Ken Pucker, ex-diretor da Timberland, e outros debatem o fim da economia linear no setor de vestuário
A trama da moda circular


Samambaia.org é mantenedora da Stanford Social Innovation Review Brasil , que você folheia agora, porque ela sintetiza ideais que nos movem – o fortalecimento da democracia, a defesa da liberdade de expressão artística e acadêmica e os espaços voltados às múltiplas expressões culturais.


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sumário

26 Um círculo que não se fecha facilmente
Ken Pucker debate com Roland Geyer, Dominique Drakeford, Maxine Bédat e outros especialistas sobre as possibilidades da moda circular


52 Do fazer o bem ao ser bom: o movimento por responsabilidade social no terceiro setor
42 Os ODSs de volta ao caminho certo
Mundo afora, empresas falham para implementar objetivos da ONU. Como melhorar?
Hoje, espera-se que ONGs vão além de sua missão e adotem mais compromissos e valores. Isso está transformando o setor de modo surpreendente
“Quando as políticas econômicas beneficiam de modo desproporcional os que estão no topo, os demais se tornam mais propensos a achar que a democracia não os contempla.” — DE A OPEN
SEÇÕES
4 CARTA AO LEITOR
Tempo de mudanças
5 EDITORIAL BRASIL
Um novo ciclo
SSIR ONLINE
Povos tradicionais / Ainda a bioeconomia / Empreendedorismo / Mudar os sistemas
6 SSIR ONLINE

Moldando mercados / Colaboração / Antirracismo / O falso herói / Novas estratégias
8 O QUE HÁ DE NOVO
Mentoria para queers / Arquivando a história indígena / Abrigos como solução / Acelerando soluções de saúde para os LGBTQ+
HISTÓRIAS DO CAMPO
12 Uma ONG se decoloniza Como a OneVillage Partners deixou de ter programas liderados pela comunidade para ser uma organização conduzida por ela

POR ERIC KAWA
13 Um porto para se lançar à vida adulta Empreendimento social da First Light Hospitality oferece empregos, capacitação e diversão ao ar livre a jovens saídos do sistema de serviços sociais
POR ELIZABETH MACBRIDE
15 Invocando ouro líquido do ar A organização sem fins lucrativos Dar Si Hmad utiliza a antiga tecnologia de coletar neblina para lidar com a escassez de água no Marrocos
POR ATHARV AGRAWAL, WAJED NADINE EL-HALABI

E JINA YAZDANPANAH
18 ESTUDO DE CASO
A Open Society sob ameaça Após mais de três décadas de promoção da democracia liberal, a entidade filantrópica se vê na defensiva. É possível uma reestruturação estratégica e uma nova liderança virarem o jogo?
POR PAUL HOCKENOS
PONTO DE VISTA
59 A potência invisível do terceiro setor
Para que ele cresça, novas narrativas devem destacar, além do impacto, sua força econômica
POR LEONARDO LETELIER
61 O ESG em defesa de sua carteira
A administração dos acionistas deve priorizar os efeitos das empresas na economia e na carteira dos investidores
POR FREDERICK ALEXANDER
63 Classificando fundações sem sua permissão
Criamos a Foundation Practice
Rating para encorajar as fundações do Reino Unido a melhorar suas práticas
POR CAROLINE FIENNES
65 A visão de Deus sobre o ESG
A tecnologia de satélite pode mudar a divulgação de questões ambientais, sociais e padrões de governança


POR BEN FILEWOD, MURRAY COLLINS, SIMON DIKAU, ALEXIS MOYER E LUCA TASCHINI
67 PESQUISA
A filantropia corporativa da Índia / A mulher invisível / Política, valores e a transição verde
LIVROS
70 Desmontando o racismo à brasileira
Dispositivo de racialidade, de Sueli Carneiro
RESENHA DE BIANCA SANTANA
71 Vitrine
72 ÚLTIMO OLHAR
Além da comunidade
O Movimento Bem Maior existe para fortalecer
organizações sociais e impulsionar o ecossistema da filantropia






Trabalhamos por um Brasil mais doador.
Conheça o nosso trabalho!

movimentobemmaior
Movimento Bem Maior


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Carta ao leitor Tempo de mudanças
ESTA EDIÇÃO DA Stanford Social Innovation Review é o marco inicial de várias mudanças significativas. No número anterior, em que celebramos nosso 20o aniversário, anunciei que nosso publisher, Michael Voss, e o diretor de arte, David Herbick, estavam deixando a publicação. Agora eu tenho o prazer de anunciar Marcia Zellers como nossa nova publisher e David Armario como novo ocupante do cargo de diretor de arte.
Marcia Zellers começou a carreira dela no ramo de revistas. Foi gerente de marketing da Sassy, publicação voltada para garotas adolescentes, diretora de marketing na Spin (quando esta era a segunda maior revista de música no mundo, atrás apenas da Rolling Stone) e publisher da Reflex, também de música. Então, migrou para o mundo digital, como cofundadora da MTV Online, tendo liderado ali a joint venture da MTV com o Yahoo para criar um motor de buscas para música. Depois disso, entrou para a Warner Brothers na função de produtora-chefe do portal de entretenimento e serviço de streaming pioneiro.
Desde então, trabalhou no setor não lucrativo, como diretora do laboratório de conteúdo digital do American Film Institute, e no ensino superior, orientando alunos de marketing digital no Fashion Institute of Design and Merchandising. Nos últimos tempos, voltou ao setor rentável, no qual ocupou diferentes posições, como diretora de criação, de marca e de experiência do consumidor, diretora e presidente de agências de marketing digital, propaganda e branding.
Nosso novo diretor de arte, David Armario, tem uma longa e prestigiosa carreira em design de revistas. Ele foi o diretor de arte e de design da Discover, publicação mensal de ciência, tendo desenvolvido seu novo projeto gráfico. Desempenhou a mesma função na Men’s Journal, uma das mais populares revistas mensais do segmento masculino no país. Foi, ainda, diretor de criação da Los Angeles, revista mensal de estilo de vida, sendo também o responsável por redesenhar a publicação.
Recentemente, abriu seu próprio estúdio de design e direção de arte, David Armario Design. Ele é hoje diretor de arte de diversas revistas, como Stanford Medicine e Stanford Lawyer, e trabalha também com clientes corporativos, como as lojas de mobiliário e decoração Pottery Barn e Crate & Barrel e a grife de vestuário Eileen Fisher.
Ao longo de seus 20 anos, a SSIR teve três diretores de arte, e cada um deles deixou sua marca na publicação. No novo design, David deixou a revista mais arejada, com páginas mais agradáveis ao olhar e mais fáceis de ler. Ele deu um ar mais contemporâneo às seções fixas e tornou os artigos de destaque e o “Estudo de Caso” mais vibrantes e graficamente instigantes, com mais ilustrações e um layout mais criativo no geral. Esperamos que você goste.
O que não mudou na SSIR foi nossa missão. Continuamos comprometidos em ser uma plataforma na qual pessoas engajadas na mudança social em todos os setores – não lucrativo, governamental e rentável – e de todo o mundo possam se reunir para trocar novas ideias e práticas, criticar as existentes e, acima de tudo, aprender umas com as outras. – ERIC NEE
Diretora-geral Carolina Martinez carolina@ssir.com.br
Editora-chefe Francesca Angiolillo francesca@ssir.com.br
Editor-assistente Bruno Ascenso
Programador Web Daniel Miranda
Estagiária Bárbara Lopes da Silva
Mídias sociais Rafael Dias
Colaboraram nessa edição: Arte Estúdio Monearte
Tradução Aracy Mendes da Costa, Camilo Adorno, Cláudia Izu, Frank de Oliveira, Saulo Krieger
Revisão Mauro de Barros
Conselho Editorial
Daniela Pinheiro
Eliane Trindade
Graciela Selaimen
Guilherme Coelho
Letícia Vidica
Marcos Paulo Lucca Silveira
Mantenedores Institucionais
Fundação José Luiz Egydio Setúbal
Humanitas360
Movimento Bem Maior
Samambaia Filantropias
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R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 Pinheiros, São Paulo – SP, 05415-030
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Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review
Publisher Marcia Zellers
Editor-Chefe Eric Nee
Editora acadêmica Johanna Mair
Editores David V. Johnson, Bryan Maygers, Marcie Bianco, Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride
Editora edições Jenifer Morgan globais
Conselho Consultivo Acadêmico
Paola Perez-Aleman, Universidade McGill
Josh Cohen, Universidade Stanford
Alnoor Ebrahim, Universidade Tufts
Marshall Ganz, Universidade Harvard
Chip Heath, Universidade Stanford

Andrew Hoffman, Universidade de Michigan
Dean Karlan, Universidade Yale
Anita McGahan, Universidade de Toronto
Lynn Meskell, Universidade Stanford
Len Ortolano, Universidade Stanford
Francie Ostrower, Universidade do Texas
Anne Claire Pache, Essec Business School
Woody Powell, Universidade Stanford
Rob Reich, Universidade Stanford
A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Universidade Stanford.
Todos os direitos reservados.
Editorial Brasil Um novo ciclo
ASSIM COMO este número foi o responsável por introduzir, na Stanford Social Innovation Review, uma série de mudanças, ressaltadas por seu editor-chefe, Eric Nee, também para nós, representantes da revista no Brasil, ele se coloca como um marco.
A SSIR Brasil iniciou suas atividades online em fevereiro de 2022. Em setembro – ou seja, há um ano –, ganhou sua versão impressa, trimestral. Durante todo esse primeiro ciclo, Ana Cláudia Ferrari foi a responsável editorial pela publicação no país. Em uma dessas coincidências, bem quando a revista entra em seu segundo ano, com este número 5, Ana deixa o posto. Ela continuará, contudo, oferecendo sua dedicação a projetos especiais.
Assumo com honra a enorme responsabilidade de continuar o trabalho que ela iniciou. Deixo aqui um agradecimento especial a Carolina Martinez, pela confiança, e à própria Ana, que, ao lado dela, generosamente me recebeu nessa transição.
Nosso dia a dia vai bem além da seleção e edição dos conteúdos do site e dos números trimestrais. Em constante troca com os editores da SSIR e com aqueles que, em outros cinco países, fazem suas versões da revista, pensamos, juntos, sobre a realidade global.
Acontece que a realidade, como retratada na imprensa diária, da qual venho, é quase sempre árida; não são poucos os leitores dos grandes jornais que se queixam da falta de boas notícias. Sinto-me, portanto, afortunada por poder lidar, aqui, com a inteligência e a experiência de tantas pessoas empenhadas por uma sociedade melhor.
Neste segundo ano, desejamos que a revista contemple cada vez mais conteúdo nacional – como os artigos e vídeos exclusivos que publicamos recentemente em nosso site e que estão destacados no quadro ao lado.
Ainda nesse sentido, o número 5 traz, além dos principais artigos traduzidos da SSIR, contribuições nacionais de Leonardo Letelier, que chama a atenção para a importância de reconhecer a pujança econômica do terceiro setor, na seção “Ponto de Vista”, e de Bianca Santana, escrevendo sobre Dispositivo de racialidade, tese de doutorado de Sueli Carneiro, só agora disponível para o grande público, na seção “Livros”.
Sobretudo para que a publicação, em todos os seus meios e suportes, se firme cada vez mais como uma plataforma para qualificar o debate e inspirar mudanças no contexto brasileiro, contamos com você. Esperamos suas ideias, críticas e sugestões – bem como, é claro, propostas de artigos. – FRANCESCA ANGIOLILLO
SSIRonline
POVOS TRADICIONAIS
ARTIGO | “Uma bioeconomia para coevolução com a Amazônia”
Como evitar a armadilha do colonialismo tecnológico ao ajudar a Amazônia? A biodiversidade e a riqueza da floresta têm imenso potencial para o desenvolvimento econômico sustentável, mas é essencial praticá-lo de forma ética, inclusiva e respeitosa. É fundamental abrir espaço para o diálogo com as comunidades indígenas, unir sua cosmovisão com iniciativas que visem à valorização e à sustentabilidade de nossas florestas e fomentar a bioeconomia local. Neste artigo, André Baniwa, Raizza Miranda, M. Carmen N. Belderrain, Paulo Nobre, Tereza
C. B. Carvalho e Ismael Nobre defendem as vantagens de atuar em sintonia com os conhecimentos ancestrais e trazem exemplos de empreendimentos que já operam sob esse ponto de vista.
AINDA A BIOECONOMIA
VÍDEO | Conversa com autores Capa da segunda edição da SSIR Brasil, o artigo “Bioeconomia Inclusiva na Amazônia: Como Orquestrar a Economia da Floresta em Pé” mostra a importância, para o equilíbrio da região, de valorizar a sociobiodiversidade e de garantir às populações tradicionais o papel de protagonistas. Os pesquisadores José Augusto Lacerda Fernandes, Graziella Maria Comini e Juliana Rodrigues dialogaram com Cynthia María Villareal, do Tecnológico de Monterrey, no México, e Bruno Ascenso, editor-assistente da SSIR Brasil, sobre as oportunidades e dificuldades de adotar o caminho que defendem no artigo.
EMPREENDEDORISMO
ARTIGO | “A filantropia negra e o enfrentamento do racismo no Brasil” Políticas reparatórias para combater os efeitos do racismo, como ações afirmativas, têm se firmado no âmbito empresarial e da sociedade civil. Mas é preciso ir além e colocar os recursos nas mãos certas. Em texto escrito especialmente para publicação no nosso site em agosto, Mês da Filantropia Negra, Isabel Clavelin nos lembra que o alerta veio de Angela Davis: “Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Modificar o ecossistema filantrópico nacional, nesse sentido, significa estabelecer novos paradigmas de confiança e democratização de recursos em projetos voltados para negros e negras.
MUDAR OS SISTEMAS
VÍDEO | Webinar SSIR Brasil
O primeiro seminário online da SSIR Brasil se articulou em torno do artigo “Aprofundar as relações para mudar os sistemas”, publicado no nosso número 4. Sob a mediação de Carola Matarazzo, os autores do texto, Juanita Zerda, Katherine Milligan e John Kania, expuseram sua visão sobre o tema, assim como os convidados especiais Cássio Aoqui, Leila Rocha e Leila de Souza Netto. A íntegra está disponível no canal de YouTube da revista. O
SSIRonline
MOLDANDO MERCADOS
ARTIGO | A ferramenta ausente na luta contra a mudança climática

Chegou a hora de uma segunda onda de modelagem de mercado verde, escrevem Dai Ellis e Oliver Sabot. Os esforços de descarbonização têm se baseado nas principais políticas governamentais e no financiamento de “impulso”, enquanto os de financiamento criativo, que funcionaram em outros setores como a saúde global, são subexplorados. Os esforços privados de moldagem de mercado estimularam enormes avanços na acessibilidade dos medicamentos para tratar o HIV há 20 anos. Hoje, quase 30 milhões de pessoas estão em tratamento e os preços dos medicamentos caíram para menos de US$ 75 por paciente anualmente, por exemplo. É possível fazer o mesmo para a tecnologia sustentável?
COLABORAÇÃO
ARTIGO | Compartilhando açúcar
O que Alexis de Tocqueville admirou nos americanos e chamou de “associação” foi a capacidade dos cidadãos comuns de se unirem coletivamente em nome de uma causa ou problema. Esse espírito colaborativo inicial foi o ponto de partida para a governança sem fins lucrativos americana e molda as estratégias e plataformas de organização comunitária que temos até hoje. Mas será que o terceiro setor nos EUA não está se esquecendo de alguns dos principais ingredientes da cooperação que ajudaram a moldá-lo?
ANTIRRACISMO
ARTIGO | Filantropia transformadora para a justiça racial Como a filantropia pode ser transformadora sem nem ao menos combater o racismo presente entre financiadores e organizadores?
Em “Filantropia transformadora para a justiça racial”, Crystal Hayling, fundadora do Democracy Frontlines Fund, explica como criar uma mudança sistêmica que ajude a filantropia não só em suas causas, mas também no sentido de alterar, no bojo de sua atuação, comportamentos enraizados e perspectivas antiquadas. Os financiadores precisam entrar nesse espaço com humildade, reconhecendo que o privilégio e a supremacia branca permeiam o setor da filantropia e, então, perceber que precisam se educar no antirracismo.
Em números
US$ 10 trilhões até 2030
é a quantia necessária para preenchermos a lacuna ambiental
Menos de 0,1%
desse total necessário, abaixo de US$ 10 bilhões anuais, é o que se investe em filantropia climática nos EUA
O FALSO HERÓI
ARTIGO | A necessidade de mais narrativas de liderança inclusivas
Mesmo os mais bem-intencionados defensores da mudança social não podem deixar de ver que estamos cercados pela narrativa do herói. E, sem saber, continuam a recompensar o ganho individual sobre o coletivo. A noção prevalente do líder como um herói não vem do nada. Muitos indivíduos e organizações com poder posicional querem manter o status quo – enraizado no racismo, colonialismo, sexismo e outros “ismos” – de quem tem poder e de quem tem voz. Ainda que esses “heróis” possam mostrar resultados importantes, as métricas tradicionais não são as únicas formas de medir o sucesso.
NOVAS ESTRATÉGIAS
ARTIGO | Investir em advocacy é o caminho do investimento sustentável
Nos últimos 25 anos, proliferaram movimentos de investimento para tornar o capitalismo sustentável. No entanto, esses movimentos, por mais promissores que sejam, partem do princípio de que não há a necessidade de um trade-off entre retorno e impacto social e ambiental. Eles se baseiam na ideia de que investidores e empresas podem obter retorno financeiro enquanto resolvem nossos maiores problemas – que podemos “fazer o bem estando bem”. É necessária uma estratégia que una o investimento tradicional ao de impacto e o advocacy destinado a mudar as regulamentações econômicas.
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O QUE HÁ DE NOVO
Novas abordagens para a mudança social
sua autoestima e noção de pertencimento. A organização não tem uma sede física, mas desenvolve sua programação em espaços como parques e locais privados.
A missão do coletivo é realizada por meio de seu programa de mentoria da juventude LGBTQ+, que é o primeiro em Minnesota e um dos poucos (menos de dez) programas do tipo existentes no país.

Hangsleben se inspirou em seus primeiros anos de vida para o programa. “Minha mãe namorava mulheres quando eu era criança e cresci cercada por muita gente queer”, ela explica. “Então, quando saí do armário, já contava com essa ampla rede de apoio, o que tornou [esse processo] muito mais fácil.”
SERVIÇOS SOCIAIS
Mentoria para queers
O QUEERSPACE Collective, uma organização sem fins lucrativos, está criando um porto seguro para jovens LGBTQ+
Os LGBTQ+ dos Estados Unidos estão sob uma saraivada de ataques legislativos. Somente nos primeiros três meses de 2023, quase 400 leis anti-LGBTQ+ foram propostas em assembleias estaduais por todo o país, muitas delas tendo por alvo a juventude trans.
As estatísticas referentes à segurança e ao bem-estar da juventude LGBTQ+ refletem essa realidade sombria. A pesquisa nacional da The Trevor Project para 2022 sobre a saúde mental dessa parcela da sociedade registrou que quase metade dela “considerou seriamente” a ideia de tirar a própria vida. E, de acordo com a Aliança Nacional de Saúde Mental, os jovens LGBTQ+ “correm um risco 120% mais alto de passarem a integrar a população de rua – com frequência, como resultado da discriminação ou da rejeição na própria família com base na identidade de gênero ou na orientação sexual”.
O QUEERSPACE Collective se esforça para reverter essas estatísticas ao proporcionar uma rede e uma comunidade de apoio fortes à juventude LGBTQ+. Lançada em abril de 2021 por Nicki Hangsleben, uma ativista comunitária com experiência em desenvolvimento internacional, a organização sem fins lucrativos baseada em Minneapolis ajuda os jovens a cultivarem e desenvolverem
O modelo de mentoria inclui encontros a dois e em grupo. Os mentores são recrutados no boca a boca e em eventos comunitários.
A idade mínima é 25 anos; o coletivo dá treinamento, bem como apoio e recursos para que os mentores construam uma comunidade sua.
Cada mentor se encontra com seu mentorando duas ou três vezes por mês, geralmente na comunidade do aprendiz, para ajudá-lo a desenvolver autoconfiança e se sentir acolhido em seu próprio ambiente social. Os encontros cobrem um amplo leque de atividades, desde jogar videogames até visitar museus, e tratam, em geral, de construção da autoestima, do desenvolvimento de relacionamentos saudáveis e do trabalho para alcançar metas acadêmicas.
“[Nossos] estudos mostraram que os jovens LGBTQ+ que viviam em uma comunidade que os aceitava, que tinham acesso a espaços de afirmação LGBTQ+ e/ou que sentiam um forte apoio social da família e dos amigos registraram índices de tentativa de suicídios significativamente mais baixos no último ano”, diz Myeshia Price, diretora de pesquisa na ONG The Trevor Project. O coletivo começou com seis duplas de mentor-mentorando e agora conta com 34. Recrutou e treinou mais de 50 mentores e apoiou mais de 50 jovens.
No início, Hangsleben não imaginou que os jovens precisariam de tanta ajuda em saúde mental, nem que eles seriam em sua maioria esmagadora – mais de 85% – trans ou não conformantes de gênero. Ambos os fatores levaram o coletivo a corrigir a abordagem da mentoria. “Estamos fazendo mais treinamento com nossos mentores sobre técnicas de prevenção de suicídio e sobre como apoiar juridicamente os jovens LGBTQ+ nas escolas e em suas comunidades”, diz Hangsleben.
O coletivo é financiado por subvenções de fundações, contribuições corporativas e doações individuais. A Flip Phone Events, baseada em Minneapolis, que organiza brunches com shows de drag queens por todo o país, realizou diversos eventos para angariar fundos para o QUEERSPACE Collective e encaminhou à organização quase US$ 100 mil.
No ano passado, o coletivo lançou um programa de treinamento e consultoria em capacitação para a cultura LGBTQ+ destinado a organizações a serviço dos jovens, visando proporcionar espaços mais seguros e inclusivos. Ainda em 2022, trabalhou com a Associação Cristã de Moços, para ajudar na capacitação de mentores em acampamentos de verão; em abril, começou a trabalhar com a Best Buy para tornar seus Teen Tech Centers mais inclusivos para os LGBTQ+. O programa constituiu uma nova fonte de renda, de modo que a organização possa vir a subsidiar treinamentos para aqueles que não consigam pagar por eles.
Em janeiro, o QUEERSPACE Collective dobrou de tamanho, passando de quatro para oito funcionários. No entanto, Hangsleben olha com cautela o crescimento muito acelerado, pois quer evitar o esgotamento do pessoal e garantir a sustentabilidade da organização. Isso posto, ela sonha em expandir geograficamente seu alcance. Ela também acredita que o clima político em Minnesota – que se tornou recentemente um estado-refúgio para indivíduos trans que buscam cuidados médicos durante o processo de afirmação de gênero – vai dar ímpeto aos esforços da entidade para conquistar um espaço físico permanente. O
NOOR NOMAN é colunista de opinião da MSNBC e jornalista freelance baseado em Nova York. Cobre as editorias de cultura e política.
EDUCAÇÃO
Arquivando a história indígena
A Native Bound Unbound está documentando digitalmente a história há muito ignorada das populações indígenas escravizadas nas Américas
POR TIM KEARY
Para o historiador Estevan Rael-Gálvez, a história não é simplesmente um registro do passado. Ela nos permite aprender não apenas com os triunfos, mas também com as atrocidades humanas. A importância da história o inspirou a criar o Native Bound Unbound, um projeto de arquivo digital dedicado a documentar a vida de populações indígenas escravizadas nas Américas entre os séculos 15 e 19.
O tráfico de escravos começou em 1495, quando espanhóis capturaram 1.600 indígenas no Caribe. Esses nativos, entre eles crianças, foram embarcados para a Espanha para serem vendidos, ou “distribuídos” entre colonizadores.
A Native Bound Unbound tem suas origens em décadas de pesquisa histórica de Rael-Gálvez no México, norte do Novo México e sul do Colorado. Mas o projeto em si só foi estabelecido em janeiro de 2022, depois que sua ideia recebeu US$ 1,5 milhão da Andrew
W. Mellon Foundation, em dezembro de 2021. A sede do projeto é a Escola de Pesquisa Avançada, em Santa Fé, Novo México, da qual Rael-Gálvez é um dos diretores. O programa se encontra em fase inicial, com o historiador e cerca de 50 voluntários construindo um repositório centralizado de registros digitais sobre a vida de pessoas escravizadas, com base em materiais coletados em bibliotecas, museus e coleções particulares por todo o mundo.
“Em conjunto, esses documentos de arquivo e expressões culturais abrangem histórias indeléveis de pessoas, lugares, momentos no tempo que, quando reunidos, refletem uma história única, tanto da brutalidade sofrida quanto da resiliência daqueles que passaram pela escravidão”, diz Rael-Gálvez, que também atua como diretor-executivo e principal pesquisador do projeto.
Alguns voluntários estão processando materiais de fontes primárias e secundárias provenientes da América do Norte, América do Sul, Europa e do Caribe. Outros estão traduzindo e transcrevendo documentos em inglês, espanhol, português e francês. Um grupo de programadores voluntários está construindo o site por meio do qual pesquisadores, descendentes de populações indígenas escravizadas e o público em geral poderão acessar o repositório.
Guillaume Candela, professor de História Colonial LatinoAmericana na Universidade de Leeds, é consultor e pesquisador associado do projeto. Ele é responsável por processar fontes primárias produzidas no rio da Prata nos séculos 16 e 17.
Para Candela, a Native Bound Unbound visa mais que a simples preservação histórica. A iniciativa também identifica os povos indígenas como protagonistas de sua própria história. “Uma das grandes missões do projeto é desconstruir a colonialidade dos manuscritos do passado para destacar o [papel ativo] dos povos nativos das Américas ontem e hoje”, ele explica.
Na prática, isso implica analisar e interpretar fontes primárias para recontar eventos pela perspectiva das populações indígenas. Candela identificou mais de 700 figuras indígenas que haviam

