), que ajuda a capacitar cidadãos alemães comuns para que façam lobby junto a seus representantes. Outros esforços estão buscando melhorar o acesso dos cidadãos ao governo por meio de aplicativos que facilitam a submissão às demandas do Freedom of Information Act [similar à Lei de Acesso à Informação]. Os exemplos incluem a WhatDoTheyKnow, baseada no Reino Unido, e a AsktheEU, na União Europeia.
Pudemos ver o surgimento de muitas abordagens diferentes para democratizar a prática do lobby. A NOSSAS, uma iniciativa brasileira não lucrativa, oferece aconselhamento estratégico para que cidadãos do Rio de Janeiro organizem projetos de lobby dirigidos ao governo local. A The Good Lobby, organização não lucrativa que fundei em
2015 em Bruxelas e que tem escritórios em Madri, Milão e Paris, baseia-se na partilha pro bono de habilidades para colocar em contato com acadêmicos, advogados e lobistas corporativos organizações não rentáveis europeias que precisem exercer influência.
Tais equipes agem como centros de lobby do bem que defendem interesses difusos ou de minorias e representam as vozes normalmente não ouvidas no processo político. Elas impulsionam iniciativas que, em outras circunstâncias, não ganhariam escala e fornecem as habilidades e estratégias necessárias para alcançar as autoridades públicas. Geram normalmente um esforço ou um compromisso mais substantivos que uma plataforma de campanha na internet. Em vez de iniciar ou apoiar uma causa por meio de uma assinatura online, os novos centros de lobby do bem possibilitam às organizações e aos cidadãos a chance de liderar uma campanha ou usar suas habilidades para ela.
Em última análise, essas novas organizações representam uma nova forma de lobby que não contrata lobistas nem mobiliza as estratégias usuais da prática, mas antes empodera os interessados para terem voz no processo político. Por exemplo, organizações de campanha como WeMove Europe desafiaram com êxito, por todo o continente, o glifosato, o herbicida de maior êxito e mais controvertido da Monsanto, por meio de uma combinação nada convencional de petições transnacionais e flash mobs. A organização ajuda cidadãos individuais da União Europeia a ter acesso a membros do Parlamento Europeu por meio de interfaces de email fáceis de usar. Similarmente, essa nova abordagem da prática do lobby possibilitou que outras
freios à prática do lobby expandiram, não diminuíram, a influência corporativa em detrimento de outras vozes. As regras sobre a prática do lobby são cada vez mais vistas como violações à liberdade de expressão ou ao direito de dirigir petições ao governo, porque inerentemente restringem o engajamento político e, por vezes, criminalizam de forma indevida práticas de influência comuns. O argumento da liberdade de expressão fundamentou a decisão da maioria da Suprema Corte americana no processo Citizens United v. Federal Election Commission (Cidadãos Unidos contra a Comissão Federal de Eleições), que invalidou os tetos em doações para gastos políticos feitos em relação aos chamados dispêndios independentes – despesas para apoiar ou derrotar um candidato, realizadas independentemente dos pleiteantes ou dos partidos políticos. Ao tornar as doações políticas corporativas virtualmente ilimitadas, essa decisão garantiu um nível sem igual de influência corporativa sobre o governo dos Estados Unidos e provavelmente piorou, não ampliou, o acesso das organizações sem fins lucrativos aos elaboradores de políticas.
As leis sobre o lobby também estão defasadas em relação às práticas de influência, que seguem em rápida evolução. Restrições ao acesso a elaboradores de políticas terminam por incentivar e recompensar as práticas de influência da elite, como o astroturfing – falsas operações populares financiadas pelas corporações e pelos muito ricos.6 Na elaboração de políticas, seus encarregados terminam expostos a um número menor, não maior, de interesses.
Tudo somado, essa tendência restritiva na prática do lobby está
ELEVAR O NÍVEL DO LOBBY, FACILITANDO O ACESSO À PRÁTICA POR PARTE DAS ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS E DOS CIDADÃOS, PODE SER UMA ESTRATÉGIA MELHOR
RESTRINGIR A ATIVIDADE
organizações sem fins lucrativos, como o Eurogroup for Animals –uma associação de lobby integrada por mais de 60 organizações na liderança da defesa dos direitos dos animais na Europa –, moldassem a agenda legislativa, levando a União Europeia a proibir jaulas para animais em fazendas e a banir o abate para a obtenção de peles.
MESMO DEPOIS DE SER desmistificada e democratizada, a prática do lobby enfrenta outros desafios. Devido ao preconceito do público contra ela, os governos estão tentando reduzir a influência desproporcional de poucos, pela restrição do acesso aos elaboradores de políticas. Seus esforços incluem exigir requisitos de registros e relatórios de obrigações, bem como colocar limites a ambos, para diminuir a capacidade das organizações sem fins lucrativos de praticar lobby. Embora talvez bem-intencionada, essa abordagem restritiva já está gerando consequências importantes e inesperadas. Primeiro,
derrotando os esforços dos governos de todo o mundo para ampliar a participação e o acesso ao processo político. Ao dissuadir ainda mais as organizações sem fins lucrativos e os atores da mudança social do ingresso na arena política, apenas distorcem o lobby que efetivamente ocorre. Em resposta, deveríamos tanto questionar quanto reverter a postura cultural e reguladora dominante em relação à prática.
Se o sistema político favorece os privilegiados, elevar o nível do lobby facilitando o acesso à prática por parte das organizações sem fins lucrativos e dos cidadãos pode se revelar uma estratégia melhor para lidar com a desigualdade política que a abordagem atual, limitada a restringir a atividade. Na verdade, esse pensamento motivou algumas reformas que podem mitigar e potencialmente superar o estigma do lobby. Cada vez mais governos encorajam todas as partes interessadas a apresentar seus pontos de vista sobre a elaboração de políticas. Nos Estados Unidos, três quartos de todas as cidades desenvolveram oportunidades para os cidadãos e as organizações sem fins lucrativos participarem do planejamento estratégico. A União Europeia também criou múltiplas instâncias para a consulta e a participação do público.
Para apoiar a participação comunitária em escala mundial, o World Bank investiu US$ 85 bilhões ao longo da última década.
Os reformadores estão sugerindo ideias ainda mais radicais. Robert Reich, ex-secretário do Trabalho dos Estados Unidos e acadêmico estudioso de políticas públicas, propõe a introdução de um “vale-lobby” saído do bolso do governo, para dar às pessoas um papel mais direto e igualitário na modelagem de decisões legislativas. Sob um tal sistema, votantes receberiam vales que poderiam destinar a organizações sem fins lucrativos ou resgatar pelo trabalho voluntário para essas instituições.7 Ao fornecer às pessoas recursos para apoiar as causas com que se importam, os “vales-lobby” poderiam reduzir a influência desproporcional dos interesses dos mais ricos.
Outra ideia que venho promovendo é a ajuda para lobby.8 Assim como o Estado paga um advogado para pessoas sem recursos, o governo também poderia pagar um lobista profissional para representar determinada causa. As despesas poderiam ser pagas pela renda gerada por um imposto sobre o lobby, análogo ao proposto pela senadora americana Elizabeth Warren quando concorreu nas primárias presidenciais do Partido Democrata, em 2020. Pela sua
ver os interesses de gerações futuras perante as autoridades públicas na União Europeia.
Os reformadores estão propondo outras ideias para reduzir as disparidades de poder no lobismo. Alguns deles estão repensando o desenho das consultas públicas e o acesso a elas, um caminho crítico para o lobby junto aos governos. Por exemplo, os acadêmicos estudiosos de políticas públicas Lee Drutman e Christine Mahoney propõem um novo sistema de consultas públicas a que chamam “POSTMAP-ASK”.9 Ele possibilita que todos os grupos dedicados a influenciar a formulação de políticas submetam suas posições e documentos para postagem no website da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos (POST, postar), encarrega a Biblioteca do Congresso de criar uma ferramenta para os escritórios dos congressistas e o público encontrarem essas posições e navegarem por onde os grupos se situam (MAP, mapear) e possibilita que os comitês relevantes do Congresso solicitem comentários de grupos e partes interessadas que estejam faltando (ASK, perguntar). Similarmente, propus medidas concretas para diversificar e expandir a participação através do convite direto a partes interessadas específicas, identificadas como sub-representa-
A
RESTRIÇÃO
AO LOBBY FAZ FUNDAÇÕES, QUE GOSTAM DE PENSAR QUE PREFEREM A MUDANÇA SISTÊMICA AO MERO FORNECIMENTO DE SERVIÇOS,
RENUNCIAREM A UM DOS MECANISMOS MAIS EFICIENTES PARA ESTIMULAR
proposta, as companhias que gastassem mais de US$ 1 milhão por ano com lobby pagariam 60% de imposto sobre a prática, e as que gastassem mais de US$ 5 milhões, 75%.
Enquanto isso, diversas companhias vêm testando meios de possibilitar que seus empregados façam lobby por causas que essas companhias apoiam. Um experimento comprovado é o tempo cívico remunerado, mediante o qual permitem que seus empregados desempenhem, em horário laboral, deveres cívicos e atividades como trabalho voluntário para uma organização que defenda sua causa favorita. A organização não lucrativa americana Time To Vote reuniu centenas de companhias, entre as quais Abercrombie & Fitch e Google, para estender o tempo cívico pago a seus mais de 2 milhões de empregados no país.
Outra prática crescente é a iniciativa pro bono, pela qual empregados se voluntariam com suas habilidades, na esfera legal, por exemplo, para influenciar a formulação de políticas públicas, a serviço das organizações sem fins lucrativos. Tal trabalho possibilita aos profissionais ter um impacto positivo na sociedade ao compartilhar sua expertise, incluindo na prática do lobby, com aqueles que de outra forma podem não ter acesso a ela. Por exemplo, membros da Global Pro Bono Network coordenam, sem custo, projetos de partilha voluntária de habilidades em 36 países. A rede também propõe um engajamento cívico que visa lidar com desafios globais prementes e responder a necessidades comunitárias, como, por exemplo, promo-
das, para contribuir com a consulta.10 Desse modo, o sistema do lobby poderia ser aberto, ajudar a embasar políticas públicas e a aperfeiçoar a prática democrática. Em última análise, somente cercado de sólidos anteparos é que o novo poder do lobby vai funcionar bem
PARA QUE O LOBBY se torne uma prática de participação democrática socialmente aceita, inclusiva e vibrante das maneiras que descrevemos, é necessário apoio, tanto financeiro quanto por outros meios disponíveis. Ainda que as organizações sem fins lucrativos tendam a ser retratadas como cronicamente carentes de pessoal e de recursos, a realidade é mais matizada.11 Com frequência, essas entidades escolhem não fazer lobby não por falta de recursos, mas porque desejam destiná-los a outras áreas. Por sua vez, as fundações, em sua maioria, tendem a ficar longe do lobismo porque não desejam ser vistas como excessivamente políticas. Mais ainda, órgãos filantrópicos muitas vezes interpretam erroneamente a lei sobre organizações não rentáveis para dissuadir seus próprios beneficiários de usar seu financiamento de um modo que possa ser interpretado como fazer lobby. Por exemplo, proibem, em contrato, seus beneficiados de fazer lobby ou advocacy.
Paradoxalmente, essa restrição faz fundações, que gostam de pensar que preferem a mudança sistêmica ao mero fornecimento de serviços, renunciarem a um dos mecanismos mais eficientes para estimular a mudança sistêmica. Tal erro não só pode levar seus beneficiários a fracassar em suas próprias missões como também reduz o potencial impacto social de seus investimentos.
Faltam-nos dados suficientes acerca de quanto dinheiro as fundações alocam para apoiar os esforços de prática do lobby de seus beneficiários. No entanto, alguns exemplos notáveis se destacam. A Fundação Bill & Melinda Gates tem equipes para influenciar a formulação de políticas públicas e fornece subvenções para uma ampla variedade de organizações sem fins lucrativos, como Malaria No More, e redes globais, como a RBM Partnership to End Malaria, visando fortalecer a elaboração global de políticas contra a malária. A Open Society historicamente apoiou múltiplos grupos de lobby, e, mais recentemente, o fez para promover distribuição igualitária de vacinas contra covid-19, incluindo a concessão de apoio financeiro à People’s Vaccine Alliance, uma coalizão de organizações e ativistas que fazem campanha pela equidade no acesso aos imunizantes.
O advocacy parece uma via promissora para organizações sem fins lucrativos e fundações alcançarem seus objetivos. A questão é se o movimento pelo lobby do bem e seu ethos de mudança de sistema centrada no impacto pode vencer a tradicional desconfiança das entidades filantrópicas para apoiar o lobby e encontrar espaço nas teorias dos doadores acerca de estruturas de impacto e mudança. Eles podem resistir em decorrência da tensão inerente entre o horizonte de curto prazo dos subsídios e a natureza de mais longo prazo da prática
do lobby. A mudança política leva tempo, é caótica e não linear, impedindo os esforços para avaliar a influência na formulação de políticas públicas e a prática do lobby usando métricas confiáveis.12
De que modo as fundações estabelecem uma conexão causal entre um esforço de lobby e um resultado político? Como atribuem o sucesso de um projeto de influência na formulação de políticas públicas a uma organização ou rede de organizações em particular? Uma abordagem quantitativa, baseada no número de reuniões e de outras interações com os elaboradores de políticas, não consegue apreender o valor agregado dos esforços de lobby. Por mais que essa abordagem baseada em representantes funcione a contento para avaliar programas de fornecimento de serviços, tais como bancos de alimentos, não faz jus a todos os benefícios potenciais que se originam de um esforço de influenciar a formulação de políticas públicas e corre o risco de dar crédito a resultados produzidos por outros. Em resumo, essa abordagem pode ser, ao mesmo tempo, muito estreita e muito ampla.
As entidades filantrópicas poderiam encontrar uma abordagem mais promissora se interpretassem a prática do lobby não como uma atividade que seus subsidiados devam realizar, mas, sim, como uma capacidade que devem cultivar.
Assim, por exemplo, as fundações podem esperar que seus beneficiários tenham a habilidade e a capacidade de fazer advocacy com objetivos provisórios, entre os quais o mapeamento de todos os stakeholders importantes – sejam eles oponentes conhecidos ou potenciais aliados –, de modo a incluí-los em seus esforços por coalizão e em suas estratégias de comunicação. As fundações podem então avaliar a qualidade, a viabilidade e a execução de tais planos para al-
cançar seus objetivos, ou, pelo menos, para se adequar ao propósito para que foram formulados.
Sem dúvida, há desafios metodológicos para medir a capacidade de fazer advocacy, em vez de seus resultados. Mas dessa métrica deriva uma nova e necessária base conceitual para avaliar os esforços de organizações não rentáveis e fundações pró-lobby do bem. Até hoje, há pouca evidência sobre os resultados duradouros advindos do esforço de construção dessa capacidade. No entanto, apenas colocando mais ênfase nele, por meio de investimento contínuo, nos será dado obter a informação e melhorar o entendimento sobre sua real contribuição para a habilidade das organizações de produzir mudança.
OMOVIMENTO PELO LOBBY DO BEM foi motivado e continua a ter impulso, em boa medida, do setor não rentável. No entanto, a comunidade de negócios está fazendo frente a pressões para reconsiderar suas próprias práticas de lobby e, talvez, se juntar a ele, uma vez que o público questiona cada vez mais o lobismo corporativo em benefício próprio. Basta considerar os mais de 50 bancos que assinaram compromissos de emissões líquidas zero de dióxido de carbono sob a Glasgow Financial Alliance
como metas de emissões líquidas zero de dióxido de carbono, a InfluenceMap – a mais importante base de dados do mundo sobre o lobby corporativo climático – cobra responsabilidade das principais corporações ao monitorar se seus esforços lobistas vão ao encontro desses compromissos. A ClimateVoice dá a empregados de multinacionais informações semelhantes para que eles possam influenciar a formulação de políticas públicas sobre mudança climática.
Essas iniciativas sem fins lucrativos compartilham uma determinação de jogar luz sobre como as companhias fazem lobby pela política climática. Isso, por sua vez, as torna responsáveis junto ao público pelos modos com que exercitam seu poder de lobby e pode levá-las a apoiar – ou, pelo menos, a não hostilizar – alvos políticos ambiciosos. Em resumo, forçam as companhias a aderir ao lobby do bem como o meio mais eficaz para alcançar seus alvos autodefinidos.
No entanto, na atualidade, o ecossistema de responsabilidade da prática do lobby estende-se muito além da política climática para outros objetivos de sustentabilidade e além. Uma variedade de iniciativas de terceiros exige não apenas transparência e responsabilidade maiores, mas também sustentabilidade no modo pelo qual as companhias exercem seus esforços de lobby. Algumas das iniciativas têm natureza comercial, tais como fornecedoras de dados ambientais, sociais e de governança (ESG) e de classificação de crédi-
A FIM DE MANTER SUA LICENÇA PARA OPERAR, AS COMPANHIAS SÃO
CADA VEZ MAIS INSTADAS NÃO APENAS A REAVALIAR SUAS PRÁTICAS DE LOBBY,
MAS TAMBÉM A SEGUIR RUMO A FORMAS AUTOIMPOSTAS
DE UM LOBBY DO BEM
for Net Zero (GFANZ), em 2023, para depois serem pegos em flagrante dando empréstimos para a expansão de companhias de combustível fóssil, ao mesmo tempo que não conseguiam descartar seus próprios investimentos em projetos do gênero. Cada vez mais, investidores, empregados e consumidores põem sob escrutínio as companhias em que investem, para quem trabalham ou de quem compram, rastreando não apenas suas pegadas ambientais e sociais, mas também, crescentemente, suas pegadas políticas, incluindo doações, suas práticas de lobby e outras formas de influência sobre o governo. Tais rastros podem revelar a desconexão entre aquilo que as companhias dizem e aquilo para que fazem lobby.
A ideia de que companhias poderiam tentar influenciar regulamentações para favorecer seu resultado não é nova.13 O que é novidade, porém, é a percepção crescente, por parte do público, de que uma tal desvinculação entre as atividades de sustentabilidade das corporações e seu comportamento lobista poderia fundamentar a falta de progresso em numerosas questões críticas, tais como o fracasso em agir em emergências ou em modelos econômicos extrativos. O fato de que muitos stakeholders compreenderam que o comportamento político de uma companhia é tão importante quanto suas operações14 está fazendo emergir um ecossistema de responsabilidade na prática do lobby.