“caído no esquecimento”. Cada perfil proporciona aos descendentes das comunidades nativas uma oportunidade de reconstruir sua própria identidade cultural e a história familiar – um conhecimento tradicionalmente restrito à história oral.
Candela observa que “a visibilidade ampliada e o acesso a essas histórias tornarão possível apresentar projetos educacionais e científicos de alto nível, além de beneficiar os descendentes dessas comunidades oprimidas e exploradas”.
A Mellon Foundation é a única financiadora da Native Bound Unbound. De acordo com Justin Garrett Moore, funcionário da Mellon, “a Native Bound Unbound tem o potencial de servir como ferramenta para que descendentes de indígenas americanos escravizados acessem a memória geracional e possam se ver refletidos na história e na esfera pública”.
Pesquisadores como o historiador Linford D. Fisher, da Universidade Brown, também salientam o foco crucial da Native Bound Unbound na história da escravização dos indígenas nas Américas. Trata-se de uma parte considerável “da história da escravidão que tem sido ocultada”, observa Fisher, uma vez que, segundo as estimativas, de 2 milhões a 5,5 milhões de americanos nativos foram escravizados entre 1492 e 1880.
O propósito final da Native Bound Unbound, diz Rael-Gálvez, é tornar-se um espaço cultural que permita “recuperar e compartilhar a história da escravização dos indígenas nas Américas a fim de dar destaque a uma narrativa menos conhecida que a do tráfico transatlântico de escravos, a qual teve impacto sobre milhões de africanos”. O
TIM KEARY é um jornalista e escritor freelance que aborda inovações tecnológicas e aspectos sociais.
CIDADES
Abrigos como solução
As habitações provisórias da DignityMoves fornecem apoio imediato a populações urbanas sem moradia
POR KATHY O. BROZEKDe San Francisco a Nova York, cidades por todos os Estados Unidos têm visto explodir o número de pessoas sem-teto. Em nível nacional, aproximadamente 30% delas – 171.521 de 582 mil pessoas – estão na Califórnia, segundo o Relatório Anual de Avaliação das Condições dos Moradores em Situação de Rua para 2022 do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos. O estado também registrou o maior aumento no número de pessoas em situação de rua, 6,2%, segundo estimativas de 2020; o aumento médio no país foi de 0,3%.
A escassez de habitações a preços acessíveis na Califórnia contribuiu para agravar a crise, com os sem-teto povoando as ruas em acampamentos vetados por lei. No entanto, leitos em abrigos administrados pelo governo permanecem sem uso, basicamente por apresentarem sérios problemas ligados a saúde e segurança.
Ao lado de outros integrantes da rede de liderança Young Presidents Organization, Elizabeth Funk acreditava que o setor privado podia agir mais rápido que o governo para abrigar os semteto. Funk havia integrado o quadro de diretores da LifeMoves,
uma agência de serviços para a população sem abrigo baseada no Vale do Silício. No fim de 2021, ela fundou a organização sem fins lucrativos DignityMoves, com a missão de enfrentar o desafio da população sem-teto com um modelo de habitação provisório: cabines autônomas de aproximadamente 6 m². Os residentes têm acesso a construções comunitárias para alimentação, equipamentos de banheiro e duchas, assim como a serviços de aconselhamento.
As cabines “oferecem um momento de estabilização até que os residentes possam seguir em frente”, diz Funk, que também é a CEO da DignityMoves. A entidade se vale majoritariamente de terrenos vazios pertencentes ao governo, de custo zero por certo período. “Usando modelos de construções de emergência e painéis pré-fabricados montados no local, conseguimos construir rapidamente, a baixo custo, e portanto em escala”, explica.”
A DignityMoves é uma organização de 12 pessoas, financiada por doadores privados, fundações, corporações e entidades governamentais. Em 2022, implementou projetos-piloto em três cidades da Califórnia: San Francisco, Santa Bárbara e Rohnert Park. Seu papel é administrar os projetos, supervisionando todas as entidades envolvidas na construção das casas.
San Francisco tinha aproximadamente 8.000 indivíduos em situação de rua em 2019. A DignityMoves ofereceu seu modelo de habitação à administração municipal em diversas ocasiões – sem resultado. Mas, enfim, a entidade ganhou tração no fim de 2021, por meio de uma parceria com a organização de concessão de subvenções Tipping Point Community, da Bay Area, que fez uma doação de US$ 1 milhão para o piloto. A Tipping Point tinha prestígio junto à administração municipal graças a sua iniciativa de moradia para pessoas em situação crônica de rua, que deu US$ 100 milhões em financiamentos para diversos projetos em San Francisco.
Em parceria com a DignityMoves, a cidade construiu, em apenas seis meses, uma comunidade de 70 casas no número 33 da Gough Street. Equipamentos para banheiro e duchas já existentes no local ajudaram a diminuir os custos de construção de cada residência para cerca de US$ 31 mil; a cidade absorveu ainda um custo anual de US$ 1,3 milhão, correspondente ao arrendamento já existente do terreno, de propriedade privada.
O piloto ajudou a resolver um gargalo na política para os semteto. “A DignityMoves tem o mérito de ter feito a cidade inovar com um modelo diferente, de construção rápida e sem custos significativos”, diz o supervisor Rafael Mandelman.
Em fevereiro de 2022, foi a vez de Santa Bárbara fazer uma parceria com a DignityMoves. Graças ao financiamento federal e doações privadas, 34 casas foram construídas no centro, a um custo individual de cerca de US$ 50 mil. Em março, após sete meses de operação, 44 pessoas tinham recebido habitação e serviços, 11 encontraram empregos e 9 se mudaram para residências estáveis.
O projeto foi tão bem-sucedido que o Quadro de Supervisores do Condado de Santa Bárbara aprovou recentemente uma comunidade da DignityMoves com 94 casas na cidade vizinha de Santa Maria, cuja entrega era prevista para agosto passado.
Outras 206 novas casas serão erguidas no condado, e uma campanha para levantar US$ 19 milhões foi posta em curso a fim de cobrir os custos das 300 construções. Na Bay Area, onde tudo começou, uma nova comunidade de 44 edificações na cidade de Alameda foi finalizada em maio.
A DignityMoves está se expandindo para outras localidades na Califórnia e fora do estado. Iniciativas que ainda serão anunciadas vão ajudá-la a impulsionar ainda mais seu modelo e a cumprir sua missão de pôr um fim à situação da população sem-teto. O

KATHY O. BROZEK é consultora para os setores de serviços financeiros e de impacto social e autora de The Transformation of American Agriculture [A transformação da agricultura dos Estados Unidos].
SAÚDE Acelerando
soluções de saúde para os LGBTQ+
Ambiciosa, iniciativa da UPenn alia inovação nos negócios a pesquisa sobre saúde para lidar com as desigualdades na saúde desse grupo
POR ABIGAIL LYNNPor muito tempo, a saúde da comunidade LGBTQ+ sofreu disparidades na comparação com o público em geral. Pesquisas mostraram que as pessoas LGBTQ+ têm saúde física e mental piores que a das populações heterossexual e cisgênero. Historicamente, perguntas sobre gênero e sexualidade ficaram de fora de formulários médicos; por conseguinte fornecer às pessoas LGBTQ+ os cuidados de que necessitam era um desafio. Além disso, a homofobia e a transfobia constituem barreiras adicionais para os cuidados com a saúde. Um relatório de 2022 do Center for American Progress constatou que mais de 20% dos indivíduos LGBTQ+ adiavam tratamentos devido à discriminação por parte dos fornecedores de cuidados nessa área.
Apresentado como um “inédito laboratório acadêmico, social e de empreendedorismo”, a Eidos LGBTQ+ Health Initiative é um projeto multidisciplinar da Escola de Enfermagem da Universidade da Pensilvânia (UPenn) que busca soluções para essas desigualdades. Lançada em janeiro de 2022, a Eidos foi concebida por José Bauermeister, professor e chefe do Departamento de Saúde Familiar e Comunitária da escola. Ele vê a Eidos como um eixo para parcerias entre acadêmicos, empresários, encarregados por políticas e prestadores da saúde.
A iniciativa convoca colaborações intersetoriais para ajudar projetos a sair do campo das ideias e ir para o mercado. Muitas escolas dispõem de núcleos de transferência de tecnologia que apoiam empreendimentos de negócios na faculdade, mas aqueles que trabalham com saúde LGBTQ+ requerem um apoio mais institucional. Da mesma forma, negócios que precisam de serviços de pesquisa e desenvolvimento podem fazer parcerias com a Eidos para ter acesso às mais recentes pesquisas sobre a saúde da população LGBTQ+ e à expertise na universidade. A UPenn forneceu o financiamento inicial da Eidos no âmbito de seus investimentos
voltados a terapias inovadoras, iniciativas relacionadas à saúde, engenharia de dados e ciência, uma linha de crédito que destina US$ 750 milhões para toda a universidade. O financiamento permitiu fazer parcerias e contratar 21 pessoas. Dezenas de faculdades nas 12 escolas da UPenn também estão filiadas ao laboratório.
Jessica Halem tornou-se diretora sênior da Eidos em junho de 2022, depois de ter sido a primeira diretora LGBTQ+ na Escola de Medicina de Harvard. Ela destaca o Slip, projeto de preservativos da Eidos, como um bom exemplo do potencial da iniciativa para ajudar uma ideia a se tornar comercial. O projeto começou no laboratório de Bauermeister em 2018, depois que ele e alguns colegas discutiram a queda no uso de camisinhas na comunidade LGBTQ+. Bauermeister convocou especialistas – Robert Carpick, expert em tribologia, campo que estuda a interação de superfícies em movimento; Shu Yang, cientista de materiais na Escola de Engenharia e Ciência Aplicada da UPenn; e a equipe do Centro de Pesquisa de Aids da universidade – para criar um preservativo lubrificado aperfeiçoado. O coletivo concluiu que o hidrogel deveria ser o material básico. “É muito biocompatível com o corpo”, diz Willey Lin, gerente do projeto na Escola de Enfermagem da UPenn. “Atualmente, é usado para tratar ferimentos e injetado no corpo como veículo para fármacos.”
Um aspecto importante é que o hidrogel pode receber carga de medicamentos como tenofovir, que previne e trata o HIV. A equipe criou e patenteou um protótipo com hidrogel.
Halem ambiciona estabelecer parcerias com qualquer um que tenha uma ideia para melhorar a vida das pessoas LGBTQ+.
Entre as atuais parcerias da Eidos está o trabalho com o Trace, um aplicativo construído por e para membros da comunidade transgênero para conectar usuários durante sua transição. A equipe do Trace planeja utilizar dados relacionados à saúde trans disponíveis por meio da Eidos para atrair investidores.
Bauermeister tem a esperança de que a Eidos “possa servir como um projeto para centros em outras universidades”, dedicados a questões sociais prementes. Dentro da própria UPenn, acrescenta, “o foco poderia estar na transformação da justiça racial, na instabilidade de moradia e na desigualdade de gênero”. O
HISTÓRIAS DO CAMPO Perfis de projetos inovadores
Uma ONG se decoloniza
Como a OneVillage Partners deixou de ter programas liderados pela comunidade para ser uma organização conduzida por ela
POR ERIC KAWASerra Leoa enfrentou desafios educacionais, sociais e econômicos após se tornar independente da Grã-Bretanha, em 1961 – entre os quais uma década de guerra civil, que terminou em 2002, e o maior surto de ebola da história, de 2014 a 2015. A taxa de pobreza é de 64%, a expectativa de vida é de 60 anos e a taxa de alfabetização na zona rural é de 48%. Só 16% da população tem acesso a saneamento básico e 2%, a água potável.

Depois da guerra, governos, ONGs e filantropos enviaram ajuda externa. Entre os grupos de auxílio estava a organização sem fins lucrativos OneVillage Partners. A entidade foi fundada pelo incorporador Jeff Hall em 2005, após uma visita a amigos que tinham sobrevivido ao conflito e viviam em campos para desalojados. Essas amizades remontam a 1987, quando Hall foi voluntário do Corpo da Paz numa região rural do leste do país.
A OneVillage Partners acredita que as parcerias comunitárias devem servir de base para enfrentar a pobreza de origem multifatorial. A organização oferece apoio financeiro e gestão de projetos para as comunidades, além de conectar líderes comunitários para que colaborem em desafios comuns. Os relacionamentos alicerçam os esforços da organização.
“O trabalho da OneVillage Partners se baseia na liderança comunitária e em perguntar às pessoas do que elas precisam e como podemos ajudá-las a melhorar suas vidas”, diz Jill LaLonde, diretora-executiva da organização.
FORMANDO LIDERANÇAS COMUNITÁRIAS
O trabalho da OneVillage Partners começa com uma convocação dos membros, pedindo-lhes que selecionem 12 residentes para representá-los em um grupo de ação comunitária (CAP, na sigla em inglês). Esses voluntários atuam como elo entre a comunidade e a equipe da OneVillage Partners, que, por sua vez, facilita o treinamento em gestão para o CAP e traz especialistas e parceiros para projetos conforme a necessidade.
Nas 32 comunidades com as quais a organização trabalhou, a prioridade eram as questões de água e saneamento. Cada comunidade elaborou um projeto para suas circunstâncias. Enquanto uma poderia reabilitar poços quebrados, outra exigiria novos. Uma poderia cobrar os usuários do poço por uso, enquanto outra tributaria toda a comunidade pelo acesso livre. Muitas construíram
renovar a clínica de saúde comunitária e a melhorar seus serviços para combater as altas taxas de mortalidade materna e infantil – dez crianças com até 5 anos, 1% da população local, haviam morrido em 2019.
A OneVillage Partners deu treinamento, apoio à liderança e uma doação para cobrir custos de construção – esta ficou a cargo da comunidade. Os voluntários também educaram os habitantes para a manutenção e a arrecadação de recursos para a propriedade comunal. Um ano depois, apenas duas crianças menores de 5 anos morreram. Momoh Musa, voluntário-líder do projeto, atribui a mudança ao aumento do número de grávidas que optam por dar à luz na clínica que tem “enfermeiras treinadas e qualificadas”.
A OneVillage Partners também se esforça para fortalecer a equidade de gênero. Por exemplo, o programa Nurturing
latrinas e educaram os moradores sobre a importância de usá-las e mantê-las.
Em 2022, segundo dados da OneVillage Partners, as comunidades que implementaram projetos de água e saneamento registraram redução média de 73% nos casos de doenças diarreicas. Em 2020, os voluntários do CAP na comunidade de Grima, no leste de Serra Leoa, criaram um projeto para
Opportunities for Women educa mulheres e famílias sobre como gerir sua renda e melhorar suas habilidades de negócios. Para substituir um currículo padrão que não estava dando bons resultados, a equipe da OneVillage Partners desenvolveu um novo programa de treinamento, com base apenas em imagens, que começa com uma aula sobre como segurar um lápis.
Apesar de a OneVillage Partners receber apoio de doadores individuais e angariar verbas, quase um quarto de seu financiamento vem de subsídios e de empresas, sendo que estas oferecem apoio por meio de patrocínio de eventos. O fato de seu financiamento ser, em grande parte, irrestrito é um dos motivos pelos quais a entidade consegue dar poder de decisão às comunidades.
dar o poder e aumentar a representatividade local, e como essa mudança poderia tornar o trabalho mais eficaz e sustentável.
Chad McCordic, diretor nacional da entidade, que mora em Serra Leoa, enfatizou que a organização queria não apenas pregar, mas também praticar a decolonização.
“É uma ótima maneira de olharmos para o poder implícito e explícito”, diz McCordic.
pelos serra-leoneses. Em nível operacional, isso significa contratar um diretor-executivo em Serra Leoa e promover uma transição do conselho de diretores com base majoritariamente nos EUA para um conselho global, voltado para o recrutamento de serra-leoneses. Até agora, o trabalho consistiu em preparar essas mudanças – e, mais importante, reorganizar a estrutura de liderança pessoal e alçar serra-leoneses a cargos de liderança.
Todos na OneVillage Partners admitem que ainda têm muito a aprender sobre a decolonização da organização. “Vamos cometer erros, e tudo bem”, diz LaLonde. “Mas o importante é aprendermos com eles.” O
Ao longo dos últimos nove anos, a Mortenson Family Foundation, com sede em Minnesota, concedeu financiamento irrestrito à OneVillage Partners. Danyelle O'Hara, que dirige a área de relacionamento com a comunidade na fundação, explica que o apoio longevo “se deve aos resultados que a OneVillage Partners tem obtido ao longo dos anos”, incluindo “a maneira como a capacidade local foi construída de forma real e tangível, a fim de edificar a infraestrutura comunitária e melhorar a vida da comunidade”.
MUDANÇA DE PODER
Hoje, a OneVillage Partners opera em 32 comunidades parceiras e oito chefias no leste de Serra Leoa. Há 53 funcionários no país e 4 nos Estados Unidos. A organização recentemente percebeu que os projetos liderados pela comunidade não eram equivalentes à liderança pela comunidade em nível organizacional. Enquanto as pessoas da zona rural de Serra Leoa estavam envolvidas na tomada de decisões programáticas, a sede da organização estava lotada nos Estados Unidos – inclusive a equipe de liderança e o conselho administrativo. Estes também são compostos majoritariamente por pessoas brancas e não são representativos das comunidades que atendem.
De acordo com LaLonde, o assassinato de George Floyd pela polícia em maio de 2020, em Minneapolis, foi um catalisador para que aprofundassem o debate sobre a justiça racial e o trabalho de desenvolvimento internacional. A equipe começou a se questionar, investigando quais mudanças estratégicas e operacionais poderiam ser feitas para mu-
“Também ajuda a explicar a doadores e apoiadores como e por que alguns dos desafios pelos quais passam as pessoas em Serra Leoa se devem à colonização e a seus efeitos.”
A mudança de poder também contou com a criação de um comitê de diversidade, equidade, inclusão e decolonização, a fim de ajudar o conselho administrativo e colaboradores a identificar e executar estratégias proativas em prol da representatividade. O comitê aborda temas como a estrutura de remuneração, a comunicação externa e a linguagem e a ética de viagens em grupo dos Estados Unidos para Serra Leoa.
Um marco neste trabalho foi a elaboração e adoção, pelo conselho administrativo, de um novo plano estratégico em 2022, o qual descreve a expansão programática, a liderança com significado, as mudanças estruturais e um compromisso renovado com os valores liderados pela comunidade. A OneVillage Partners tem planos de expandir seu programa em Serra Leoa e por meio de parcerias, nos próximos anos. Até 2022, a entidade trabalhava somente em um distrito. Até 2028, pretende estar presente todas as 15 províncias rurais do país. Será relevante, para essa expansão, identificar indivíduos e organizações comunitárias locais que trabalhem em busca de objetivos semelhantes e para encontrar formas de fortalecer o trabalho coletivo por meio de parcerias.
A nova estratégia também estabelece o compromisso de passar da atual estrutura de liderança para um comando centrado e direto. Especificamente, a OneVillage Partners busca mudar o poder para que a estratégia, as operações e os programas da organização sejam definidos e liderados
Empreendimento social da First Light Hospitality oferece empregos, capacitação e diversão ao ar livre a jovens saídos do sistema de serviços sociais
POR ELIZABETH MACBRIDETim tinha 4 ou 5 anos quando sua mãe ameaçou se jogar com ele de um penhasco. É uma de suas primeiras lembranças. “Às vezes, eu queria que ela fizesse aquilo”, diz. Ele fala com naturalidade sobre os detalhes horríveis de sua infância: as surras da mãe e dos namorados dela. Ou os três anos na adolescência, em que, sem lar, se refugiou em um parque em Sacramento, na Califórnia.
Em 2018, Tim vivia em um abrigo quando ouviu falar de um programa de estágio, operado pela First Light Hospitality, que atende jovens adultos fora do escopo de serviços sociais juvenis, mas que ainda precisam de apoio. Fundada por Brian Anderluh e Lee Zimmerman em 2002, a First Light consiste em duas pousadas de luxo localizadas nos arredores do Parque Nacional de Yosemite. O programa de estágio da empresa ajudou mais de 800 jovens como Tim, oferecendo-lhes empregos, aconselhamento, educação financeira e cursos de planejamento de vida, além de moradia.
A organização sem fins lucrativos percebeu que os projetos liderados pela comunidade não se igualavam à liderança comunitária em nível organizacional
Um porto para se lançar à vida adulta
Os jovens em transição para a vida autônoma são uma das populações mais difíceis de alcançar, porque a maioria dos serviços sociais são para pessoas de 18 anos ou menos. Aqueles que passaram por esse sistema muitas vezes carecem de apoio para se tornarem adultos autossuficientes.
O programa do First Light põe em prática achados recentes de pesquisas sociais sobre quais serviços, além do aconselhamento, ajudam as pessoas a se recuperarem de traumas complexos na infância. Ele inclui recompensas de pequeno valor, exercícios regulares e interações com adultos treinados em escuta aprofundada e empatia.
Para Tim, o First Light proporcionou um ambiente estável e estruturado, emprego e recreação ao ar livre, melhorando seu bem-estar. Depois do programa de quatro meses, Tim foi contratado por outra empresa de hospitalidade antes de retornar à First Light para um emprego em manutenção, em 2020. Dois anos depois, conseguiu uma vaga no Four Seasons em Jackson Hole, Wyoming, e agora está economizando para comprar uma casa. O programa, diz ele, não lhe deu apenas base financeira e moradia, mas também o ajudou a desenvolver confiança e coragem.
DESENVOLVENDO HABILIDADES PARA A VIDA
Anderluh e Zimmerman foram colegas de quarto durante o curso de administração em Stanford. Depois de se formar em 1994, Anderluh ingressou em uma startup que fracassou, enquanto Zimmerman entrou para uma organização sem fins lucrativos, a Juma Ventures, que atende jovens em situação de transição. Os dois queriam uma carreira com propósito, mas não desejavam gerir uma organização sem fins lucrativos.
Em 2000, eles tiveram a ideia de criar uma empresa rentável para empregar jovens como os da Juma Ventures, que tinham treinamento profissional, mas poucas perspectivas de emprego. O fundo de empreendimento social REDF fez uma doação de US$ 80 mil para desenvolverem um plano de negócios, ao longo de um ano. Escolheram a indústria da hospitalidade pelo potencial de altos lucros para subsidiar o programa e porque os empregos do setor exigiam envolvimento com funcionários, visitantes e outros jovens, fundamental para desenvolver habilidades sociais.
A First Light “não queria ser uma companhia hoteleira gigante”, diz Anderluh. “Queríamos mais.” Isso significava investir na empresa como um empreendimento social, reservando parte do lucro ao programa. Anderluh e Zimmerman sabiam que tinham de aceitar um crescimento mais lento.
No final de 2001, eles viram um anúncio de uma empresa hoteleira familiar vendendo 18 chalés e uma antiga pousada perto do Parque Nacional de Yosemite. Os prédios antigos, alguns do início de 1921, precisavam de reforma, mas o local oferecia um mercado turístico, e os empreendedores acharam que os jovens se beneficiariam do ambiente natural.

Levantaram fundos para comprar a propriedade em 2002, mantendo o nome de Evergreen Lodge. Naquele ano, já receberam turistas e lançaram o projeto com um funcionário e quatro jovens. Agora têm quatro funcionários gerenciando o programa, que custa cerca de US$ 300 mil por ano, pouco mais de 10% dos lucros da empresa.
Os aspirantes passam por duas rodadas de entrevistas. O programa procura pessoas dispostas a se comprometerem com a mudança, algo que pode ser difícil de identificar, reconhece Zimmerman. Para avaliar essa qualidade, os entrevistadores perguntam aos jovens quais são seus objetivos e se acreditam que o programa é adequado para eles. Alguns falam sobre o desejo de mudança, diz Matt Dunn, diretor de desenvolvimento juvenil.
Cerca de 50% dos jovens têm conexões com o sistema de adoção. Muitos vêm de programas vocacionais, como o Waterside Workshops em Berkeley e a Juma Ventures
e o Treasure Island Job Corps em San Francisco, ou de programas habitacionais.
A cada ano, são 50 estagiários, cerca de um sexto dos 300 funcionários. Eles ganham US$ 15 por hora e trabalham em várias funções, como atendente de restaurantes e camareira, na manutenção ou nas lojas dos hotéis.
“É uma experiência de trabalho real e está diretamente ligada às operações de negócios”, diz Marc Spencer, CEO da Juma Ventures e membro do conselho de administração da First Light. “Os jovens são essenciais para o sucesso do negócio e para as experiências dos hóspedes.”
Além de hospedagem e alimentação, o programa oferece sessões semanais de aconselhamento e excursões e auxilia os estagiários na abertura de contas bancárias, caso ainda não as possuam. Metade do salário deles é depositada em uma poupança, enquanto os outros 50% vão para uma conta-corrente. Quando a conta de um estagiário atinge US$ 2.000, o programa deposita outros US$ 1.000. Incentivos adicionais reforçam a lição de que o esforço compensa. Tim, por exemplo, foi o primeiro estagiário a completar 160 quilômetros de trilhas e ganhou US$ 100 em equipamento de caminhada.
Um componente crucial é a ajuda para construir relacionamentos com os funcionários contratados pelas pousadas, que são treinados para interagir com os estagiários. Por exemplo, eles são lembrados de não repreender os jovens e de manter longe deles substâncias que causam dependência, incluindo álcool. O programa oferece eventos sociais, como noites de cinema com pipoca, e os funcionários são
convidados a se juntar aos estagiários em aventuras ao ar livre. Ao final do programa, a First Light contrata cerca de um terço dos estagiários e ajuda os demais a conseguirem empregos em outros lugares.
Anderluh e Zimmerman não têm uma análise formal do programa. Embora inicialmente planejassem coletar estatísticas, não havia financiadores aos quais prestar contas e descobriram que o mero ato de coleta de dados criava contraincentivos.
“Estávamos contratando pessoas que sabíamos que poderíamos ajudar, para colocá-las em empregos depois. Isso é melhor para a estatística”, comenta Zimmerman.
“Mas executar um programa como esse exige correr alguns riscos, ou você não atinge as pessoas que realmente almeja, aquelas marginalizadas.”
OBSTÁCULOS DE CRESCIMENTO
A First Light adota uma abordagem mista, que combina um negócio com fins lucrativos a um empreendimento social. O seu sucesso desafia tanto o estereótipo de que uma empresa com fins lucrativos deve atingir resultados quanto a suposição de que
US$ 8,5 milhões dos US$ 12 milhões que levantaram nos primeiros dois anos. Os US$ 3,5 milhões restantes vieram de 30 investidores confortáveis com a empresa social.
Contudo, Anderluh e Zimmerman sabiam que ainda poderiam ter problemas para dar retorno aos investidores. Esse retorno costuma vir da venda de propriedade, o que, no caso deles, poderia encerrar efetivamente o programa para jovens. Em vez disso, devolveram o capital com os lucros do negócio. Ao longo de 20 anos, os investidores mais do que dobraram seu dinheiro – um pouco abaixo do que poderiam pelas taxas de retorno esperadas no mercado.
“Temos tido um retorno sólido, ao longo de um bom período”, diz Steve Zuckerman, executivo financeiro para organizações sem fins lucrativos e investidor inicial da First Light. Em 2016, Anderluh e Zimmerman construíram o Rush Creek Lodge, a 27 km do Evergreen. Gastaram US$ 50 milhões no projeto – dinheiro que veio de investidores, empréstimos e lucros. As duas propriedades somam mais de 16 hectares e abrigam 231 quartos, suítes e vilas – sendo 143 no Rush Creek e 88 no Evergreen.
Invocando ouro líquido do ar
A organização sem fins lucrativos Dar Si Hmad utiliza a antiga tecnologia de coletar neblina para lidar com a escassez de água no Marrocos
POR ATHARV AGRAWAL, WAJED NADINE EL-HALABI E JINA YAZDANPANAHNos picos enevoados da cordilheira do Anti-Atlas, no sudoeste do Marrocos, vivem os amazighs (“povo livre”), grupo cultural e étnico que compreende cerca de três quartos da população do país. Suas aldeias na província montanhosa de Sidi Ifni ficam social e geograficamente isoladas em uma região extremamente árida, com temperaturas e desertificação crescentes.
uma empresa social não pode gerar lucro. “Desde o início, foi um experimento para ver se poderíamos introduzir ideias de empreendedorismo social em um ambiente com fins lucrativos”, diz Melinda Tuan, integrante do conselho da First Light.
No começo, foi um desafio descobrir como financiar a empresa rentável e o programa social dependente dela. Empréstimos bancários são fontes tradicionais de capital para empresas com fins lucrativos, mas os agentes de crédito duvidavam da capacidade da empresa de sobreviver com um programa social drenando os seus lucros.
Após dois anos enfrentando esse ceticismo, Anderluh e Zimmerman decidiram ocultar o custo do programa na linha de itens administrativos gerais. A margem de lucro deles ainda era alta o suficiente para que pudessem pedir empréstimos governamentais e bancários – que somaram cerca de
Num período de três a cinco anos, Anderluh e Zimmerman esperam acrescentar à rede mais duas pousadas perto de Yosemite e expandir proporcionalmente o programa para jovens. Zimmerman diz que o modelo de negócios deles pode funcionar em outras empresas de hospitalidade, se os proprietários e investidores estiverem dispostos a sacrificar parte dos lucros.
Os cofundadores também observam que o que eles fizeram demonstra que as empresas têm um papel na criação de soluções para os problemas sociais mais difíceis.
“Toda empresa deveria procurar ter sucesso para desfrutar da oportunidade, incrivelmente gratificante e importante, de construir uma sociedade mais gentil, justa e solidária”, diz Zimmerman. O
O maior desafio ambiental da região tem sido a escassez de água devido ao declínio das chuvas. Os amazighs, cuja subsistência depende da agricultura e da pecuária, sempre percorreram longas distâncias até poços e cisternas familiares. Em períodos de seca, tiveram de comprar água a preços altos ou andar até distantes comunas rurais para obtê-la. A escassez prejudica a economia local, fazendo com que homens em idade de trabalhar partam, enfraquecendo as estruturas sociais e a cultura amazigh.
Aissa Derhem, um amazigh de Taloust, conheceu a coleta de neblina nos anos 1980, quando cursava seu doutorado em matemática na Universidade Laval, em Quebec, no Canadá. Essa prática para obter água existe desde pelo menos o período romano. A tecnologia moderna usa os chamados grandes coletores de neblina (LFCs, na sigla em inglês), feitos com uma rede de malha que retém a neblina por condensação. A água adere à rede, corre para o fundo dos LFCs e é levada a um reservatório para armazenamento e distribuição.
Derhem percebeu que essa tecnologia poderia ajudar comunidades como a dele, especialmente porque a neblina era abundante no topo das montanhas do Anti-Atlas. Mas só quando voltou para o Marrocos, no início dos anos 2000, depois de lecionar na Universidade Laval, foi atrás da ideia.
“Executar um programa como esse requer correr alguns riscos, ou você não alcançará as pessoas que almeja”
HISTÓRIAS DO CAMPO
Em 2006, procurou Robert Schemenauer, cofundador da ONG canadense FogQuest, que projeta e implementa tecnologia de coleta de neblina para comunidades rurais de países em desenvolvimento. Schemenauer o pôs em contato com uma equipe de especialistas e estudiosos da FogQuest da Universidade de La Laguna, em Tenerife, Espanha, para avaliar o potencial de coleta de neblina no monte Boutmezguida. Seu cume está idealmente exposto ao nevoeiro, que vai para o interior a partir da costa, e sua altura fornece abrigo natural para as redes de neblina.
Após quatro anos estudando o potencial das montanhas, em 2010, Derhem e sua esposa, a antropóloga e ativista Jamila Bargach, fundaram a Dar Si Hmad (DSH), organização sem fins lucrativos de coleta de neblina e cadeia de abastecimento de água que atende ao povo amazigh. Bargach lecionou na Escola Nacional de Arquitetura na capital marroquina, Rabat, e foi uma das fundadoras de um abrigo para mulheres em Casablanca. Ela foi responsável por formalizar as operações da DSH, inclusive elaborando uma estratégia de arrecadação de fundos e a condução de pesquisas demográficas básicas.
“Quando falo da organização, não consigo separá-la da minha vida pessoal”, diz Bargach. “Sempre que conto essa história, é quase uma experiência religiosa ou espiritual para mim. Durante anos, todos os dias a neblina estava à nossa mesa de jantar.”
Desde que foi fundada, a DSH instalou 1.700 m2 de redes de coleta de neblina no cume do Boutmezguida, canalizando água para as casas de 16 aldeias da região. Hoje, é o maior projeto de coleta de neblina do mundo.
O EFEITO LÍQUIDO
A DSH lançou seu piloto em 2011, em colaboração com a FogQuest, para avaliar a adequação da rede e a produção de água na região do Anti-Atlas. Embora a produção tenha sido positiva, a recepção inicial dos aldeões não foi. Eles desconfiavam da tecnologia estrangeira. Em testes, ficou claro que eles também tiveram especial dificuldade para gerenciar as necessidades de várias famílias por meio de uma torneira comunitária. Em resposta a isso, a DSH redesenhou o abastecimento para levar a água a cada casa.
Entre 2012 e 2015, a DSH recebeu apoio financeiro do fundo de desenvolvimento da fundação alemã Munich Re. Em 2017, a
As redes CloudFisher ficam no topo do monte Boutmezguida, na província de Sidi Ifni, Marrocos
Munich Re conectou a DSH à Water Foundation, o que permitiu a adoção da tecnologia CloudFisher. Esta, mais atual, usa redes em forma de favo, que dobram a produção de água e requerem menos manutenção do que as FogQuest. Com isso, pôde expandir seu serviço para 150 residências, 82% dos lares das aldeias em que a DSH opera.

Essa implantação também teve apoio do ministério alemão de Desenvolvimento Econômico e Cooperação, que deu financiamento para a instalação das novas redes, assim como para os programas de apoio da DSH, incluindo oficinas comunitárias de Wash (água, saneamento e higiene, na sigla em inglês) e projetos educacionais.
A organização obteve apoio de vários financiadores e stakeholders externos. A Munich Re doou mais de € 400 mil por cinco anos, até 2018. Em 2013, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) doou US$ 60 mil. Com o apoio dela, a DSH contratou especialistas, construiu uma estação meteorológica de monitoramento no topo do Boutmezguida e instalou sistemas de água alimentados por energia renovável.
Além da coleta de neblina, a DSH tenta fomentar a cultura de sustentabilidade, valendo-se de iniciativas de educação e ciência nas comunidades. A organização criou um centro de pesquisa em sustentabilidade e uma escola de campo etnográfica para oferecer essas iniciativas e treinamentos em Wash.
DESAFIOS DA ÁGUA ABUNDANTE
Apesar da expansão do programa, a DSH enfrentou obstáculos consideráveis. A cultura tradicional afetou a implementação do pro-
jeto de coleta de neblina mais do que os contratempos técnicos. Enquanto os amazighs que se envolveram na fase experimental, em 2006, abraçaram o projeto, outros o rejeitaram. Em resposta, a DSH organizou programas educativos e de conscientização, como cursos sobre a água para crianças e aulas de alfabetização para mulheres, a fim de envolver e educar os aldeões. Esse engajamento transmitiu aos locais a noção de que o investimento era sério, o que criou confiança e aumentou a aceitação do projeto.
Em 2011, quando o sistema de coleta de neblina já estava funcionando, a DSH se deparou com a resistência a um novo modo de vida. A cultura amazigh se ancorava na escassez de água, bem como em adversidades cruzadas como isolamento geográfico, marginalização social e dificuldades econômicas. Antes da chegada da DSH, a coleta de água consumia quase quatro horas por dia, sendo gerida exclusivamente por mulheres e vista por elas como um rito de passagem.
O projeto da DSH, especialmente depois do sistema CloudFisher, subverteu os papéis de gênero no núcleo da sociedade amazigh, diminuindo o poder e a primazia de mulheres que tinham o papel de “guardiãs da água”. Como explica Bargach, “uma vez que você obtém a água, você a tem, a possui... ela lhe confere poder. Quando ela entra direto em sua casa, você perde esse poder”. Bargach acrescenta que essa mudança afetou também a dinâmica social entre as gerações de mulheres. “As mulheres mais velhas dizem: Passei a vida toda pegando água e agora [as mais jovens] não trabalham'.”
A DSH rapidamente reconheceu o risco da perda cultural e o fato de que a gestão
da água era uma das poucas partes da vida amazigh em que as mulheres tinham autoridade. Em 2014, a empresa criou os FogPhones, dispositivos móveis projetados para que mulheres monoglotas e pouco alfabetizadas monitorassem e relatassem as

famosas pela apicultura estão padecendo a morte das árvores de argan, essenciais para a atividade, pela seca. As infestações de cochonilhas reduziram os arbustos de cactos. Em três anos, quase 300 mil hectares de terra se aridificaram. Dados os
água e o tempo de coleta de água e aumentando as oportunidades de emprego e frequência escolar feminina. A DSH continua a responder às condições sociais e ambientais em constante mudança por meio da colaboração ativa com parceiros externos e especialmente com os amazighs, que têm autoridade para tomar decisões no projeto e em programas relacionados. Os outrora céticos aldeões são hoje os maiores defensores do projeto. A DSH tem planos de expandi-lo para mais 12 aldeias no Anti-Atlas.
condições do sistema de distribuição de água usando imagens via mensagens de texto. Os FogPhones permitiram que as mulheres recuperassem algum poder por meio do controle do fluxo de informações a respeito do sistema.
Além desses desafios sociais, o frágil entorno das operações da DSH enfrenta ameaças contínuas devido às mudanças climáticas. Neste ano, a estação chuvosa chegou em março, meses atrasada. Regiões
riscos crescentes decorrentes da crise do clima, a DSH reluta em rotular seu trabalho como sustentável. “Dizer isso poderia ser demais”, afirma Bargach sobre a impossibilidade de medir a sustentabilidade em um ambiente tão instável.
A coleta de névoa da DSH é um trabalho em andamento. Atingiu marcos consideráveis, utilizando água de neblina para a agricultura e revitalizando terras desertificadas, reduzindo doenças transmitidas pela
“As pessoas perguntavam o que estávamos fazendo. Caçando diamantes?'”, lembra Mounir Abbar, gerente de projetos da DSH. “Aqueles que riram de nós perceberam que a água é o verdadeiro diamante.” O
ATHARV AGRAWAL é consultor em energia, sustentabilidade e infraestrutura na Guidehouse. WAJED NADINE EL-HALABI é líder de educação para a cidadania global do Alberta Council for Global Cooperation.
JINA YAZDANPANAH é engenheira desenvolvedora de uma calculadora de emissões de carbono com a Isla Urbana.
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Os outrora céticos aldeões amazigh são agora os maiores defensores do projeto de coleta de neblina
ESTUDO DE CASO
Um olhar profundo para o interior de uma organização
AOpen Society sob ameaça
EM 26 DE OUTUBRO DE 2019, o bilionário investidor e filantropo George Soros deu uma entrevista à emissora americana National Public Radio com o intuito de promover o seu novo livro, Em Defesa da Sociedade Aberta [lançado no Brasil pela editora Intrínseca, em 2021]. Então com 89 anos, ele teceu considerações sobre o fato de ter gasto dinheiro e energia demais fomentando uma ideia, para no fim ver o esforço ruir. “Quando eu me envolvi no que chamo de filantropia política, há cerca de 40 anos, a ideia de sociedade aberta estava em ascensão – sociedades fechadas estavam se abrindo”, afirmou Soros. “Agora, as sociedades abertas estão na defensiva, e ditaduras estão em ascensão... O jogo virou contra mim.”

A Open Society Foundations (OSF), organização pioneira criada por Soros nos anos 1980, antecipando a memorável abertura da Europa Central e Oriental (CEE, na sigla em inglês), passa hoje por uma ampla reavaliação e por uma protelada mudança de estratégia. Uma das maiores entidades filantrópicas do mundo, com um patrimônio de US$ 22 bilhões e orçamento anual de cerca de US$ 1,4 bilhão, simplesmente não vinha obtendo os resultados almejados. Desde meados dos anos 2000, líderes autocráticos de todo o mundo vêm pondo na defensiva a comunidade de viés liberal voltada para o desenvolvimento, incluindo organizações como a OSF, que, ao longo de quatro décadas, conquistou generosa aprovação por sua tenaz promoção da democracia e do trabalho pelos direitos humanos. A sociedade aberta – conceito do filósofo austríaco Karl Popper, que versa sobre uma organização política em que o Estado protege a liberdade individual
Após mais de três décadas de promoção da democracia liberal, a entidade filantrópica se vê na defensiva. É possível uma reestruturação estratégica e uma nova liderança virarem o jogo?
POR PAUL HOCKENOS
e é inspiração para a filantropia de Soros – está sob ataque em praticamente todo o mundo. Órgãos que financiam a sociedade aberta estão sendo atacados, nenhum de modo tão feroz quanto a OSF, sediada em Nova York, e isso tanto nos Estados Unidos quanto no exterior. Ainda que se possa compreender essa atenção indesejada como uma prova da eficiência da OSF, ela compromete seus métodos de doação de recursos e, em ampla medida, sua missão geral.

Talvez não haja melhor exemplo desse embate do que a Hungria natal de Soros – ele imigrou para o Reino Unido em 1947 e lá foi aluno de Popper –, onde a OSF tem injetado centenas de milhões de dólares desde os anos 1980. O partido do populista autoritário Viktor Orbán – eleito em 1998 e mais quatro vezes desde 2010 – transformou a antiga joia da coroa da OSF num pária da União Europeia, reprimindo espaço civil, minorias e mídia independente. Orbán fez com que a OSF saísse do país em 2018, despachando o seu grande escritório regional para Berlim, e forçou a louvável Universidade Centro-Europeia, projeto de Soros, a transferir para Viena o seu principal campus.
Diga-se em sua defesa que a OSF está consciente do dilema, mesmo sem ter uma solução certeira para ele. “Não podemos continuar os mesmos enquanto o mundo e o contexto de nosso trabalho mudam”, declarou o novo presidente da OSF, Mark Malloch-Brown, ao assumir o posto e anunciar uma reformulação, em 2021. Com um currículo radicalmente diferente do de Aryeh Neier, ativista pelos direitos humanos e presidente da OSF de 1993 a 2012, o britânico Malloch-Brown, diplomata de carreira, é membro do Partido Trabalhista e atuou como secretário-geral adjunto das Nações Unidas sob Kofi Annan, entre outros postos internacionais de alto nível.
“Os desafios de hoje, como a pandemia e a crise climática, são interligados e já não é eficaz tratá-los com 40 programas e fundações, separados por nação, região e tema”, reconheceu Malloch-Brown. A governança da OSF também se tornou difícil de manejar, com um conselho global, oito conselhos regionais e 17 conselhos temáticos.
Essa autoanálise da OSF e a reflexão sobre seu aprendizado são saudáveis – e vitais. Mas a remodelação em curso pressiona a fundação rumo a um novo terreno para uma entidade filantrópica. À luz de uma recessão democrática e da ressurgência autoritária em âmbito mundial, a OSF manobra para enfrentar a reação política global contrária às causas progressistas, ou as “ameaças à sociedade aberta global”, como a organização as denomina. A reavaliação da OSF sobre seus meios para implementar mudanças sociais e políticas só será bem-sucedida se a fundação conseguir realmente ajudar a conter essas tendências no longo prazo.
O IMPÉRIO OSF
Desde que foi fundada, a OSF se isolou no cume da atividade, em razão da amplitude e profundidade de sua missão. A simples admissão de que uma reformulação é necessária já é notável, uma vez que entidades do tipo não são conhecidas pela capacidade de autocrítica: a exemplo de seus pares, a OSF não costuma contratar avaliadores externos, nem dispõe de colegiados ou órgãos de supervisão independentes que examinem o que se propôs a fazer e o que de fato fez.
A reorganização “radical” e “fundamental” que Malloch-Brown anunciou revela um empenho incomum em digerir as lições de suas labutas. Ao longo de décadas de lutas e expansão institucional, a OSF se inchou e perdeu o foco, com 44 escritórios e projetos em 120 países
espalhados mundo afora. Mais de 50% dos financiamentos duraram menos de um ano; os custos operacionais correspondiam a um quarto do orçamento total. “Se os programas da OSF pareciam uma colcha de retalhos amalucada que crescia a cada vez que George Soros tinha uma nova ideia ou encontrava uma pessoa diferente, é porque era assim mesmo”, disse um ex-administrador da OSF, que pediu anonimato – como muitos entrevistados que receberam, recebem ou esperam receber verbas da OSF. Profissionais antes tão lisonjeiros hoje reclamam que a OSF se tornou morosa, excessivamente concentrada nos Estados Unidos e cada vez mais sobrecarregada, com prazos curtos demais – características execráveis para o modelo filantrópico enxuto, descentralizado e com foco no local que o próprio Soros promovia nos anos 1990 e 2000.
Uma fundação que costumava se orgulhar de contornar a burocracia mergulhou nela. “É uma mixórdia”, lamentou o portal Inside Philanthropy em 2021. “Se escolhem você para enviar uma proposta, muitas vezes pode levar um ano ou dois para darem algum retorno – ou nenhum. Se os responsáveis pelo programa são altamente qualificados, nem sempre são dos mais responsivos.”
O orçamento para programas e grantmaking, que em 2022 foi de US$ 877 milhões, tem a ganhar com a simplificação. Nove programas temáticos – entre eles os de migração internacional, saúde pública, política antidrogas e direitos das mulheres – estão sendo incorporados à nova estrutura, enquanto dois outros migrarão para entidades externas. A equipe da OSF foi reduzida em cerca de um quinto de seu porte após o fechamento de 22 fundações de nível nacional e regional. (Entre 2020 e 2021, 1.700 empregados receberam ofertas de indenização trabalhista.) Com essas medidas, a estrutura se restringiu a seis programas regionais – Estados Unidos, América Latina e Caribe, Europa e Eurásia, Ásia-Pacífico, África, Oriente Médio – e a uma equipe de programas globais, que gere os “carros-chefe”, programas de justiça climática e de reforma da dívida pública.
A missão de uma equipe global voltada para advocacy e lobby transnacionais é fazer com que as vozes mais importantes do Sul Global sejam ouvidas onde as questões da região são decididas. Além disso, a justiça interseccional (os modos pelos quais formas múltiplas de discriminação se interseccionam em sistemas definidos pela desigualdade) é um determinante-chave para quase qualquer projeto. A OSF tem o objetivo de combater essas desvantagens – por exemplo, a do Sul Global –, valendo-se de diferentes pontos de acesso, como redução da dívida, tributação, proteção social, justiça climática, política antidrogas e migração. Refletindo as mudanças demográficas, a OSF também tem apoiado movimentos sociais liderados por jovens, nos moldes do Fridays for Future, de Greta Thunberg, como meio de
realizar mudanças. Por último, vem cunhando parcerias mais regulares com outras entidades filantrópicas e governos, reservando altos investimentos para grandes desafios, como a crise climática, por extensos cronogramas que se cruzam com outras prioridades.
A audácia e a coragem de se arriscar caracterizam o fundador da OSF, cuja fortuna se deve em grande parte à sua aposta elevada e oportuna na desvalorização da libra esterlina, em 1992, que lhe rendeu o apelido de “o homem que quebrou o Banco da Inglaterra”. A trajetória de Soros, desde que ele começou a financiar pesquisadores e dissidentes na Europa Oriental comunista e na África do Sul, é impressionante. A longa lista de beneficiários da OSF é um verdadeiro “quem é quem” de ONGs internacionais, projetos de educação cívica e veículos de comunicação independentes de todo o mundo. As diferentes encarnações da OSF disseminaram mais de US$ 19 bilhões por meio de mais de 50 mil subsídios. O pioneirismo e as práticas exemplares estabelecidas pela fundação ao longo de quatro décadas rendem livros inteiros. Ao ser inaugurada, a OSF era uma anomalia no campo filantrópico, já que não agia como instituição beneficente, financiando projetos pontuais voltados a um problema específico. Em vez disso, atuando como uma rede transnacional de fundações regionais, mirou em transformação social e política – mesmo em mudanças de regime, mas sempre com meios pacíficos e base popular.
Entre os louros de Soros estão a ajuda para derrubar o comunismo soviético e o auxílio à população sitiada de Sarajevo na guerra bósnia dos anos 1990; também alimentou as revoluções na Eurásia pós-soviética nos anos 2000 e promoveu a primeira candidata mulher e anticorrupção à presidência da Eslováquia em 2019. Nos Estados Unidos, têm o dedo dele o estímulo a uma nova geração de políticos – a lista inclui Barack Obama e a ex-deputada estadual pela Geórgia e candidata ao governo daquele estado, Stacey Abrams – e o apoio a promotores progressistas por todo o país. A OSF também deu suporte ao movimento Black Lives Matter desde o seu início. Entre 1998 e 2021, a rede OSF investiu em torno de US$ 50 milhões para estimular o setor de cuidados paliativos em todo o mundo, o que, segundo especialistas, inseriu a entidade na agenda global de saúde pública. E ele jamais se esquivou de novas causas, como as da reforma prisional ou do flagelo dos extremamente marginalizados – grupos étnicos como os romanis, por exemplo –, dos portadores de HIV e dos refugiados.

Seu trabalho também atraiu inimigos poderosos. O ex-presidente Donald Trump e o presidente russo Vladimir Putin vilanizam a OSF e Soros por sua enorme influência. A considerar o que dizem seus detratores nos veículos da extrema direita, Soros, além de tudo, manda na economia global e instiga o esquerdismo radical. A eficácia das atividades da OSF na Hungria e na Rússia foi vista como tão abran-
gente a ponto de seus respectivos líderes forçarem o banimento da entidade, acusando-a de atentar contra o Estado.
O que acontecerá quando Soros passar o bastão? A OSF, com seu caos criativo, sua celebrada agilidade e suas controvérsias, sobreviverá a seu nonagenário fundador, que tem se afastado, deixando cada vez mais a tomada de decisões para outros? Alexander, 37 anos, filho de Soros, doutor em história pela Universidade da Califórnia em Berkeley, foi recentemente nomeado presidente do conselho de diretores da OSF, composto de sete pessoas. Dois outros membros da família – a mulher de George Soros, Tamiko Bolton Soros, e a filha dele, Andrea Soros Colombel – também fazem parte do conselho. Quase todos os 26 membros do conselho consultivo foram ou estão sendo descartados, transferindo o poder da entidade para as mãos do conselho diretivo. Que seja o filho, e não um profissional de fora da família, a assumir o lugar de Soros sublinha o fato de que a OSF, como a maior parte das entidades filantrópicas, continuará a ser um negócio familiar cujos rumos continuarão a ser afetados pelos caprichos e peculiaridades do clã – para o bem e para o mal.
ABRINDO A EUROPA
Aatual transição não é a primeira da OSF. A entidade passou por diversas mudanças ao longo do tempo e colheu seus aprendizados. A primeira fase da fundação estendeu-se pela década de 1980 e início da de 1990, quando a Fundação Soros de Budapeste e o Open Society Institute, precursores do que se tornaria, em 2010, a Open Society Foundations, operavam em contextos autoritários, como os dos Estados unipartidários da Europa Oriental e da União Soviética, e na África do Sul sob o apartheid. Sua atuação, anômala nessas regiões, fez com que as corporações Soros angariassem legitimidade no bloco soviético, amparando um misto de pesquisadores dissidentes, estudantes de mente aberta, proto-ONGs e clubes que medravam nas fendas e fissuras dos abatidos Estados autocráticos.
Como entidade privada, a fundação procedeu com uma destreza à qual nenhum Estado-nação ou agência de desenvolvimento poderia ambicionar. Em seus esforços, apadrinhou não só muitos indivíduos, mas também movimentos dissidentes, como o Solidariedade, na Polônia – sindicato independente e antiautoritário que usou da resistência civil para promover direitos dos trabalhadores e mudanças sociais. O próprio Soros não teria escrito um script mais favorável do que o que se desenrolou no bloco oriental de 1989 a 1991, com ditaduras caindo uma após a outra, tendo agentes da sociedade civil à frente.
A primeira fase da OSF foi até o começo dos anos 1990, quando, nas democracias recém-conquistadas, as sementes da sociedade aberta se fortaleceram como atores independentes. “O trabalho da OSF à época foi muito original e relevante”, opina Mary Kaldor, especialista em governança global e sociedade civil da Escola de Economia e Ciência Política de Londres. “Foi uma contribuição importante para a democratização.” George Soros estabeleceu fundações independentes em toda a CEE e na antiga União Soviética, as quais recebiam montantes fixos e irrestritos de seu dinheiro, os quais eram distribuídos, a critério dessas fundações, a centenas de grupos e causas vistos como promissores. O investimento ousado era uma demonstração de confiança jamais dada por qualquer agência de desenvolvimento.
“É difícil imaginar como seria a sociedade civil na CEE sem a atuação de Soros e da OSF”, observa Emily Tamkin, na biografia do investidor que lançou em 2020, The Influence of Soros: Politics, Power and the Struggle for an Open Society [A influência de Soros: Política, poder e luta por uma sociedade aberta]. “A maioria das pessoas que trabalham em espaços da ‘sociedade civil’ em países dessa região, pelo menos até onde pude ver, de algum modo, em algum ponto, teve envolvimento com a OSF.”
REAÇÃO
Asegunda fase, na qual o orçamento da OSF disparou para centenas de milhões de dólares, foi paralela à estabilização dessas democracias. A entidade funcionou como parceira em reformas de transição – politicamente fundamentadas, com flexibilidade operacional e atentas a novas informações ou tendências. Por meio de suas fundações locais, a OSF apoiava esforços, por exemplo, para garantir mais transparência parlamentar, eleições livres e justas, Judiciários modernos e mídia independente. Nas palavras de Daniel Bessner, historiador da Universidade de Washington, Soros se dedicou então “a construir instituições permanentes que sustentariam as ideias motrizes das revoluções anticomunistas, ao mesmo tempo que moldava as práticas de sociedades abertas para os povos libertos da Europa Oriental”. As comunidades de Soros, observa Tamkin, falavam a linguagem da democracia inclusiva: liberal, secular, racional.
Essa visão era em tudo distante do que expressavam os populistas de direita vicejantes na CEE. Entre esses figurava o húngaro Viktor Orbán, que, como bolsista da OSF, estudou na Universidade de Oxford às expensas de Soros. Foi Orbán, e não os defensores da OSF, quem logo compreendeu que as ideias das “elites” merecedoras da generosidade de Soros – bem formadas, de língua inglesa e liberais – não repercutiam junto à média do cidadão húngaro. Este encarava com grandes doses de dor e sofrimento a reestruturação da economia com base no livre mercado.
Essa crítica ilustra a avaliação de Bessner de que as primeiras ações das instituições de Soros acolhiam a filosofia do livre mercado – na medida em que uma sociedade livre depende de mercados livres, ainda que regulados. Esta, tal como foi aplicada em toda a CEE e na Rússia na década de 1990, empobreceu milhões de cidadãos comuns, que com isso foram jogadas diretamente em mãos populistas. Desde então, Soros muitas vezes apontou o dedo para o laissez-faire capitalista. Mas, de acordo com Bessner, se por um lado ele “reconhecia, antes da maioria, os limites do hipercapitalismo, por outro sua posição de classe tornava-o incapaz de advogar de maneira plena pelas reformas – anti ou pós-capitalistas – necessárias para moldar o mundo como ele desejava”. O vice-presidente da OSF, Leonard Benardo, denuncia o “enorme, gigante fracasso de parte do Ocidente” em compreender os direitos humanos sobretudo como construtos políticos e cívicos, e não em termos sociais e econômicos. Na verdade, essas deficiências, entre outras, têm causado o efeito – contrário às alegações de Putin, Orbán e dos republicanos dos Estados Unidos – de neutralizar grande parte da energia positiva e do trabalho duro registrados ao longo dos anos em países beneficiados por concessões da OSF. “O grande erro foi dar como líquido e certo o neoliberalismo”, segundo Mary Kaldor. “Isso não foi nem sequer debatido.”
Outros críticos apontaram que o maior erro da OSF foi financiar uma elite liberal que, embora parecesse refinada aos olhos dos doadores ocidentais, tinha pouco a ver com as pessoas comuns. “Quando organizações sem fins lucrativos, digamos, na Hungria, são financiadas por um filantropo americano, elas deixam de ter base popular”, observa Dániel Mikecz, cientista político do Instituto de Ciência Política da Academia Húngara de Ciências.