Embora as companhias assumam compromissos ambientais, tais
tos (por exemplo, Sustainalytics, S&P, Moody’s, RepRisk e MSCI). Outras são sem fins lucrativos, tais como padrões de relatórios de sustentabilidade (por exemplo, a Global Reporting Initiative 415 e a Corporate Disclosure Project) e iniciativas que oferecem orientação sobre que cara uma prática positiva de lobby corporativo deveria ter, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)/Princípios para Investimento Responsável da ONU e a World Benchmarking Alliance. Em conjunto, esses esforços auxiliam todas as partes interessadas – investidores, companhias, associações comerciais e organizações não rentáveis – a mapear um caminho rumo a uma sustentabilidade e responsabilidade maiores na política corporativa por meio de todas as áreas de políticas públicas. Em última análise, companhia alguma pode declarar-se sustentável, a menos que seja plenamente responsável por seu impacto ambiental e social, bem como por suas pegadas políticas.
Como resultado, um crescente universo de padrões e iniciativas de lobby do bem encoraja as companhias a partilhar informações além da divulgação legalmente determinada, como aquelas em geral impostas pelas regulamentações referentes à prática do lobby. Desse modo, o mercado pode estar à frente do poder público na captação das realidades do lobby corporativo. De fato, essas iniciativas exigem que as companhias forneçam informações mais detalhadas acerca de
suas atividades políticas corporativas que as exigidas por lei nos Estados Unidos, na União Europeia ou em países membros da OCDE. Ao agirem como definidoras de padrões do movimento pelo lobby do bem, tais iniciativas moldam as melhores práticas que definem, em conjunto, o que o movimento representa, apoia e acarreta.
Em primeiro lugar, virtualmente todas as iniciativas exigem das companhias mais informação do que naturalmente elas divulgariam sobre seus gastos com lobby, doações políticas ou outras formas indiretas de influência, como a filiação a associações comerciais. No entanto, apenas algumas poucas vão além desses procedimentos, impondo restrições mais severas. Por exemplo, a Standard & Poor’s determina que as companhias revelem e publiquem suas posições de lobby antes de se associar ao poder público. Essa regra permite a todos os interessados – não apenas aos governos – saber qual posição uma companhia está tomando em uma determinada política pública.
Em segundo lugar, ainda que a maioria das iniciativas tenha foco em maior transparência e responsabilidade, algumas propõem uma abordagem mais baseada em princípios para a prática do lobby. Assim, por exemplo, iniciativas como os Erb Principles for Corporate Political Responsibility na Universidade de Michigan fornecem uma abordagem congruente, que alinha políticas e questões públicas a compromissos relacionados a propósito e sustentabilidade. Elas exigem que as companhias não apenas se esforcem pelo alinhamento entre suas atividades políticas (entre elas as de associações comerciais e outros terceiros que exercem influência em seu nome e em seu benefício) e seus compromissos em termos de propósitos, valores, objetivos proclamados e partes interessadas, mas também, nas palavras dos líderes de iniciativas Thomas P. Lyon e Elizabeth Doty, “para assegurar que suas atividades políticas não provoquem impactos adversos sobre a sustentabilidade ambiental, os direitos humanos ou o bem comum nem contribuam para esses impactos”. Da mesma forma, os Principles for Responsible Investment Expectations on Corporate Climate Lobbying guiam os investidores que desejam participar no portfólio de companhias em suas práticas de lobby, diretas e indiretas, relacionadas a políticas públicas climáticas. Para obter uma compreensão melhor de tais esforços, criamos recentemente a The Good Lobby Tracker, para mapear todas as iniciativas que orientem investidores e companhias sobre a maior responsabilidade e sustentabilidade de políticas corporativas em todas as áreas de políticas públicas.
A emergência dessas iniciativas sugere que, a fim de manter sua licença para operar, as companhias são cada vez mais instadas não apenas a reavaliar suas práticas de lobby, mas também a seguir rumo a formas autoimpostas de um lobby do bem. No entanto, como os reguladores, em muitas jurisdições, estão pensando em adotar padrões obrigatórios de relatórios ESG para relatórios financeiros convencionais, esses governos também podem tornar compulsória a divulgação de informações relacionadas à política corporativa. O movimento pelo lobby do bem pode acabar preso em uma trincheira legal.
TODOS NO NEGÓCIO da mudança social precisam compreender a importância de influenciar políticas públicas e de abraçar a prática do lobby como um instrumento democrático fundamental para a mudança social e po-
lítica. É disso que trata o movimento pelo lobby do bem. Os participantes pretendem criar um processo responsável e transparente de políticas no qual cada voz conta, e a influência não se vê restrita pela riqueza, pelo nascimento ou pela posição social.
Para ter êxito, o movimento deve mudar a narrativa pública acerca da prática do lobby, estimular a capacidade do setor não rentável de influenciar a formulação de políticas públicas e tornar o lobby corporativo mais transparente, responsável, autoconsciente e apto a dar respostas. Ainda que as entidades filantrópicas tenham historicamente se mostrado reticentes em apoiar o trabalho político e de lobby de suas próprias subsidiadas, elas precisam compreender que a prática poderia ser uma das mais poderosas ferramentas disponíveis para alcançar a mudança sistêmica. Embora as companhias no passado possam ter concentrado seus esforços de lobby em estreitos interesses lucrativos, hoje encaram um público que exige mais responsabilidade quando colaboram com governos, divulgando mais suas práticas de lobby e reorientando-as na direção do interesse geral.
Como resultado, por meio de mudanças nas normas sociais, engajamento voluntário e reformas legislativas, o movimento está em marcha para fazer do lobby uma prática essencial para a mudança social. Para que isso ocorra, a prática deve se tornar acessível a –e dominada por – muitos, em vez de poucos, e exercida por todos com maior transparência e responsabilidade, tanto perante a sociedade quanto em termos pessoais. Com isso, ela pode se tornar uma abordagem essencial para a mudança sistêmica. É hora de todos nós fazermos lobby pelo lobby do bem. O
ALBERTO ALEMANNO é professor Jean Monnet de Direito na HEC Paris e fundador da The Good Lobby.
1 Lewis Faulk, Mirae Kim e Heather Maclndoe, “The Retreat of Influence: Exploring the Decline of Nonprofit Advocacy and Public Engagement”, Independent Sector, jul. 2023.
2 Transparência Internacional, “Lobbying in Europe: Hidden Influence”, Privileged Access, abr. 2015
3 Johanna Mair, Josefa Kindt e Sébastien Mena, “O campo emergente da inovação política”, Stanford Social Innovation Review Brasil, v. 1, n. 4, junho 2023.
4 Sarah Dickson, “Common Challenges in Lobbying Transparency: Lessons from Europe”, Open Government Partnership, 8 jun. 2021.
5 Amartya Sen, “Democracy as a Universal Value”, Journal of Democracy, v. 10, n. 3, jul. 1999.
6 Edward T. Walker, Grassroots for Hire: Public Affairs Consultants in American Democracy. Cambridge, Inglaterra: Cambridge University Press, 2015.
7 Robert Reich, Supercapitalism: The Transformation of Business, Democracy, and Everyday Life. Nova York: Alfred A. Knopf, 2007.
8 Alberto Alemanno, Lobbying for Change: Find Your Voice to Create a Better Society Londres: Iconbooks, 2017.
9 Lee Drutman e Christina Mahoney, “POST-MAP-ASK: Towards a More Democratic Modern Lobbying Process”, New America, mar. 2016.
10 Alberto Alemanno, “Levelling the EU Participatory Playing Field: A Legal and Policy Analysis of the Commission’s Public Consultations in Light of the Principle of Political Equality”, European Law Journal, v. 26, 2020.
11 Rachel Fyall, “The Power of Nonprofits: Mechanisms for Nonprofit Policy Influence”, Public Administration Review, v. 76, n. 6, 2016.
12 Alnoor Ebrahim, Measuring Social Change: Performance and Accountability in a Complex World. Stanford: Stanford University Press, 2019.
13 Daniel Carpenter e David A. Moss (orgs.), Preventing Regulatory Capture: Special Interest Influence and How to Limit It. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
14 Luigi Zingales, Towards a Political Theory of the Firm. Journal of Economic Perspectives, v. 31, n. 3, 2017.
15 Thomas P. Lyon e Elizabeth Doty, “The Erb Principles for Corporate Political Responsibility”, Harvard Law School Forum on Corporate Governance, 4 abr. 2023.
No mundo todo, o populismo ressurge, ameaçando diretamente não só governos democráticos, mas também empresas socialmente responsáveis. Apesar dessa ameaça, empresas ainda podem agir corretamente e apoiar forças democráticas liberais
QUANDO A DISNEY DECIDIU ir contra o projeto de lei “Don’t Say Gay”, aprovado e sancionado na Flórida pelo governador Ron DeSantis em março de 2022, a empresa sabia que iria apanhar – mas não sabia o quanto. A lei, que proíbe que escolas públicas do estado falem sobre “orientação sexual ou identidade de gênero”, é acusada pelo movimento LGBTQ+ de tentar reduzir a visibilidade da comunidade e marginalizá-la na educação e na sociedade. DeSantis vendeu o projeto como uma medida necessária para combater a “ideologia de gênero ‘woke’” [o termo, que significa “desperto”, indica a consciência para causas sociais e políticas e é usado negativamente pelos que a elas não se alinham]. A oposição pública à lei colocou a Disney no centro de uma briga inédita por poder – que fez o governador revogar, em fevereiro de 2023, o caráter especial de distrito independente da Walt Disney World na Flórida. Com a decisão, DeSantis ganhou o controle do conselho gestor do distrito da Disney World, criando um novo comitê de supervisão, administrado por aliados seus.
Ataques a minorias sociais por questões morais – ou, mais dramaticamente, “guerras culturais” – não são novidade. Mas eles vêm sendo crescentemente usados por políticos como parte de uma estratégia populista para acumular poder. Populismo, segundo o cientista político Cas Mudde, é a corrente política que divide a sociedade em dois grupos opostos – o povo e a elite corrupta – para, então, defender que a política deve ser uma expressão da vontade do povo. Em resumo, é uma posição antielitista e antissistema que busca gerar divisão para conquistar poder.
Ilustrações de Gérard DuBois
Nos Estados Unidos, o populismo ganhou força em meados do século 19, quando o campo e sindicatos resolveram protestar contra banqueiros e políticos corruptos, cujas decisões tinham deixado agricultores endividados e sem recursos legais contra os altos valores de armazenamento e transporte da colheita. Essa aliança deu origem ao Partido do Povo – depois Partido Populista –, fundado em 1892 para lutar por reformas que beneficiassem a classe trabalhadora e regulassem o setor privado. Seu alvo específico eram monopólios que ganhavam com altas tarifas sobre o maquinário e bancos que faziam exigências duríssimas para liberar crédito e cobravam juros escorchantes do agricultor. O movimento foi perdendo força aos poucos, culminando na fusão do Partido do Povo com o Partido Democrata em 1896, que juntos indicaram o popular orador e jurista William Jennings Bryan como candidato à Presidência naquele ano.
Nos últimos tempos, o populismo avançou pela América Latina, pela Europa e por outros lugares onde há gente que se sente abandonada pelo governo e desprovida de redes de segurança devido à rápida expansão da globalização e do capitalismo de livre mercado. Líderes autoritários como o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, e o premiê da Hungria, Viktor Orbán, adotam um discurso populista que explora tensões econômicas e culturais em torno de questões como imigração e comércio com outros países e declaram representar os interesses do povo. Outros políticos, incluindo os atuais líderes de Índia, Itália e Turquia e mandatários que deixaram o poder recentemente, como o brasileiro Jair Bolsonaro, o ex-premiê britânico Boris Johnson e o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, se apropriaram do populismo como estratégia política. Até líderes autoritários sabidamente partidários de táticas repressivas de hard power, como vigilância, assédio e repressão violenta de cidadãos, como o presidente chinês Xi Jinping e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita Mohammed Bin Salman, adotam cada vez mais uma abordagem populista e se apresentam como paladinos do povo, em uma estratégia de soft power para mobilizar as massas.
Para muitos populistas, como DeSantis, é politicamente vantajoso atacar grandes empresas, que são retratadas como aliadas da elite corrupta e interessadas apenas em mais lucro. Esses políticos dizem defender os interesses da classe trabalhadora explorada por máquinas de fazer dinheiro como a Disney. Para piorar, populistas de direita e esquerda convergem na hostilidade contra conglomerados, já que ambas as facções classificam a hegemonia empresarial como um inimigo comum do povo – ainda que por razões distintas.
Isso dito, medidas populistas para supostamente satisfazer necessidades do povo são, com frequência, mais teatro do que realidade. Líderes autoritários usam vocabulário e discurso populistas para concentrar poder, fingindo lealdade ao povo – em nome do qual dizem falar, mas no qual projetam suas próprias opiniões. Essa narrativa permite aos populistas ganhar capital político e vilanizar empresas contrárias a sua agenda. Além disso, populistas apostam na desinformação e no embuste para atiçar a tensão social.
O populismo traz vários desafios para empresas como Disney, Ben & Jerry’s e Starbucks – todas adeptas da responsabilidade social empresarial (RSE), que significa adotar práticas que, além de lucro,
rendem benefícios à sociedade. Nosso time de pesquisadores da Universidade de Bath, no Reino Unido, examinou esses dilemas para trazer novas ideias e novos recursos à busca do equilíbrio entre democracia e capitalismo. A seguir, mostramos de que maneira o populismo ameaça práticas empresariais responsáveis e explicamos por que uma empresa deveria adotar uma estratégia responsável, apesar desses desafios. Para encerrar, sugerimos uma estrutura geral de posturas responsáveis contra o populismo.
SSEGUNDO UM ESTUDO DE 2023 do Carnegie Endowment for International Peace, o populismo “tem efeitos negativos na economia e na atividade empresarial”, em virtude da corrupção na política e do clientelismo. Yascha Mounk, professor de relações internacionais da Universidade Johns Hopkins, também crê que a economia de países liderados por populistas é mais volátil. Até agora, no entanto, o impacto do populismo na RSE não foi examinado com atenção nem pelo meio acadêmico, nem pela imprensa.
Identificamos três sérias ameaças do populismo a ela. Uma é abalar a reputação de empresas com acusações caluniosas de elitismo, outra é deslegitimar iniciativas em prol da sociedade ao declarar que o único propósito de uma empresa é o crescimento da economia e a terceira é manipular o mercado para impedir que haja condições para a atuação empresarial responsável.
PRIMEIRO, o populismo pode influenciar de forma negativa o modo como o público enxerga o papel de empresas na sociedade, levando a uma vigilância intensa e a desafios para manter práticas empresariais responsáveis. Ao retratar empresas como aliadas de uma elite corrupta, o líder populista busca minar fontes tradicionais de poder do meio empresarial: redes e associações setoriais. O populista retrata iniciativas de RSE como mero disfarce para incrementar o lucro, não para servir ao público.
Tachar empresas de desonestas condiz com a grande estratégia populista de polarização. Líderes populistas buscam alimentar a desconfiança da população não só quanto a empresas, mas também quanto a outros grupos considerados cultos e de elite, como acadêmicos e jornalistas – gente que trabalha com a linguagem e a informação. Populistas como DeSantis, por exemplo, tratam empresários do setor de tecnologia no país como a “elite do Vale do Silício” ao criticar iniciativas de RSE que, diz ele, “impõem uma agenda ideológica ao povo americano”. A intenção é convencer a população a acreditar que as empresas não estão do lado do povo.
SEGUNDO, líderes populistas tentam deslegitimar iniciativas socialmente responsáveis com base na tese de que desviam a empresa do propósito de criar mais empregos e fazer a economia crescer. É um argumento intimamente ligado à visão do economista Milton Friedman de que o único propósito de uma empresa é buscar o lucro dentro de sistemas econômicos e regulatórios vigentes. A ideia é fazer pressão para que a empresa se atenha a uma função econômica estrita e, assim, controlar o escopo de suas atividades. Nessa veia, populistas como DeSantis e o senador americano Josh Hawley atribuíram a quebra do Silicon Valley Bank, em março de 2023, a suas políticas de diversidade,
equidade, inclusão e mudanças climáticas, desmoralizadas por populistas como uma cartilha “woke” que impediu o real objetivo do negócio. Do outro lado, especialistas do setor, como a CEO da Amadeus Capital Partners, Anne Glover, corretamente apontaram que o colapso se deveu a uma combinação de má gestão, juros altos e pânico de investidores.
Metas ambientais, sociais e de governança (ESG) despertam a fúria de populistas, para quem isso solapa o propósito da empresa – crítica que já fez surgir uma série de leis. Uma delas, criada no Texas em 2021, proíbe que empresas trabalhem com bancos que tenham políticas de ESG contrárias a empresas de combustíveis fósseis e armas de fogo. Outra foi sancionada por DeSantis em maio de 2023 proibindo os servidores do estado de realizarem investimentos em ESG. “Queremos que [empresas de investimento] ajam como fiduciárias, não que se metam nessas viagens ideológicas”, disse ele. Trump chegou a caracterizar a adoção de políticas ESG como um “lixo da esquerda radical que jamais atrairia investimentos por si só”.
A crítica ao ESG faz parte de um ataque geral à sustentabilidade, já que narrativas populistas defendem expressamente o crescimento econômico e o consumo desregrado de recursos naturais. Em geral, essa defesa contempla apenas os interesses de poucos, enxerga só o curto prazo e legitima ações ambientalmente destrutivas. O populista rejeita ações de proteção do clima e de sustentabilidade por não trazerem benefícios políticos ou econômicos claros e imediatos. Isso ficou evidente em 2017 com a política energética America First, de Trump, que derrubou proteções ambientais e autorizou projetos de infraestrutura como o polêmico gasoduto Keystone XL, para converter os Estados Unidos em produtor global de petróleo e gás. No Brasil, Bolsonaro fez o mesmo ao subverter a legislação ambiental que protege a Amazônia a fim de agradar o lobby do agronegócio – para o temor de acadêmicos e ambientalistas, que previam com isso a destruição da floresta, da biodiversidade e de comunidades indígenas locais.
Dependendo de quão persuasiva e virulenta seja, essa propaganda populista pode jogar consumidores contra uma empresa. Foi o que ocorreu no início de 2023 com a Bud Light, da Anheuser-Busch. As vendas da cerveja caíram quase 25% depois de uma campanha de marketing com Dylan Mulvaney, uma influencer transgênero popular no TikTok. A iniciativa provocou a ira transfóbica da mídia conservadora, com alguns chegando a pedir um boicote nacional à cerveja e comentaristas postando imagens de caixas da bebida destruídas. À luz dos quase 500 projetos de lei anti-LGBTQ+ apresentados nos Estados Unidos só em 2023, o exemplo da Bud Light mostra como a retórica populista alimenta
uma guerra cultural maior – nesse caso específico, transfobia – que ameaça alienar os stakeholders de uma empresa.