Timothy Garton Ash, historiador da Universidade de Oxford, tem visão semelhante. “As figuras em torno das quais Soros gravitava e às quais confiou suas fundações tendiam a ser intelectuais que viviam nas cidades grandes, o que significa, também, que em geral provinham de camadas privilegiadas”, disse ele à biógrafa de Soros. “Como poderia uma sociedade ser aberta e como as chances para fazer parte dela poderiam ser mais equitativas, se os encarregados da abertura vinham todos de estratos sociais parecidos?” Essa imagem, aliada à ideia de antissemitismo e outras fobias, foi habilmente explorada pelos aliados de Orbán para consolidar sua base e ganhar as eleições.
A marca da OSF tornou-se tão tóxica, que alguns beneficiários por fim se mostraram dispostos a distanciar-se dela. Um deles, que pediu anonimato, afirma estar mais forte agora, sem a afiliação à OSF. “Hoje, nossos financiadores são diversos; com isso, não ficamos dependentes de nenhum deles. Neste país, a associação com George Soros e com a OSF tornou-se uma desvantagem”, diz o representante de uma dessas organizações, manifestando um sentimento também expressado por outros beneficiários na CEE e na Ásia Central.
EXPANDINDO A COBERTURA
No ano 2000, a OSF já estava em sua terceira fase: indo além da Europa e da Ásia Central, rumo ao Sudeste Asiático, África, América do Sul, Oriente Médio e Estados Unidos. A ideia era replicar o método bemsucedido da OSF em outros lugares. A OSF adotou uma agenda ampla e ocidental de causas progressistas, que abarcavam desde direitos de minorias e interesses dos LGBTQ até a reforma educacional. Em Baltimore, nos EUA, Soros injetou US$ 60 milhões em obras destinadas ao tratamento de dependentes químicos, à reforma escolar e prisional, e à delinquência juvenil. Na eleição presidencial americana de 2004, mergulhou na política abertamente partidária pela primeira vez, colocando US$ 28 milhões na candidatura do democrata John Kerry contra a reeleição de George W. Bush.
Embora a campanha de Kerry tenha terminado em derrota, em Baltimore o empenho prosperou; o duradouro programa antidrogas foi convertido em política pública, o que duplicou o número de dependentes de drogas em tratamento. Mas também aqui a OSF se
Alexander Soros, filho mais velho de George Soros e sua segunda esposa, Susan Weber, é o herdeiro aparente do pai na OSF

deparou com questões difíceis, que em última instância se aplicam a qualquer entidade filantrópica: indivíduos abastados devem intervir e oferecer serviços da alçada de governos? Agir assim tira a responsabilidade que deveria ser do Estado? A filantropia seria capaz de reformular polícias ou fazer frente ao viés racista dos sistemas de Justiça?
Nessa época, Estados da Europa Central miravam a adesão à UE (em 2004, Hungria, Eslováquia, República Tcheca e Polônia passaram a fazer parte dela), e a OSF avisou seus beneficiários nesses países que ela logo passaria à rica UE. Em termos de democracia, a CEE era considerada assunto encerrado – estava entregue, ainda que imperfeita. A adesão à UE haveria de aparar as eventuais arestas, como fizera nos casos de Alemanha, Itália, Grécia e Espanha, que abandonaram legados fascistas no pós-Guerra. “O fim da história”, expressão cunhada pelo cientista político Francis Fukuyama para a ascensão da democracia liberal ocidental, estava próximo.
Braços da OSF na CEE, como a Fundação Stefan Batory, da Polônia, e o Comitê Húngaro de Helsinque (HHC, na sigla em inglês), receberam abundantes avisos (e, na sequência, verbas “derivadas”) de que deveriam estabelecer dotações individuais ou se tornarem entidades independentes – organizações que poderiam receber financiamentos periódicos da OSF, mas contando também com outras fontes de recurso. Muitas, como essas duas, conseguiram dar o salto; outras, não. As fundações lituanas e letonas tiveram de encolher, mas se restabeleceram e trabalham com projetos subsidiados.
UMA TEORIA IMPERFEITA DA MUDANÇA
AOSF entrou numa nova fase há cerca de uma década, quando sua influência parecia diminuir no nível macro, apesar dos orçamentos crescentes (US$ 873 milhões em 2013) e das equipes e do alcance global. Em 2010, ano em que começou a sair da Hungria, Orbán chegou ao poder pela segunda vez, após oito anos na oposição, surfando numa onda de populismo nacional que isolou grupos liberais como inimigos do povo. Hoje Orbán continua no poder, mais solidamente do que nunca.
“Soros e a OSF partiram do princípio de que a democracia se desenvolveria de forma linear nesses lugares, que geraria a prosperidade e as liberdades desejadas por seus povos e que estas nunca retrocederiam”, afirma Ivan Vejvoda, especialista em Bálcãs e reitor interino do Instituto de Ciências Humanas, em Viena. “Foi uma ilusão.”
A partir do fim da década, o próprio Soros reconheceria o equívoco. Líderes eleitos no mundo todo haviam “falhado em satisfazer as expectativas e aspirações legítimas dos eleitores”, disse em 2016,
e “esse fracasso fez com que eleitorados se desencantassem com as versões dominantes de democracia e do capitalismo”. O jogo tinha virado após o crash financeiro global de 2008, argumentou. “Isso levou à ascensão do nacionalismo, o grande inimigo da sociedade aberta.” Mesmo assim, em vez de jogar a toalha, ele deu à entidade boa parte de sua fortuna: US$ 18 bilhões, somados aos US$ 5 bilhões que já estavam na conta da fundação. Um dado que Soros havia subestimado no passado passaria a guiar o trabalho da OSF: “A falta de políticas redistributivas é a principal fonte de insatisfação explorada pelos inimigos da democracia”, concluiu.
A retumbante lição extraída pela OSF de suas décadas nas trincheiras – e hoje intrínseca à maior parte de sua programação – é a de que a desigualdade econômica corrói a confiança nas instituições democráticas e instiga a ascensão do autoritarismo. Uma divisão desigual da riqueza, por si só, não provoca um aumento do extremismo, mas prepara o terreno para ele. “Quando as políticas econômicas beneficiam de modo desproporcional os que estão no topo, os demais se tornam mais propensos a achar que a democracia não os contempla”, explica a economista brasileira Laura Carvalho, atual diretora global de equidade da OSF. Disso decorrem, afirma ela, instabilidade social, frustração com a democracia e ambientes prontos para receber líderes autoritários.
Entre suas novas estratégias para África e para o Sul Global como um todo, a OSF está testando novos modelos de desenvolvimento econômico: “Reconhecemos quão violenta pode ser uma visão irrestritamente neoliberal e financeirizada de desenvolvimento, que não enfatize o bem-estar de pessoas e comunidades”, enuncia a estratégia One Africa. Essa ideologia se fincou nas instituições de governança e na consciência popular, muitas vezes em detrimento dos africanos comuns. “Vamos apoiar espaços e processos para pensadores, ativistas e formuladores de políticas africanos, com o intuito de desafiar ortodoxias econômicas, a fim de refletir contextos e prioridades locais, que vão além da crítica a novas concepções.”
Essa revisão estratégica desenha um novo modelo econômico de impulsionamento africano, mas permite que seus detalhes sejam debatidos nos fóruns do continente. A estratégia deverá priorizar investimentos em saúde e educação, garantir poder de negociação para os trabalhadores, apoiar justiça fiscal para combater desigualdades e frear a corrupção. A África também não deve hesitar em se libertar de acordos comerciais vigentes e negociar novos, que beneficiem os investimentos locais. Isso pode não ser socialismo, mas é uma espécie de capitalismo bem diferente daquele que agências internacionais de desenvolvimento vêm promovendo há décadas.
Além de explorar a injustiça econômica, os autocratas populistas têm se valido amplamente de sofisticadas tecnologias da informação, com as quais aumentam sua tática repressiva e narrativas iliberais, tanto no âmbito de suas próprias sociedades quanto fora delas – a exemplo do que fazem Rússia, Irã e China. Quando se pretende vencer os inimigos da sociedade aberta, observa Malloch-Brown, responder à desinformação tem mais impacto do que, por exemplo, monitorar eleições ou apoiar partidos políticos.
No bojo desse esforço, a OSF foi além do patrocínio ao jornalismo independente e apoiou contribuições da sociedade civil para a Nova Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. Essa legislação pioneira almeja limpar os maiores fóruns online do mundo, fazendo com que as plataformas de mídia social sejam
responsabilizadas pelos riscos que representam para as sociedades –por exemplo, minimizando a propagação de desinformação mediante ajuste de algoritmos e fechando contas fakes. A OSF financiou desde o início o Observatório da DSA, projeto gerido pela Universidade de Amsterdã que atua como polo de expertise nessa lei. Além disso, apoiou muitos associados da European Digital Rights, reunião de dezenas de organizações de direitos civis de todo o continente em prol da defesa de direitos e liberdades digitais.
A NOVA OSF
Sucessivas lideranças da OSF haviam tentado modernizar a organização, fazer com que alcançasse o enorme impacto pretendido para seus investimentos e torná-la uma verdadeira fundação global. Na melhor das hipóteses, tiveram êxito parcial. Segundo David Callahan, editor do Inside Philantropy, anos de expansão desordenada transformaram a OSF num “polvo”, que, com escritórios, equipes e projetos em quase todos os continentes, se envolveu em um amplo espectro de questões progressistas. Os elos entre elas ou delas com o contexto se esgarçavam, e a colaboração entre tópicos e fronteiras era difícil. Iniciativas se avolumavam tão rápido que nem o conselho acompanhava, observou um ex-membro da equipe.
“A OSF se voltara para dentro de si mesma, com procedimentos morosos, e isso estava exaurindo muitos funcionários que ainda tentavam proporcionar os programas e subsídios da fundação”, observa Merrill Sovner, ex-membro da OSF e diretor-assistente do Centro de Estudos sobre a União Europeia da Cuny (Universidade da Cidade de Nova York, na sigla em inglês). Talvez ainda mais grave, a OSF havia se tornado macrocéfala e burocrática, o oposto do que originalmente a distinguia das demais. Além disso, as tensões entre as fundações espalhadas pelo globo e a expertise e os serviços orçamentários centralizados em Nova York se intensificaram, segundo ex-membros da equipe. Cada vez mais, as decisões eram tomadas ali, ignorando os membros locais, que trabalhavam em campo.
Sob Malloch-Brown, promoveu-se uma abrangente reorganização, a fim de criar uma OSF mais enxuta, em que o trabalho regional fosse supervisionado mais de perto, no próprio local em que se realizava, e estivesse calcado em conhecimento local. Hoje, os seis centros regionais controlam mais de US$ 527 milhões em financiamentos – 25% a mais do que em 2020 – e têm mais autoridade sobre sua própria programação.
“Temos mais autonomia regional do que antes, mas também dispomos de um sistema de financiamento central mais flexível e responsivo”, afirma Binaifer Nowrojee, vice-presidente da OSF para regiões e chefe de operações da transformação. Ela observa que a OSF terá uma atuação muito mais eficaz no além-fronteiras, em escala maior, com custos operacionais menores e sem duplicação. Na África Subsaariana, por exemplo, oito escritórios espalhados foram reunidos em três, atuando como um só programa.
Entre outras mudanças, o programa da OSF para o povo romani foi transferido para uma entidade nova e independente em Bruxelas. O programa de ensino superior da OSF foi transferido para a Open Society University Network, rede global de instituições de ensino superior. O programa para a Europa e Ásia Central – bem como o dos Estados Unidos, na sequência – terá menos financiamento, enquanto
os do Sul Global estão sendo reforçados. Desde 2019, os dispêndios na América Latina e Caribe aumentaram em 50%. Não obstante, a maior concentração de dispêndios ainda está nos Estados Unidos, com um orçamento de US$ 234 milhões em 2022, em razão das doações feitas a candidatos e causas democratas durante as eleições de meio de mandato para o Congresso. Com o intuito de estar próxima das populações de base e seus problemas, toda a equipe do programa tem de residir nas regiões em que trabalha – um retorno ao estilo da organização na década de 1990. Quanto à duração das apostas, a partir deste ano um quarto de todas as subvenções será de no mínimo três anos. O processo de concessão foi simplificado, o que supostamente torna muito mais fácil o acesso a essas verbas, vantagem certamente bem recebida por legiões de solicitantes frustrados.
A transformação não se restringe à estrutura. A OSF já se lançou numa nova programação, com campos novos, como a crise climática. Esta, à primeira vista, não seria uma escolha natural. Ainda que se possa discordar, não se trata de uma área negligenciada, pois existem milhares de grupos voltados ao problema. Por outro lado, em 2021, só 2% dos US$ 801 bilhões dispensados ao ano por entidades filantrópicas globais foram destinados a esforços para reduzir emissões de gases de efeito estufa. A OSF tem se concentrado especificamente em justiça climática – a divisão justa, partilha equitativa e distribuição igualitária das responsabilidades pelas mudanças climáticas e sua mitigação. O Sul Global está vivenciando o ônus mais pesado do colapso climático, embora tenha sido o que menos contribuiu para ele. Opondo-se ao foco massivamente técnico que predominou no campo do clima até agora, a OSF afirma que seu interesse é “uma abordagem socioeconômica mais centrada nas pessoas, holística”.
A encarregada dessa missão, assumindo em 2021 o cargo recém-criado de diretora para justiça climática, é Yamide Dagnet. A escolha da ex-diplomata nativa do arquipélago caribenho de Guadalupe reflete outro objetivo da transição da OSF: ter uma equipe globalmente mais diversa. Dagnet tem experiência em negociações internacionais sobre o clima, e sua atribuição na OSF é a de vislumbrar uma estratégia para acelerar “transformações políticas e econômicas, com vistas a uma justiça climática e social em países estratégicos de renda baixa e média”. Ela foi à COP27, no Egito, em novembro de 2022, quando a OSF se juntou a representantes do Sul Global a fim de obter a aprovação do Norte Global para a criação de um instrumento de combate às “perdas e danos” de países mais pobres em razão do colapso climático. A vitória demorou a chegar – afinal de contas o lado do Sul Global tem trabalhado nesse tema desde a COP1, em 1995. Os Estados Unidos e a maior parte das nações mais ricas durante muito tempo se opuseram a isso, pela simples razão de que os pedidos de indenização poderiam se tornar estratosféricos conforme piora a crise climática.
Na COP27, a OSF juntou-se também aos defensores de outro projeto representativo dos novos rumos da entidade, que vincula ações para o clima e para o desenvolvimento, envolvendo um impulso mais amplo e condução do Sul Global. A Bridgetwon Initiative é uma campanha voltada à transformação das finanças do mundo em desenvolvimento – em especial no tocante ao modo como países ricos ajudam países pobres a fazer frente às mudanças climáticas e a se adaptar a elas. Por trás da iniciativa, está a aliança de Estados e organizações sem fins lucrativos fundada e conduzida por Mia Mottley, primeira-ministra de Barbados. Sua prioridade máxima é persuadir o Fundo Monetário Internacional a dirigir para esses países em ne-
cessidade um mínimo de US$ 100 milhões em ativos de reservas cambiais suplementares não utilizadas.
A campanha da Bridgetown vai mais longe. A iniciativa requereu alívio automático da dívida para países afetados pela pandemia ou por desastres naturais; um montante extra de US$ 1 trilhão em financiamento dos bancos de desenvolvimento para a resiliência climática; e um mecanismo para dirigir investimentos do setor privado para a mitigação das alterações climáticas. Dívidas exorbitantes são só uma das características da arquitetura financeira internacional, defasada e inadequada às necessidades do Sul Global, diz Mottley.
Em um movimento menos representativo do novo espírito implantado por MallochBrown, a OSF participou de novo do Fórum
Econômico Mundial de Davos, na Suíça, no início de 2023. Por muito tempo, o WEF (sigla em inglês para o fórum) foi o símbolo da parte abastada do mundo em globalização, onde os ricos reiteravam seu discurso de que mais comércio trará mais liberdade para o mundo. Pela primeira vez em muitos anos, George Soros não estava entre os participantes. Porém Malloch-Brown, sim, e a OSF firmou cooperações com 45 outras entidades – entre elas o Bezos Earth Fund, as fundações Rockefeller e Ikea, várias corporações de renome e grupos do setor público. O intuito é estabelecer uma iniciativa para financiar e fazer crescer “parcerias públicas, privadas e filantrópicas”, desbloqueando os US$ 3 trilhões anuais em financiamentos que, se estima, sejam requeridos para alcançar a neutralidade de carbono até 2050. Apesar das boas intenções, a maior parte dos especialistas em clima observa que o cerne da questão reside nos Estados pesos-pesados, como os Estados Unidos, e nas organizações transnacionais, como a União Europeia e as Nações Unidas. Eles argumentam que a criação de sistemas de precificação de carbono, investimento em tecnologias limpas e muitas centenas de bilhões em auxílio estatal para impulsionar o setor da tecnologia verde é que serão decisivos para transformar a economia global – e não as doações de caridade daqueles que, em sua busca por riqueza, foram os primeiros a exacerbar a crise climática.
GUERRA EM MÚLTIPLOS FRONTS
No início de 2022, as forças militares russas invadiram a Ucrânia, iniciando uma guerra que continua. Essa guerra representa a mais grave ameaça à sociedade aberta na Europa desde a queda do comunismo – e põe em xeque a própria missão da OSF. Afinal, ainda em 2012 George Soros estava confiante em que a Rússia – e a presença de 25 anos da OSF no país – estaria no caminho certo. Dois anos depois, a Rússia invadiu a Crimeia, e dali a um ano expulsaria a OSF de seu território. Soros ainda acredita que o fascínio pela democracia é a maior ameaça às sociedades fechadas, e é a explicação que ele dá para a determinação de Putin de subjugar a Ucrânia.
O novo fundo discricionário de US$ 100 milhões da OSF, destinado a proporcionar respostas rápidas à irrupção de crises, mostrou-se útil de cara. A OSF, que havia apoiado a democracia cívica na Ucrânia
Refugiados da Ucrânia em abrigo temporário em Hrubieszów, Polônia, em 1o de abril de 2022

desde 1990, abriu seus cofres ainda mais para lançar o Fundo pela Democracia da Ucrânia, iniciado com US$ 25 milhões. A missão da OSF é criar uma “linha de frente cívica” de ONGs para defender a Ucrânia e assentar as bases para uma democracia pós-guerra por meio da proteção da sociedade civil, da distribuição de suprimentos médicos e da manutenção de uma mídia livre no país, entre outras atribuições. Muito rapidamente, o fundo recebeu doações das fundações Schmidt Family, Oak e Ford, entre outras, angariando um total de US$ 45 milhões.
Os novos capitães da OSF são sinceros quanto ao desafio único de enfrentar as forças da direita global neste momento, e os novos Soros em posições de diretoria parecem ávidos por consolidar o legado de George, e não por revertê-lo. Infelizmente, toda a sua seriedade reunida não se compara à do patriarca da OSF; não obstante, a fundação hoje se encontra em grande parte nas mãos deles, numa conjuntura crítica e precária. A pessoa de George Soros foi de tal modo determinante na OSF, desde suas primeiras encarnações, que é impossível imaginá-la sem ele. O mais provável é que ela se torne menos idiossincrática, menos pautada pelo improviso e menos tentacular – Malloch-Brown, com sua experiência na ONU, tem certeza disso.
A situação de tanques russos contra uma exasperada população da Europa Oriental lutando por liberdade é familiar a Soros: a OSF encarna uma instituição conhecedora das complexidades da sociedade aberta, que nesse aprendizado conferiu toda uma riqueza de detalhes ao conceito original de Popper. Mas, ainda que a visão do magnata sobre a sociedade aberta na Ucrânia hoje seja muito similar às que ele enunciou 35 anos atrás, a economia global e as consequências políticas da guerra na Ucrânia – interrupções de suprimentos, crise energética, fluxos de milhões de refugiados, inflação, China ao lado de Putin, metas climáticas não cumpridas, escassez de alimentos –exacerbaram a desigualdade, o extremismo e o ódio aos imigrantes, fatores que alimentam movimentos autoritários e fascistas. Assim, ao lutar por uma sociedade aberta, a OSF se vê confrontada com todas essas questões críticas. Por mais que a organização tenha aprendido sobre a promoção da democracia, sua missão parece se expandir sempre que ela acredita estar prestes a mirar num antídoto. O
Um círculo que não se fecha facilmente
Diversas indústrias – de refrigerantes, de móveis, de eletrônicos, e a de moda entre elas – adotam uma estratégia de mão única baseada em “produção, apropriação e desperdício”. Esse sistema operacional linear exaure recursos, polui oceanos e gera montanhas de resíduos. A pressão sem freio por crescimento esgota a biodiversidade e acelera o aquecimento atmosférico, aumentando, assim, a intensidade e a incidência de secas, inundações e migrações. Por conseguinte, a tolerância da população para com indústrias desse tipo está, cada vez mais, ameaçada. Consultores, ONGs e empresas – um grupo que chamo de Sustentabilidade S.A. – oferecem a ideia de circularidade como a mais nova solução ganha-ganha para dissociar crescimento econômico e impacto ambiental. Existem mais de cem definições
As possibilidades de um modelo de negócio circular para a indústria da modaIlustrações de Eric Nyquist POR KEN PUCKER

diferentes para circularidade, e seus defensores a vendem como “um sistema regenerativo no qual entradas de recurso, emissões de resíduos e perdas de energia são minimizadas pela desaceleração, pelo fechamento e pela compressão de ciclos materiais e energéticos graças ao design, à manutenção, ao reparo, à reutilização, à remanufatura, à reforma e à reciclagem de longa duração”.
A promessa de desvincular o crescimento econômico do impacto ambiental tendo o mercado como condutor é antiga; remonta a 1987, quando foi apresentada, na Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (ONU), a noção de “desenvolvimento sustentável”. Em um esboço de relatório publicado antes da reunião da comissão, o desenvolvimento sustentável foi definido como aquele “que pode ser mantido indefinidamente sem prejudicar o meio ambiente ou ameaçar o próprio desenvolvimento”. A fé dos comissários da ONU no conceito baseava-se no progresso tecnológico e em ferramentas de gestão como avaliação, divulgação e certificação.
Desde o relatório da comissão, a Sustentabilidade S.A. desenvolveu e implementou uma série de soluções voluntárias, lideradas pelo mercado, para promover desenvolvimento sustentável. Milhares de relatórios de responsabilidade social empresarial (RSE), centenas de programas de certificação e uma série de estratégias ganha-ganha comprovam esse esforço. Essas estratégias apresentavam conceitos como “criação de valor compartilhado” – a prática de gerar, em paralelo, lucro e valor para a sociedade, ao lidar com necessidades e desafios sociais – e investimento em questões ESG – a ideia de que investir em empresas mais sustentáveis pode resultar em maiores retornos no mercado acionário e melhorar os efeitos sociais e ambientais. No entanto nenhuma dessas soluções lida, de modo explícito, com o dilema do aumento dramático da demanda de recursos em um planeta cujos recursos são finitos.
A premissa parece promissora. Porém minha experiência como membro da Sustentabilidade S.A. e ex-diretor de operações da Timberland me leva a questionar essas supostas soluções que vão de encontro aos incentivos da indústria, às leis da física, a padrões estabelecidos de consumo e à economia. Embora, em teoria, a circularidade seja atraente, iniciativas individuais e isoladas de marcas não têm como derrubar o sistema linear na indústria da moda. Neste artigo, explico a guinada da indústria rumo ao modelo circular e as barreiras à sua adoção e concluo recomendando colaborações intersetoriais mais eficazes que a circularidade.
Gafes da moda
Emais fácil compreender a magnitude do impacto ambiental da moda do que seu caminho em direção ao desenvolvimento sustentável. Para satisfazer o duplo imperativo do crescimento e do lucro, a indústria otimizou um sistema linear que se fia em inovação, ciclos rápidos de produtos, obsolescência programada, mão de obra terceirizada barata, marketing pesado e uma relativa deflação dos vestuários. Até agora vem funcionando. Desde 2000, as vendas unitárias do setor da moda mais do que dobraram. Novas coleções são apresentadas com maior frequência, indo além das tradicionais de outono-inverno e primavera-verão; algumas marcas, como a empresa de fast fashion Shein, lançam milhares delas por semana. A maior parte das novas peças adquiridas é usada por um breve período e descartada, sendo incinerada em aterros sanitários ou despachada para países em desenvolvimento como Gana e Chile, que, historicamente, permitem a importação de excedentes de vestuário.
Isso levou a circularidade a ascender ao topo do manual das estratégias. Tem-se visto progresso animador quanto à adoção de sistemas circulares na produção de algumas commodities – como alumínio, papelão e garrafas plásticas –, para as quais existe tecnologia e o preço dos materiais virgens supera o da reciclagem de insumos. A circularidade também ganhou popularidade na indústria da moda, que consome aproximadamente 80 trilhões de litros de água e produz mais de 90 milhões de toneladas de resíduos por ano. A crescente atenção negativa da imprensa sobre o setor tem fomentado a promoção de modelos circulares para dissociar o fluxo de receita do uso de recursos.
Atualmente, quase todas as empresas de moda de capital aberto produzem relatórios de responsabilidade social empresarial, e muitas adotaram certificações ambientais. Entre elas estão os selos bluesign (produção têxtil), de emissão zero de substâncias químicas perigosas (ZDHC, na sigla em inglês – “produtos químicos sustentáveis”) e de comércio justo (produção). Apesar das certificações e de a indústria testar uma série de soluções de upcycling (reutilização criativa) e de reciclagem, tais como design zero-waste (“resíduo zero”) ou cradle-to-cradle (C2C, “de berço a berço”, em oposição a “de berço a túmulo”, pensando que no fim da cadeia não esteja o lixo), os resíduos e a poluição da indústria da moda conti-
Embora, em teoria, a circularidade seja atraente, iniciativas individuais e isoladas de marcas não têm como derrubar o sistema linear na indústria da moda
nuam a crescer. Estima-se que a indústria da moda contribua com de 2% a 10% das emissões globais de carbono, taxa inconcebível para um setor que se diz comprometido com a sustentabilidade. Segundo a McKinsey & Company, as emissões do setor superam as da França, da Alemanha e do Reino Unido somadas.
Como o uso que a indústria faz de sintéticos, como poliéster e náilon, aumenta muito mais rapidamente do que a proporção de materiais naturais, a moda, nos dias de hoje, consome 70 milhões de barris de petróleo por ano, quase 1% da produção de petróleo global. Efluentes químicos, consumo de água, uso da terra e poluição por microplásticos se colocam como obstáculos inexoráveis à sustentabilidade.
Enquanto o aquecimento global se intensifica e a perda da biodiversidade se acentua, a indústria da moda projeta um crescimento superior a 60% para a década atual. Empresas como a varejista sueca H&M estão estabelecendo metas pouco convincentes – por exemplo, dobrar de tamanho e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões absolutas de carbono em 50% – e se amparando na circularidade como abordagem para atingi-las.
O modelo fast fashion da H&M passou a ser alvo de ativistas ambientais. Essa crítica crescente pode ter motivado, em parte, a escolha da primeira CEO de fora da família fundadora, em janeiro de 2020, Helena Helmersson – que, por 5 de seus 25 anos na empresa, atuou como gerente de sustentabilidade.
Em outubro de 2020, Helmersson participou de uma conversa sobre o futuro do planeta, da moda e da sustentabilidade com seu compatriota Johan Rockström, pesquisador à frente da equipe que definiu o conceito de “limites planetários”. Um cenário incrível, uma casa moderna em uma floresta sueca, foi escolhido para o encontro, organizado pela Global Fashion Agenda (GFA), ONG fundada e financiada por várias empresas da moda, como Nike e Kering, além da H&M. Rockström e Helmersson rapidamente chegaram a um consenso a respeito dos melhores caminhos para lidar com os desafios ambientais. “Acho que o modelo circular é, honestamente, o futuro para todos os setores, mas certamente para o setor têxtil”, observou Rockström. Helmersson concordou: “É a solução”.
Não é de estranhar, portanto, que a H&M tenha posto a economia circular no centro de sua estratégia de sustentabilidade. Em seu discurso na conferência da GFA em 2022, em Copenhague, o diretor financeiro da H&M, Adam Karlssom, reiterou as palavras de Helmersson, observando que a circularidade é fundamental para que a empresa atinja a meta de duplicar as receitas e reduzir pela metade as emissões totais de dióxido de carbono até 2030 –façanha nada pequena para uma marca que já gera mais de US$ 20 bilhões em vendas.
A H&M está investindo em várias frentes para impulsionar essa agenda, tendo até um diretor de circularidade, cujo trabalho é unir diferentes setores, incluindo merchandising, produção e sustentabilidade. A empresa emitiu um título sustentável no valor de € 500 milhões para metas voltadas para emissões de carbono e materiais reciclados; apresentou novos modelos de negócio para aluguel, revenda e reparo de seus produtos; e colocou em prática o maior programa de coleta de peças de roupa do mundo. Além disso, tem mais de 60 parceiros, entre os quais a fundação Ellen MacArthur, organização sem fins lucrativos sediada
no Reino Unido dedicada a acelerar a economia circular. A H&M também cria coleções-cápsula responsáveis, para apresentar inovações têxteis; investe em novas tecnologias, incluindo empresas de reciclagem como Infinited Fiber, Spinnova e Ambercycle; e oferece apoio financeiro a empresas de tecnologia agrícola regenerativa e de materiais inovadores.
A H&M tem a companhia de marcas poderosas. Gucci, Apple, Adidas, Ikea, Patagonia, Amazon, PepsiCo e Kering consagraram o modelo circular como solução para dissociar crescimento de receita do consumo de recursos – é a Sustentabilidade S.A. em plena operação. A Fundação Ellen MacArthur e a McKinsey & Company realizaram estudos que promovem a circularidade como uma oportunidade multimilionária. Um relatório de 2022, Scaling Circularity: A Policy Perspective (Expandindo a circularidade: uma perspectiva normativa), financiado pela GFA e pela Fashion on Climate, outra ONG do setor, concluiu que “aproximadamente 25% das emissões [da indústria da moda] poderiam ser reduzidas com modelos circulares”.
O Conselho de Estilistas dos Estados Unidos (CFDA, na sigla em inglês), uma das maiores associações comerciais da indústria, também está apostando na moda circular. Há pouco tempo, o CEO da CFDA, Steven Kolb, afirmou: “Acreditamos em um futuro sólido para nossa indústria pela inovação e pela circularidade, por meio de upcycling, reciclagem, recommerce [venda online de produtos de segunda mão], revenda e materiais e processos personalizados”. A União Europeia também adotou um Plano de Ação para Economia Circular, no qual propõe uma série de medidas para promover a circularidade da moda. Entre elas, estão um marco regulatório para ecodesign, melhores regulamentações –responsabilidade estendida do produtor (EPR, na sigla em inglês) e padrões de classificação – e um caminho para que altos índices de separação de resíduos sejam alcançados, além de estímulos a reparo, reutilização e reciclagem de materiais têxteis e limites para o número de coleções.
Sete obstáculos à circularidade
Entre a esperançosa narrativa acerca da circularidade desenvolvida pela indústria da moda e o alcance das metas estabelecidas encontram-se diversas barreiras técnicas, físicas, científicas e financeiras. A seguir estão os obstáculos mais significativos a serem superados para que o modelo circular cumpra sua promessa.
Incentivos e objetivos sistêmicos inalterados | CEOs e diretores financeiros de empresas de capital aberto divulgam, a cada três meses, os resultados financeiros a seus acionistas, e seus incentivos seguem atrelados ao crescimento da receita, à lucratividade e à produção de fluxo de caixa. Desse modo, tendem a não defender intervenções regulamentadoras, a não compensar externalidades, tais como emissões de carbono ou resíduos têxteis, e a não promover inovações que comprometam resultados financeiros a curto prazo. Embora estejam, provavelmente, cientes de problemas sistêmicos, como escassez de recursos ou mudança climática, no fim das contas, os executivos dedicam sua energia a atingir metas financeiras.
Cadeias de suprimentos terceirizadas também criam desafios sistêmicos. Relacionamentos de curto prazo entre marcas e fornecedores concentram-se, muitas vezes, em qualidade, datas de entrega e custos. Segundo um relatório de 2020 do Boston Consulting Group (BCG), “essa configuração fragmentada e fundamentalmente transacional fomentou um ambiente não propício a investimentos em pesquisa e desenvolvimento e em projetos de inovação”, com períodos de retorno mais dilatados. De modo geral, aponta o BCG, fornecedores são instados a cumprir ob-
plano de ação”. Essa confissão vai ao encontro dos achados de uma recente meta-análise sobre métricas de circularidade, que aponta que nenhuma das que estão em uso atualmente faz uma avaliação abrangente de progresso. Pior: alguns dos parâmetros usados para avaliar progresso transferem o ônus da redução do consumo de material para outros impactos sociais ou ambientais. O fato de muitas métricas de circularidade compararem produção e impacto também é problemático, uma vez que isso dificulta a avaliação do progresso.
Além disso, não existe uma análise dos potenciais impactos ambientais da conversão de um sistema linear para um sistema circular. Na literatura acadêmica, não há nenhuma avaliação do ciclo de vida que compare o impacto ambiental dos dois modelos – uma lacuna notável, considerando o entusiasmo da indústria pela circularidade. Dito isso, o relatório Scaling Circularity, da McKinsey, afirma que, no setor têxtil, produtos reciclados têm um impacto ambiental menor do que materiais virgens. Contudo, os resultados dependerão dos processos usados para reciclar, do local de reciclagem, da fonte de energia, da logística da coleta e de outras conjecturas feitas na análise.
Perda de energia e degradação do produto | Um upcyling que transforme produtos em novas roupas infinitamente é uma fantasia. Toda conclusão de ciclo consome energia e, à medida que se transfere ou se transforma energia, a qualidade diminui. Embora no futuro possamos ter mais fontes renováveis, atualmente, no mundo, apenas cerca de 10% da energia tem essa origem. Além disso, no setor têxtil, a maior parte dos produtos reciclados apresenta uma depreciação de qualidade em virtude do encurtamento das fibras, o que faz do upcycling de vestuário um desafio. Assim, menos de 1% de todos os produtos da moda é circular ou criado a partir de uma outra peça de roupa.
jetivos de sustentabilidade tendo “poucas garantias de que vão conseguir capitalizar seu investimento” mediante novos pedidos. Esse cenário, muitas vezes, provoca um impasse e praticamente nenhuma melhoria ambiental.

Métricas arbitrárias ou inexistentes | Não existem métricas-padrão para circularidade. Uma empresa pode definir metas para a porcentagem de material reciclável, ao passo que outra pode medir a redução de resíduos. Reino Unido, Noruega e Holanda desenvolveram políticas nacionais de circularidade; os holandeses, porém, admitiram em seu relatório de economia circular de 2021 não ter “métricas com as quais realmente promover um
Modelos de negócio não ampliáveis ou questionáveis | A circularidade depende de novos modelos de negócio para ampliar a vida das peças, como aluguel (Rent the Runway, Fernish), revenda (thredUP, The RealReal) e reparo (Arc’teryx, Dyson). No entanto, muitos desses modelos ainda não são lucrativos e, por isso, são difíceis de ampliar. Por exemplo, o muito alardeado programa de revenda Worn Wear, da Patagonia, lançado há quase uma década, é responsável por menos da metade de 1% das vendas da empresa. A Renewal Workshop, uma oficina de reparo bem financiada, ficou sem dinheiro e teve de ser vendida para continuar funcionando; a Rent the Runway conseguiu abrir seu capital, mas seu valor de mercado paira em menos da metade do que foi investido, e a thredUP
perdeu dinheiro e está sendo negociada perto de um décimo de sua máxima histórica.
Embora o serviço de aluguel possa funcionar para determinados negócios, como casas de veraneio com baixa ocupação e altos custos iniciais, ainda não deu certo em grande escala para o setor da moda. E, mesmo que desse, o impacto ambiental ainda é desconhecido, uma vez que não está claro se esses modelos diminuem a compra de produtos novos. Curiosamente, o diretorsênior de merchandising da empresa de revenda The RealReal afirmou que, quer se trate de produtos novos ou usados, “consumidores são viciados em novidades, não importando se são de primeira ou de segunda mão”.
Além disso, a reciclagem pode não funcionar em termos financeiros. O ponto de partida para o uso de materiais têxteis reciclados é, muitas vezes, mais caro do que o de materiais virgens. Contudo, segundo o relatório Scaling Circularity, da GFA, os gastos podem diminuir com o tempo, volume e experiência, fazendo, assim, com que os materiais recicláveis sejam mais rentáveis. As projeções aqui também dependem de perssuposições, incluindo quem financia o capital para a infraestrutura de reciclagem, o preço de insumos virgens e os gastos com coleta e transporte. No fim, se a circularidade custar mais à indústria do que o modelo linear de apropriação, produção e desperdício ela não será adotada amplamente.
Trocar plástico ou matéria-prima finita por materiais biológicos | Publicações do setor vêm promovendo, cada vez mais, as vantagens circulares dos materiais biodegradáveis de base biológica.
As inovações incluem “couro” de folhas de abacaxi, cacto e cogumelo, bem como fibras novas criadas de matérias-primas naturais como milho ou açúcar. Nos últimos seis anos, materiais desse tipo atraíram mais de US$ 2 bilhões em capital de investimento.
A exagerada euforia, contudo, nem sempre rende soluções sustentáveis. Tomemos como exemplo o Desserto, substituto do couro feito do cacto, material natural que parecia ser um grande candidato à circularidade. As peças de marketing da empresa não mencionaram, todavia, que o produto continha plástico (poliuretano), composto que leva gerações para se biodegradar. Quanto a materiais de base biológica que dependem de açúcar e milho, sua adoção intensificaria a demanda por essas commodities, já pressionadas pela necessidade de produzir mais comida para atender ao crescimento populacional. Ademais, nenhuma dessas invenções conta com capacidade e uma cadeia de suprimentos que seja bem azeitada o bastante para oferecer produção consistente e a preços baixos em substituição a derivados de petróleo.
Ainda assim, diversas empresas emergentes estão desenvolvendo soluções sustentáveis promissoras. A Natural Fiber Welding (NFW), por exemplo, criou um processo para tratar e alongar fibras recicladas e outros materiais que produzem couro ecológico sem plástico. Ela recebeu financiamento de marcas do setor da moda, como Ralph Lauren e Allbirds. Outro exemplo é a francesa Fairbrics, que está desenvolvendo um processo que converte resíduo de dióxido de carbono em tecido de poliéster.
Lacunas de capacidade e infraestrutura custosa | Tecnologias de reciclagem para tecidos mistos e multicoloridos estão longe de poderem ser adotadas em grande escala. Embora a reciclagem de produtos feitos de algodão e garrafas PET seja técnica e comer-
cialmente viável, sua manufatura representa menos de 10% da produção da indústria da moda. Cada vez mais roupas e calçados são feitos com mesclas, corantes e revestimentos de cores e acabamentos variados. Por exemplo, calças jeans stretch provavelmente contêm elastano, um polímero sintético de cadeia longa. Embora startups promissoras como Ambercycle e CIRQ estejam desenvolvendo tecnologias que parecem funcionar para mesclas, até que seja possível sua adoção ampla, a circularidade da moda vai continuar limitada.
Mesmo que a tecnologia estivesse pronta e seu preço fosse competitivo, seria preciso um esforço hercúleo a fim de financiar e construir a infraestrutura de reciclagem necessária para atender à demanda pela reciclagem de mais de 100 bilhões de peças de roupa por ano. Um estudo recente estimou entre US$ 6 bilhões e US$ 7 bilhões os custos de capital para construir uma infraestrutura que desse conta de um terço da capacidade de reciclagem apenas da Europa. É preciso considerar esses custos de capital à luz dos baixos custos das fibras virgens. Segundo o engenheiro de materiais Youjiang Wang, do Georgia Institute of Technology, “é tão barato produzir poliéster, algodão e outros tecidos que, a não ser que os processos de reciclagem sejam muito baratos, há pouca margem de lucro”.
Em última análise, porém, o alto custo da estrutura de reciclagem provavelmente não seja o maior entrave à circularidade. Na verdade, as principais barreiras são a falta de infraestrutura de coleta e os padrões de comportamento dos consumidores. De acordo com Laura Coppen, diretora de circularidade da marca alemã Zalando, “a lacuna comportamental é bem grande e particularmente ampla no ambiente circular, e isso se deve predominantemente ao fato de não haver soluções acessíveis em grande escala para os consumidores”. Mesmo quando camisetas e tênis são devolvidos em pontos de coleta, há um desafio adicional: conectar fluxos de resíduos à produção de reciclagem.
Escassez de colaboração pré-concorrencial e intersetorial | Minha condição de ex-diretor de operações da Timberland me garantiu um convite para a conferência de 2022 do MIT sobre circularidade no setor de calçados, um evento que contou com representantes de mais de dez marcas concorrentes e dezenas de fornecedores. O relatório final do encontro concluiu que a abordagem “fechada” padrão para inovação e propriedade intelectual fracassará se aplicada na transição para uma economia circular no ramo calçadista. No entanto, os participantes comentaram que aquela era a primeira vez que se reuniam para discutir como a indústria poderia trabalhar junta para implementar o modelo circular.
A colaboração entre concorrentes do mundo da moda em áreas que vão desde design de produto aos materiais preferidos é um pré-requisito fundamental, mas não suficiente, para a circularidade. Investimentos em infraestrutura de classificação e coleta encontram-se à margem das definições tradicionais da indústria da moda. A colaboração entre legisladores, investidores e operadores é essencial para que essas competências sejam amplificadas a fim de aportar os recursos necessários a iniciar uma conversão ao sistema circular no setor da moda. O Plano de Ação para Economia Circular da União Europeia e novos esforços na China visam promover essa cooperação.
Respostas melhores
Ahumanidade não dispõe de décadas para enfrentar as muitas e rápidas crises planetárias; escassez de água e perda da biodiversidade são desafios prementes. Entretanto, as emissões de carbono têm de cair mais de 7% ao ano pelos próximos sete anos para que haja chance de limitarmos o aquecimento a menos de 1,5 ºC. A maior queda mundial de emissão de carbono de todos os tempos foi de 2%, durante a recessão global de 2008-2009.
Dada a urgência, já passou muito da hora de admitir que soluções voluntárias comandadas pelo mercado não serão adequadas para lidar com externalidades ambientais negativas. A teoria de que avaliações e divulgações conferem a consumidores e investi-
– 75% dos quais são despejados em aterros sanitários ou incinerados – levarão a um futuro sustentável.
Se as pessoas do mundo desenvolvido se comprometessem a reduzir o consumo e baseassem suas compras mais nas suas necessidades, poderíamos conseguir voltar a viver dentro dos limites naturais, mas projetar tal mudança no zeitgeist é impossível. Para tanto, são necessários instrumentos mais contundentes, a fim de reverter o crescente impacto ambiental do setor da moda. Talvez os legisladores devam pensar em tributar a fast fashion para financiar a diminuição da pegada de carbono do setor, assim como tributos sobre cigarro foram criados para reduzir o consumo e, ao mesmo tempo, financiar programas de saúde pública. Esse tributo também poderia desacelerar o crescimento unitário, caso fosse alto o bastante para elevar os preços.
Regular de maneira eficaz | Embora as leis da União Europeia para atingir a circularidade sejam bem-intencionadas, ainda não
dores poder para pressionar as empresas a enfrentar a mudança climática mostrou-se ineficaz. Quanto mais cedo a Sustentabilidade S.A. reconhecer os limites da ação voluntária, mais cedo poderá dedicar atenção a medidas transformadoras.
Embora a moda seja apenas um setor da economia, seu impacto ambiental negativo é descomunal e segue crescendo. A ausência de progresso, somada a obstáculos colossais, indica que colocar muita fé na moda circular não trará um resultado nem mesmo próximo de ser sustentável. Assim, deixo a seguir quatro recomendações que a indústria pode adotar para enfrentar mais diretamente seus significativos impactos ambientais negativos.
Enfrentar o consumo excessivo | A fonte mais poderosa é a mais difícil de alterar. O marketing da moda e a fidelidade a um modelo baseado na obsolescência programada – a prática de criar produtos difíceis de consertar ou que envelhecem rapidamente – criaram uma máquina viciante e muito bem azeitada, movida a dopamina, que produz crescimento constante. Nos Estados Unidos, o consumidor médio compra, atualmente, uma peça de roupa por semana. Se o passado for lido como um prólogo, os países em desenvolvimento provavelmente imitarão esse comportamento.
Nem os mais terríveis alertas de um iminente caos ambiental mudaram os padrões de consumo. Na verdade, a pressão da indústria da moda em prol do uso de seus “materiais preferidos” (considerados menos danosos ao meio-ambiente) e de selos de sustentabilidade tem o intuito de aumentar a preferência por certas marcas e incentivar o consumo. Não faz sentido alegar que as vendas de mais unidades de sapatos e camisetas “sustentáveis”
está claro quão eficazes serão. Uma abordagem mais direta seria o governo estabelecer limites em relação aos impactos ambientais, tais como emissões de carbono, mas permitindo que as empresas determinem de que modo as promoverão. Uma lei proposta em Nova York – o Fashion Sustainability and Social Accountability Act – faz exatamente isso: pede que as empresas do setor da moda que vendem no estado reduzam suas emissões com base na meta de restringir o aumento da temperatura global a 1,5 ºC. Caso as empresas não cumpram a meta, podem ser multadas em até 2% de suas receitas.
Além disso, cabe a representantes eleitos supervisionar e validar alegações da indústria. Empresas do setor da moda não deveriam promover termos como “circular”, “ecológica” ou “sustentável” em seus produtos até que sejam estabelecidas definições legais (similar ao que ocorre com alimentos orgânicos) e o processo de compliance esteja assegurado. Na Noruega, leis como essas estão em vigor e, recentemente, a H&M enfrentou problemas com as autoridades por divulgar informações a respeito de sustentabilidade que eram incompletas ou enganosas. Por conseguinte, a marca concordou em suspender as alegações e doar € 500 mil para causas ligadas à sustentabilidade no mundo da moda. O Reino Unido e a União Europeia também estão enfrentando alegações falsas com soluções legais.
Por fim, leis de responsabilidade estendida do produtor (EPR, na sigla em inglês) fazem as marcas pagarem pelos custos do fim da vida útil de um produto. A França tem uma lei de EPR vigente para o setor têxtil desde 2007, e o plano circular da União
Dada a urgência, já passou muito da hora de admitir que soluções voluntárias comandadas pelo mercado não serão adequadas para lidar com externalidades ambientais negativas
Europeia também contempla regulamentações EPR. Estudos mostram que essas leis são eficazes para o aumento da taxa de reciclagem e, dependendo de sua elaboração, podem incentivar a fabricação de produtos mais benignos e reutilizáveis. Para aumentar a porcentagem de roupas recicladas, é preciso levar em conta taxas mais altas de EPR sobre peças de materiais mistos. A digitalização obrigatória da procedência das peças de roupa também melhora a eficácia da EPR e a aceitação de peças recicladas.
Apoiar soluções inovadoras | A Lei de Redução da Inflação promulgada em 2022 nos Estados Unidos destinou US$ 27 bilhões para financiar um fundo para redução de gases de efeito estufa, visando investimentos em tecnologias de descarbonização promissoras. Um veículo internacional semelhante, para financiar soluções prósperas no setor da moda, permitiria maior comercialização de boas ideias regenerativas. Segundo um estudo de 2020 do BCG, Financing the Transformation in Fashion (Financiar a transformação na moda), a indústria precisa investir de US$ 20 bilhões a US$ 30 bilhões ao ano para promover uma mudança radical no tocante à sustentabilidade – um financiamento como esse provavelmente teria de vir tanto do setor público quanto do privado. A Closed Loop Partners é um exemplo de empresa de investimentos privados que apoia soluções inovadoras voltadas para a sustentabilidade com recursos de concorrentes do setor. Esse modelo, no qual investidores também atuam como validadores e usuários de novas tecnologias, pode ser ampliado no mundo da moda.
Dito isso, o grosso do financiamento de inovação no setor da moda não vai para as maiores fontes de emissão. Atualmente, o capital é destinado primordialmente a materiais novos – que representam cerca de 15% da pegada de gases de efeito estufa de um produto – ou a soluções para novos modelos de negócios, ao passo que o grosso das emissões ocorre nos estágios de processamento da produção. Isso ocorre longe do mundo desenvolvido, nas fábricas de tecelagem, tingimento e acabamento terceirizadas, localizadas principalmente no leste do continente asiático e geralmente alimentadas a carvão. Se os custos não representassem um problema, as emissões provocadas pela fabricação de roupas diminuiriam em mais de 25% com a mudança da produção da China para lugares com uma matriz energética mais limpa, como Turquia e União Europeia.
Na verdade, um acordo financeiro firmado recentemente provavelmente vai fazer mais para moderar as emissões de carbono da indústria da moda do que todos os compromissos com a circularidade. Com o apoio tanto de instituições públicas quanto de bancos privados, o Vietnã anunciou a chamada Just Energy Transition Partnership (Jetp), um compromisso de financiamento de US$ 15,5 bilhões a serem investidos em um período de três a cinco anos. Esses fundos serão usados para acelerar a transição do país de carvão para fontes renováveis, reduzindo, assim, as emissões das fábricas de fornecedores localizados neste que é o segundo maior exportador de peças de vestuário do mundo.
Acelerar a colaboração na indústria e entre setores | A indústria da moda é, há tempos, um baluarte da criatividade. Administrada de uma maneira diferente, a criatividade nascida do cerceamento tem potencial para promover progressos. Um consórcio entre concorrentes das principais marcas pode, por exemplo, adotar ferramentas, padrões e materiais para garantir que, desde a fase
inicial, os projetos levem em conta o que acontece quando cada produto é descartado.
Recentemente, em um exemplo instrutivo, os departamentos de design dos refrigerantes concorrentes Mountain Dew e Sprite promoveram a troca de suas tradicionais garrafas plásticas verdes por garrafas transparentes. As duas empresas escolheram aumentar o fornecimento de conteúdo reciclável para ajudar a enfrentar a escassez de garrafas PET recicláveis no setor. Apesar dos receios comerciais, a embalagem transparente não prejudicou as vendas. Agindo de modo independente, a empresa de roupas italiana Napapijri apresentou há pouco uma jaqueta produzida inteiramente de um só polímero, e a marca francesa Salomon lançou um tênis feito de um material projetado para, por meio de upcycling, ser transformado em um par de botas de esqui. Em ambos os casos, as decisões de design tiveram como objetivo promover a reutilização de materiais no final da vida útil desses produtos.
Para reverter sua crescente pegada ambiental, a indústria da moda deve colaborar com concorrentes, operadores de outros setores, investidores e o setor público. Uma sugestão para uma parceria assim seria a união dos principais CEOs da moda para fazer lobby por uma nova parceria público-privada do tipo Jetp em algum outro importante centro de produção do Sudeste Asiático, como Bangladesh, a fim de acelerar a transformação da matriz energética de combustíveis fósseis para energia renovável. Executivos da indústria da moda poderiam alavancar tal ideia concordando em ajudar a financiar o acordo ao lado de instituições bancárias parceiras.
Um esforço coletivo
Inovação e investimento em materiais e soluções de reciclagem são passos positivos em prol da redução dos efeitos negativos provocados pela indústria da moda. Contudo, quando se trata de sustentabilidade, a retórica está à frente da realidade, e o dano ambiental continua a superar a velocidade da transformação circular. Dados os obstáculos à circularidade, bem como sua incipiência, um progresso genuíno para um mundo da moda sustentável virá apenas com a junção de regulamentações e investimentos do setor com parcerias intersetoriais – e não de metas irreais ou específicas decididas pelas empresas.
Na mesma conferência da GFA na qual a H&M apresentou suas metas de descarbonização, o mediador de um dos debates perguntou aos palestrantes a respeito de um prazo para alcançar a economia circular. “Vai levar uma eternidade”, gracejou William McDonough. Um mau presságio, levando em conta que McDonough é autor do livro Cradle to Cradle, um dos manifestos de origem do movimento circular.
Em vez de esperar uma eternidade, um cético diria que o foco na circularidade é uma distração com o intuito de preservar o status quo e que o maior obstáculo à sustentabilidade é o consumo desenfreado fomentado pela própria indústria. É hora de lidar com essa distração.
Respostas
Roland Geyer