A reação da Anheuser-Busch foi ceder à pressão do mercado. A cervejaria abandonou não só a campanha, mas também a influenciadora, que foi alvo de assédio e até de ameaças de morte. E, no final, a empresa soltou uma declaração vaga: “Nossa intenção nunca foi entrar em uma discussão que divide as pessoas. Nosso negócio é uni-las para tomar uma cerveja”. Esse comunicado não demonstrou solidariedade a Mulvaney ou à comunidade trans e indicou a volta da cervejaria ao statu quo, que é ganhar dinheiro e abdicar de seu contrato social. Mais tarde, diante da ameaça de perder o selo de “perfect corporate equality” (“igualdade corporativa perfeita”, na tradução literal) da Human Rights Campaign pelo tratamento dispensado a pessoas LGBTQ+ na empresa, a Anheuser-Busch buscou salvar sua reputação com uma doação de US$ 200 mil para o projeto Communities of Color Initiative da associação National LGBT Chamber of Commerce. Quando a postura de uma empresa se choca com bandeiras populistas, sua gestão pode se ver obrigada a assumir a responsabilidade de forma mais contundente ou abandonar a causa. Virar a casaca em questões de direitos civis é um problema seríssimo, pois a inconstância nos atos da empresa pode prejudicar a própria causa que se pretendia apoiar e alimentar a descrença da sociedade na responsabilidade empresarial.
TERCEIRO, o populismo pode minar o funcionamento do mercado. Líderes populistas agem de forma impulsiva, alterando normas e regulações para consolidar e aumentar o próprio poder. Essas mudanças podem incluir políticas que promovem o controle estatal de empresas, a imposição de novas tarifas, o aumento da burocracia, barreiras ao comércio externo e até o abandono de acordos internacionais, como fizeram o Reino Unido ao sair da União Europeia e os Estados Unidos ao deixar o Acordo de Paris. O motor dessas mudanças é a meta populista de semear a divisão na sociedade – a luta maniqueísta do “bem contra o mal” e a divisão da população em um “nós contra eles”. Simplista e divisiva, a estratégia de demonizar o “outro” tem como alvo minorias e grupos sub-representados – especialmente migrantes, refugiados e gente em busca de asilo –, convertidos em bodes expiatórios e culpados pela desigualdade econômica de uma nação e por seus índices de criminalidade.
O “nós contra eles” é um mantra hipernacionalista com influência negativa na visão que a população tem de companhias estrangeiras. Durante o governo Trump, empresas da China foram ameaçadas de boicote depois que algumas delas entraram para uma lista de entidades vetadas por questões de segurança nacional
À medida que o impacto de táticas populistas sobre o setor privado aumenta, as condições para uma ação empresarial responsável pioram. As empresas passam a navegar de forma passiva por um cenário regulatório complexo e, muitas vezes, imprevisível
Diante do populismo, uma empresa não precisa se abster de iniciativas de RSE. Aliás, pode agir como uma primeira linha de defesa quando ações do tipo exigem respostas rápidas, especialmente se elas se valerem de produtos ou serviços de uma empresa para promover sua agenda
devido a ligações com os militares chineses. Uma delas, a Huawei, foi proibida de fazer negócios nos Estados Unidos. Trump instituiu várias outras medidas contra firmas chinesas, incluindo bancos de investimento, e chegou a retirar algumas das Bolsas de seu país. A virulenta retórica anti-China de Trump – o que incluiu culpar abertamente o país pela pandemia de covid-19 – contribuiu, e muito, para a escalada na violência contra asiáticos no país.
O hipernacionalismo também atinge companhias estrangeiras sob o pretexto de aumentar o “controle estatal” da atividade empresarial. Na Hungria, Viktor Orbán usou medidas regulatórias e econômicas, como impostos e tetos de preços, para expulsar firmas internacionais dos setores bancário, de telecomunicações e de energia e deixar o Estado assumir o comando. Em 2022, o governo pressionou a Vodafone a vender suas duas holdings húngaras ao Estado, alegando que a medida era crucial para “a segurança do fornecimento de serviços de telecomunicações” e, portanto, de “importância estratégica nacional”.
À medida que o impacto de táticas populistas sobre o setor privado aumenta, as condições para uma ação empresarial responsável pioram. Nesse cenário, o foco de empresas pode mudar. Em vez de uma ação totalmente engajada de responsabilidade social, passam a navegar de forma passiva por um cenário regulatório complexo e, muitas vezes, imprevisível. Essa mudança pode levar a empresa a ser mais reativa a alterações em políticas –e não proativa na busca de iniciativas com responsabilidade. Em última análise, isso pode ter impactos consideráveis na saúde e na integridade de sistemas de mercado.
Como e quando reagir
APESAR DOS INÚMEROS desafios impostos pela guinada populista, muitas companhias não desistiram da responsabilidade empresarial de defender e promover ideais democráticos e direitos humanos. A atitude de RSE da Ben & Jerry’s é prova do papel positivo que uma firma pode desempenhar no combate a pautas populistas mundo afora. Vejamos a resposta da fabricante de sorvetes a uma lei de migração no Reino Unido – a Illegal Migration, de 2023 –que impede refugiados de pedir asilo ao país quando chegam por mar. Ao apresentar o projeto de lei no Parlamento em 2022, Suella Braverman, então secretária de Interior, declarou que a lei refletia “a vontade do povo britânico”. Em resposta, a Ben & Jerry’s criticou abertamente Braverman e políticos que apoiavam o projeto de lei. Além disso, lançou uma campanha nas redes sociais,
chamada Safe Routes for Refugees, para sugerir alternativas mais seguras para quem se dirigia ao Reino Unido em busca de asilo, incluindo um sistema digital de solicitação de visto que elimina a necessidade da viagem por mar.
Diante do populismo, uma empresa não precisa se abster de iniciativas de RSE. Aliás, pode agir como uma primeira linha de defesa quando ações do tipo exigem respostas rápidas, especialmente se elas se valerem de produtos ou serviços de uma empresa para promover sua agenda. O X (antigo Twitter) suspendeu permanentemente a conta de Donald Trump dois dias após o ataque ao Capitólio nos Estados Unidos em 2021 – por violação do protocolo de garantia da segurança pública da empresa. Trump e seus aliados tinham usado a plataforma para convocar e orientar seus apoiadores (o X, hoje controlado pelo bilionário populista Elon Musk, pôs fim à suspensão de Trump em agosto de 2023). A decisão do antigo Twitter por banir Trump resultou, em grande medida, da considerável pressão feita por stakeholders, incluindo usuários e anunciantes, que foram a público pedir à empresa que tomasse medidas imediatas. Nesse caso, é importante reconhecer que os motivos para uma empresa agir “corretamente” podem não ser altruístas, mas também uma decisão estratégica ligada a seus resultados financeiros.
Empresas com recursos financeiros consideráveis, redes influentes e cacife jurídico podem contestar tentativas populistas de exceder a autoridade legislativa. Foi o que a Disney fez. Após o revés inicial, usou sua equipe jurídica e fartos recursos para explorar uma brecha legal em seu contrato com o estado para frustrar o plano do governador DeSantis de retirar sua autonomia: uma formidável “cláusula real” segundo a qual o regime de autonomia administrativa da Disney permanecerá em vigor até 21 anos após a morte do último descendente do rei Charles 3º. Além disso, o patrimônio de mais de US$ 151 bilhões da Disney – que supera a riqueza de muitas nações – permitiu à empresa congelar toda doação de campanha a políticos que apoiaram o “Don’t Say Gay”. Na campanha eleitoral de 2020, a Disney doou um total de quase US$ 4,8 milhões a candidatos dos dois principais partidos na Flórida. Devido à iniciativa de DeSantis, a empresa prometeu doar essa cifra – US$ 5 milhões – a organizações que apoiam direitos LGBTQ+. Além de usar seu altíssimo cacife financeiro para questionar políticos populistas, no ano passado a Disney fez, em junho, Mês Internacional do Orgulho LGBTQ+, sua primeira “Pride Nite” oficial, em um claro gesto de destemor que honrou, em vez de apagar, a comunidade.
Já na Polônia, o partido populista no poder, o Prawo i Sprawiedliwość (PiS, “lei e justiça”), propôs em agosto de 2021 uma polêmica lei de meios de comunicação, a chamada Lex TVN, que imporia limites à participação estrangeira em emissoras
polonesas. O principal canal de TV independente do país, a TVN, de propriedade da americana Discovery Inc., ameaçou entrar na Justiça. A TVN também obteve o apoio de autoridades americanas e emitiu alertas a investidores e empresas sobre o clima para investir e operar na Polônia. Essa pressão concertada levou o presidente Andrzej Duda a vetar o projeto em dezembro de 2021.
Uma empresa pode desempenhar um papel ativo na proteção do interesse público ao privar populistas de seus bens ou serviços ou ao se contrapor abertamente a iniciativas desse cunho. É preciso, contudo, definir com cuidado que brigas comprar e considerar agir apenas quando as medidas estão em conflito com seus valores. Fazer uma espécie de teste, pelo qual a companhia examine se seus valores divergem de agendas populistas, pode permitir que empresas responsáveis determinem qual o melhor caminho a seguir. O assunto em pauta está em conflito com os valores da empresa? A medida populista em questão prejudica seus clientes e stakeholders? Uma resposta afirmativa a qualquer uma dessas perguntas indica que uma postura empresarial responsável pode ser o caminho correto.
Concluído este teste, é hora de formular um plano de ação com base em dois fatores: recursos e urgência. Esse modelo, que pode ser compreendido no quadro abaixo, sugere quatro abordagens para lidar com o populismo. Podem ser utilizadas isoladamente ou combinadas, dependendo dos recursos de que a empresa dispõe e da urgência do assunto.
A empresa precisa, primeiro, determinar se tem capacidade para se opor a iniciativas populistas que estejam em conflito com seus valores. Embora a oposição exija recursos consideráveis, até companhias com recursos limitados podem adotar estratégias menos onerosas, fundadas na ação coletiva, como soltar declarações conjuntas ou fazer campanhas coletivas nas redes. Nos Estados Unidos, por exemplo, membros de uma rede nacional de pequenas empresas, a Main Street Alliance, soltaram em conjunto uma petição e um comunicado condenando uma decisão de Trump
de 2017 que barrou a entrada de cidadãos de sete países de maioria muçulmana. A moção permitiu que essas pequenas empresas se opusessem a uma medida populista sem dilapidar recursos.
Um segundo fator é a urgência, que se impõe quando o populista autoritário altera leis ou normas ou incita a população à desobediência civil e à violência. Nesse caso, é preciso reagir rapidamente, especialmente se os populistas estiverem usando produtos ou serviços da empresa para promover seus atos nocivos – como ocorreu quando o Twitter baniu Trump por ter usado a plataforma para organizar o ataque ao Capitólio e falar com seus seguidores.
Em situações em que não há urgência, há inúmeras alternativas para a ação direta caso a empresa tenha recursos disponíveis e esteja disposta a se contrapor diretamente a líderes populistas. Entre elas está a criação de campanhas de alta visibilidade que envolvam a sociedade civil e busquem sua colaboração para produzir um impacto maior, como a campanha “Safe Routes for Refugees” da Ben & Jerry’s. Outra possibilidade é fazer doações a grupos ativistas para apoiar suas atividades ou patrocinar uma campanha educativa, como fez a Disney ao doar recursos a grupos LGBTQ+.
Aliás, não é nenhuma novidade ver companhias assumindo a responsabilidade que competiria ao Estado de zelar por seus cidadãos. Não é de hoje que o mundo empresarial preenche lacunas de governança – na saúde e em questões ambientais como o desmatamento – onde o poder público foi incapaz ou omisso no enfrentamento de problemas sociais, políticos e ambientais. Em condições de governança descentralizada, atores privados, incluídas aí empresas, volta e meia intervêm para abordar e elaborar soluções. Certas empresas podem tomar medidas contra populistas autoritários que não priorizam o bem-estar da população e até exercer uma força contrária a excessos.
É claro que nem toda empresa pode partir para a ação direta, seja por não querer, seja por não poder confrontar o populista.
A partir de uma combinação simples de urgência e recursos, empresas podem adotar quatro abordagens, de forma exclusiva ou conjunta, para responder a ameaças populistas a suas iniciativas de RSE ou à sociedade democrática
Campanha de alta visibilidade
Conscientização e educação
Contestação direta Recusa de bens e serviços/litígio
Propomos uma ação coletiva e medidas que não envolvam confronto como alternativas para minimizar tanto o risco de retaliação populista quanto o uso de recursos.
A ação coletiva é uma estratégia que reduz o risco de atrair a ira de populistas contra uma empresa específica. No contexto da RSE, isso significa colaborar com atores com ideias parecidas – tanto outras companhias como organizações da sociedade civil – e adotar uma postura comum sobre uma questão social específica. Na ação coletiva, a união faz a força, pois assim a necessidade de empenho e expertise se distribui entre participantes, reduzindo assim o volume de recursos, financeiros ou não, exigidos de cada ator individualmente. Em 2017, por exemplo, três grandes associações empresariais alemãs – a da Indústria de
Embora
empresas responsáveis possam incluir distintos públicos na hora de decidir que postura adotar em temas fundamentais, é preciso estar ciente de que a propaganda populista é feita para manipular a opinião pública e pode influenciar a posição dos stakeholders acerca de temas ligados à RSE
Baden, a Indústria de Engenharia Mecânica e a Associação para uma Saxônia Liberal, Aberta e Cosmopolita – se mobilizaram para lançar uma campanha midiática contra o partido populista conservador Alternative für Deutschland (AfD). Uma das razões citadas para a ação coletiva foi a defesa da democracia liberal, além de objetivos estratégicos ligados à atividade empresarial, como proteger companhias associadas que dependem de exportação.
Já uma estratégia de não confronto tenta minimizar o envolvimento direto com líderes populistas ao concentrar esforços no problema em si, não no indivíduo. A campanha da indústria farmacêutica para combater a desinformação sobre a vacina contra a covid-19 (e imunizantes de modo geral) enfatizou a informação científica para conquistar a confiança do público e refutar fake news, em vez de atacar líderes populistas que difundiam desinformação e pseudociência. Antes disso, em 2020, nove grandes laboratórios farmacêuticos, entre os quais Pfizer, Johnson & Johnson e AstraZeneca, já haviam soltado uma declaração conjunta sobre produção de vacinas sem citar diretamente nenhum líder populista. Em vez disso, se comprometeram a “ficar do lado da ciência [pois] este compromisso ajudará a garantir a confiança do público”.
Pronta para o ataque, o contra-ataque e o que mais vier
FAZER FRENTE AO POPULISMO não é tarefa fácil, e qualquer empresa que resolva assumir o desafio provavelmente vai sofrer alguma reação negativa da sociedade, como a vivida pela Bud Light, ou uma retaliação política, como no caso da Disney. Toda companhia precisa saber que o escopo e o conteúdo de sua estratégia de RSE vão sofrer forte pressão política em ambientes populistas. Com a ajuda de nosso modelo, portanto, gestores devem formular estratégias para contestar prioridades e agendas de forças populistas. Deixemos claro que esse modelo não prega uma metodologia única. A companhia pode adotar uma série de abordagens, segundo seus objetivos e sua capacidade – desde a contestação direta de populistas, quando suas políticas ameaçam os valores centrais da empresa, até uma atitude mais moderada para reduzir uma potencial repercussão negativa.
Em contextos populistas, a interação com stakeholders provavelmente também se verá complicada pela disseminação de desinformação e mentiras. Embora empresas responsáveis possam incluir distintos públicos na hora de decidir que postura adotar em temas fundamentais, é preciso estar ciente de que a propaganda populista é feita para manipular a opinião pública – podendo, portanto, influenciar a posição dos stakeholders
acerca de temas ligados à RSE. A companhia precisa adotar uma abordagem respaldada por informações para garantir que toda atividade socialmente responsável incorpore subsídios de todos os stakeholders relevantes, garantindo uma boa representação desses interessados nas deliberações. Com isso, as empresas podem formular uma postura política alinhada com a vontade pública, valendo-se de um processo democrático para desmentir a tese populista de que seriam a “elite” agindo contra o “povo”.
Também é preciso entender que o grau de contestação do populismo pela empresa vai depender muito do contexto político no qual ela opera. É preciso que ela esteja atenta ao cenário político como um todo. O populismo pode se manifestar em todo o espectro ideológico, incluindo em regimes democráticos, autocráticos e híbridos. Boa parte da nossa discussão está relacionada a populistas em ambientes democráticos nos quais um sistema de freios e contrapesos institucionais pode ajudar a proteger a empresa de ataques populistas. Efetivamente, a democracia torna possível o confronto do populismo, já que a empresa pode recorrer ao Poder Judiciário para fazer valer a lei. Mesmo em nações onde a democracia está ameaçada, como Polônia e Hungria, empresas como a TVN acharam maneiras de enfrentar ameaças populistas a suas iniciativas socialmente responsáveis.
Uma postura empresarial responsável dá a empresas uma oportunidade única de apoiar processos democráticos que se opõem a narrativas populistas e dar vazão a anseios de stakeholders que muitas vezes são silenciados em sociedades lideradas por populistas autoritários. Isso posto, a natureza complexa e fluida do populismo produz um cenário em constante mudança para a iniciativa privada e pode deixar empresas sem saber como agir de forma responsável. Esperamos sinceramente que nossa análise e suas conclusões ajudem dirigentes empresariais a detectar ameaças e a saber quando reagir a elas. Esperamos, também, inspirar organizações a ir além da responsabilidade mínima de não fazer o mal e assumir o dever positivo de fazer o bem e apoiar forças democráticas liberais. O
ZENA AL-ESIA integra o Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath, no Reino Unido, e é pesquisadora na faculdade de administração da mesma universidade.
ANDREW CRANE é diretor do Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath.
KOSTAS IATRIDIS é diretor de estudos do mestrado em sustentabilidade e gestão da Universidade de Bath e membro do Centro de Administração, Empresas e Sociedade da instituição.
AYŞE YORGANCIOĞLU integra o Centro de Administração, Empresas e Sociedade da Universidade de Bath e leciona na Universidade Bilgi de Istambul.