Professor
KEN PUCKER PROPÕE uma crítica necessária, e muito bem-vinda, ao entusiasmo ingênuo que atualmente cerca a economia circular (EC) – na verdade, sua crítica é até tímida.
Antes de mais nada, devemos nos lembrar de que EC é uma nova embalagem para duas estratégias ambientais tão antigas quanto o próprio movimento ambiental moderno, a reutilização e a reciclagem. São mais de 50 anos de experiências com essas práticas, mas entusiastas da EC ou desconhecem esse fato ou não dão crédito a ele e, por isso, não estão aprendendo com fracassos passados.
Fico feliz que Pucker nos recorde de que a moda estéril da EC é, no fundo, mais uma promessa que tem como objetivo dissociar impacto social de crescimento econômico (“ecoeficiência”) por meio da confiança plena nos mecanismos de mercados (“ganha-ganha”). Ecoeficiência e ganha-ganha têm sido paradigmas predominantes de sustentabilidade corporativa desde que o Conselho Empresarial Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (WBCSD, na sigla em inglês), liderado por CEOs, os popularizou na Eco-1992, no Rio de Janeiro. Contudo, sob qualquer critério que se adote, o meio ambiente global continua se degradando. As emissões anuais de CO2 em todo o mundo aumentaram mais de 60% desde então – e seguem aumentando. Já passa da hora de admitir que a confiança plena na ecoeficiência não deu certo. Além disso, o histórico do ganha-ganha é tão terrível que até profissionais e acadêmicos de sustentabilidade corporativa têm implorado para que o abandonemos. Assim, não consigo entender como uma empresa é capaz de estabelecer metas para dobrar suas receitas e reduzir pela metade as emissões de CO2 sem enrubescer.
Mesmo os dois exemplos de sucesso da circularidade apresentados por Pucker, quando analisados mais detidamente, parecem mais fracassos. Nos Estados Unidos, a taxa de reciclagem de garrafas PET, chamadas de “estrelas da reciclagem plástica” pela Plastics News, gira em torno de 20% – o que significa que quatro de cada cinco garrafas PET nunca recebem uma segunda vida e acabam no meio ambiente, ou incineradas em aterros sanitários. A taxa de reciclagem de latas de alumínio dos Estados Unidos, que a empresa de comunicação GreenBiz chama de “a
mais bem-sucedida história de reciclagem” do país, caiu de mais de 60% nos anos 1990 para 45% nos dias de hoje. Se esses são os números que a indústria da moda ambiciona, é só porque nela a circularidade é praticamente inexistente.
Ao contrário da afirmação de Pucker de que faltam sistemas de análise ambiental circular, dados e avaliações ambientais sobre estratégias de reutilização e reciclagem existem em profusão e oferecem insights importantes e úteis. Por exemplo, tanto o baixo custo da reciclagem de alumínio quanto as emissões ainda mais baixas de gás de efeito estufa são bem documentados. Em vista disso, o fato de não conseguirmos nem sequer concluir o ciclo das latas não é um bom presságio. Também está claro que os benefícios da reciclagem em geral não são tão altos. Fibras sintéticas recicladas pós-consumo, por exemplo, ainda trazem consigo de 60% a 80% das pegadas de carbono da matéria-prima virgem. Pucker menciona a preservação de recursos como uma motivação importante para a circularidade, mas dados mostram que seu esgotamento é a menor de nossas preocupações: teremos destruído o ambiente natural e o clima muito antes de ficarmos sem minérios ou combustíveis fósseis. O insight mais importante oriundo da atual pesquisa sobre circularidade é aquele que mostra que o único benefício ambiental dela é a redução das atividades de produção com matéria-prima virgem. É possível, no entanto, aumentar a reutilização e a reciclagem sem reduzir essa produção e o consumo de produtos novos – um fenômeno que eu e Trevor Zink, professor de gestão e sustentabilidade, chamamos de “rebote da economia circular”. Como o propósito ambiental da EC é reduzir essa produção, sua métrica mais importante são os níveis de produção. Porém, como Pucker observa precisamente, eles continuam crescendo, tanto na indústria da moda quanto em outras.
É maravilhoso ouvir um especialista em sustentabilidade corporativa como Pucker afirmar que a ação mais importante da sustentabilidade corporativa é reduzir o consumo excessivo, algo que exigirá apoio regulamentar sólido. Pucker chega a essa conclusão com base em uma coisa óbvia: a confiança resoluta nas estratégias de ecoeficiência e ganha-ganha não produziu, nem produzirá, sustentabilidade. Quanto mais cedo a comunidade da EC e a indústria da moda aceitarem isso, maior a esperança de esforços de circularidade mais significativos entre setores. Adotar ações reguladoras e abandonar o paradigma do ganha-ganha nos permite ver que a verdadeira barreira econômica à circularidade não é o custo de reutilização e reciclagem, mas o barateamento de materiais virgens e produtos novos, posto que todo seu custo ambiental e social ainda é integralmente terceirizado. Pucker, como praticamente todo mundo, omite uma vantagem importante da sustentabilidade: a mão de obra. O tempo e a habilidade das pessoas são o único insumo da cadeia de suprimento que não causa impacto social, e é por isso que as avaliações ambientais de produtos ignoram todos os insumos de mão de obra. Um dos motivos que fazem com que reparo, reutilização e reciclagem tenham impactos ambientais menores do que a produção com matéria-prima virgem é o fato de exigirem menos
insumos, ainda que demandem mais mão de obra. A indústria da moda poderia diminuir seu impacto ambiental concentrando suas fontes de receita não em material e energia, mas em mão de obra. Essa transição pode ser atingida pagando mais para os trabalhadores do setor de vestuário, uma vez que a maior parte deles ainda vive com um salário mínimo. Essa estratégia também ajudaria a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU que buscam a erradicação da pobreza e da fome e defendem o trabalho decente, a educação de qualidade e a redução das desigualdades. Aumentar, de fato e ao mesmo tempo, a sustentabilidade ambiental e a social, eis aí uma estratégia ganha-ganha que tem meu apoio. O
Dominique Drakeford
Mãe, educadora alternativa de justiça ambiental, escritora, pesquisadora independente e contadora de histórias criativas. Participou da fundação da Sustainable Brooklyn e trabalhou em diversos programas e projetos regionais e internacionais que promovem sustentabilidade cultural.
FOI RECONFORTANTE ler a análise de Ken Pucker sobre o papel da moda na crise climática e acerca de como as empresas se comprometeram com a propaganda do modelo circular apesar de continuarem apegadas à lucratividade. No entanto, embora seja louvável que especialistas em sustentabilidade e profissionais do mundo empresarial como Pucker comecem a esmiuçar modelos de negócios lineares, eles seguem ignorando o ecossistema – há muito existente – das ideias e ações de negros, pardos e indígenas a respeito da circularidade.
Como mulher negra com mais de 15 anos de experiência em pesquisa independente e educação alternativa, venho defendendo uma mudança de paradigma na questão da sustentabilidade para que ideias e práticas decoloniais ocupem o cerne das discussões. Atualmente, todos os aspectos predominantes no discurso e na prática da sustentabilidade centram-se em pessoas brancas. Críticas como a feita por Pucker não levam em conta como a supremacia e a colonização brancas – os séculos de sistemas escravocratas que fundamentaram a economia capitalista internacional, a extração de terras e recursos indígenas, bem como a contínua exploração da propriedade intelectual negra e parda – afetam os esforços de circularidade.

A intrincada devastação causada pela crise climática – desde relatórios terríveis sobre emissões de carbono a eventos extremos cada vez mais frequentes – deveria nos forçar a enfrentar suas raízes profundas, que se cruzam com a colonização, o racismo e o capitalismo. Na verdade, líderes na área da sustentabilidade estão focados em ajeitar os caules, os galhos e as folhas da árvore, e não em enfrentar o sistema colonial do setor da moda e os nutrientes capitalistas que mantêm viva a árvore invasora. Especialistas em sustentabilidade, por exemplo, seguem clamando por transparência na cadeia de suprimentos. Contu-
do, criticar a cadeia de suprimento dos negócios corporativos, descartar relatórios ambientais mecânicos que amparam estratégias de descarbonização e desmontar ferramentas de responsabilização (certificados, por exemplo) que não oferecem métricas padronizadas é fácil. Essas críticas se tornaram redundantes e claramente não levaram a nenhuma melhora significativa no modo como fazemos negócios ou preservamos o meio ambiente. Chamo esse foco seletivo em fatores climáticos secundários e seus efeitos de nossa “crise climática colonial” e acredito que essa seja a principal barreira à circularidade.
Esforços de circularidade continuarão a patinar até que esmiucemos a questão da colonização e criemos um arcabouço analítico fundado na propriedade intelectual e na expertise de pessoas racialmente marginalizadas.
Em meu próximo livro sobre sustentabilidade cultural negra, digo que esse arcabouço deve considerar os efeitos sistêmicos do colonialismo, do racismo contra negros e do racismo ambiental e, ainda, incorporar reparações ecológicas para negros e afro-indígenas descendentes da escravidão.
Aqueles na indústria da moda que buscam enfrentar as raízes profundas da nossa crise climática e promover soluções para isso podem começar fazendo as seguintes perguntas:
• Como eram as indústrias regenerativas de tecido e a tecnologia têxtil antes da colonização?
• Como o comércio transatlântico de escravos financiou a “explosão do algodão” e deu origem à multibilionária indústria da moda atual?
• Como o capitalismo, o expansionismo europeu e a Revolução Industrial iniciaram e promoveram o esgotamento de recursos, o desperdício e o descarte da agricultura, da mão de obra e da propriedade intelectual dos negros?
• Quais são os fatores que mantêm o esgotamento de recursos e a exploração da mão de obra por meio de práticas de extração e desapropriação de terra e desalojamento de povos nativos?
• De que maneira a antinegritude molda o discurso da sustentabilidade? Quem está criando as medidas e os arcabouços analíticos usados para avaliar a sustentabilidade?
• Qual a importância das reparações ecológicas para reverter a crise colonial climática?
• Quais são as vanguardas negras e indígenas que criaram modelos para desenvolver sustentabilidade e de que maneira podemos incorporar, de forma igualitária, suas práticas e ideias a sistemas de mudança mais amplos?
Essas questões abordam o que eu acredito serem os três pilares do atual sistema de colonização: política (controle do acesso); educação (controle da informação); e marketing (controle da percepção). Além disso, fazem com que cada um avalie suas fontes e redes de conhecimento para dar início ao trabalho de descentralização da branquitude em suas ações de sustentabilidade. Nosso trabalho de sustentabilidade só pode promover um impacto profundo se pesquisarmos, investirmos, aprendermos e valorizarmos, de forma igualitária, o conhecimento e a prática
negra, parda e indígena, Devemos decolonizar a circularidade para provocar mudanças tanto em nosso modo de pensar quanto nas políticas coletivas. O
Maxine Bédat

Diretora do New Standard Institute e autora de Unraveled: The Life and Death of a Garment
O ARTIGO DE KEN PUCKER descreve claramente tanto as barreiras à circularidade quanto suas limitações práticas para enfrentar o desafio de viver em um planeta dotado de recursos finitos. Seu conjunto de recomendações também é útil para promover um progresso mensurável na aceitação de práticas circulares na indústria da moda. Porém, diante das limitações que ele descreve, devemos considerar o que precisa acontecer para que essas recomendações sejam implementadas de forma realista. A solução não é tão simples quanto afirmar que “precisamos de regulamentação” ou que “precisamos consumir menos”. Todos os que nos interessamos por mudanças sistêmicas temos de lidar com “comos”, e não apenas com os “quês”.
Há que analisar as relações entre a crítica que Pucker faz e suas recomendações. A primeira barreira que ele opõe à circularidade, “incentivos e objetivos sistêmicos inalterados”, por exemplo, critica incentivos de empresas de capital aberto vinculados ao crescimento de receita a curto prazo e à maximização de lucro. No entanto, essa barreira é um obstáculo para que a indústria adote sua segunda recomendação, “regular de maneira eficaz”. Como os executivos da moda são incentivados financeiramente a gerar receitas e aumentar lucros a curto prazo, são igualmente incentivados a bloquear regulamentações capazes de restringir esse crescimento, um padrão que de fato testemunhamos no setor da moda atualmente. Enquanto organizações e pessoas, inclusive eu, trabalham para promover o Fashion Sustainability and Social Accountability Act do estado de Nova York, lei que estabelece pisos ambientais e trabalhistas para a produção no mundo da moda, empresas e associações comerciais da indústria silenciosamente contratam lobistas para desabonar a legislação proposta, ao mesmo tempo que promovem suas próprias iniciativas limitadas de circularidade.
O que tampouco se avalia no artigo de Pucker é o papel que desempenham organizações sem fins lucrativos cooptadas pelo mundo corporativo – parte delas da Sustentabilidade S.A. – para impedir o progresso rumo à sustentabilidade. “Cooptação corporativa” é o fenômeno no qual a indústria exerce seu poder para controlar o processo de tomada de decisão em um domínio específico, neste caso, a autoridade tomadora de decisões em organizações sem fins lucrativos. Apesar da benevolência supostamente inerente a sua atuação, essas entidades dão a financiadores e cidadãos em geral uma falsa esperança de que estão efetivamente
lidando com questões de sustentabilidade. A consequência dessa propaganda falsa é a absorção de dólares que poderiam ir para medidas mais efetivas, como regulamentações. Destinar recursos a essas organizações apenas mantém o status quo da Sustentabilidade S.A.
Ainda que legalmente, essas organizações devam ter um propósito benevolente, nada na lei especifica o ritmo ou a eficácia da entidade em promover mudanças. E como essas organizações sem fins lucrativos sofrem “cooptação corporativa”, elas estabelecem metas voluntárias e gelidamente lentas que, caso não sejam cumpridas, não terão consequências sérias – enquanto isso, geleiras de verdade derretem rapidamente. A melhor analogia para o trabalho enganoso das organizações sem fins lucrativos da Sustentabilidade S.A. foi feita por Tariq Fancy, ex-diretor de TI de investimento sustentável da BlackRock: é como se um médico dissesse a um paciente com câncer que ingerisse grama de trigo, tendo quimioterapia à disposição. O planeta enfrenta um problema grave de saúde, e entidades sem fins lucrativos cooptadas estão vendendo a grama de trigo das medidas voluntárias e lentas, sendo que os legisladores têm à sua disposição quimioterapia na forma de metas de sustentabilidade legalmente impostas. Financiadores que buscam realizar progressos mensuráveis devem evitar se distrair com as organizações sem fins lucrativos da Sustentabilidade S.A. e, em vez disso, empregar recursos para combater esforços corporativos lobistas e ajudar a aprovar o tipo de regulamentação recomendada por Pucker.
Fundações e doadores comprometidos com mudanças estruturais também precisam examinar suas limitações estruturais para o financiamento de esforços lobistas e, então, pensar em novos meios filantrópicos, como instituições de promoção do bem-estar social capazes de promover esses esforços de maneira mais fluida do que as entidades isentas de impostos. Os recursos financeiros podem, então, ser utilizados tanto para defender soluções políticas específicas como para educar os cidadãos sobre a Sustentabilidade S.A. e o papel poderoso que exercem na exigência por mudança e responsabilização – não de empresas, mas de seus representantes eleitos, que são capazes de garantir que soluções regulamentadoras sejam transformadas em leis.
A regulamentação eficaz é peça-chave para que a indústria adote as demais recomendações de Pucker. Por exemplo, uma lei que exija que empresas da moda cumpram metas com base na ciência certamente acelerará o investimento do setor em soluções inovadoras e na colaboração intersetorial, uma vez que todos terão de se adequar, forçando-os a investir recursos e a colaborar entre si para isso. Concordo com Pucker que utilizar o poder coercitivo do Estado – especialmente sua capacidade de fomentar multas – promove obediência corporativa.
Para seguir todas as recomendações de Pucker e, em última análise, alcançar a sustentabilidade, precisamos que aqueles que se consideram parte da Sustentabilidade S.A. – da qual Pucker já foi parte – tenham coragem de afirmar publicamente as coisas que os ouvi dizer em particular, mesmo quando essas afirmações se choquem com a maximização do lucro a curto prazo. Depois,
precisamos que cidadãos e doadores compreendam o papel que desempenham, tanto como incentivadores da fantasia promovida pela Sustentabilidade S.A. quanto como catalisadores da luta por legislações que ofereçam salvaguardas contra o capitalismo.
Claro que nenhuma dessas tarefas é fácil. Porém liderar exige projetar a rota para que o sistema de mercado prospere em um planeta com recursos e tempo escassos, e precisamos de uma liderança resoluta agora. O
Yuly Fuentes-Medel
Gerente do programa de Tecnologias de Fibras no Massachusetts Institute of Technology e consultora-sênior do Closed Loop Partners. É também presidente do conselho da Aliança Chile-Massachusetts, que apoia o intercâmbio internacional de investimento, comércio tecnológico, talento e impacto social.
AS DECISÕES DAS PESSOAS SÃO essenciais para que as regras de uma economia saudável sejam estabelecidas. No caso da sustentabilidade, concordo com Pucker que a colaboração pré-concorrencial é a única maneira de alcançar um futuro circular. Passei a acreditar que são as pessoas, não modelos de negócio ou inovações, que mudam as indústrias.
Meu olhar para a questão da sustentabilidade na moda é o de uma bioquímica formada em neurociência molecular e desenvolvimento econômico, alguém que atua na intersecção entre moda, tecnologia e negócio. Incentivos financeiros, comportamentos humanos e a ciência de materiais voltados para os recursos do planeta são fatores ligados à sustentabilidade. Há mais de uma década, fundei a Descience, plataforma de pesquisa que reúne cientistas e designers da moda para o desenvolvimento conjunto de produtos. Tanto na Descience quanto no Massachusetts Institute of Technology (MIT), testemunhei o compromisso de pessoas do mundo da moda com a utilização de materiais alternativos, a adoção de práticas sustentáveis de produção e novos modelos de propriedade de consumo, bem como com investimentos em toda a cadeia de valor da indústria. Em virtude dos esforços dessas pessoas, sou uma defensora otimista da economia circular.
A economia circular está enraizada na ideia de que podemos criar valor a partir de resíduos. O que, de fato, nos impede de alcançar isso? Vejo duas razões interligadas: a mentalidade linear estabelecida e a escassez de sistemas circulares, algo necessário para libertar as pessoas dessa mentalidade.
A indústria da moda abordou a circularidade de modo tímido, investindo, explorando e executando planos relativamente pequenos em volume, em vez de criar colaborações formais voltadas a levar crescimento e eficiência em níveis significativos às iniciativas circulares. Por exemplo, as cadeias de suprimento do setor, embora frequentemente compartilhadas por múltiplas marcas, são geridas de modo independente. Essa estrutura faz com que seja incrivelmente complexo estabelecer tanto a infraestrutura necessária para reciclar resíduos de forma eficaz quanto mer-
cados secundários eficazes para recriar valor. As pessoas que atuam nessas cadeias de suprimento precisam agir juntas para determinar onde e como seus modelos de negócio em desenvolvimento podem contribuir com a circularidade.

Nos últimos anos, CEOs do mundo da moda começaram a explorar mais ações coletivas entre marcas concorrentes (The Fashion Impact, coalizão internacional que reúne empresas e fornecedores comprometidos em mitigar a mudança climática) e empreendedores (Fashion for Good, organização que conecta marcas, varejistas, produtores e financiadores a potenciais inovações sustentáveis). Contudo ainda não existe uma colaboração bem definida entre marcas, investidores e universidades para estabelecer um processo de desenvolvimento sólido para a circularidade. Na verdade, os CEOs continuam voltados para a lucratividade das próximas coleções, em vez de mirarem a futura sustentabilidade financeira e ambiental da indústria.
Como Pucker, acredito que a colaboração se faz necessária. Atuo como codiretora do MIT Fabric Innovation Hub, rede da universidade que congrega docentes, discentes e autoridades da indústria têxtil em prol de desenvolver tecnologias para criar uma cadeia de suprimentos mais circular. No ano passado, realizamos um congresso com especialistas de 15 marcas de calçados, acadêmicos, capitalistas de risco, funcionários do governo local e organizações sem fins lucrativos para discutir maneiras de tornar a indústria mais sustentável. Durante as discussões, representantes das marcas perceberam que enfrentavam os mesmos desafios: desenvolver materiais sustentáveis, investir na infraestrutura circular e fomentar a participação do consumidor.
As conclusões do evento, publicadas em TheFootwearManifesto [manifesto calçadista], coincidem com o argumento de Pucker de que a combinação de uma visão isolada dos investimentos, regras rígidas de propriedade intelectual e falta de colaboração impedem a indústria de agilizar a circularidade. Uma economia circular lucrativa depende de crescimento. Quando as empresas agem sozinhas, seu crescimento, tenha o tamanho que for, não basta para justificar investimentos na construção de uma infraestrutura circular, experimentar com a criação de materiais mais sustentáveis, adotar processos de produção mais ambientalmente ecológicos e remodelar os comportamentos do consumidor.
Para que a colaboração seja possível e desejável para as partes interessadas, precisamos, primeiro, de capital paciente – disposto a esperar um período mais longo pelo retorno –, a fim de dar margem para que canais se desenvolvam e novas tecnologias sejam ampliadas. Ao mesmo tempo, as marcas precisam fazer sua parte, incentivando a adoção dessas tecnologias com o intuito de garantir que o investimento compense lá adiante. Ademais, bancos, governos e fornecedores devem colaborar para construir a infraestrutura necessária para um novo conjunto de regulamentações. Players da indústria, instituições financeiras, governos e filantropos devem encontrar maneiras de empregar capital para apoiar tanto as necessidades dos parceiros da cadeia de suprimentos quanto a criação de comunidades circulares que permitam à indústria da moda maximizar valor material e minimizar resíduos.
Pucker menciona que outras indústrias alcançaram colaboração intersetorial; no entanto, a da moda carece de espaços de ação coletiva para adotar a circularidade de maneira ampla. Após o congresso do MIT, criar esse espaço passou a ser minha prioridade e tenho trabalhado para promover The Footwear Collective (TFC), coletivo estabelecido pela organização sem fins lucrativos EarthDNA em 2023. Trata-se de uma plataforma na qual colaborações pré-concorrenciais – como a definição de métricas pelas quais responsabilizar a indústria – podem fomentar progresso ampliável rumo à sustentabilidade.
Como cidadãos, devemos reconhecer que os recursos do nosso planeta são finitos. Concordo com Pucker: a economia linear é consequência das decisões das pessoas, que optaram por otimizar as cadeias de suprimentos em prol de crescimento e lucro. As organizações não são geridas por conta própria, são as pessoas que operam e fomentam mudanças. Como participantes dessa economia linear, temos a oportunidade de trabalhar juntos para definir regras da colaboração, compartilhar conhecimento e investir, coletivamente, para fazer dela uma economia circular que beneficie as pessoas e o planeta. O
Nancy Bocken
Professora de negócios sustentáveis no Maastricht Sustainability Institute (MSI) da Universidade de Maastricht. É também membro do Cambridge Institute for Sustainability Leadership, do conselho da Fundação Philips e consultora na TNO, organização holandesa de ciências aplicadas, além de cofundadora da HOMIE, empresa sustentável.

KEN PUCKER DEFENDE, de maneira convincente, a necessidade de alterarmos nossa perspectiva a respeito de como deve ser uma economia circular sustentável – sem greenwashing ou meras mudanças graduais. Suas críticas estão alinhadas ao que meus colegas e eu chamamos de “economia circular baseada na suficiência”, na qual estratégias de reutilização, redução e reavaliação de consumo são priorizadas em detrimento de estratégias de reciclagem.
Em nossos estudos, investigamos de que maneira as empresas podem adotar estratégias mais desafiadoras, tais como suficiência ou menos consumo de produtos no total Ao analisarmos 150 empresas que promovem o consumo sustentável em diferentes setores, descobrimos que apenas 30 delas questionam publicamente a necessidade de consumo ou desestimulam vendas desnecessárias. Em outras palavras, a suficiência ainda é uma prática de nicho. Enquanto a minoria das empresas estudadas busca essas estratégias mais radicais, outras desestimulam, indiretamente, o consumo desnecessário, favorecendo maior vida útil para um produto – oferecendo, por exemplo, garantias estendidas ou serviços de conserto.
Pucker critica a economia circular por ser uma “distração” e um “obstáculo” em potencial para lidar com o consumo insustentável. Em vez de descartar o conceito de economia circular por
completo, acredito, assim como Pucker, que empresas e legisladores devem priorizar a suficiência, em vez da reciclagem.
De acordo com Pucker, empresas do mundo da moda não são suficientemente diretas em seus esforços circulares. É fato que algumas das maiores empresas concentraram-se primordialmente em estratégias de eficiência e reciclagem que proporcionam ganhos financeiros imediatos e que elas não são responsabilizadas por seus impactos ambientais e sociais. Mas há algumas exceções notáveis, incluindo legislações como o Fashion Sustainability and Social Accountability Act de Nova York.
Esforços de sustentabilidade, contudo, não devem ser fomentados apenas por legislações; devem também partir das empresas. Em seu livro Net Positive, Andrew Winston e Paul Polman defendem que as empresas ampliem sua influência positiva para além de suas práticas, o que incluiria evitar consumo e produção desnecessários. Afirmam, ainda, que ampliar tal influência é uma oportunidade para as empresas se manterem competitivas a longo prazo – estando, por exemplo, à frente da legislação e permanecendo atraentes para clientes, parceiros da cadeia de suprimentos e empregados. O exemplo de Paul Polman, que defende um papel maior e mais positivo para os negócios na sociedade desde a época em que era CEO da Unilever, deve servir de inspiração para os demais.
Pucker critica modelos de negócio circulares por não serem ampliáveis. De fato, a teoria da inovação indica que empresas passam a maior parte de seu tempo explorando seu modelo de negócio e otimizando o que é conhecido, e não explorando oportunidades novas. Devemos elogiar empresas que abertamente desafiam seus modelos de negócio lineares testando novos modelos. Impulsionada pela futura legislação da União Europeia, a Ikea passou a disponibilizar peças de reposição para seus móveis com mais rapidez, além de ter testado a oferta de produtos de segunda mão. A H&M tem uma iniciativa que ajuda clientes a consertarem suas roupas para aumentar sua vida útil. Diversas corporações – incentivadas pela legislação, pelo interesse dos clientes e por organizações – começaram a desenvolver visões de economia circular que as levaram a desafiar seus modelos de negócio lineares. Contudo é importante observar que adotar um modelo de negócio circular demora, porque as empresas não podem abandonar habilidades, ativos, práticas e a base de empregados da noite para o dia.
O caminho para que as empresas compreendam quais modelos de negócio funcionam na prática se dá por experimentação e tentativa. É verdade que o ritmo pode ser bem maior do que o adotado por muitas empresas atualmente. Porém os programas-piloto das empresas devem ser aplaudidos, uma vez que sinalizam que tanto elas como nós, consumidores, devemos começar a mudar nossos comportamentos.
Pucker apresenta quatro formas de promover a circularidade por meio de políticas públicas; vou me concentrar no consumo excessivo, porque está no cerne das questões de sustentabilidade em muitos setores. Ele menciona a necessidade de aumentar impostos. Embora isso possa reduzir o consumo total de itens da
indústria da moda, o aumento dos preços afetaria, de maneira desigual, os consumidores mais pobres.
Uma medida mais radical seria estabelecer limites para o uso, na venda e no consumo de recursos. Exemplos possíveis seriam cotas para viagens aéreas anuais, quilometragem do carro e tarifas progressivas de combustível e eletricidade, em que estes se tornassem mais caros conforme aumenta seu uso. Essas políticas poderiam ser adotadas gradualmente, por meio do aumento de impostos sobre algumas das indústrias menos sustentáveis (aviação, automotiva, pecuária), e as receitas poderiam ser usadas para desenvolver alternativas mais limpas. Por fim, deve-se regulamentar a obsolescência programada e o marketing de produtos que fomentem padrões de consumo não sustentáveis.
Assim, soluções para a mudança climática não devem ser deixadas apenas nas mãos de legisladores e empresas. Nós, como cidadãos globais e consumidores de produtos e serviços, também devemos participar. Um estudo de 2017, conduzido por pesquisadores da Universidade de Lund, na Suécia, destaca a importância das escolhas pessoais para ajudar a solucionar a crise climática. O que comemos, como nos deslocamos e o que compramos afeta nossa pegada de carbono. Ao adotar modelos de negócio baseados na reutilização de produtos, compartilhamento de automóveis e prevenção de desperdício alimentar, podemos nos tornar parte da transição para a economia circular. O
Ron Gonen
Fundador e CEO da Closed Loop Partners.