O GOOGLE TEM POR META ZERAR AS EMISSÕES DE CARBONO EM TODAS AS SUAS OPERAÇÕES ATÉ
2030. Mas como uma empresa que depende de vários data centers que geram muito calor e, consequentemente, consomem muita energia para refrigeração pode fazer isso? Essa tarefa foi entregue à DeepMind, subsidiária de inteligência artificial (IA) do Google. A DeepMind coleta dados de vários sensores dos data centers do Google, que incluem informação sobre temperatura, pressão, consumo de energia e condições do equipamento de refrigeração. Para prever a temperatura e pressão em cada data center com até uma hora de antecedência, a empresa criou um modelo do sistema
Se aplicada da forma correta, a tecnologia pode melhorar o desempenho organizacional e a vida das pessoas e proteger o planeta
POR JULIA BINDER E MICHAEL WADEde refrigeração em tempo real que processa esses dados e otimiza as operações para controlar as variações de temperatura ajustando alguns parâmetros do equipamento, como velocidade dos ventiladores, pressão das bombas e posição das válvulas, para atender à demanda estimada para o resfriamento.
Como o sistema da DeepMind utiliza redes neurais e aprendizado por reforço, ele é capaz de se adaptar continuamente. Analisando novos dados e ajustando seu modelo ao longo do tempo, a IA melhora suas previsões e recomendações, reduzindo em 40% o consumo de energia na refrigeração. Esse aprendizado constante permite que o sistema se ajuste a diferentes condições, como flutuações no fluxo de uso do servidor ou variações nas condições meteorológicas, e garante que mantenha sua máxima eficiência em diferentes cenários.
Fazer a transição para uma economia sustentável talvez seja o maior desafio social e organizacional da atualidade. As tecnologias digitais são úteis em muitos aspectos da sustentabilidade, como reduzir as emissões de gases do efeito estufa, preservar a biodiversidade, aumentar a reciclagem, evitar o desmatamento e apoiar as metas da sustentabilidade das cadeias de valor. Ainda assim, os mecanismos para esse avanço continuam pouco explorados.
Entendemos essa lacuna como uma oportunidade perdida. Por natureza, as tecnologias digitais servem perfeitamente para visualizar, aperfeiçoar e estender processos – e, consequentemente, gerar impactos sustentáveis mais significativos e rápidos. Utilizá-las para a sustentabilidade pode nos permitir tomar decisões baseadas em dados e inovações que levam a um mundo mais verde.
Os empreendedores não estão preocupados em introduzir a tecnologia digital e a sustentabilidade em suas empresas porque eles não percebem que elas são complementares. As organizações sempre utilizaram a digitalização em larga escala para obter vantagens econômicas, reduzir custos, aumentar a receita ou melhorar a agilidade e pouco se preocuparam com os impactos ambientais. Por outro lado, como a sustentabilidade se traduz em benefícios ao ambiente – por exemplo, eliminando gradativamente os resíduos ou reduzindo as emissões de gases do efeito estufa –, as empresas costumam subestimar a potência facilitadora das tecnologias digitais. Apesar desses vieses, um estudo realizado em 2022 com a participação de várias indústrias mostrou que somente 40% dos executivos acreditam que as tecnologias digitais podem ter efeito positivo em suas agendas de sustentabilidade.1
As ferramentas digitais podem impulsionar o desempenho organizacional e, se usadas corretamente, ajudar a proteger o planeta. Essa combinação, a que nos referimos como sustentabilidade digital, pode ser definida como o uso de recursos digitais para melhorar a sustentabilidade ambiental, embora, em alguns casos, possa ter um custo no desempenho organizacional.
Certamente, o impacto da tecnologia na sustentabilidade nem sempre é positivo. A poluição digital é responsável por cerca de 4% das emissões de gases do efeito estufa, o que supera a parcela da indústria da aviação.2 As próprias ferramentas digitais precisam se tornar mais responsáveis e sustentáveis.
No entanto, elas podem desempenhar um papel importante para metas de sustentabilidade. O Fórum Econômico Mundial e a Accenture estimam que as tecnologias digitais podem reduzir os gases do efeito estufa em até 20%.3 Um estudo da PwC avalia que 70% das metas do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas poderiam ser atingidas utilizando tecnologias emergentes como IA, blockchain e internet das coisas (IoT, na sigla em inglês).4
Embora os empreendedores estejam bastante interessados em utilizar os recursos digitais para aumentar a lucratividade, eles ainda não exploraram completamente seu potencial para a sustentabilidade. Nossa pesquisa mostra que esses dois objetivos podem ser atingidos por meio de três grandes mecanismos, que analisamos a seguir: ver melhor, agir melhor e expandir melhor.
VENDO MELHOR
As ferramentas digitais e tecnologias são úteis quando ajudam a comprovar a clareza, visibilidade e transparência dos impactos da sustentabilidade. Como afirma um executivo da cadeia de suprimentos da Philips: “Acredito que a transparência seja essencial em toda a cadeia de valor, não só por seus efeitos na sustentabilidade, mas também porque ela melhora o desempenho da empresa”.
Para entender esse conceito, pensemos em um exemplo mais trivial: o uso doméstico da energia. Suponha que desejamos reduzir o impacto ambiental. Quando devemos começar? Nossos eletrodomésticos geralmente fornecem informações sobre a classificação de consumo de energia, mas mesmo quando temos esse dado, não sabemos como usá-lo corretamente. Para a maioria das pessoas, a pegada de carbono é como uma caixa-preta. Gostaríamos de reduzir essa pegada, mas simplesmente não dispomos de informação suficiente para saber o que fazer. Felizmente, os novos medidores inteligentes fornecem informação em tempo real sobre o consumo doméstico de energia e podem ser acessados por aplicativos nos celulares. Essa facilidade nos permite tomar decisões melhores e mais conscientes, o que pode diminuir o valor da conta e os impactos ambientais.
Atualmente, mais de mil empresas, que juntas totalizam US$16,4 trilhões em valor de mercado, se comprometeram formalmente a zerar efetivamente suas emissões entre 2025 e 2035.5 Embora seja relativamente simples lidar com emissões do escopo 1 e 2 – as que são diretamente controladas pela empresa –, as do escopo 3, que ocorrem em cadeias de suprimentos mais longas, são mais difíceis de sanar. A maioria das cadeias atuais são tão extensas, globais e fragmentadas que é difícil desentranhá-las e entendê-las. Mas, se quisermos abordar a sustentabilidade ao longo de toda a cadeia de valor ou identificar onde ocorrem as maiores emissões em uma rede de logística, precisamos ter total transparência. Várias companhias que monitoram suas cadeias de suprimentos nos disseram que acham o princípio de Pareto válido: 20% dos fornecedores são responsáveis por 80% dos impactos ambientais negativos, tanto no que se refere à poluição como quanto à má conduta ética.
Várias empresas estão fortemente empenhadas em medir as emissões do escopo 3. A Firmenich, por exemplo, líder global de perfumes e aromas, introduziu em 2021 uma iniciativa de rastreabilidade digital, a PATH2FARM. Esse sistema monitora os impactos sociais e ambientais das matérias-primas da Firmenich e permite
que os clientes acessem a base de dados da empresa, com total transparência da cadeia de suprimentos, de ponta a ponta. A Basf também lançou, em 2022, um projeto similar, chamado Seed2Sew, que utiliza tecnologia blockchain para rastrear a cadeia de valor das confecções desde as sementes do algodão até a manufatura.
Outro exemplo é a Tony’s Chocolonely, uma empresa nos Países Baixos. A fábrica de chocolates tem um duplo foco socioambiental: ela quer eliminar a escravidão ao longo da cadeia de suprimentos do chocolate e também reduzir seu impacto ambiental. Quando a Tony’s percebeu que havia enormes lacunas de informação ao longo da cadeia, criou uma plataforma em nuvem chamada Beantracker, que monitora o movimento dos grãos do cacau desde o plantio no Oeste da África até as fábricas na Europa. A Beantracker reforça metas de sustentabilidade garantindo que os grãos sejam eticamente produzidos e desvinculados de qualquer tipo de trabalho análogo à escravidão ou de práticas abusivas de trabalho e, ao mesmo tempo, permite que a empresa avalie o impacto ambiental em seu transporte e produção.
Mas a visibilidade na cadeia global de suprimentos é somente o primeiro passo. O seguinte é utilizar ferramentas analíticas digitais, geralmente já com IA embutida, para analisar a maior quantidade de informação possível e garantir melhores decisões e previsões. A Beantracker permite que a Tony’s seja mais inteligente em relação aos impactos sociais e ambientais. Ao medir o impacto ambiental na cadeia de valor do chocolate, a empresa descobriu um fato interessante: a maior fonte de emissão de gases do efeito estufa não estava no cultivo, no transporte dos grãos ou na manufatura, mas no gado que produzia o leite em pó adicionado ao chocolate. Ao saber disso, a Tony’s tentou mitigar esse impacto, introduzindo em seu portfólio de produtos uma linha de chocolates veganos.
A Tony’s também costuma compartilhar suas boas práticas com parceiros, incluindo fornecedores, varejistas e alguns concorrentes, para trabalhar juntos e melhorar a sustentabilidade em toda
Se uma empresa analisa dados sobre as vantagens da sustentabilidade, ela pode tomar decisões para aprimorá-la. Em específico, as ferramentas e tecnologias digitais podem melhorar três grandes ações. Primeiro, podem reduzir a necessidade de recursos físicos. Segundo, podem reduzir o impacto negativo desses recursos físicos. E, terceiro, podem oferecer melhores serviços ambientais.
A necessidade de prospectar, produzir, transportar, manter e eliminar recursos físicos gera muitos impactos sociais e ambientais negativos. Se os recursos físicos puderem ser completamente evitados, esses impactos podem ser eliminados e, nesses casos, várias tecnologias digitais podem facilitar essa ação.
Quando os ativos físicos são substituídos por equivalentes digitais, geralmente se obtém uma dupla vantagem: redução de custos e diminuição do impacto ambiental. Os gêmeos digitais são um bom exemplo desse modelo. Eles permitem simular digitalmente um produto ou componente para prever seu processamento e desempenho sob diferentes condições ao longo do projeto e do ciclo de vida. A Tesla, por exemplo, cria uma simulação digital de cada carro que vende. Os dados coletados por sensores colocados nos veículos são transferidos para a nuvem. O gêmeo digital informa antecipadamente onde falhas e avarias poderão ocorrer. Dessa forma a empresa reduz os custos de manutenção, evita recalls e melhora a experiência do cliente.
Do ponto de vista da sustentabilidade, a Baker Hughes, empresa que fornece produtos e serviços para campos petrolíferos, estende o conceito do gêmeo digital combinando dados simulados desse recurso com informações do desempenho do objeto físico, obtidos por meio de sensores e inspeções. A empresa cria assim o que ela chama de trigêmeo digital. Ele pode estender a vida útil dos produtos, melhorar a precisão dos prognósticos e reduzir a necessidade de construir protótipos físicos. Também ajuda a atingir metas de segurança e sustentabilidade: a empresa pode utilizar suas tecnologias digitais
Quando os ativos físicos são substituídos por equivalentes digitais, geralmente se obtém uma dupla vantagem: redução de custos e diminuição do impacto ambiental
a cadeia de valor do chocolate. A empresa utiliza satélites GPS e drones para mapear o tamanho das fazendas produtoras de cacau e compara os dados de localização com os de produção fornecidos pelos produtores rurais. Ao medir essa informação em relação aos dados de colheitas típicas, ela identifica anomalias, como uma produção excessiva de vagens sendo fornecidas por uma determinada fazenda. Isso pode indicar que o cultivo está sendo realizado em áreas protegidas, que está ocorrendo desmatamento, ou que as vagens estão sendo roubadas de fazendas vizinhas. Quando as anomalias são identificadas, a Tony’s inicia uma investigação. Por outro lado, quando a produção está abaixo dos níveis esperados, ela implementa programas de treinamento para ajudar os produtores a tomar melhores decisões.
de campos petrolíferos para monitorar e garantir a saúde dos funcionários, a segurança e a proteção ambiental. O monitoramento remoto dotado de visão computadorizada e dados de sensores pode detectar de forma rápida e precisa efeitos de corrosão e possíveis vazamentos. Já os métodos analíticos de prognóstico baseados em IA ajudam a identificar e evitar falhas em equipamentos que poderiam ferir os operários e prejudicar o ambiente.
Além dos gêmeos digitais, outros tipos de desmaterialização, como manufatura aditiva e impressão 3D, podem beneficiar o ambiente de várias formas. Por exemplo, reduzindo o desperdício no processo de fabricação, produzindo mais com menos material e diminuindo os custos de logística e os impactos no transporte dos produtos até o cliente. Os processos físicos também podem ser substituídos por al-
ternativas digitais, na forma de automatização de processos. Passar esses processos para o formato online pode reduzir a necessidade de papel, de mão de obra e de infraestrutura de transporte.
As tecnologias digitais não precisam reduzir ou eliminar os recursos físicos para estimular a sustentabilidade. Elas também podem ajudar a reduzir o impacto ambiental dos objetos físicos utilizados e contribuir para aumentar a eficiência, eliminar resíduos, reduzir a necessidade de viagens e estimular a reciclagem e reúso.
Em 2017, a cidade de Genebra, na Suíça, introduziu um sistema inovador de estacionamento inteligente para reduzir o congestionamento no trânsito e melhorar a produtividade para a população e os visitantes. Antes da implantação do sistema, 20% do tráfego da cidade, segundo estudos, era de veículos que circulavam à procura de vagas, aumentando o consumo de combustível e a poluição. A solução de Genebra inclui uma rede sofisticada de sensores embutidos embaixo dos estacionamentos, câmeras de alta resolução, mapeamento GPS de precisão e um aplicativo de fácil utilização pelo usuário. Com essa tecnologia integrada, os motoristas podem acessar em tempo real a informação sobre vagas disponíveis nos es-
e os impactos ambientais serão reduzidos, mas também o reúso de componentes será facilitado.
A tecnologia também pode ajudar a estender o tempo de vida de outros recursos, reduzindo assim os resíduos físicos. A Philips, empresa de tecnologia em saúde, projetou produtos de imageamento circular, no sentido de que seus componentes podem ser recondicionados e reaproveitados. A empresa está modificando outros elementos desde o hardware até o software para que possam ser atualizados em vez de substituídos. O rastreamento de tecnologia também faz parte da estratégia da Philips. Quando ela sabe a localização de um produto, pode providenciar para que ele seja devolvido, recuperado e redistribuído, estendendo assim o ciclo de vida do produto.
Além dos impactos nos recursos físicos, as tecnologias digitais também podem oferecer novas soluções e modelos de negócio para aumentar o impacto positivo que uma organização possa ter no mundo. Na última década, a Basf, gigante de produtos químicos, investiu pesadamente em ferramentas e tecnologias digitais em suas linhas de negócios para melhorar a eficiência e o fluxo da informação e obter novas fontes de receita. Ela também foi a primeira a adaptar
As ferramentas digitais permitem conectividade contínua e fornecem a infraestrutura necessária para expandir soluções sustentáveis
tacionamentos e escolher a opção mais próxima e mais conveniente. Esse aumento de eficiência não só economiza um tempo precioso dos motoristas, mas como também reduz o impacto ambiental da emissão de gases pelos veículos.
Outro exemplo são os sistemas de manutenção remota. A adoção deles, que eram já amplamente utilizados em boa parte do mundo antes da covid-19, acabou sendo acelerada por causa da pandemia. Esses sistemas utilizam sensores e métodos analíticos para prever componentes ou falhas do produto, permitindo reparos ou substituições no momento certo. Normalmente é preciso que um técnico se desloque até o local do problema. Mas agora, para evitar a necessidade de viagens, as organizações estão implantando sistemas de manutenção remota que podem envolver sistemas de realidade aumentada.
As equipes técnicas da Tetra Pak utilizam equipamentos de realidade virtual para realizar tarefas complexas de manutenção nas linhas de empacotamento de alimentos e bebidas em locais de difícil acesso como o Iêmen. Um técnico coloca óculos e fones conectados a um especialista que o orienta na execução do serviço. Esses sistemas reduzem o tempo ocioso do equipamento, o impacto ambiental e os custos, evitando deslocamentos.
Estender a vida útil de recursos físicos normalmente oferece vantagens financeiras e de sustentabilidade, baixando os custos de aquisição e reduzindo a necessidade de produzir peças de substituição. Isso inclui produtos de tecnologia digital, que geralmente têm um ciclo de vida limitado. Se a vida útil média de um smartphone ou de um laptop puder ser estendida em um ano, não só os custos
seus produtos e processos para reduzir os impactos negativos no planeta. No entanto, essas duas correntes – digital e sustentabilidade – funcionavam separadamente na organização.
Atualmente, essa estrutura está mudando. No segmento de agronegócios, a Basf combina dados de satélite e sensores com métodos analíticos para maximizar os resultados que beneficiem tanto o planeta como os lucros dos produtores rurais. Os satélites esquadrinham o campo procurando áreas secas, com ervas daninhas, ou arenosas etc. Os sensores reúnem as informações sobre o solo, ar, condições dos animais ou da vegetação. Esses imensos bancos de dados são meticulosamente analisados e processados por meio de algoritmos sofisticados, especificamente criados para tomar decisões importantes sobre quando e onde irrigar, aplicar fertilizantes e herbicidas. Ao contrário dos antigos algoritmos de decisão, projetados essencialmente só para reduzir custos ou maximizar a produtividade, o foco dos algoritmos atuais mudou. Agora, eles procuram não só otimizar lucros, mas também minimizar a pegada ecológica e alinhar melhor as práticas agrícolas com as metas de sustentabilidade.
A Restor, reconhecidamente a maior rede global para a recuperação e preservação da natureza, ilustra como as ferramentas digitais podem gerar lucros ambientais. Sua plataforma de fonte aberta baseada em mapas integra dados em tempo real e imagens de alta resolução de satélites para identificar áreas desmatadas que poderão ser recuperadas com projetos de reflorestamento. Os usuários da plataforma, que incluem especialistas em recuperação ambiental, ONGs, empresas, cientistas e governos, também aprendem quais es-
pécies de árvores nativas são mais adequadas para a recuperação de determinadas áreas. Além disso, a Restor coleta dados de vários projetos de recuperação no mundo todo, promove a transparência nas atividades de recuperação e facilita as tomadas de decisão bem informadas. Esse ecossistema conecta profissionais, financiadores, voluntários e legisladores e estimula abordagens colaborativas para a recuperação ecológica em escala global.
O Environmental Insights Explorer da Google mostra como uma análise de dados avançada e recursos de modelagem podem ajudar cidades a se tornarem sustentáveis. A plataforma mede as fontes de emissões municipais e faz uma análise detalhada dos dados ambientais. Essa análise ajuda os planejadores urbanos, políticos e ativistas ambientais a obter insights valiosos sobre o impacto ambiental e identificar estratégias eficientes para tomar decisões bem-informadas e sustentáveis. Cidades podem utilizar essa ferramenta para identificar as fontes de poluição do ar e planejar como reduzir as emissões causadas pelos transportes ou por atividades industriais.
Utilizando dados em tempo real, técnicas modernas de modelagem e plataformas inovadoras, empresas podem reformular seus modelos de negócios para proteger o ambiente. As ferramentas digitais não só otimizam a eficiência operacional, como também capacitam as empresas a tomar decisões que contribuem diretamente para uma abordagem mais sustentável e ecologicamente consciente. Como resultado, as organizações estão em melhores condições do que jamais estiveram de apresentar soluções e estratégias inovadoras que produzam mudanças significativas para, no futuro, atingir as metas ambientais com respostas empresariais estratégicas e eficientes.
Após utilizar as abordagens de sustentabilidade digital mais inovadoras e definir as melhores estratégias para a ação, o desafio é expandir essas soluções. A grande vantagem das ferramentas digitais é serem ampla e rapidamente dissemináveis.
No entanto, a responsabilidade de expandir a sustentabilidade digital não deve ficar restrita aos limites da organização. O caminho para chegar a soluções sustentáveis que possam ser ampliadas geralmente inclui vários stakeholders e uma colaboração intersetorial. Nesse ambiente, os princípios de competição cooperativa, ou “coompetição” são priorizados, à medida que as organizações, indústrias e até concorrentes se unem para enfrentar os desafios urgentes da sustentabilidade. Dados abertos e ferramentas open source podem catalisar esses esforços de colaboração e revelar o potencial de ações coletivas e mudanças transformadoras em escala global.
A Tony’s Chocolonely adotou uma abordagem única ao compartilhar com a concorrência os insights valiosos obtidos com seu sistema Beantracker. Imbuída desse espírito “coompetitivo”, a empresa criou uma plataforma inovadora chamada OpenChain, com o objetivo de promover a colaboração entre vários fabricantes de chocolate. Essa atitude facilita a troca de informação e de melhores práticas e pode criar um efeito em cascata que beneficia as empresas e ajuda a atingir metas de sustentabilidade mais amplas na indústria.
Graças a ferramentas digitais, vários stakeholders podem se conectar e se comunicar, independentemente de sua diversidade e localização. Em 2019, a Schneider Electric criou a Schneider Electric Exchange, uma plataforma dinâmica aberta dedicada ao compartilhamento de soluções envolvendo IoT para gerenciamento de energia e automação. O intercâmbio procura estimular a colaboração entre uma grande variedade de interessados – clientes, parceiros, desenvolvedores, especialistas, inovadores, profissionais do setor e defensores da sustentabilidade – para discutir questões críticas de sustentabilidade e eficiência. Entre outras vantagens, essa plataforma ajuda a resolver diversas questões que afetam a sociedade, como a otimização do consumo de energia em data centers e a melhoria da eficiência energética em edifícios e a de processos de automação industrial. Além disso, a plataforma oferece recursos e o apoio necessários para expandir as soluções, amplificando seu impacto.
Essas redes de colaboração não se limitam ao setor corporativo. A plataforma Wildlife Insights, por exemplo, abriga, em nuvem, o maior banco de dados de armadilhas fotográficas do mundo. Ela foi criada como uma parceria entre o World Wildlife Fund (WWF), Conservação Internacional, Instituto de Conservação da Biologia do
Smithsonian, Sociedade de Preservação da Vida Selvagem, Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte, Sociedade Zoológica de Londres, Map of Life e Google. A Wildlife Insights é importante porque atende às necessidades mais prementes da preservação da vida selvagem como mapear, compartilhar e processar dados, atividades que ajudam ambientalistas a entender melhor as mudanças na fauna e flora e, consequentemente, a melhorar sua proteção.
As plataformas digitais também promovem a economia circular, ao conectarem pessoas e empresas interessadas na troca de itens usados, reduzindo a necessidade de nova produção e minimizando os resíduos. Caso, por exemplo, do aplicativo Too Good To Go, que liga restaurantes e supermercados locais aos consumidores que compram as sobras de alimentos com desconto, evitando seu descarte, o que reduz o desperdício e aumenta a consciência ambiental.
Para promover mudanças de sustentabilidade em todo seu setor, organizações precisam enxergar além de seus limites e colaborar com atores com os quais normalmente não interagem, até mesmo seus concorrentes.
A iniciativa Holy Grail 2.0 reúne mais de 160 organizações de toda a cadeia de valor de produtos de consumo imediato (PCI) para melhorar a gestão, separação e reciclagem de embalagens plásticas. Somente 14% dos plásticos são reciclados atualmente, e a maior parte acaba em aterros sanitários. No entanto, a complexidade do desafio e o grande número de stakeholders envolvidos – indústria química, fornecedores de matéria-prima, indústria de transformação, produtores finais, consumidores, cidades para coleta de resíduos, recicladores e instituições reguladoras – exigem soluções sistêmicas. O primeiro passo da iniciativa Holy Grail foi inserir marcas d’água em todas as embalagens dos produtos de seus membros para facilitar a separação do resíduo plástico. Câmeras de alta resolução instaladas nas unidades de reciclagem detectam e decodificam facilmente os códigos imperceptíveis, do
tamanho de um selo postal, melhorando muito a precisão na separação dos resíduos plásticos.
A Catena-X é uma plataforma similar para o setor automotivo. Ela procura simplificar processos, otimizar a utilização de recursos e promover a transparência. Uma ação que merece destaque entre outros esforços foi o desenvolvimento de um “passaporte digital” inovador e padronizado para baterias, que promete revolucionar sua produção, garantindo rigorosa adequação às normas de compliance e transparência. O passaporte digital deverá conter um registro completo do ciclo de vida da bateria dos veículos elétricos, desde a produção até a reciclagem, e detalhar informações importantes –como o material utilizado, processos de manufatura, consumo de energia e até as emissões de carbono ligadas à sua fabricação. Isso permite que os fabricantes, agências reguladoras e consumidores tomem decisões que atendam às leis vigentes e promovam práticas mais verdes e responsáveis no setor.
Esses exemplos mostram que as ferramentas digitais permitem conectividade contínua e fornecem a infraestrutura necessária para expandir soluções sustentáveis. Elas são alternativas dinâmicas que as empresas podem incorporar para estimular cenários colaborativos e aumentar seu impacto positivo no planeta.
Embora a sustentabilidade digital seja bastante vantajosa, poucas organizações estão empenhadas em adotá-la. O motivo dessa relutância é principalmente prático: nas organizações, a tecnologia digital e a sustentabilidade são administradas por grupos separados de gestores, e esse trabalho compartimentado impede a geração de valor combinado. As empresas precisam, então, construir pontes, e isso nem sempre é fácil. Normalmente, as cadeias hierárquicas das equipes digitais e de sustentabilidade não se
As empresas e organizações precisam buscar a sustentabilidade digital em três frentes
SEE BETTER
Desafio da sustentabilidade / oportunidade
Facilitadores digitais
Resultado da sustentabilidade digital
Exemplos
• Cadeias de calor opacas
• Dificuldade para medir emissões de escopo 3
• Violações ambientais veladas
• Tecnologia de observação da Terra
• IA e métodos analíticos avançados
• Blockchain
• Computação de ponta e em nuvem
• Coletar dados relevantes
• Mostrar as principais causas veladas
• Precisão do planejamento
• Melhorar a tomada de decisão e a previsão
• Seed2Sew da Basf
• PATH2FARM da Firmenich
• Beantracker da Tony’s Chocolonely
ACT BETTER
• Melhorar a eficiência dos recursos
• Reduzir desperdício
• Oferecer melhores serviços ambientais
• Automatização de processos digitais
• Internet das coisas
• Gêmeos digitais
• Realidade aumentada
• Impressão 3D
• Otimização de processos e serviços
• Aumento da eficiência de recursos
• Criação de valor usando resíduos
• Trigêmeo digital da Baker Hughes
• Agricultura inteligente da Basf
• Iniciativa circular da Philips
• Genebra, Cidade Inteligente
SCALE BETTER
• Acelerar soluções
• Oferecer vantagens em escala
• Inteligência artificial
• Computação em nuvem
• Marcas d’água digitais
• Manufatura aditiva em escala
• Compartilhar e disseminar o aprendizado
• Colaborar dentro e fora das organizações
• Ganhar impulso para expandir a mudança
• OpenChain da Tony’s Chocolonely
• Catena-X
• Schneider Electric Exchange
• Iniciativa PCI da Holy Grail
Responda em uma escala de 1 a 5 para avaliar se sua organização está preparada para a sustentabilidade digital
Critério de amadurecimento
Considerações
Ver melhor
1: Discordo totalmente
2: Discordo / 3: Indiferente
4: Concordo / 5: Concordo totalmente
• Tecnologias digitais nos permitem ver claramente os impactos da sustentabilidade em uma organização.
• Podemos rastrear os efeitos da sustentabilidade ao longo de toda a cadeia de valor, incluindo as emissões do escopo 3.
• Realizamos análises avançadas dos impactos de sustentabilidade baseados nos dados que coletamos.
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Agir melhor
Se o total para esta categoria for menor ou igual a 8, é preciso melhorar a visibilidade da cadeia de suprimentos.
• Substituímos a maior parte de nossos objetos físicos por alternativas digitais.
• Substituímos a maior parte de nossos processos físicos por alternativas digitais.
• Temos programas para reduzir os impactos negativos de sustentabilidade em nosso portfólio de tecnologia.
Se o total para esta categoria for menor ou igual a 8, é preciso reformular os esforços de sustentabilidade digital reduzindo custos, limitando riscos e encontrando novas fontes de geração de valor.
• Em nossa organização, as equipes digital e de sustentabilidade trabalham em estreita colaboração.
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Expandir melhor
Classificação da maturidade da sustentabilidade digital
• Fomos bem-sucedidos ao realizar pilotos de sustentabilidade digital e implementá-los em escala.
• Incluímos parceiros, como fornecedores e clientes, em nossos esforços de sustentabilidade digital.
Se o total para esta categoria for menor ou igual a 8, é preciso criar condições estruturais para criar sustentabilidade digital em escala.
Se o total for menor ou igual a 25, a organização tem problemas de sustentabilidade digital.
Se for entre 26 e 34, seu nível de sustentabilidade digital é moderado, com possibilidade de melhora. Se for maior que 34, a organização está num nível alto de sustentabilidade digital.
cruzam logo nas primeiras linhas do organograma. Para simplificar a questão, identificamos três diferentes modelos de gestão da sustentabilidade digital, cada um com suas vantagens e desvantagens.
Terceirização | Nesse modelo, as equipes digital e de sustentabilidade continuam separadas, mas trabalham com grupos externos para gerenciar o portfólio de projetos de sustentabilidade digital. Os grupos focam em seus respectivos pontos fortes e limitam a coordenação mútua entre funções a trocas esporádicas.
Por iniciativa de um CEO entusiasta, um fabricante dinamarquês de produtos de energia eólica que chamaremos de NordicEcoWind (nome fictício) adotou uma agenda de sustentabilidade digital a partir da equipe diretiva. No entanto, embora tanto a parte digital como a de sustentabilidade fossem pilares centrais da estratégia da empresa, as equipes de gestão tinham poucos pontos de intersecção. Mas, por outro lado, trabalhavam com vendedores externos para encontrar as melhores soluções, como implementar métodos analíticos avançados para otimizar a eficiência de energia, explorar inovações energéticas renováveis e desenvolver soluções ambientalmente conscientes para a cadeia de suprimentos.
Essa abordagem tem a vantagem de evitar disputas internas que surgem com frequência quando as equipes estão compartimentadas: várias pessoas precisam atuar juntas, porque a expertise geralmente se concentra nos vendedores externos e os mecanismos de transferência de conhecimento podem ser limitados, ou a empresa pode não dispor de uma forte cultura de aprendizado. Consequentemente, a abordagem pode dificultar a capacidade da empresa de estender essas iniciativas além dos projetos individuais. Os insights e a expertise adquiridos com essas parcerias externas muitas
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vezes são compartimentalizados, o que, muitas vezes, dificulta a difusão de uma estratégia de sustentabilidade digital coesa na organização toda.
Dois chapéus | No modelo de dois chapéus, a organização está focada tanto na digitalização quanto na sustentabilidade. Embora não se misturem formalmente, as duas equipes trabalham juntas com um sistema de rodízio de liderança entre diferentes executivos – diretor de sustentabilidade, diretor digital, ou diretor de inovação – nos diferentes projetos. No desenvolvimento, as equipes são formadas por pessoas de vários departamentos e, quando o projeto termina, elas retornam às suas funções originais.
A Firmenich adota esse tipo de abordagem. O diretor digital exerce uma dupla função: liderar as inovações tecnológicas da empresa e contribuir para seus esforços ambientais, sociais e de governança da empresa (por exemplo, a PATH2FARM). Nessas iniciativas, ele trabalha em perfeita sintonia com o diretor de sustentabilidade, e ambos recebem total apoio da equipe de gestão e do Conselho.
O modelo de dois chapéus requer uma estreita coordenação e alinhamento entre os grupos de tecnologia e sustentabilidade, mas tentar alinhar interesses conflitantes, prioridades e incentivos de diferentes grupos pode trazer dificuldades.
Enraizado | O modelo enraizado procura incutir a sustentabilidade digital na cultura organizacional, empoderando e incentivando todos os funcionários a promover simultaneamente a digitalização e a sustentabilidade. Esses modelos se apoiam quase sempre em fortes compromissos entre o CEO e outros líderes da equipe executiva, que exigem que a sustentabilidade digital seja incluída nos processos, projetos, compensações e metas de bonificação. Essas empresas
da sustentabilidade digital possam ajudar a reduzir custos, algumas iniciativas podem resultar em aumento de despesas ou queda de receita
geralmente aproveitam o poder das tecnologias digitais não só para melhorar o desempenho financeiro, mas também para promover metas ambientais.
A Philips incorporou metas de sustentabilidade digital em vários processos e indicadores-chave de desempenho. Ela exige que os funcionários assinem anualmente um documento atestando os princípios da sustentabilidade. A empresa mede e divulga publicamente os impactos ambientais e atrela os bônus de desempenho individual da maioria de seus líderes ao cumprimento de metas de sustentabilidade. A sustentabilidade é centralizada, mas apoiadores de outros departamentos, incluindo o digital, defendem a agenda verde da empresa. Representantes da sustentabilidade e do digital são obrigados a revisar todos os grandes projetos de negócios para garantir que sejam compatíveis com os objetivos da companhia.
O modelo enraizado procura incorporar a sustentabilidade digital na empresa estimulando uma cultura de aperfeiçoamento contínuo e colaboração interfuncional. Ele facilita o intercâmbio de ideias e de práticas e abre horizontes para identificar novas oportunidades que podem melhorar a sustentabilidade e o desempenho dos negócios. No entanto, essa abordagem ainda precisa avançar em alguns pontos. Os funcionários devem ser mais bem treinados tanto na área da sustentabilidade como na digital a fim de que adquiram o conhecimento e as habilidades necessárias para contribuir efetivamente. Além disso, esse modelo pode tornar o processo de tomada de decisão ainda mais complexo para os funcionários, que precisam considerar vários outros critérios, incluindo a sustentabilidade, em suas atividades cotidianas. Apesar disso, essa abordagem holística geralmente traz resultados positivos em inovação, envolvimento dos stakeholders e criação de valor de longo prazo.
Juntar as estratégias de transformação digital e de sustentabilidade da organização pode ter um resultado positivo para o ambiente, além de beneficiar ou, em alguns casos, prejudicar o desempenho organizacional. Embora muitos aspectos da sustentabilidade digital possam ajudar a reduzir custos, como a automatização e a desmaterialização de processos digitais, algumas iniciativas podem resultar em aumento de despesas ou queda de receita. A Tony’s arca com o custo adicional de usar um equipamento de monitoramento digital para avaliar os impactos ambientais em toda a cadeia de valor. A Philips reconhece que estender a vida útil dos equipamentos médicos pode representar uma queda na venda de novas unidades. No entanto, essas empresas estão dispostas a suportar uma série de impactos no desempenho econômico em troca de maior sustentabilidade.
As ferramentas digitais podem apoiar as metas da sustentabilidade das empresas de três formas: fornecendo visibilidade e transparência, melhorando continuamente os resultados e expandindo os benefícios para todas as organizações e indústrias. Várias tecnologias podem facilitar o atingimento de cada um desses objetivos. Mesmo que a sustentabilidade ainda seja um conceito em desenvolvimento, os exemplos descritos iluminam o caminho a seguir.
As três estratégias não devem ser adotadas isoladamente. Para obter avanços reais, é preciso seguir as três abordagens juntas. As organizações que utilizam tecnologias digitais para melhorar sua visibilidade e implementar programas para reduzir impactos nocivos ainda não conseguem expandir essas iniciativas e acabam com um conjunto fragmentado de projetos-piloto e provas de conceito, dos quais poucos atingem a dimensão necessária para gerar vantagens reais. Por outro lado, as organizações focadas na ação e na expansão, mas que ainda não desenvolveram a visibilidade e a transparência para entender completamente as principais razões das questões de sustentabilidade, muitas vezes se concentram em áreas que não atacam suas questões mais relevantes e correm o risco de menosprezar aspectos potencialmente importantes. Por isso, as organizações precisam expandir seus esforços de sustentabilidade nas três áreas.
Tendo em vista a infinidade de problemas ambientais que enfrentamos, precisamos apressar o passo para aumentar a escala de soluções inovadoras e empreendedoras para o desenvolvimento da sustentabilidade. Nesse sentido, o papel das tecnologias digitais não pode ser subestimado. Por sua natureza virtual e que propicia a replicação, elas são perfeitamente adequadas para atingir impactos sustentáveis robustos mais rapidamente. O
JULIA BINDER é diretora do Centro de Sustentabilidade e Empresas Inclusivas e professora de inovação e transformação de empresas sustentáveis do Instituto Internacional de Desenvolvimento Gerencial (IMD), em Lausanne, Suíça. Incluída na Thinkers50 Radar List de 2022, ela é especialista em pesquisar e ensinar formas de ajudar empresas a alinhar impactos sociais, ambientais e econômicos.
MICHAEL WADE é professor de inovação e estratégia do IMD e fundador e diretor do Centro Global de Transformação de Negócios Digitais do instituto. Escreveu dez livros sobre tópicos relacionados às transformações digitais, dados e tecnologia e é membro do Hall da Fama de Formadores Digitais da Suíça.
NOTAS
1 James Anderson e Greg Caimi, “A Three-Part Game Plan for Delivering Sutainability Digitally”, Bain & Company, 10 de janeiro de 2022.
2 The Shift Project, “Lean ICT: Towards Digital Sobriety”, março de 2019.
3 Manju George, Karen O’Regan e Alexander Holst, “Digital Solutions Can Reduce Global Emissions by Up to 20%. Here’s How”, Fórum Econômico Mundial, 23 de maio de 2022.