A INDÚSTRIA DA MODA nem sempre cresceu – ou apresentou a pegada ambiental – no ritmo que conhecemos atualmente. Nos anos 1940, meu avô era alfaiate em Tel Aviv, e a ideia de alguém se desfazer de uma peça de roupa de estimação era impensável, quase como ser convidado a ir à casa de um amigo para jantar e, depois do jantar, jogar seu prato chique fora. O que hoje consideramos ideias circulares – reparo, reutilização e reciclagem, bem como a utilização de uma roupa até que ela acabe – não eram nada de inovador no tempo do meu avô, apenas práticas triviais.
Hoje em dia, porém, a mentalidade de valorizar a qualidade e a longevidade é completamente estranha à indústria da moda. Não vemos nada de mais em nos desfazer de uma peça depois de usá-la algumas vezes. Na verdade, o americano médio descarta mais de 35 quilos de roupa por ano, e os custos financeiros e ambientais desse desperdício tornaram-se inaceitáveis.
O artigo de Ken Pucker mostra a pegada descomunal do setor da moda, que faz dele um dos maiores contribuidores para a poluição e a degradação do meio ambiente – emissões de gás de efeito estufa, desperdício de água, consumo de energia, uso de pesticidas e muito mais. Ademais, o setor demonstra falta de transparência na cadeia de valor e na cultura de subcontratação
no estágio de fabricação, além de exigir receitas a curto prazo para os acionistas. Isso tudo dificulta sua capacidade (e seu desejo) de reduzir a pegada da indústria. Por fim, a total ausência de restrições regulatórias permite que, ano após ano, o setor planeje crescimento sem se responsabilizar pelos efeitos que este provoca nas pessoas e no planeta.
Consumidores e empresas não estão mais dispostos a tolerar os danos ambientais e sociais generalizados da indústria da moda. Felizmente, estamos começando a testemunhar algumas mudanças, catalisadas, em grande parte, pela crescente atenção negativa na imprensa e por críticas feitas por pessoas do setor, como Pucker. Existem oportunidades para soluções inovadoras em todas as áreas, incluindo design, tecnologias de cadeia de suprimento e reciclagem molecular. Esse cenário de soluções emergentes fez do mundo da moda um pilar importante da nossa estratégia de investimento na Closed Loop Partners, onde temos como objetivo capitalizar soluções para a economia circular.
As empresas de nosso portfólio nos dão esperança de que a indústria da moda está levando a sério a transição em direção a um futuro com menos resíduos. Entre elas estão a Browzwear, que desenvolveu uma ferramenta virtual em nuvem que eliminou a necessidade de produtos “demo” físicos nos estágios iniciais de desenvolvimento; a Algaeing, equipe multidisciplinar de cientistas que inventou uma fibra biodegradável à base de algas; e a Dimpora, empresa de materiais que criou uma membrana biodegradável para substituir materiais carregados de produtos químicos presentes em nossos vestuários para atividades ao ar livre. Algumas das empresas do nosso portfólio se concentram no fim do ciclo do produto, incluindo a Evrnu, de inovação têxtil, que criou materiais reutilizáveis por meio da reciclagem molecular.
Concordo com Pucker que uma colaboração pré-concorrencial é fundamental – nesse âmbito, nosso trabalho com outros setores também rendeu frutos. Em nosso centro de inovação, um grupo de empresas trabalha na iniciativa Beyond the Bag, para desenvolver uma alternativa à sacola de plástico descartável. Nosso consórcio de marcas e fabricantes da indústria alimentícia visa eliminar embalagens de produtos de fast food descartáveis. A indústria de embalagens ainda tem um longo caminho até a circularidade plena, mas está 20 anos à frente da indústria da moda e pode servir de exemplo para a implementação de práticas e modelos de negócio.
As empresas de moda devem adotar o compartilhamento de conhecimento e perceber que ninguém se beneficia encontrando soluções de forma isolada. Ao adotar modelos e formas de trabalhar baseados em estratégias de reutilização e reparo, as empresas podem tanto obter lucros como ajudar o meio ambiente. Alguns exemplos de práticas de circularidade incluem a preservação de matéria-prima para reutilização, redução da perda de clientes por meio da recompra do produto, participação no mercado de revenda e incentivo à devolução de produtos. As empresas podem puxar a mudança de mentalidade do consumidor – para que seja como era na geração do meu avô, que valorizava qualidade e longevidade. O
Giorgos Demetriou

Diretor do Centro de Pesquisa de Economia Circular da École des Ponts Business School.
Claire Hammon


Doutoranda dedicada a inovação centrada nas pessoas e em inovação social, na École des Ponts Business School. (No alto, à direita)
Valentina Ort
Pesquisadora do Centro de Pesquisa de Economia Circular da École des Ponts Business School. (Embaixo, à direita)
APLAUDIMOS Ken Pucker por recordar os líderes da indústria de seu papel fundamental na adoção de práticas mais sustentáveis para o fomento da economia circular e concordamos com seu apelo para que aceleremos a colaboração intersetorial na produção, a fim de que essas práticas prosperem. Se a indústria da moda está genuinamente comprometida com a transição para uma economia circular, deve abandonar o pensamento isolado e adotar uma mentalidade colaborativa para estabelecer padrões de produção responsáveis com o intuito de reduzir resíduos.
A colaboração é um incentivo essencial para a descoberta e a ampliação de abordagens inovadoras capazes de conduzir a indústria da moda rumo à circularidade, e vemos na simbiose industrial uma abordagem bastante promissora.
Criada pela professora de gestão ambiental industrial Marian R. Chertow, a simbiose industrial é um método que diversas indústrias adotaram para se juntarem e obterem vantagem competitiva graças ao intercâmbio de materiais, energia, água e subprodutos. A abordagem enfrenta o problema dos resíduos têxteis transformando as sobras de um setor no recurso de outro. Tanto a União Europeia quanto a Comissão Europeia adotaram essa estratégia para promover circularidade.
Reduzir o consumo de recurso e reutilizar o que já se possui – duas das estratégias 3Rs para mitigar o desperdício (reduzir, reutilizar e reciclar) – são fatores fundamentais para a simbiose industrial. Levando em conta o papel fundamental que pode desempenhar na promoção de padrões responsáveis de produção, surpreende o fato de Pucker aludir ao método somente ao mencionar o desafio de conectar fluxos de resíduos à produção de reciclagem. De modo específico, ele postula que o consumo excessivo, maior produtor de resíduo têxtil, continua sendo não só “a fonte mais poderosa” para que a moda alcance a circularidade, mas também a “mais difícil de alterar”. Como Pucker observa, a economia linear, predominante na indústria da moda, gera produtos baratos e descartáveis que incentivam altos níveis de consumo essenciais para a lucratividade e o sucesso das empresas do setor – por isso sua principal crítica às empresas recai sobre a Sustentabilidade S.A., cujos esforços coletivos de
circularidade se resumem a pequenos ajustes em seus antigos modelos de negócio lineares.
Romper a dependência desses modelos de negócios profundamente arraigados exige investimento substancial em recursos financeiros e técnicos. No entanto, o risco e a incerteza associados ao custo inicial de mudar para modelos circulares, bem como preocupações com a lucratividade, fazem com que essas grandes empresas sejam menos ágeis na identificação de oportunidades para práticas circulares e colaborações intersetoriais do que empresas de médio porte da indústria da moda.
Empresas relutantes em adotar a circularidade podem se valer de estudos minuciosos que mostram casos bem-sucedidos de simbiose industrial e usá-los para orientar sua transição rumo a um modelo de negócio circular. Nossas pesquisas no Centro de Pesquisa de Economia Circular (Cerc, na sigla em inglês) revelam que a economia circular altera fundamentalmente a manufatura e o consumo de produtos e serviços. O desafio premente, do ponto de vista das empresas, é alcançar crescimento econômico sustentável e proteger o ambiente natural. No Cerc, temos visto evidências crescentes de que modelos de negócio, simbiose industrial e empreendedorismo são fundamentais para o sucesso da circularidade, uma vez que esses elementos facilitam a criação de soluções inovadoras, sustentáveis e economicamente viáveis que ressaltam a eficácia de recursos e a proteção ambiental. Empresas de pequeno e médio portes, ao lado de corporações multinacionais, podem transformar suas operações investindo na simbiose industrial e reconhecendo a importância estratégica de colaborações intersetoriais e parcerias de economia circular.
No entanto, a simbiose industrial não oferece, por si só, uma solução abrangente para o problema do consumo global ou para os efeitos que o excesso dele provoca no clima, embora tenha um tremendo potencial para promover iniciativas em direção à neutralidade de carbono e gerar benefícios micro e macroeconômicos. Grandes corporações com cadeias de valores globais extensas podem utilizar a simbiose industrial para enfrentar as inúmeras barreiras à circularidade apresentadas por Pucker. Além disso, podem impulsionar estratégias de redução e reutilização – o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU de número 12 de consumo e produção responsáveis –, comprometendo-se com novos modelos de negócios que gerem receita com base na otimização de fluxos de recursos dissociados da produção de matéria-prima.
Em última análise, especialistas como Ken Pucker devem ratificar a simbiose industrial como a solução viável para os inúmeros desafios de sustentabilidade enfrentados pela indústria da moda, a fim de que essa abordagem possa conquistar uma aceitação ampla. O





Os ODSs de volta ao caminho certo
Os esforços mundiais para atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável não estão surtindo efeito.
Como as empresas podem se reposicionar para agir corretamente?
POR AMANDA WILLIAMS, PATRICK HAACK E KNUT HAANAESEm 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs), um conjunto de 17 metas ambiciosas para promover a paz, a prosperidade e a sustentabilidade no mundo todo até 2030.
As metas incluíam erradicar a pobreza e a fome, promover a saúde e o bem-estar e tomar medidas drásticas para combater as mudanças climáticas. Cada ODS inclui várias submetas e indicadores.
Em julho de 2022, exatamente na metade do prazo estipulado, as Nações Unidas publicaram o relatório The Sustainable Development Goals Report 2022. O relatório afirmava que a incorporação dos 17 objetivos não estava progredindo e exigia “medidas urgentes para retomar o foco dos ODSs [SDGs, na sigla em inglês, que aparece em citações neste artigo] e produzir os avanços esperados para a população e o planeta até 2030”.
Essa conclusão não deveria causar surpresa. Várias emergências sequenciais e interligadas, como a pandemia de covid-19, a crise climática e a Guerra da Ucrânia, impediram que se tomassem as medidas necessárias para atingir o desenvolvimento sustentável que o mundo esperava até 2030. Segundo os últimos dados e estatísticas, a pandemia causou um retrocesso de quatro anos na redução da miséria, deixando 93 milhões de pessoas a mais em situação de extrema pobreza. As emissões de gases de efeito estufa em escala global também devem aumentar em 14% até 2030. Há um contingente recorde de pessoas deslocadas devido a conflitos em várias regiões do planeta. Além de impedir o avanço dos ODSs, as consequências dessas crises continuam a impactar a resiliência das cadeias de suprimentos e das empresas. No final de 2022, a inflação ameaçou o crescimento econômico, e os países da Europa tiveram dificuldades para garantir um fornecimento estável de energia quando a exportação de gás da Rússia foi interrompida.
O entusiasmo com que os ODSs foram recebidos em 2015 desapareceu. Na época, várias corporações rapidamente apoiaram a agenda. As empresas adotaram os objetivos imediatamente e os incorporaram a sua comunicação e seus relatórios de sustentabilidade. Os ODSs logo se tornaram a linguagem comum entre os stakeholders alinhados com o desenvolvimento sustentável.
Essa adesão foi uma conquista fantástica. A agenda anterior, de 15 anos, proposta pelas Nações Unidas – os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) – considerava as corporações como uma importante fonte de recursos para financiar o processo, e não como parceiros para uma implementação coletiva. As empresas entraram em uma nova era de desenvolvimento sustentável global, e os ODSs abriram caminho para uma visão sistêmica e inclusiva de ação conjunta com vistas a um mundo melhor.
Mas elas não se empenharam o suficiente para tomar novas medidas concretas em relação aos ODSs. O envolvimento decepcionante das companhias parece mais uma “lavagem ODS” – um SDGwashing, como o greenwashing praticado por muitas marcas quando comercializam produtos “verdes”, que na verdade são só um pouco menos danosos que seus pares. As organizações que praticam a lavagem ODS afirmam contribuir para as metas de sustentabilidade social, mas não mostram evidências e ações que sustentem o que dizem. A prática é mais ampla e provavelmente mais prejudicial que o greenwashing, porque abrange questões sociais, econômicas e de governança e é divulgada para uma faixa maior de stakeholders, incluindo governos e organizações não governamentais.
Fazendo uma análise aprofundada sobre a incorporação dos ODSs à estratégia corporativa empresarial, descobrimos que a maioria das companhias realmente adota os objetivos, porém, em geral, o faz somente para constar nos relatórios e com fins de autopromoção. Na maioria das vezes, essas atividades resultam em lavagem ODS.
No entanto, nossa pesquisa também identificou algumas exceções – empresas que estão integrando os ODSs a suas estratégias corporativas. Com base nelas, buscamos entender melhor esses casos raros de maior integração, para que inspirem outras empresas. As práticas e exemplos aqui descritos vieram da pesquisa, mas incluímos outros a título de ilustração.
Lavagem ODS
INICIAMOS O ESTUDO logo após o lançamento dos ODSs, a fim de entender por que as empresas estavam interessadas em adotá-los. Amanda Williams, coautora deste artigo, coletou dados e conduziu o estudo sobre as práticas empresariais para a incorporação dos ODSs de 2015 a 2020. Foram realizadas 48 entrevistas com diretores de sustentabilidade de organizações de diferentes setores, como manufatura, finanças, saúde, bens de consumo, serviços e softwares, em diferentes regiões, como Europa, América do Norte, África e Ásia.
A pesquisa mostrou que as empresas geralmente começam com um mapeamento dos ODSs – uma avaliação de como suas atividades se encaixam nos 17 objetivos. Para que esse desenho seja completo, é preciso avaliar os impactos positivos e negativos das próprias operações ao longo de toda a cadeia de valor, che-
gando ao nível de detalhamento das submetas dos ODSs. Um mapeamento minucioso garante que nenhuma oportunidade ou risco associado aos objetivos seja ignorado. Se bem executado, o mapeamento pode ser um sinal promissor de que a corporação está comprometida com a agenda global. Por outro lado, nossa pesquisa também revelou que mapeamentos ODS abrangentes e transparentes eram raras exceções.
A Evonik, uma indústria química com sede na Alemanha, desenvolveu um processo prático em quatro passos para mapear os ODSs:
1º passo: Determinar o escopo dos impactos positivos, neutros e negativos, em termos absolutos ou relativos (entre produtos comparáveis).
2º passo: Avaliar os impactos dos 17 ODSs antes, durante e depois de cada etapa em toda a linha de produção.
3º passo: Avaliar o significado dos ODSs para os stakeholders mais importantes.
4º passo: Consolidar, priorizar e divulgar os resultados de forma transparente.
A Evonik merece elogios por essa abordagem abrangente. No entanto, a divulgação pública da empresa poderia ser melhor se houvesse mais transparência sobre os impactos negativos (é provável que a Evonik tenha seguido seus próprios processos internamente, mas seus relatórios mencionam somente contribuições positivas para os ODSs).
Já a Samsung, o conglomerado sul-coreano famoso por seus produtos eletrônicos, relatou tanto os impactos negativos diretos quanto os indiretos. O relatório de sustentabilidade de 2018 sobre consumo e produção responsáveis (ODS 12) cita os impactos diretos ou indiretos na redução dos recursos naturais; quanto às ações climáticas (ODS 13), menciona os impactos diretos e indiretos nas mudanças climáticas e na poluição do ar. Embora a Samsung seja transparente sobre alguns impactos negativos, nos relatórios não há explicação para a ausência de qualquer menção a fome zero e agricultura sustentável (ODS 2) e a saúde e bemestar (ODS 3).
Em geral, a maioria das empresas ainda relata somente os impactos positivos relacionados aos objetivos, destaca e enfatiza apenas a contribuição de seus esforços filantrópicos e ignora os impactos da atividade central da empresa. Além disso, seus relatórios de sustentabilidade não costumam passar de um mapeamento ODS superficial.
O interesse das corporações pelos objetivos continua alto. De acordo com a revisão anual de 2022 do Conselho Empresarial Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, Reporting Matters, com base nos relatórios de sustentabilidade das empresas participantes, 94% mencionam os ODSs em seus relatórios. Com o passar do tempo, os relatórios de sustentabilidade das empresas participantes foram sendo aprimorados. Em 2022, por exemplo, 16% dos membros – 6% a mais que em 2019 – associaram seus indicadoreschave de desempenho (KPIs, na sigla em inglês) aos objetivos.
Mas a tendência para a lavagem ODS continua a ser bastante comum. Uma pesquisa realizada em 2018 pela Ethical Corporation, com 1.542 empresários do mundo todo, mostrou uma alta taxa de lavagem ODS: 51% dos entrevistados utilizaram os ODSs para
comunicar os impactos da sustentabilidade em seus respectivos relatórios de sustentabilidade, mas somente 12% haviam incorporado os objetivos a suas empresas, com metas claras. Organizações não governamentais, comerciais, e empresas concorrentes acusaram as companhias de hipocrisia, e os gestores corporativos temem ser difamados.
A ExxonMobil, multinacional de petróleo e gás, tuitou sobre suas contribuições para o trabalho digno e crescimento econômico (ODS 8): “A ExxonMobil conta com uma força de trabalho global de mais de 72 mil funcionários distribuídos em diferentes áreas, incluindo negócios, engenharia, pesquisa, operações e outras – ajudando as Nações Unidas em seu trabalho de tornar realidade os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. #SDG8”. Ian Brooks, professor universitário e consultor de TI e empresas sustentáveis respondeu: “ Repudio o #SDGwashing impulsionado para meu feed do Twitter. Vamos ver se eles agora tornam realidade a Ação Climática #SDG13”.
Os 17 ODSs da ONU
Estabelecidos em 2015, são parte da Agenda 2030 para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir paz e prosperidade
1 Erradicação da pobreza
2 Fome zero e agricultura sustentável
3 Saúde e bem-estar
4 Educação de qualidade
5 Igualdade de gênero
6 Água potável e saneamento
7 Energia limpa e acessível
8 Trabalho decente e crescimento econômico
9 Indústria, inovação e infraestrutura
10 Redução das desigualdades
11 Cidades e comunidades sustentáveis
12 Consumo e produção responsáveis
13 Ação contra a mudança global do clima
tinacionais. Justamente por isso, essas empresas devem iniciar o mapeamento para garantir que nenhum impacto positivo ou negativo seja ignorado.
Fazer isso com os 17 objetivos também pode ajudar a melhorar as chances de identificar oportunidades inexploradas e descobrir potenciais trade-offs e interdependências. No entanto, é pouco provável que alguma empresa consiga realizar efetivamente uma mudança positiva em todos os objetivos. Veja, por exemplo, o caso da Leaf, uma grande multinacional tabaqueira (o nome é fictício, como o de outras empresas citadas que receberam capacitação e treinamento da instituição onde trabalham dois autores deste artigo).
14 Vida na água
15 Vida terrestre
A BMW, fabricante de carros alemã, demonstrou seu apoio aos 17 ODSs cobrindo a lateral de um de seus carros elétricos com adesivos dos ícones dos ODSs e postando no Twitter com a hashtag #SDGsCar. Olivier Ferrari, especialista suíço em desenvolvimento sustentável, replicou: “Uma boa alegoria das contradições inerentes aos #SDGs: #SDGwashing uma fabricante de carros (elétricos), 80% abastecidos com combustíveis fósseis (nos EUA), com componentes produzidos com a exploração da mineração no Congo, simbolizando uma sociedade onde somente o crescimento importa e mostrando quão não sistêmica é a estratégia”.
16 Paz, justiça e instituições eficazes
17 Parcerias e meios de implementação
A Leaf afirma ter contribuído positivamente para os 17 objetivos associando iniciativas de sustentabilidade já existentes na empresa a todas as metas ODSs. O fato de a empresa pagar salários dignos, por exemplo, mostraria que ela contribui para a erradicação da pobreza (ODS 1). Mas uma análise mais profunda do relatório de sustentabilidade da companhia revela que ainda existem violações da lei do salário mínimo ao longo da cadeia de suprimentos em países com monitoramento e divulgação não confiáveis sobre a contratação de empregados. Por isso, a contribuição da Leaf para a erradicação da pobreza é mais uma aspiração que uma realidade. É louvável ter grandes ambições, mas as empresas precisam se empenhar mais antes de afirmar que contribuem positivamente para a erradicação da pobreza.
Até uma empresa que esteja claramente na mira dos ODSs pode tentar usá-los a fim de se autopromover.
A indústria tabaqueira foi uma das primeiras a adotar a retórica ODS, sem porém demonstrar interesse em mudar sua atividade central. De acordo com um relatório de 2018, intitulado Highjacking the SDGs? (Sequestro dos ODSs?), publicado por cinco ONGs alemãs, “uma análise mais atenta mostra que o álcool e o tabaco são, na verdade, os dois únicos produtos de consumo explicitamente mencionados nos ODSs. Principalmente devido ao alto custo para a saúde pública. [...] A indústria do tabaco utiliza os ODSs como uma estratégia geral para driblar a regulamentação. O exemplo das companhias tabaqueiras serve de alerta para mostrar as limitações do envolvimento corporativo nos ODSs e a necessidade de governos, instituições internacionais e a sociedade civil protegerem o processo ODS de influência corporativa indevida”.
De modo geral, as empresas se envolvem na lavagem ODS de três formas, descritas a seguir.
Alegando contribuir positivamente para os 17 ODSs | Relações tênues com os ODSs são mais comuns no caso de grandes mul-
São igualmente duvidosas as afirmações que a Leaf faz em relação aos demais 16 ODSs. Saúde e bem-estar (ODS 3) é, obviamente, uma questão importante para uma empresa tabaqueira. Na verdade, a Leaf alega que contribui com um impacto positivo na saúde pública porque desenvolve alternativas para os cigarros comuns, como os eletrônicos, que não produzem fumaça, mas liberam vapor. Como ainda não há dados suficientes para comprovar que essas alternativas sejam menos danosas à saúde, a empresa faz malabarismo verbal para transformar uma alternativa potencialmente menos negativa em positiva. Ninguém pode afirmar que os cigarros eletrônicos fazem bem à saúde.
Reivindicar contribuição positiva para os 17 ODSs, como a Leaf faz, mina a causa. Estudos mostram que os objetivos se interconectam, o que pode causar entrecruzamentos tanto positivos quanto negativos. Por isso, é praticamente impossível que uma única empresa consiga gerar um impacto positivo efetivo em todos eles. Esses intercâmbios ou compensações ocorrem quando os avanços de um objetivo impedem os de outro. Os especialistas em sustentabilidade Måns Nilsson, Dave Griggs e Martin Visveck afirmam que “usar carvão para melhorar o acesso à energia limpa (ODS 7) em países asiáticos pode acelerar as mudanças climáti-
cas e a acidificação dos oceanos (contrariando os ODSs 13 e 14) e agravar outros problemas, como os danos à saúde causados pela poluição do ar (destruindo o ODS 3)”.1 Se incluírem os 17 ODSs desde o início, as empresas podem evitar as compensações, obter uma perspectiva holística sobre potenciais ações e avaliar alternativas menos prejudiciais.