4 PwC, “Over Two-Thirds of Sustainable Development Goals Could Be Bolstered by Emerging Tech, Including AI and Blockchain”, 17 de janeiro de 2020.
5 Data-Driven EnviroLab, Universidade de Utrecht, e CDP, Global Climate Action 2022: Progress and Ambition of Cities, Regions, and Companies, 2022.
O setor precisa de uma nova estrutura para construir conexão e confiança com as comunidades que busca servir
POR KATHLEEN BOYLE DALEN E TRACY L. MCFERRINAfilantropia se encontra em uma relação desconfortável com as comunidades que procura servir. Em parte isso se deve à diferença de poder inerente às relações – patrão-cliente, diretor-subordinado, rico-necessitado – e à desconfiança que isso pode gerar. O legado histórico da desigualdade racial e de gênero também desempenha um papel importante. O mesmo se pode dizer da tendência de as fundações adotarem, no campo, modos de operação unilaterais e isolados das pessoas com quem desejam trabalhar.
Para melhorar suas práticas, a filantropia precisa investir mais tempo e esforço em seus relacionamentos. O vínculo social e a confiança são a moeda que possibilita o crescimento e a transformação. Eles constroem parcerias duradouras e frutíferas que abrem as portas para a inovação e a cocriação. Oferecem espaço para que a verdade emerja e ilumine problemas negligenciados ou novas oportunidades. Quando as partes somam forças, podem vislumbrar novas soluções para questões que, separadas, não veriam.
Defendemos um novo marco e novas práticas na filantropia que priorizem as relações. Em vez de deixar os relacionamentos fluírem naturalmente, fundações devem construí-los conscientemente, trocando a dinâmica do “você-eu” por uma dinâmica do “nós”. Em vez de deixar o capital mais transformador – o social – ao
acaso, o setor filantrópico pode se beneficiar de aplicar à construção e manutenção das relações a mesma disciplina que usa para os processos de “checagem de antecedentes” conhecidos como due dilligence.
Críticos da filantropia questionam sua capacidade de se colocar como meio apropriado para enfrentar questões sociais mais difíceis. Três fatores desempenham um papel central nessa crítica.
Em primeiro lugar, existe entre fundações e comunidades o desequilíbrio de poder que se instala automaticamente quando se pede dinheiro a alguém. Às vezes, o filantropo é o que vai permitir a um projeto ir adiante ou a uma organização sobreviver. E, ao contrário das empresas com fins lucrativos, doadores não são incentivados a atender aos sinais de seu mercado. Eles podem deixar de apoiar até
as organizações mais eficazes sem repercussões negativas.
Em segundo lugar, quem tem poder, e isso inclui filantropos e líderes de fundações, é suscetível a se comportar mal. De acordo com pesquisadores de psicologia social, como Deborah Gruenfeld, pessoas no poder tendem a ser mais desinibidas. Podem ser mais propensas a interromper os outros, a usá-los meramente como um meio para alcançar metas e se mostrarem pouco sensíveis à experiência alheia. Essa sensibilidade reduzida talvez explique o histórico lamentável a filantropia quanto à amplitude e diversidade da participação na resolução de problemas e seu péssimo histórico de financiamento para organizações lideradas por indivíduos negros, indígenas ou minorias em geral.
Em terceiro lugar, a filantropia está presa a uma espiral de vergonha e tem vacilado ao responder às críticas, em vez de buscar reparos significativos.
Tomemos o exemplo da já citada due dilligence. Segundo críticos, esse mecanismo é um exercício de exclusão. Para eles, a fim de que esse desequilíbrio de poder seja corrigido, há que eliminar pessoas com experiência em filantropia que poderiam favorecer ou impor o procedimento. Embora possa se originar de um instinto louvável de prevenir danos futuros, essa proposta também pode limitar uma mudança positiva. Quando a due dilligence é conduzida através da lente da construção de relacionamentos, ela se torna uma oportunidade para compartilhar, de forma ampla, conhecimentos e insights para entender melhor os contornos de desafios específicos.
Recomendamos que a filantropia investigue em que situações práticas específicas, como a due dilligence, causaram danos; que reconheça os erros; que se desculpe; e que busque reparar a relação. Pode parecer mais seguro eliminar completamente uma prática, mas é uma medida pesada que ignora o potencial de aprendizado real. Além disso, denota falta de compromisso com o parceiro, que fica entregue à própria sorte para resolver as coisas. Melhorar a filantropia não deve exigir que se abandonem as melhores práticas sem antes tentar repará-las.
Para construir uma melhor forma de trabalhar, a filantropia deve se comprometer com novos hábitos e práticas. Deve tornar-se menos transacional e mais relacional. Para alcançar nossa visão de filantropia relacional, oferecemos três recomendações.
e na sua competência (lógica) e quando sentem que você se importa com elas (empatia). Essa abordagem abre oportunidades para melhorar a compreensão e inovar, repensando descrições de cargos, níveis de pessoal, mentalidades e abordagens de trabalho.
3. Desenvolva um padrão de conduta para a filantropia. | Se melhorar a filantropia passa por construir relacionamentos com alto nível de desempenho e baseados na confiança, diretores e funcionários de fundações devem tomar para si a responsabilidade de criar as condições necessárias para que esses relacionamentos de qualidade se desenvolvam, bem como seguir padrões elevados de conduta.
Atualmente, não há nos Estados Unidos padrões profissionais para grantmakers –nenhum código de ética ou comportamento rege ações ou práticas de doadores, além do código tributário. A filantropia deve considerar se seu trabalho na busca de melhorar a vida das pessoas, buscar justiça
Relações são importantes demais para que esperemos que elas se desenvolvam por boa vontade ou por obra do acaso
1. Comprometa-se com promover relacionamentos relevantes, imperfeitos, que se refiram a um “nós”. | Propomos a adoção de práticas que nos estimulem a navegar o incômodo desafio de construir relacionamentos por meio das diferenças. Será preciso, para isso, substituir ativamente padrões de “poder e controle” por “sabedoria ecológica e humildade”, como propõe o terapeuta Terrence Real. “[Se] isso se trata de como vamos operar juntos de uma maneira que funcione para os dois, toda uma gama de novas habilidades e novas maneiras de pensar se abre para nós.”
Construir competência e infraestrutura em torno da confiança e da reparação é um primeiro passo crítico no processo. Em sua pesquisa, Frances Frei, professora da Escola de Administração de Harvard, descobriu que as pessoas tendem a confiar em você quando acreditam que estão interagindo com o você real (autenticidade), quando creem no seu discernimento
e fazer um mundo melhor é digno de padrões explícitos de conduta. Uma promessa de, no mínimo, não causar danos e de criar proteções contra consequências negativas seria um bom passo nessa direção
CONSTRUÇÃO
A filantropia relacional, como todas as relações humanas, é complexa e não pode ser reduzida a um manual. Ambos os lados precisam encontrar seu caminho juntos. Mas todos os relacionamentos significativos são baseados na confiança, e de modo geral podemos dizer que criar relações ricas em confiança depende de cinco prioridades:
• ACORDOS (a respeito das expectativas). As expectativas existem apenas na mente. É preciso elaborar, com nossos parceiros, um conjunto explícito e compartilhado de acordos sobre o funcionamento de uma parceria
• FATOS (no lugar de suposições). Não
faça suposições sobre as capacidades ou desafios do seu parceiro. Discuta o que cada lado pode trazer para o relacionamento e como cada um define o problema no qual estão trabalhando juntos.
• CLAREZA DE PAPÉIS. Dê nome às funções de cada parceiro. Defina limites e responsabilidades para a tomada de decisões. Esse tipo de contrato de trabalho pode ser revisitado e revisado conforme seja aplicado, devendo ser negociado e claro para todos.
• CONFIABILIDADE. É preciso cultivar e construir a sensação de que podemos contar uns com os outros. Descreva e defina a confiabilidade. Desenvolva uma prática para falar sobre pontos fortes e deficiências nesse quesito.
• SEGURANÇA PSICOLÓGICA. Pesquisadores como Amy Edmonson, da Escola de Administração de Harvard, estudaram a importância de promover a segurança psicológica dentro das organizações e entre elas. Desenvolva práticas descomplicadas, mas consistentes, para o aprendizado coletivo, com humildade, curiosidade e pluralismo. Comece por implementar a prática permanente de discutir abertamente o que todos aprenderam com os funcionários da fundação (o que inclui apontar erros e fracassos), começando por identificar em que ponto as ideias iniciais deles se mostraram imprecisas ou incompletas.
No nosso campo, relações são importantes demais para que esperemos que elas se desenvolvam por boa vontade ou por obra do acaso. A fim de que essa mudança rumo a um poder compartilhado se conclua, devemos favorecer a expectativa e o apoio que nutrem habilidades e competências de relacionamento e construção de confiança. É hora de dotar de rigor e compromisso as relações que vão permitir e dar sustento a uma abordagem da filantropia, capaz de desbloquear possibilidades disponíveis apenas para um “nós” coletivo. O
KATHLEEN BOYLE DALEN é psicóloga e diretora da KBD Consulting, onde capacita conselhos, CEOs e equipes de liderança na criação de culturas de alto desempenho e confiança.
TRACY L. MCFERRIN é diretora da Credo Philanthropy Advisors e ex-doadora de uma fundação familiar privada. Na Credo, ela aconselha e treina fundações e doadores individuais sobre doações estratégicas de caridade, práticas de governança para fundações e resolução de questões na dinâmica beneficiário-doador.
Considerar dados qualitativos e usar a ciência comportamental em teorias de mudança amplia impacto
POR JANA SMITH E SARA FLANAGANAvaliações rigorosas de impacto têm se tornado cada vez mais importantes para orientar a direção e o dimensionamento de programas de impacto social. Em 2000, apenas 39 avaliações de impacto de trabalhos realizados em países de baixa e média renda foram publicadas, de acordo com o portal de evidências de desenvolvimento mantido pela International Initiative for Impact Evaluation (3ie). Em 2020, 1.526 foram publicadas
O padrão ouro para tais avaliações é o ensaio clínico randomizado e controlado (ECR). O uso de ECRs em pesquisas de desenvolvimento cresceu significativamente nas últimas duas décadas, ganhando destaque público com a concessão do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas de 2019 a Esther Duflo, Abhijit Banerjee e Michael Kremer por seu uso de experimentos de campo em trabalhos contra a pobreza. A aplicação dos rigores dos ECRs laboratoriais tradicionais para testar intervenções em saúde, educação, agricultura e outros campos tem ajudado formuladores de políticas e ONGs a entender o que funciona e o que não funciona no desenvolvimento internacional.
Implementadores de intervenções frequentemente se queixam de que aprender e aumentar impacto requer mais recursos em monitoramento e avaliação. Avaliações de impacto rigorosas custam dinheiro – ECRs em grande escala especialmente. Reclamações à parte, organizações e financiadores costumam destinar uma quantia significativa para despesas nesses quesitos. Ainda assim, muitas vezes o feedback valioso e aplicável de que os implementadores do programa precisam não vem.
Apesar dos elogios ao uso de ECRs para desenvolvimento, muitos no campo questionam se eles são apropriados para avaliar intervenções complexas. Argumenta-se que a randomização é inviável em muitos casos, que generalizar a partir de achados de ECR é difícil, que a randomização por si só não
garante resultados imparciais e que o ECR não explica as razões dos resultados obtidos.
Deixando tais críticas de lado, achamos que há oportunidades de tornar as descobertas dos ECRs mais práticas para os implementadores. Como escreveram o economista Angus Deaton e a filósofa Nancy Cartwright, “para muitas questões em que os ECRs podem ajudar, uma grande quantidade de outros trabalhos – empíricos, teóricos e conceituais – precisa ser feita para tornar seus resultados utilizáveis”.
A ciência comportamental está na vanguarda de caminhos criativos promissores para uma melhor medição, avaliação e aprendizagem adaptativa. Como designers na organização sem fins lucrativos ideas42,
investimentos em RCTs, a fim de que estes produzam as respostas necessárias para melhorar a programação e otimizar o impacto.
Primeiramente, recomendamos repensar as teorias de mudança para auxiliar o desenho da avaliação e a tomada de decisão. Geralmente, uma teoria de mudança elabora a avaliação enquadrando-a em uma narrativa coerente acerca das expectativas de impacto para um determinado programa. Formular uma teoria de mudança é útil para alinhar os stakeholders quanto a quais resultados esperam alcançar e como. Com muita frequência, no entanto, essas teorias detalham minuciosamente abordagens e entradas necessárias, mas não conseguem articular como essas entradas levarão aos resultados pretendidos.
fazemos uso constante da ciência comportamental para entender como o contexto molda a tomada de decisões para lidar com problemas sociais complexos em todo o mundo. Temos uma vasta experiência na concepção de intervenções, com parceiros em mais de 45 países, e realizamos muitas avaliações rigorosas para fortalecer essas intervenções.
Também realizamos avaliações para informar a tomada de decisões e a melhoria de programas externos e ajudamos os parceiros a aplicar os resultados que receberam de avaliações de terceiros de maneiras mais práticas. Com base em nosso trabalho, propomos duas maneiras para designers de programas e financiadores obterem o máximo de seus
Felizmente, insights da ciência comportamental podem enriquecê-las e elucidar por que e como os programas geram resultados. Por exemplo, a adoção de um serviço, produto ou processo depende, em última análise, do comportamento humano. A ciência comportamental pode ajudar a identificar quando, para chegar a um resultado, é preciso mudar percepções, crenças ou normas e se a programação proposta poderia contribuir plausivelmente para essas mudanças. Além disso, muitos alvos declarados em teorias de mudança (por exemplo, melhoras nutricionais ou níveis mais altos de escolaridade) resultam de uma série de comportamentos de diferentes stakeholders. Teorias de mudança informadas pela ciência comportamental permitem identificar atitudes de provedores, formuladores de políticas, clientes, gerentes e outros que podem ser cruciais para alcançar e medir esses resultados. Assim, a ciência comportamental pode ajudar implementadores a ter uma compreensão mais matizada de como os programas geram impacto. Além disso, pode destacar maneiras de aprimorar o desenho do programa antes de investir anos na coleta de dados para uma avaliação.
As teorias de mudança também podem se beneficiar da inclusão de mecanismos
externos e caminhos baseados em evidências que podem ser relevantes, mas que os designers podem não ter concebido como dentro da alçada do programa. Como podemos identificar oportunidades para ter mais impacto se nos concentramos apenas em um conjunto restrito de indicadores, baseados em nossas noções preexistentes de como gerar mudança? Com certeza, não queremos dizer que os esforços de coleta de dados devam ser direcionados para capturar todos os caminhos inimagináveis pelos quais a mudança pode ocorrer. Em vez disso, vislumbramos usar a pesquisa formativa – direcionada, orientada por hipóteses e qualitativa – ou modelos comportamentais baseados em evidências já disponíveis a fim de destacar fatores talvez não reconhecidos, mas potencialmente cruciais para impulsionar a mudança. Uma avaliação com informação comportamental pode revelar que o programa está tendo impacto em vias inesperadas ou que não está alcançando o impacto esperado porque as vias não visadas podem ser melhores para o resultado. Ambos seriam insights valiosos para informar a tomada de decisões do programa.
Por exemplo, recentemente avaliamos um programa de marketing social destinado
Nossa segunda recomendação é reexaminar as suposições sobre quais dados são úteis para avaliações rigorosas, incorporando melhor fontes publicamente disponíveis e dados qualitativos
Com razão, os profissionais consideram o uso de fontes qualitativas e quantitativas como um complemento a avaliações mais rigorosas de impacto. Mas eles normalmente se concentram muito estritamente no processo – como os componentes de intervenção estão sendo entregues ou como estão sendo recebidos – e falham em se aprofundar em como o programa e seu contexto mais amplo podem influenciar os resultados. Profissionais e pesquisadores costumam destacar a importância de métodos qualitativos no contexto dessas avaliações e, mais amplamente, de estudos comportamentais. Mas os avaliadores geralmente empregam métodos e dados qualitativos apenas para informar medidas quantitativas, ou para dar mais cor aos achados, sem vê-los propriamente como fontes.
A pesquisa qualitativa é fundamental para informar uma teoria de mudança e para desenvolver hipóteses sobre mecanismos a serem testados com métodos quantitativos.
Devemos abandonar a visão dos dados quantitativos como a única fonte confiável para avaliações
a prevenir o tabagismo entre meninas adolescentes em Gana. A pesquisa formativa sugeriu que os ambientes sociais das meninas – especificamente as relações sociais e os ambientes fora da escola ou do trabalho – eram um determinante crítico da probabilidade de fumarem. Os designers do programa não tinham como alvo o ambiente social e não incluíam elementos dele em sua teoria original. Quando os consideramos em nossa teoria de mudança aprimorada, pudemos validar sua relevância para o tabagismo das meninas; analisar as maneiras pelas quais programas anteriores podem já ter tido influência em aspectos relevantes, como a visão das meninas sobre amizades; e identificar oportunidades promissoras de fortalecer o impacto por meio de ambientes sociais.
Mas ela também serve para esses testes, especialmente nos casos em que possam não ser confiáveis. Por exemplo, abordagens qualitativas podem ser necessárias para identificar e explorar nuances contextuais que influenciam o modo como o programa está funcionando. Devemos abandonar a visão dos dados quantitativos como a única fonte confiável para avaliações e, em vez disso, favorecer métodos que possam gerar evidências para responder às nossas perguntas de pesquisa – sejam qualitativas, quantitativas ou ambas. Dessa forma, poderemos produzir resultados mais ricos e acionáveis.
Além disso, muito comumente os avaliadores se concentram apenas nos dados recolhidos sob as condições rigorosas e controladas do ECR. Às vezes, no entanto,
podem surgir nos dados tendências inesperadas que não podem ser compreendidas apenas com dados coletados para a avaliação. Embora fontes de dados externas à avaliação em si não possam ser usadas para o aspecto causal do impacto, elas podem ajudar a conceber hipóteses sobre determinadas tendências, especialmente mudanças no macrocontexto de um estudo.
Tomemos, por exemplo, nossa avaliação em Gana. Quando observamos um aumento nas taxas de tabagismo, formulamos a hipótese de que esse aumento poderia ter relação com uma elevação sazonal da atividade social. Fomos então capazes de confirmar essa intensificação usando dados de mobilidade de celular que empresas de tecnologia divulgaram durante a pandemia de covid-19. Ainda na mesma avaliação, observou-se que, ao longo do tempo, caiu a proporção de adolescentes que acreditam que a maioria de seus pares já fumou. Nossa hipótese foi a de que a alta inflação nacional no período estudado pode ter influenciado essa percepção: cortes em mesadas podem ter mudado a atividade social e o comportamento de gastos de forma a reduzir a visibilidade do tabagismo.
Os ECRs oferecem uma abordagem poderosa para esclarecer suposições e garantir que os recursos sejam investidos nos programas e políticas mais eficazes. Ainda quando eles são a abordagem mais apropriada para uma questão de pesquisa, podemos aproveitar melhor seus pontos fortes, projetando-os para gerar descobertas mais práticas. Incorporar a ciência comportamental na formulação de teorias de mudança mais específicas e na medição de uma ampla gama de mecanismos informados por evidências, responderemos a perguntas que nem pensamos em formular. Valorizar os aspectos qualitativos e aproveitar os dados públicos pode adicionar cor e riqueza a essas respostas e nos ajudar a perceber mais plenamente o potencial das avaliações para catalisar o impacto de programas e políticas por vir. O
JANA SMITH é diretora-gerente de saúde global da ideas42, uma organização sem fins lucrativos que usa insights do comportamento humano –por que as pessoas fazem o que fazem – para ajudar a melhorar vidas, construir sistemas melhores e impulsionar mudanças sociais. Ela também é membro atual do Behavioral Insights & Sciences for Health Technical Advisory Group, da Organização Mundial da Saúde
SARA FLANAGAN é designer comportamental do ideas42.
Certificar os produtos da sociobioeconomia pode proteger, além do ambiente, valores e saberes ancestrais
POR ANDRÉ BANIWA,
RAIZZA MIRANDA, M. CARMEN N. BELDERRAIN E OUTROSTestemunhamos um debate crescente em torno do vasto potencial das florestas e de sua capacidade intrínseca de gerar renda e bem-estar social para as comunidades que as habitam. Esse diálogo aponta para a perspectiva de construir uma nova economia, fundamentada no conceito da bioeconomia.
Indo além dos pontos de vista em que normalmente esse conceito se destrincha – o da biotecnologia aplicada ao desenvolvimento econômico; o dos biorrecursos como fonte de novas cadeias de valor; e o da bioecologia, que valoriza a biodiversidade e a conservação dos ecossistemas –, gostaríamos de ressaltar a abordagem da sociobioeconomia. Esta reúne e amplia aspectos das demais perspectivas, buscando, por um lado, a preservação ambiental e, por outro, a produção comercial que reconheça e valorize não só a biodiversidade, mas também as diversas culturas associadas às florestas e rios.
Entre os principais desafios no promissor horizonte da sociobioeconomia, está o de comunicar, de forma adequada, os diferenciais dos produtos dela oriundos. Defendemos que a criação de uma certificação que defina e avalize esses diferenciais se coloca como uma ferramenta essencial.
O universo das certificações é vasto, sendo mais conhecidas as alimentares, em particular a categoria dos orgânicos e as de cunho religioso, como kosher.
A seguir, apresentamos as especificidades da sociobioeconomia, por que seus produtos devem ser certificados e como isso beneficiaria os produtores – mas também os desafios a esse processo.
Os povos indígenas e comunidades tradicionais da América Latina e Caribe são re-
conhecidos como os “guardiões da floresta” por seu papel na preservação ambiental. Propomos portanto tal denominação para os bens de consumo e alimentos produzidos por esses grupos, cuja maneira de existir e produzir dá forma ao conceito da sociobioeconomia.
Como o próprio nome aponta, a sociobioeconomia busca transcender o paradigma estritamente econômico, promovendo uma visão mais abrangente e integrada do desenvolvimento. Comunidades que historicamente mantiveram uma relação harmoniosa com o ambiente respondem por uma impressionante diversidade de produtos elaborados de forma sustentável a partir da rica biodiversidade de suas regiões.
Quando seus saberes ancestrais são indevidamente explorados, não só os produtos que eles geram são ameaçados, mas também o arcabouço cultural do qual esses produtos se originam.
O caso da maca peruana ilustra os riscos enfrentados por comunidades tradicionais quando seus conhecimentos se tornam alvo de marketing e tratados como commodities.
A maca, originária das terras altas do Peru, ganhou fama global como superalimento. Isso a pôs na mira da biopirataria. A exploração sem consentimento adequado, em particular por empresas chinesas, resultou em sérias consequências para os produtores e para o ecossistema andino. A soberania alimentar das comunidades indígenas ficou ameaçada; as práticas tradicionais de cultivo e a importância cultural e espiritual atribuída à maca foram ignoradas, e não houve distribuição justa dos benefícios.
Um exemplo semelhante de exploração econômica injusta e de desrespeito a práticas tradicionais se deu com os rituais com cogumelos da curandeira María Sabina, no México. Sagrados na cultura mazateca, eles foram explorados turisticamente de forma recreativa, resultando em consequências negativas para sua comunidade.
Além da apropriação cultural, na ausência de salvaguardas éticas e certificações robustas que aportem autenticidade e qualidade, consumidores podem adquirir produtos falsificados. O vazio de certificação pode, além disso, favorecer a ocultação de práticas de cultivo não sustentáveis.
A sociobioeconomia enfrenta, ainda, o desafio de comunicar que seus produtos não são só orgânicos. Eles são nutridos in-
trinsecamente pela floresta, contribuindo ativamente para manter viva a biodiversidade e o ecossistema que os circundam, com a participação ativa de polinizadores e outros seres. Essa complexidade mostra que existe uma lacuna fundamental a cobrir, que é a de discernir quais produtos se alinham de fato com os objetivos da sociobioeconomia.
A solução para definir e, assim, proteger a sociobioeconomia pode estar na criação de uma ferramenta de certificação sensível aos modos de vida dessas comunidades. Ela deve promover a valorização da conexão profunda entre as populações locais e a natureza, o fortalecimento das práticas sustentáveis e tradicionais, respeitando seus rituais.
Essa certificação se voltaria para a identificação e promoção de produtos provenientes de métodos de agricultura que preservam a floresta em pé, ou de práticas de manejo que promovam a regeneração natural. Assim, ela também contribuiria para a restauração ecológica, a manutenção da biodiversidade e o enfrentamento da emergência climática, barrando o desmatamento e a degradação.
Por meio dela, seria possível destacar uma ampla gama de produtos, revelando as potencialidades singulares de cada bioma. Na Amazônia, o açaí, a castanha, o cacau, além de óleos e produtos medicinais são alguns candidatos claros à certificação.
Tome-se como exemplo a alimentação seguida pelas comunidades indígenas tradicionais. Ela se caracteriza por uma ampla variedade, predominantemente de origem vegetal, cultivada ou extraída respeitando e promovendo o equilíbrio do ambiente. É em tudo oposta à alimentação urbana crescente e negativamente marcada por ultraprocessados.
Ora, pode-se dizer que já existe um selo “indígenas do Brasil”, iniciativa conjunta de organizações e governos para validar que o cultivo ou coleta tenha sido realizado exclusivamente por membros ou organizações de comunidades originárias. Esse selo fornece informações sobre o produtor e a terra indígena de origem, além de seguir os princípios de sustentabilidade ambiental, responsabilidade social e valorização da cultura.
No entanto, embora o selo indígena seja importante para promover uma socio-
bioeconomia que fortaleça os guardiões da floresta, é fundamental uma certificação mais abrangente, que inclua outras populações que também habitam as florestas e as preservam.
Muitos produtos mereceriam tal certificação. É o caso da pimenta baniwa, cultivada por comunidades indígenas na região da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela. Seu modo de produção se liga intrinsecamente ao meio e às formas de manejo empregadas pela comunidade, sendo só sustentável e orgânico, mas também nutrindo e sendo nutrido pelo ecossistema florestal. Na cosmovisão baniwa, a pimenta vai além da utilidade culinária; é percebida como um escudo protetor da vida. As pimenteiras cultivadas por eles segundo o
incorporado ao processo de produção, a participação ativa da comunidade nas decisões concernentes a esse processo e a preservação das práticas tradicionais ao longo do tempo.
Trata-se, portanto, de um equilíbrio delicado entre proteger conhecimentos, promover práticas sustentáveis e garantir o respeito à história e à cultura locais. Uma abordagem colaborativa e inclusiva, com diálogo contínuo com as comunidades envolvidas, é assim fundamental para garantir a autenticidade e integridade do rótulo.
Para que qualquer proposta sobre o sistema de certificação avance, porém, é essencial prever medidas que facilitem o acesso a ele por parte dos principais interessados, as populações tradicionais. Uma abordagem
Com um rótulo sensível aos seus modos culturais, essas comunidades não terão de ver suas tradições afetadas para se moldar a outras certificações
sistema agrícola kaaly abrangem mais de 78 espécies diferentes.
A multiplicação da pimenta ocorre de forma natural, quando os frutos caem nas áreas cultivadas na floresta, ou quando são consumidos por pássaros. As aves, ao espalharem as sementes pelo ambiente, contribuem para sua dispersão, introduzindo a pimenta em novas áreas. Além de promover a diversidade da planta, esse processo possibilita o surgimento de novas espécies de pimenta, à medida que os pés se desenvolvem, em um sistema que viabiliza a coevolução.
Sua certificação como produto da sociobioeconomia não só valorizaria a pimenta em si, mas também o método ancestral de cultivo e manejo que seu cultivo protege.
Os produtos dos guardiões da floresta, portanto, não seriam certificados só quanto a sua origem, mas também no que diz respeito a sua adesão às tradições. O selo acomodaria adaptações dessas tradições, desde que feitas de forma condizente com conhecimentos e práticas ancestrais.
Nesse âmbito, um dos desafios para estabelecer a certificação seria determinar a “porcentagem” de sabedoria ancestral requerida para obtê-la. Possíveis critérios seriam a profundidade do conhecimento
eficaz pode ser a adoção de um modelo participativo, envolvendo as comunidades locais, o que reduziria custos e promoveria a participação ativa no processo.
A tecnologia pode ser uma aliada, em especial em locais remotos. A implementação de plataformas online, softwares especializados e dispositivos móveis seria eficaz para coletar, gerenciar e documentar dados necessários à certificação. Ferramentas de comunicação virtual reduzem custos e aceleram auditorias, enquanto tecnologias como rastreamento e blockchain garantem transparência e autenticidade para o monitoramento de práticas de produção e distribuição.
Com um rótulo sensível aos seus modos culturais, essas comunidades não terão de ver suas tradições afetadas para se moldar a outras certificações. Sua identidade sairá fortalecida e terão a oportunidade de participar ativamente do cenário global. Isso permitirá a promoção do equilíbrio entre o progresso tecnológico, a preservação cultural e a proteção dos ecossistemas.
A promoção dos valores culturais dos guardiões carece, contudo, de financiamento próprio. Por isso, destaca-se a importância de iniciar a formação de um fundo
nacional para esse fim. Esse fundo serviria para centralizar os recursos para a causa e seria composto por contribuições de entidades governamentais, empresas privadas, organizações sem fins lucrativos e doações individuais. As diversas fontes de captação dariam uma base financeira robusta e sustentável para a implementação de iniciativas mais abrangentes e de longo prazo.
O financiamento deve adaptar-se a essas populações, e não o contrário. Essas comunidades, ricas em saberes e práticas, oferecem perspectivas valiosas sobre o que significa progredir e desenvolver-se. Ao fomentar a proteção cultural, o fundo também promoveria uma visão de desenvolvimento pautada pela conservação ambiental baseada em formas ancestrais de manejo sustentável.
Integrar essa sabedoria ao nosso cotidiano é responder ao chamado por uma nova economia, que vá além do simples ato de consumo. Com a certificação, podemos criar um nicho de mercado que reflita uma nova forma de ser e estar no planeta. Muito além de uma simples designação, o selo “guardiões da floresta” seria uma expressão genuína da parceria entre as comunidades e de um esforço coletivo para promover essa nova economia. O
ANDRÉ BANIWA, liderança do povo baniwa, atua como consultor em questões indígenas, que englobam empreendedorismo, economia indígena, educação intercultural, gestão territorial, associativismo, sustentabilidade, patrimônio cultural e qualidade de vida das populações indígenas.
RAIZZA MIRANDA, formada em engenharia, obteve o mestrado em pesquisa operacional pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) e Unifesp; dedica-se à abordagem da sociobioeconomia para populações tradicionais.
M. CARMEN N. BELDERRAIN, professora titular do ITA, atua nas áreas de métodos de estruturação de problemas, métodos multicritérios de apoio à decisão e gestão sistêmica.
ALEJANDRO OCHOA-ARIAS é diretor do Instituto de Gestão e Indústria da Universidade Austral do Chile e coordenador da Escola Latino-Americana de Pensamento e Design Sistêmico (Elapids).
TEREZA CRISTINA M. B. CARVALHO é professora associada da Escola Politécnica da USP, onde coordena o Laboratório de Sustentabilidade (LaSSu) e o Centro de Descarte e Reúso de Resíduos de Informática (Cedir).
CARLOS NOBRE é copresidente do Painel Científico para a Amazônia e pesquisador sênior do Núcleo de Estudos Avançados da USP.
ISMAEL NOBRE é diretor-executivo do Instituto Amazônia 4.0.
É historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Sua produção pode ser encontrada em daniela-blei.com/writing. Ela tuita esporadicamente em @tothelastpage.
Todos os anos, cerca de mil pessoas, em sua maioria não brancas, são assassinadas por policiais nos Estados Unidos. Quase nunca a polícia sofre sanções legais e a cobertura da mídia, quando há, não costuma ultrapassar os limites da comunidade onde a morte ocorreu.
Desmond Ang, especialista em economia aplicada e professor de políticas públicas da Faculdade de Governo Kennedy da Universidade Harvard, estuda os assassinatos cometidos pela polícia dentro de um projeto mais amplo que analisa as causas e consequências da discriminação racial. Ele trabalhou com Jonathan Tebes, economista da Universidade Notre Dame, para entender como essa violência afeta o engajamento cívico.
Crimes dessa natureza geralmente produzem manifestações de repúdio da população contra injustiças ou discriminação. Ang e Tebes esperavam uma redução no comparecimento às urnas por causa desses confrontos com o sistema da justiça criminal. As
pessoas poderiam pensar: “Não tenho nenhum motivo para votar porque o sistema foi criado para agir contra pessoas como eu”. Mas a pesquisa mostrou o oposto. A violência policial levou a um aumento no alistamento e comparecimento de eleitores negros e hispânicos.
Cientistas políticos já demonstraram que a agressividade policial causou as maiores revoltas urbanas do país desde a década de 1960, depois dos espancamentos de Marquette Frye e Rodney King em Los Angeles, a morte de Michael Brown em Ferguson e a de George Floyd em Minneapolis. Sabe-se que manifestações contra o racismo são exacerbadas pela
violência policial; no entanto, pouco se sabe sobre como os assassinatos pela polícia afetam processos democráticos formais, como as eleições.
“Se você for preso, detido, ou estiver encarcerado, a probabilidade de votar é muito menor”, observa Ang. “Isso não acontece somente por causa da privação de direitos por condenação criminal. Essas circunstâncias parecem ter um efeito desmobilizador.”
Com dois conjuntos de dados extremamente detalhados, coletados em Los Angeles entre 2002 e 2010, foi possível mostrar as verdadeiras consequências da violência policial. O primeiro conjunto é de in-
formações sobre os incidentes, incluindo data e local onde cada assassinato ocorreu, a raça da vítima, se ela estava armada ou não, e outros fatos relevantes. O segundo é de dados públicos das eleições fornecidos pelo censo e agrupados por quarteirões, revelando como os eleitores votaram e quantos se alistaram; esse conjunto trazia ainda informações sobre raça, idade, filiação partidária, entre outras.
“Comparando as mudanças observadas na votação com quarteirões vizinhos, descobrimos que, pelo fato de estarem um pouco mais distantes, algumas pessoas poderiam não saber dos assassinatos ou não conheciam a pessoa assassinada”, diz Ang. Essa diferença permitiu criar um grupo de controle. Limitando-se a um determinado local, puderam comparar os cenários antes e depois, entre um grupo de pessoas que sabia do assassinato e um que não sabia. Os resultados mostraram que o engajamento cívico crescia quanto mais havia pessoas negras e hispânicas alistadas. Nenhum efeito similar foi observado em locais com predominância de moradores brancos ou asiáticos.
Afunilando mais os dados, os estudiosos analisaram como as respostas da comunidade variavam segundo as circunstâncias do assassinato. Eles observaram que os efeitos eram ainda maiores quando a vítima estava desarmada. Ainda seguindo os quarteirões, os pesquisadores analisaram o apoio
positivo ou negativo para diferentes proposições e descobriram um aumento significativo no apoio às reformas da justiça criminal depois do assassinato de pessoas desarmadas.
“A contribuição dos autores é uma pequena centelha de esperança para o que talvez fosse um trágico conjunto de ocorrências”, avalia Adriane Fresh, professora de ciências políticas da Universidade Duke. “Embora algumas pessoas ainda possam ser desmobilizadas do engajamento cívico por causa dos assassinatos por policiais, esse movimento é contido por aqueles que procuram uma possível solução política para o uso da força pelo Estado. O fato de essas pessoas serem negras e hispânicas, talvez com menor probabilidade de se engajarem politicamente, mostra que um novo grupo está entrando na arena política. Esse engajamento pode ter consequências que vão além da política da justiça criminal.” O
Desmond Ang e Jonathan Tebes, “Civic Responses to Police Violence”, American Political Science Review, jun.23, disponível online.
Jornalista, escreve sobre negócios, finanças e pesquisas acadêmicas. Mora em Nova York e pode ser encontrada no X como @cschoenberger.
Adesinformação se espalha rapidamente pelas redes sociais, afeta as eleições, gera insegurança e suscita uma pergunta: “É possível resolver esse problema em diferentes países?”.
Um grupo de acadêmicos de instituições do mundo
todo, incluindo a Google, resolveu estudar que aspectos levam as pessoas a acreditar em inverdades online e como fazer com que sejam mais seletivas quanto a confiar em notícias na internet.
O estudo analisou a probabilidade de indivíduos acreditarem em informações falsas sobre a covid-19 em 16 países: Reino Unido, Brasil, Itália, África do Sul, Austrália, Estados Unidos, Espanha, Filipinas, Argentina, México, Rússia, Egito, Nigéria, China, Arábia Saudita e Índia.
“Em todos participantes com um estilo cognitivo mais analítico e mais motivados pela precisão foram mais bem-sucedidos em separar o verdadeiro do falso”, escrevem os autores. “A valorização da democracia também aparece associada a maior discernimento, enquanto a visão de que responsabilidade individual vem acima do apoio ao governo se associa negativamente à percepção da verdade, na maioria dos países.”
Os pesquisadores testaram várias intervenções para combater a desinformação.
“Induzir as pessoas sutilmente a pensar sobre precisão teve, em geral, um efeito positivo sobre a veracidade das notícias que elas estavam dispostas a compartilhar. Dicas mínimas de alfabetização digital tiveram igual efeito.”
A pesquisa realizada em 2021 teve uma amostra de 2.000 pessoas com contas ativas nas mídias sociais, em cada país. Os participantes foram apresentados a 20 manchetes sobre a covid-19, metade verdadeiras, metade falsas. Em seguida, cada um devia dizer se considerava a manchete verdadeira ou qual a probabilidade de compartilhar o artigo. Parte dos participantes foi exposta,
antes a uma manchete não relacionada ao assunto. Outro grupo recebeu uma série de dicas sobre alfabetização digital desenvolvidas originalmente pelo Facebook.
Embora algumas pessoas tivessem dificuldade de afirmar qual manchete era verdadeira, em grupo se saíam melhor. Segundo os pesquisadores, a somatória da pontuação dos participantes não especialistas “permitiu separar as manchetes falsas das verdadeiras com alta precisão em todos os países graças à ‘sabedoria das multidões’”.
Os pesquisadores estavam interessados na desinformação devido às graves consequências para a saúde pública de conteúdo online desaconselhando a vacinação contra a covid-19, observa David Rand, coautor do estudo e professor de ciência da gestão e cérebro e ciências cognitivas do MIT.
“Nossos dados, confirmados por vários outros estudos, sugerem que as pessoas não são tão suscetíveis à desinformação”, salienta Rand. “Ou seja, a maioria delas não acredita na maior parte das
notícias falsas. No entanto, a simples exposição a elas pode aumentar sua plausibilidade. Por isso é tão importante evitar sua disseminação.”
Outro resultado interessante da pesquisa foi a similaridade de comportamentos observados em diferentes países e culturas do mundo. Segundo os pesquisadores, “padrões consistentes sugerem que os fatores psicológicos inerentes à questão da desinformação são similares em diferentes regiões e que soluções parecidas podem ser eficazes em grande escala”. O resultado foi surpreendente, pois eles esperavam variações regionais, observa Rand.
“Em certo sentido, o principal resultado do artigo foi mostrar que a psicologia de crer e espalhar desinformação foi muito similar nos 16 países estudados. O pensamento crítico e a predisposição à verdade, por exemplo, foram consistentemente associados à menor crença em notícias falsas. Além disso, todas as intervenções que testamos foram, de modo geral, eficazes em todos os países.”
O artigo é importante porque, diferentemente de muitos estudos, testa várias formas de combater a desinformação online no mundo todo, avalia Brendan Nyhan, professor do governo no Dartmouth College e conhecido crítico da desinformação e propaganda política. “É encorajador saber que muitas dessas descobertas se generalizam além dos Estados Unidos, onde a base de evidências é mais forte.”
Andrew Guess, professor de política e relações públicas em Princeton, diz que o artigo é importante porque demonstra de forma conclusiva que os mecanismos psicológicos subjacentes à crença e engajamento na desinformação espalhada pelas mídias sociais são similares no mundo todo”. O mesmo vale, ressalta, para as reações mais promissoras a estímulos de atenção, dicas de alfabetização em mídias digitais e respostas colaborativas – “o que é uma boa notícia para as plataformas que procuram ampliar o alcance de suas soluções”. O Antonio A. Arechar, Jennifer Allen, Adam J. Berinsky, Rocky Cole, Ziv Epstein, Kiran Garimella, Andrew Gully, Jackson G. Lu, Robert M. Ross, Michael N. Stagnaro, Yunhao Zhang, Gordon Pennycook, David G. Rand, “Understanding and Combatting Misinformation Across 16 Countries on Six Continents,” Nature Human Behaviour, vol. 7, setembro 2023.
DESENVOLVIMENTO ORGANIZACIONAL
Melhorando sistemas de saúde
POR CHANA R. SCHOENBERGER
Por que os indicadores de saúde de países em desenvolvimento não melhoram, apesar de todos os financiamentos externos que
seus sistemas recebem? E que garantias os doadores têm de que os recursos investidos estão sendo bem empregados?
Um estudo recente realizado na República Democrática do Congo (RDC) analisa uma possível solução: um programa que fortaleça os mecanismos de governança nos centros de saúde, fornecendo incentivos para atingir resultados, auditando as unidades para garantir dados corretos e fornecendo feedback às equipes delas.
Embora os indicadores de saúde infantil em países de baixa renda tenham melhorado nas últimas três décadas, os recém-nascidos e crianças menores ainda enfrentam grandes dificuldades, principalmente na África subsaariana. Recursos provenientes de ONGs e de governos estrangeiros têm ajudado, mas os resultados não foram os esperados.
Os autores – Anicet A. Fangwa, professor de estratégia e organização da Faculdade de Administração Desautels da Universidade McGill, Caroline Flammer, professora de relações públicas e internacionais e do clima na Universidade Columbia, Marieke Huysentruyt, professora associada, e Bertrand V. Quélin, professor titular de estratégia e políticas de gestão, ambos da Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris – afirmam que os desafios de tratar pacientes em países em desenvolvimento “são difíceis de resolver porque uma grande parte dos serviços de atendimento nesses países é oferecida por centros sem fins lucrativos que, muitas vezes, não têm estrutura de governança eficiente, saber organizacional e treinamento adequado. Acreditamos que, se oferecermos incentivos basea-
dos no desempenho, auditoria e feedback, teremos condições de superar esses obstáculos”.
Atrelar os financiamentos destinados aos centros de saúde ao cumprimento de metas pode parecer razoável, mas, muitas vezes, não funciona por si só. O grupo acredita que “oferecer somente financiamento baseado em desempenho provavelmente não é eficiente se os funcionários das ONGs não tiverem o conhecimento necessário para melhorar as operações da organização e pode ser ainda pior se eles se sentirem sobrecarregados pelas metas”.
A ideia dos pesquisadores era determinar se seria possível melhorar o desempenho utilizando incentivos. Segundo eles, “feedback somado a incentivos para agir a partir dele a fim de atingir determinadas metas de saúde [...] ajuda a reduzir a lacuna de conhecimento que poderia prejudicar incentivos baseados em desempenho”. A auditoria “ajuda a garantir que a informação que subsidia o feedback seja confiável. Este é um pré-requisito para que ele seja eficiente”.
O estudo utilizou dados coletados pelo Banco Mundial em 2017 em mil centros de atendimento básico de saúde na RDC. Todos receberam financiamento do programa e metade deles, selecionada aleatoriamente, recebeu incentivos de desempenho, auditoria e feedback. Nesses centros, o número de serviços fornecidos por funcionário aumentou e o número de natimortos e de mortes neonatais diminuiu.
“Os resultados mostram que a intervenção melhora a eficiência operacional dos centros de saúde e aprimora a qualidade dos serviços”, afirmam os autores da pesquisa.
Nas entrevistas sobre o impacto do programa no funcionamento dos centros de saúde onde trabalhavam, os participantes disseram aos pesquisadores que “um desafio central é a falta de treinamento adequado e saber organizacional. As rodadas trimestrais de feedback – combinadas com incentivos para agir a partir dele para alcançar metas – foram consideradas essenciais para produzir mudanças palpáveis que acabaram se traduzindo em mais eficiência e melhor qualidade de serviços”.
Os resultados não foram os mesmos nos centros de saúde que receberam somente financiamento. “Essa questão não é só importante do ponto de vista social, mas também da perspectiva de implementação e política. Percebemos que o subsídio não substitui o tratamento da governança. Os centros de saúde que só receberam recursos expandiram sua atuação, mas não mostraram melhorias na eficiência operacional ou nos indicadores de saúde.” Esse resultado mostra que os financiadores precisam se envolver mais nas ações dos centros de saúde que financiam.
As conclusões do artigo deveriam ser aplicadas a outras regiões, observa Flammer. “Embora o estudo trate especificamente da República Democrática do Congo, os insights e as recomendações, provavelmente, também serão relevantes para o setor de saúde sem fins lucrativos de outros países de baixa renda.” O
Acadêmico e ativista revê a história dos movimentos negros em prol de uma política de dor, alegria e cuidado
POR GERALDINE MUKUMBI
Fotos e vídeos de pessoas negras mortas pela polícia se tornaram ubíquos nas mídias sociais. Essa proliferação pública da dor negra ampliou a reflexão acerca do que significa testemunhar a violência sem perder a capacidade de imaginar um futuro que não seja não marcado por tal brutalidade.
Em To Build a Black Future: The Radical Politics of Joy, Pain, and Care [Construir um futuro negro: a política radical de alegria, dor e cuidado, ainda sem tradução no Brasil], o acadêmico e ativista Christopher Paul Harris argumenta que, para criar esse porvir, precisamos reconhecer “a dor negra, exaltar a alegria negra e praticar uma ética de cuidado radicalmente inclusiva”. Para Harris, o cuidado é uma “força contracivilizacional, que nos empurra para longe das relações sociais capitalistas e liberais”. É, em outras palavras, uma maneira de olhar para as pessoas não como peões, mas como humanos com uma dignidade a respeitar.
À primeira vista, basear-se na dor, na alegria e no cuidado para especular sobre um futuro negro pode parecer abstrato – e até pouco sério. No entanto, a força do livro reside em como ele situa esses componentes em momentos culturais específicos e em tradições negras que configuram uma crítica ao capitalismo e à antinegritude. Harris repassa o trabalho de ativistas e organizações para demonstrar as formas que esses três fatores assumem e que, mais recentemente, se materializaram na era do #BlackLivesMatter, em particular no Movement for Black Lives (M4BL, movimento por vidas
negras), uma vasta rede de entidades, ativistas e trabalhadores culturais comprometidos com a extinção de todas as instituições racistas e em prol de uma abordagem anticapitalista para a libertação do povo negro.
Harris é professor assistente de estudos globais e internacionais na Universidade da Califórnia em Irvine, tendo sido antes organizador de base no grupo de advocacy Black Youth Project 100 (BYP100). Essa experiência no campo fundamenta sua teoria de uma “política do despertar” (politics of the wake), que ele define como uma “estratégia emergente que marca os contornos da conjuntura atual do desenvolvimento político negro” rumo à abolição de todos os sistemas de opressão, de prisões a vigilância tecnológica.
Uma “política do despertar” requer que as pessoas “habitem de forma consciente o pleno estado de antinegritude e forjem novas maneiras de ver e agir que possam informar e reconstituir nossas práticas críticas, distanciando-as do traço histórico da escravidão e além, não só imaginando, mas conquistando um mundo diferente”. Isso exige um esforço deliberado de reconhecer o passado e aprender dele para, assim, dele se libertar. Não no sentido de apagar como séculos de escravidão e outras formas de
racismo moldaram a atual violência contra negros, mas de modo a que esse passado não impeça a alegria negra no futuro.
Harris evoca a tradição radical negra, termo que ele toma emprestado do cientista político Cedric Robinson. Em Marxismo negro (Perspectiva, 2023), Robinson o define como “o desenvolvimento contínuo de uma consciência coletiva impregnada das lutas históricas por libertação e motivada pelo senso compartilhado da obrigação de preservar o ser coletivo”.
O desenvolvimento contínuo de uma consciência coletiva é a ideia subjacente à premissa da política do despertar de Harris, uma vez que é o que une séculos de ativismo negro. Ela também representa a mudança de mentalidade que Harris discute – a de que há que reconhecer e habitar esse mundo estruturado pela antinegritude a fim de superar a violência sistêmica e cultural.
Harris também dialoga e reelabora o trabalho de outros pensadores, como Saidiya Hartman, Aimé Césaire e Frantz Fanon, a fim de demonstrar como militantes negros são a mais nova instância de uma tradição de protesto. Harris coloca o M4BL dentro da tradição radical negra para iluminar dois princípios dos movimentos: o protesto negro é historicamente um esforço coletivo que depende da produção de conhecimento como parte integrante do processo de sobrevivência negra. Ele vê o M4BL como a versão atual dessa tradição, ao afirmar que ele “criou o terreno ideológico para que as pessoas se movam de acordo com sua recusa [a ignorar a dor negra] e abracem, ao mesmo tempo que combatem, as contradições subjacentes à vivência, pensamento e movimento negros”.
Em contraste com o academicismo tradicional, Harris busca suas referências na cultura negra – memes, música, artes visuais, festas e moda. Ele põe a tradição radical negra em operação ao valorizar esse conhecimento contra o descrédito histórico na produção negra.
Apesar da evidente reverência aos movimentos negros do passado, To Build a Black Future não se esquiva de apontar suas deficiências. Ele expõe cuidadosamente as contradições entre a busca da liberdade e ações que limitaram o acesso a essa liberdade para uma porção da população negra – mulheres, pessoas queer, de baixa renda ou com deficiência.
“O pensamento político negro sempre colocou os marginalizados no centro”, ele explica. “Mas o fez prioritariamente de forma paternalista, reproduzindo seu status marginal ao adotar e adaptar padrões ideológicos ocidentais que, no fim das contas, reforçam [hierarquias supremacistas] em vez de corrigir [essas hierarquias]”.
À guisa de exemplo, Harris descreve como a classe média negra adotou uma política de respeitabilidade – “a crença que educação e autoajuda eram caminhos para se tornar digno de cidadania” – em resposta à convicção paternalista da inferioridade negra manifesta no abolicionismo branco.
Para deslocar e alijar essa política, Harris eleva o trabalho de produtores de cultura historicamente excluídos das narrativas mainstream sobre o movimento pelos direitos civis.
A exclusão de determinadas pessoas negras no bojo de movimentos de libertação mais amplos traz ensinamentos para os que atuam por justiça e inclusão. Como fonte de reflexão, e como inspiração para quebrar nossa cumplicidade com isso, ele cita Audre Lorde, poeta e ativista negra, que, em um discurso de 1982 na Universidade Harvard, perguntou ao público “de que forma eu contribuo para a subjugação de qualquer parte desse que eu defino como meu povo?”.
A história crítica de Harris ilustra as contradições entre o que as comunidades pretendem e o que elas realmente fazem pelos mais marginalizados dentro delas. Como ele mostra, “o passado é ao mesmo tempo uma fonte de orgulho e uma fábula moral que deveria informar o crescimento do nosso presente e construir um futuro melhor e diferente”. Ao estudar esse passado e suas contradições, torna-se essencial criar uma ética do cuidado que possa definir um futuro negro para todas as pessoas negras.
O aspecto mais instigante da “política do despertar” é a análise que Harris faz da alegria negra, definindo-a como “um
sentimento e uma prática que visam criar espaços para discutir como, apesar da longa sombra da escravidão, todas as pessoas negras poderiam viver, deveriam viver e vivem e quais são os futuros possíveis que podemos construir”. Essa definição sublinha a impossibilidade aparente de uma alegria negra. No entanto, é do seio dessa história de dor e morte que esta emerge.
De fato, Harris argumenta que a “alegria negra não se dá a ler sem o reconhecimento da força limitadora da violência racial, em todas as suas formas”. A imparável e onipresente cultura antinegritude é o motivo pelo qual expressões da alegria negra – na música, na literatura, na arte e na mídia –são atos de rebelião, pois são formas ativas de presença em um ambiente hostil. Como ele sustenta, são “expressões da Presença Negra e [...] um prelúdio do futuro por vir”.
Ainda assim, se esse prelúdio de alegria forma uma trama tão intrincada com a dor, que tipos de alegria são possíveis para as pessoas negras? Talvez esse paradigma reflita o pragmatismo inerente a ser um historiador e militante. Mas é de pensar o que perdemos – que as pessoas negras perdem – com essa visão. Essa questão se relaciona a uma crítica mais ampla: o trabalho intelectual de criar uma política do despertar – tra-
balho interno necessário à compreensão da dinâmica entre a dor e a alegria negras – não está plenamente mapeado para os leitores. A meu ver, isso advém do foco do livro na disciplina histórica. Em consequência, a ênfase de Harris no desenvolvimento de uma consciência crítica não se desenvolve por completo, o que limita sua persuasão.
Em última análise, To Build a Black Future é a conversa de Harris com pessoas negras sobre pessoas negras trabalhando pela resistência e pela alegria. Ele convoca a transpor os sistemas capitalistas por uma ética do cuidado.
“Apelos à empatia e ao reconhecimento dentro do atual estado de coisas não vão nos salvar”, adverte. “Em vez disso, o legado histórico e espacial da antinegritude deve ser desfeito, o que requer o desejo coletivo de abolir todos os seus vestígios e, em seu lugar, reconstituir a comunidade.”
O argumento é lindamente incisivo. Um futuro negro virá se estivermos dispostos a desmantelar sistemas de opressão usando todas as ferramentas a nosso dispor, incluindo nossa dor e nossa alegria. O
GERALDINE MUKUMBI é uma pedagoga nascida no Zimbábue. Atualmente é doutoranda em estudos curriculares e ensino de professores na Escola de Educação de Stanford.
Democracia para quem? compila as palestras proferidas por Angela Davis, Patricia Hill Collins e Silvia Federici durante o seminário “Democracia em Colapso?”, organizado pelo Sesc São Paulo e pela Boitempo em outubro de 2019.
O livro oferece reflexões sobre capitalismo, racismo, desigualdade social e ecologia. Davis aborda a luta histórica das mulheres negras pela democracia, da qual é figura central; Collins enfatiza o conceito da interseccionalidade da liberdade, seu tema principal; e Federici, italiana conhecida pelos textos sobre a exploração do trabalho feminino, observa a resistência das mulheres na defesa dos bens comuns. Colaboram Adriana Ferreira Silva, Bianca Santana, Eliane Dias, Raquel Barreto e Winnie Bueno, que participaram do evento de 2019.
Segundo dados do ano passado divulgados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, em média, quatro mulheres ao dia foram vítimas de feminicídio no Brasil. Ainda em 2023, a Central de Atendimento à Mulher do governo federal recebeu quase 75 mil denúncias de violência pelo 180. A Tamo Juntas é uma das entidades que tentam fazer frente a essas alarmantes estatísticas. A organização age em diversas frentes para prevenir e enfrentar a violência contra a mulher e suas consequências. Em atuação desde 2016, a Tamo Juntas oferece atendimento sociojurídico e psicológico, mutirões de atendimento, advocacia feminista pela efetividade da Lei Maria da Penha e educação jurídica popular feminista. Mais recentemente, expandiu seus canais de atendimento via WhatsApp e deu início ao projeto Porta de Saída, voltado para egressas do sistema prisional. Saiba mais sobre o trabalho da Tamo Juntas e como apoiar a causa em tamojuntas.org.br
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