Escondendo impactos negativos importantes | A Bubbles (nome fictício), uma grande multinacional que produz refrigerantes, prioriza seis ODSs: igualdade de gênero (ODS 5), água potável e saneamento (ODS 6), trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8), consumo e produção responsáveis (ODS 12), vida na água (ODS 14) e parcerias e meios de implementação (ODS 17). Porém a mais flagrante das omissões da Bubbles é o ODS 3: saúde e bem-estar. Bebidas carbonatadas possuem alto teor de açúcar. A empresa menciona sua preocupação em reduzir o açúcar, mas não a associa aos ODSs, exceto em um documento interno.
Para a maioria das empresas, é muito fácil relatar os impactos positivos de determinados ODSs como o 8 e o 17 (citados acima).
Em princípio, todas as organizações devem contribuir para o crescimento econômico e oferecer empregos dignos, e a maior parte
dos esforços de sustentabilidade corporativa é realizada em parceria com outras companhias por causa da dimensão dos problemas. Mas, para uma empresa que produz refrigerantes, água e saúde são questões essenciais, principalmente em áreas com acesso limitado à água potável. A Bubbles reconhece essa preocupação, mas se esquiva da culpa atribuindo a responsabilidade pela água a todas as empresas que a utilizam na produção. Suas iniciativas para oferecer água limpa são filantrópicas – ou seja, instalar estações de tratamento de efluentes fora das unidades de produção da Bubbles. Esses pontos, de fato, ajudam a garantir água potável para as comunidades vizinhas, mas essa abordagem só compensa os impactos negativos da empresa depois que o dano já foi feito, em vez de atacar a origem do problema. Além disso, como as operações estão fora das unidades centrais de produção, os esforços da Bubbles estão desconectados de sua atividade central.
Uma fábrica de refrigerantes pode causar outros impactos negativos, em consumo e produção responsáveis (ODS 12) e na vida na água (ODS 14), em decorrência do consequente depósito de resíduos plásticos nos oceanos. A Bubbles relata seus esforços para reduzir as embalagens plásticas e suas pretensões de coletar resíduos, mas acaba colocando a culpa nos outros, alegando que o problema dos resíduos vai além de uma única empresa. As poucas iniciativas que contribuem positivamente para os ODSs dissimulam os impactos negativos e a falta de sustentabilidade do produto central da empresa: bebidas açucaradas produzidas em massa em garrafas plásticas têm consequências negativas em vários ODSs.
Enquadrando os esforços existentes como mudança social | A Wings (nome fictício), uma empresa aérea comercial internacional, mira sete ODSs, incluindo educação de qualidade (ODS 4). Ela afirma estar comprometida com capacitação aeronáutica, treinamento e desenvolvimento contínuo de todos os funcionários, sendo estes uma prática anterior aos ODSs – a empresa se orgulha de seus mais de 50 anos de experiência em treinamento aeronáutico. Os custos dos programas não são divulgados, mas o site da companhia para a academia de treinamento menciona que os custos são mantidos em níveis razoáveis. A organização analisa as atividades preexistentes, verificando onde elas podem se alinhar com os ODSs, e reformula as iniciativas em andamento para contribuir para eles. Mas os programas de treinamento aeronáutico (para compensar os efeitos da emissão de gases produzidos pelas companhias aéreas) não podem ser
considerados como uma contribuição aos objetivos de educação de qualidade das Nações Unidas (ODS 4: assegurar educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos). Na maioria dos casos, as atividades que as empresas reembalam para a linguagem ODS nunca tiveram como finalidade promover mudanças na escala necessária para cumprir os objetivos.
Melhores práticas ODS
COMO AS EMPRESAS podem garantir que suas iniciativas ODS estejam produzindo mudanças significativas? Nossa pesquisa revelou três exemplos inspiradores de comprometimento com os ODSs com um potencial de transformação organizacional em companhias que não são as pioneiras em sustentabilidade. Para encorajar outras a se envolverem, numa era de inversão dos ODSs, apresentamos a seguir três exemplos de melhores práticas.
Alinhe os ODSs com o faturamento | Mapear não é suficiente. O mapeamento revela somente um quadro estático dos impactos dos ODSs da empresa. A Ramboll, um grupo global de engenharia, arquitetura e serviços de consultoria em Copenhague, Dinamarca, foi além disso. Começou a medir os lucros relativos aos ODSs para integrá-los a sua estratégia. Quando os ODSs foram estipulados, em 2015, a Ramboll estava preparando o ciclo seguinte de estratégias, o que faz a cada três anos. Na época, embora a sustentabilidade já fosse um dos cinco principais componentes de seu planejamento, o conselho executivo e a equipe de sustentabilidade perceberam que os ODSs seriam uma oportunidade de priorizar ainda mais esse ponto e também ofereciam uma linguagem global para alavancar a influência da empresa nos mercados em que atuava assessorando os clientes. Os ODSs representavam, ainda, uma chance de promover seu objetivo estratégico de ser reconhecida como líder de sustentabilidade em consultoria ambiental. Em vez de priorizar rapidamente os ODSs mais relevantes, a equipe de sustentabilidade analisou as 169 submetas dos objetivos para identificar os KPIs e os impactos positivos e negativos.
A Ramboll trabalha em conjunto com as cadeias de valor dos clientes para oferecer soluções sustentáveis em seis mercados – construção civil; transporte; energia; ambiente e saúde; água; e consultoria gerencial –, cada um supervisionado por um diretor. A empresa decidiu medir anualmente a receita captada pelos seis mercados que contribuem para os ODSs e descobriu que a água – a Ramboll tem como objetivo proteger os recursos hídricos aumentando a eficiência e melhorando o tratamento de água residual – era um de seus mercados
mais bem alinhados com os ODSs, principalmente água potável e saneamento (ODS 6). Em outros mercados, como transporte, a receita estava menos alinhada. O setor aéreo, por exemplo, altamente emissor de gases de efeito estufa, precisava passar por uma grande transformação para se tornar sustentável. Ao medir sistematicamente as receitas em função dos ODSs todos os anos, a Ramboll pôde dimensionar como suas atividades que agregam valor contribuem para eles. À medida que o percentual de contribuição aos ODSs aumenta, as possíveis consequências negativas diminuem. Dessa forma, os objetivos podem ser utilizados como uma referência para a melhoria contínua da sustentabilidade.
O percentual de faturamento da Ramboll em cada mercado que contribui para as ODSs continua a aumentar a cada ano. Para isso, cada mercado precisou desenvolver sua própria estratégia de sustentabilidade, indo além da estratégia central da empresa. A criação de um planejamento customizado para cada mercado ajudou a incutir a sustentabilidade em toda a organização e equiparou as equipes responsáveis por ela no nível diretivo, o que foi uma medida inovadora. Para incorporar ainda mais a sustentabilidade, a Ramboll também implementou um treinamento baseado nos ODSs para todos os funcionários. Outra medida que ajudou nesse sentido foi chamar os empregados de diferentes departamentos funcionais de “embaixadores da sustentabilidade”.
No entanto, ainda havia dois desafios a enfrentar para que a sustentabilidade se integrasse plenamente à estratégia corporativa. O primeiro era o custo. Qualquer iniciativa interna desse tipo era tratada como um forte caso de negócios e, comprovada a sua consistência, recebia o apoio da alta gestão.
O segundo é que é difícil medir sustentabilidade. Logo, mais difícil ainda é avaliar os ODSs, porque eles são abrangentes e incluem metas sociais. A empresa alegava que era difícil mensurar os impactos negativos que impediam o avanço dos objetivos, porque eles estavam interligados – qualquer solução para um ODS poderia gerar efeitos negativos. Além disso, como a empresa presta serviços, é difícil determinar se as soluções que seus clientes adotam são mais sustentáveis que outras alternativas. A Ramboll, então, decidiu aumentar os efeitos positivos, aprimorar as medições com o passar do tempo e se concentrar somente nos impactos mais diretos.
A estrutura customizada de receitas ODS da Ramboll estabeleceu critérios para medir os avanços de sustentabilidade. No entanto, essas estruturas têm uma desvantagem: elas dificultam a comparação com outras empresas. Por isso, além dessa abordagem, a companhia viu com bons olhos as rápidas mudanças nos padrões, avaliações e outras iniciativas de mensuração como os relatórios ESG e as metas baseadas na ciência. Todas essas mudanças ajudaram a Ramboll a demonstrar seus avanços, medir a sustentabilidade e provar como era importante colocá-la no centro de sua estratégia.
É difícil medir sustentabilidade.
Logo, mais difícil ainda é avaliar os ODSs, porque eles são abrangentes e incluem metas sociais
Apesar da dificuldade de trabalhar com os objetivos e medir os impactos, a Ramboll utilizou esses esforços para calcular as receitas à luz dos ODSs para alinhar seu portfólio com eles e incentivar mudanças na estratégia corporativa – o que, de acordo com nossa pesquisa, a maioria das organizações não conseguiu. Em 2022, a Ramboll lançou uma nova estratégia corporativa com o slogan “The Partner for Sustainable Change” (O parceiro para a mudança sustentável). A companhia conseguiu fazer com que a sustentabilidade deixasse de ser somente uma parte da estratégia corporativa e passasse a ser o alicerce do seu planejamento e responsável isolado por seu crescimento. Ela esperava que todos os funcionários contribuíssem para o sucesso do método. Para a Ramboll, os ODSs são um guia estratégico e um referencial para indicar se a estratégia está seguindo na direção da completa integração com a sustentabilidade.
A empresa satisfez sua ambição de tornar-se líder do desenvolvimento sustentável. De acordo com a Environment Analyst, do Reino Unido, a Ramboll é a sétima maior consultoria em sustentabilidade e ambiente e a primeira em mudanças climáticas e energias renováveis.
Integre os ODSs à declaração de propósito da empresa | Apesar de várias companhias terem integrado os ODSs a sua missão e estratégia corporativas, a Safaricom, uma operadora de rede de telefonia móvel de Nairobi, Quênia, se destaca por ter sido bem-sucedida nessa empreitada. Movida pelo propósito de transformar vidas, a organização aproveitou a oportunidade para disseminar os ODSs por toda a empresa e apoiar sua a transição de uma companhia de telecomunicações para uma de tecnologia. Ela adotou uma abordagem descentralizada, estabelecendo prioridades ODS para cada divisão e funcionário. A Safaricom estava preparada porque já atuava em uma iniciativa de múltiplos stakeholders que visavam aumentar a conscientização em todo o Quênia a respeito dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio.
Quando os ODSs foram estipulados, a Safaricom estava na fase inicial de formalização de uma estratégia de sustentabilidade, mas já havia criado uma rede interna de defensores dela para apoiar seus esforços estratégicos. Desde sua fundação, em 2000, a Safaricom sempre orientou sua estratégia pelo propósito de transformar vidas usando o poder da tecnologia móvel.
Seu aplicativo financeiro para celular M-PESA forneceu serviços financeiros a preço acessível a mais de 51 milhões de clientes e aumentou a inclusão financeira no Quênia.
A equipe de sustentabilidade corporativa percebeu que os ODSs seriam a oportunidade perfeita para inserir ainda mais a sustentabilidade numa abordagem dupla: de cima para baixo e de baixo para cima – neste caso, todos os membros da organização, em todos os níveis e funções, eram instados a expor o que os objetivos significavam para seu trabalho cotidiano e para o funcionamento de sua divisão. Para facilitar a interação pessoal dos funcionários
com os ODSs, a empresa lançou uma campanha interna chamada “Qual seu objetivo?”, e utilizou outros recursos, como workshops e diálogos abertos informais.
Essas discussões começaram a partir das relações da equipe de sustentabilidade com os objetivos centrais da empresa e as possíveis oportunidades de negócio inexploradas. No início, os funcionários estavam céticos. Alguns confundiam os ODSs com os esforços filantrópicos da empresa, e outros tentavam entender as conexões entre as metas sociais mais elevadas, a estratégia central da companhia e seu trabalho no dia a dia. As discussões entre a equipe de sustentabilidade e os funcionários continuaram de forma iterativa e dinâmica até chegarem a um consenso sobre como os ODSs poderiam melhorar o desempenho dos negócios.
Para ajudar os funcionários a associar os objetivos com o desempenho da empresa, a equipe de sustentabilidade os integrou ao propósito da companhia de “transformar vidas” e criou uma narrativa que o conecta explicitamente aos ODSs: “[Nós] nos comprometemos a entregar conectividade e produtos e serviços inovadores (Objetivo 9) que fornecerão soluções únicas para atender às necessidades dos quenianos, permitindo acesso (Objetivo 10) por meio de nossa tecnologias e parceiros (Objetivo 17) e explorando oportunidade na saúde (Objetivo 3), educação (Objetivo 4) e energia (Objetivo 7). Faremos isso gerenciando nossas operações com responsabilidade (Objetivo 12) e ética (Objetivo 16). O cumprimento desses objetivos estimulará o crescimento e gerará valor (Objetivo 8) para a organização, a sociedade e a economia”.
Na abordagem de cima para baixo, a equipe de sustentabilidade mobilizou a equipe de gestão sênior para definir objetivos específicos de cada departamento. O de finanças, por exemplo, compartilha a seguinte meta: “Encorajaremos comportamentos éticos em nossa cadeia de suprimentos promovendo o trabalho digno e bons padrões laborais (Objetivo 8), garantindo a transparência e visibilidade de nossas práticas de procurement e combatendo todas as formas de corrupção (Objetivo 16) em nossa empresa e em nosso ecossistema de negócios. Nós também apoiaremos a companhia em suas decisões informadas sobre consumo e produção responsável (Objetivo 12)”. Cada departamento apoia seus ODSs com metas, KPIs e planos de ação. A integração dos objetivos a cada setor garante que toda a companhia trabalhe na mesma direção.
Para descentralizar e integrar ainda mais os ODSs, cada funcionário, individualmente, estabeleceu objetivos relacionados a eles, que foram incluídos em suas metas anuais de desempenho. Uma das equipes de tecnologia, por exemplo, tem como meta zerar suas emissões até 2050. Para apoiá-la, os funcionários da equipe escolhem ODSs relevantes relacionados ao clima e pretendem passar de combustíveis fósseis a energia solar em parte de suas instalações para que suas metas de desempenho individual, que empo-
Essas empresas resistiram à tentação de priorizar o mapeamento e escolher de forma precipitada alguns dos ODSs mais relevantes
ODS: modos de usar no meio corporativo
Empresas logo aderiram aos objetivos da ONU; em alguns casos, com um resultado que poderia se chamar “lavagem ODS”; em outros, integraram os objetivos à sua estrutura.
LAVAGEM ODS
A suposta adesão total
• Empresas que dizem contribuir positivamente para todos os ODSs dificilmente o fazem. Reivindicar contribuição positiva para todos mina a causa. Como eles se interconectam, é praticamente impossível que uma companhia consiga gerar um impacto positivo efetivo em todos. Avanços em um objetivo podem impedir os de outro
Impactos negativos escondidos
• Embora possam assumir internamente que sua cadeia de valor gere impactos negativos em um ou mais dos ODSs, com frequência empresas se eximem publicamente de responsabilidade pelo atraso global em um deles
Esforços não são mudança social
• Empresas muitas vezes têm esforços internos anteriores aos ODSs que procuram reembalar como se fossem mudanças implementadas para atender a uma agenda de mudança social
BOAS PRÁTICAS ODS
Faturamento alinhado com os ODSs
• Além de fazer o mapeamento necessário dos ODSs ao longo de sua cadeia de valor, companhias podem analisar como seus lucros se relacionam a eles e agir estrategicamente, associando os objetivos aos seus indicadores-chave de desempenho (KPIs, na sigla em inglês)
Integrar os ODSs à declaração de propósito
• Disseminar os objetivos como parte da cultura da companhia é uma estratégia eficaz. A integração deles à realidade dos funcionários e ao propósito da empresa, fazendo com que sejam norteadores de desempenho, facilita sua absorção e aplicação
Inovar e formar parcerias para o impacto ODS
• Os objetivos também podem ser alavancados se forem incorporados à missão e ao planejamento estratégico da empresa. Medidas de governança, como a criação de conselhos voltados a identificar riscos e oportunidades ODS na cadeia de valor, são úteis. Impactos positivos podem nascer de parcerias com fornecedores intermediários
deram cada funcionário, possam efetivamente apoiar os avanços ODSs da Safaricom.
Os custos dessa integração nunca foram um obstáculo. O de treinamento, um dos principais, se mantém baixo, aproveitando os programas já existentes ou os online e criando um novo, “Desenvolvendo Grandes Líderes Africanos”, em parceria com a Universidade Strathmore. Todos os anos, vários funcionários da empresa se inscrevem para serem treinados como defensores da sustentabilidade. Como o programa foi desenvolvido em parceria com a Safaricom, o custo do treinamento na universidade é reduzido para esses participantes. Quando algum deles sai da empresa, um defensor substituto é contratado por meio dessas oportunidades de treinamento.
O comprometimento com os ODSs também recebe reforço externo de parcerias. A forma proativa com que a Safaricom aborda os objetivos, combinada com a linguagem comum que a estrutura oferece, abriu as portas para várias parcerias. Um exemplo que merece destaque é a M-TIBA, uma tecnologia móvel que permite que as pessoas poupem para poder custear a assistência médica fornecida por provedores certificados e de qualidade. O Quênia não oferece assistência médica gratuita para a população e, quando as pessoas precisam de tratamento urgente, os custos são subsidiados por meio de financiamento coletivo informal. A tecnologia necessária é fornecida graças a uma parceria com a CarePay, desenvolvedor da tecnologia móvel e parceiro da M-TIBA. A CarePay foi financiada por um investimento inicial da Fundação M-PESA e de seu braço filantrópico, da Safaricom e do aplicativo de pagamento móvel da Vodafone. De acordo com o relatório de sustentabilidade de 2022 da Safaricom, a M-TIBA atendeu 4,8 milhões de usuários, credenciou 4.731 unidades de saúde e gastou mais de US$ 12 milhões em serviços de saúde.
Até hoje, a Safaricom afirma que os ODSs ainda são inspiradores e transformam vidas. O sucesso é medido pelos resultados obtidos em cada objetivo priorizado. A plataforma DigiFarm, por exemplo,
que presta serviços, como acesso a instituições financeiras, para agricultores, chegou a 160 mil usuários, teve um aumento de 15% em seus lucros e contribuiu para as metas de trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8), indústria, inovação e infraestrutura (ODS 9), redução das desigualdades (ODS 10) e parcerias e meios de implementação (ODS 17).
Inove e forme parcerias para o impacto ODS | A sustentabilidade é muito importante para ser delegada a outros na esperança de que contribuam. A Novozymes, empresa dinamarquesa de biotecnologia, se destaca por suas ações proativas inovadoras e parcerias. Em 2012, antes dos ODS, a organização já participava da iniciativa na vanguarda da maioria das companhias, como coadjuvante no desenvolvimento das metas. Na época, também desenvolvia uma nova estratégia, implantada em 2015. Como a empresa desejava tornar-se líder no tema, publicou seus valores referentes à sustentabilidade em destaque na página de empregos de seu site. Com isso, começou a atrair candidatos com os ideais adequados e pôde contratar novos funcionários por meio de sessões especiais de treinamento que incluíam a sustentabilidade.
A Novozymes aproveitou a oportunidade de alavancar os ODSs para reescrever o seu propósito enquanto empresa e suas metas de longo prazo. O propósito da companhia era, e ainda é, “melhorar o desempenho industrial, preservar os recursos do planeta e ajudar a melhorar a vida das pessoas”. Mas, ao integrar os ODSs a sua missão, a organização contribuiu para tornar os objetivos o centro de seu negócio e de seu crescimento.
Para alavancar e monitorar suas atividades ODS, a Novozymes criou, em 2018, uma estrutura de governança interna formada por dois conselhos de governança formados por líderes de toda a organização. O Conselho de Fundação é responsável pelo desempenho dos ODSs nas operações atuais e na cadeia de suprimentos e tem por objetivo manter a liderança de sustentabilidade. O Conselho
de Impacto é responsável pela orientação estratégica baseada nos objetivos. É fundamental para os dois conselhos identificar os riscos e as oportunidades dos ODSs. Para a maioria das empresas, os riscos ODS são aqueles que ela enfrentará se o mundo conquistar os ODSs, mas, para a Novozymes, são os impactos negativos que ela provoca que poderão impedi-la de atingir os objetivos, como suas emissões de gases do efeito estufa. A empresa define os riscos e oportunidades com base científica utilizando avaliações de ciclo de vida e a opinião dos stakeholders.
A Novozymes acredita que inovações e parcerias também são importantes para o sucesso dos ODSs. Estipular mudanças ou modelos de negócios fora do escopo das operações normais da empresa pode gerar novos impactos positivos. Quando as inovações começam a ser desenvolvidas, a companhia realiza uma avaliação do potencial impacto ODS baseada em 15 categorias retiradas dos 17 ODSs e das 169 submetas. As inovações com alto impacto positivo são aceleradas, já que podem atrair investimento. Mas, apesar do cronograma acelerado, desenvolver uma solução que implique mudança de escala pode levar de 10 a 15 anos. Mesmo assim, a empresa continua a explorar inovações em novas áreas estratégicas. Recentemente, a saúde bucal e gastrointestinal e proteínas alternativas foram identificadas como áreas de oportunidade.
As parcerias são fundamentais para aumentar os impactos positivos porque ajudam a desenvolver a infraestrutura de produção, melhoram as práticas em toda a cadeia de valor e entregam soluções para o consumidor final. Parcerias com indústrias químicas, em particular, são necessárias para oferecer soluções biológicas para o consumidor final. Uma colaboração entre a Novozymes e a Univar Solutions, uma indústria química global, resultou na comercialização de produtos de limpeza mais sustentáveis e seguros.
Outra forma de parceria estratégica é a inovação aberta. A Novozymes é colíder da Hello Science, uma plataforma temporária de inovação aberta que desenvolve soluções para os ODSs por meio de parcerias. A plataforma ajudou a orientar e apoiar empreendimentos de risco que podem transformar ideias da própria empresa em inovação e ajudá-la a atingir os objetivos. A SolarSack, uma tecnologia que utiliza energia solar para purificar água, por exemplo, foi desenvolvida pela Hello Science.
Reformulando os esforços ODS
ESPERAMOS QUE EXEMPLOS bem-sucedidos como esses inspirem outras empresas a aumentar seus esforços ODS. No entanto, alinhar seu negócio central com os objetivos pode ser mais simples e direto para umas do que para outras. O custo da implementação, a disponibilidade de recursos e o apoio interno têm um peso importante; as normas específicas do setor e a pressão do mercado podem desacelerar ou acelerar o processo de transformação das empresas; as indústrias com infraestrutura pesada enfrentarão maiores desafios e mais mudanças transformacionais que as de serviços.
No entanto, os três exemplos citados ao longo do artigo mostram vários pontos oportunos comuns em futuras iniciativas ODS. Primeiro, as três empresas procuraram integrar os objetivos às estratégias de sua atividade central. Essa meta complementou as
ambições de sustentabilidade que já existiam nas companhias e os ODSs surgiram no momento oportuno para propiciar uma renovação estratégica baseada na nova agenda global. Dessa forma, as empresas puderam aproveitar os objetivos como oportunidades de desenvolvimento e crescimento de futuros negócios. Alinhar os ODSs com a atividade central das companhias pode ajudar a garantir que a contribuição deles não se limite à atividades meramente filantrópicas, mas que combine as atividades da empresa que geram valor com a conquista dos ODSs. A integração dos objetivos por parte de todos os departamentos pode melhorar o envolvimento da companhia com os objetivos e evitar que esses esforços fiquem restritos ao departamento de sustentabilidade.
Segundo, como essas organizações queriam incorporar os ODSs a sua estratégia central, elas resistiram à tentação de priorizar o mapeamento e escolher precipitadamente alguns dos ODSs mais relevantes. A maioria das empresas comete esse erro. Essa falta de integração e análise detalhada geralmente resulta na lavagem ODS. Por isso, a Ramboll resolveu criar um parâmetro para medir a relação receita-alinhamento com os objetivos, a Safaricom os associou às metas departamentais e aos objetivos pessoais dos funcionários, e a Novozymes formou um conselho de governança para avaliar e monitorar sistematicamente os riscos e oportunidades nesse sentido. Essas medidas garantiram uma interação contínua com os ODSs.
Em terceiro lugar, as três organizações customizaram sua forma de abordar o envolvimento com os objetivos, demonstrando que é preciso ajustar os esforços de acordo com as necessidades, ethos e cultura específicos de cada organização. Como os ODSs são metas de nível social, é preciso que sejam personalizados para atingir o nível operacional. A Ramboll, como um grupo de consultoria de engenharia, percebeu que converter os objetivos em números e medidas fazia mais sentido para seus empregados; a Safaricom, por ser fortemente guiada por sua missão, descobriu que era mais coerente utilizá-los para sustentar sua declaração de propósito; e a Novozymes, cuja atividade central se baseia em buscar soluções inovadoras, abordou os ODSs desenvolvendo processos de inovação internos e externos customizados.
Ainda há tempo para as empresas reposicionarem seus esforços para integrar os ODS da direção certa. Faltam sete anos para atingir os objetivos estabelecidos pela ambiciosa agenda global, e precisamos de toda a ajuda que pudermos obter. O
AMANDA WILLIAMS é pesquisadora e professora-pesquisadora no Centro de Sustentabilidade e Negócios Inclusivos do Instituto Internacional de Desenvolvimento de Gestão (Suíça). Ela estuda estratégias de sustentabilidade corporativa para atingir a sustentabilidade global.
PATRICK HAACK é professor de estratégia e gestão responsável na Faculdade de Altos Estudos Comerciais (HEC) de Lausanne (Suíça) e diretor do Centro de Pesquisa de Grandes Desafios da HEC. Ele também é editor associado da Academy of Management Review
KNUT HAANAES é professor de estratégia e professor de sustentabilidade no Instituto Internacional de Desenvolvimento de Gestão (Suíça). Foi sócio sênior e líder global de prática de sustentabilidade do Boston Consulting Group e também foi reitor do Instituto de Liderança Global do Fórum Econômico Mundial.
Declaração de conflito de interesses: Williams e Haanaes trabalham em uma instituição que fornece capacitação e treinamento para organizações (não explicitamente citadas) que fazem parte da pesquisa analisada neste artigo. Os autores não possuem envolvimento direto com os referidos programas educacionais.
1 Mans Nilsson, Dave Griggs e Martin Visbeck, “Policy: Map the Interactions Between Sustainable Development Goals”, Nature, vol. 534, 2016.

O movimento por responsabilidade social no terceiro setor
POR SHAWN POPE E PATRICIA BROMLEYDO FAZER O BEM AO SER BOM
Hoje, espera-se que as ONGs vão além de sua missão e adotem um conjunto mais amplo de compromissos e valores.
Esse movimento está transformando o setor de modo surpreendente
ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS de todo o mundo estão envoltas em um amplo movimento por responsabilidade social. Elas hoje se engajam em todo tipo de causas que superam em muito suas missões originais. Diversificar seu conselho diretivo por gênero e raça, pagar a seus fornecedores uma remuneração justa, reduzir seu impacto ambiental e emprestar sua voz a causas sociais, do #MeToo ao Black Lives Matter, são apenas alguns exemplos desse desdobramento surpreendente.
À medida que essa dinâmica avançava, algumas organizações ampliaram formalmente sua missão, a fim de incorporar novos interesses por responsabilidade social. Em 2022, a American Hospital Association, que representa quase 5.000 organizações no setor de serviços de saúde, revisou seu propósito para incluir justiça e equidade. De modo semelhante, a Sierra Club não é mais estritamente voltada para o ambientalismo; o seu plano estratégico para 2030 também fala de antirracismo, sexismo, justiça econômica e de promover equilíbrio entre trabalho e vida pessoal para seus funcionários.
Esse movimento surpreende não só por seu alcance, mas também porque já se espera de antemão que essas organizações sejam boas agentes. Os que advogam em favor da responsabilidade social corporativa costumam justificá-la como um corretivo para os males sociais decorrentes da busca por lucro. Porém a própria finalidade das ONGs é contribuir para o

bem público. Nos Estados Unidos, é uma questão legal: a Receita Federal concede a isenção de impostos somente a organizações que proporcionem benefícios públicos. A benevolência dessas entidades encontra-se implícita também na principal teoria sobre sua existência: elas proporcionam os serviços (como alimentar os pobres, cuidar dos doentes) de que a sociedade necessita e que, no entanto, são pouco supridos pelos governos e não suficientemente lucrativos para os investidores tradicionais.
Neste artigo, abordaremos as causas, as características contemporâneas e as consequências desse curioso movimento pela responsabilidade social das organizações não lucrativas. O fenômeno traz profundas implicações para a nossa compreensão da missão dessas entidades e para as demandas impostas à liderança delas. Entidades que ampliem sua visão de responsabilidade podem angariar mais legitimidade, e a expansão de seu propósito pode promover inovação. No entanto seus líderes também terão mais desafios a encarar à medida que a missão se torne menos singular e exija mais habilidade para alcançar objetivos múltiplos e, por vezes, concorrentes.
O nascer do movimento
A PARTIR DOS ANOS 1990, o setor sem fins lucrativos expandiu-se rapidamente nos Estados Unidos e em todo o mundo. Os crescentes recursos e cifras das organizações se traduziram em um maior potencial para o bem, mas também para o mal, e uma série de escândalos de grande repercussão abalou o setor. Acadêmicos e jornalistas relacionam o advento da responsabilidade social nas organizações sem fins lucrativos à necessidade de contrabalançar o crescente poder dessas entidades na sociedade.
De fato, nos Estados Unidos o número de instituições explodiu: de menos de 13 mil em 1940 para mais de 1,5 milhão no ano passado.1 E nisso muitas delas se tornaram pantagruélicas. A Fundação Bill & Melinda Gates, por exemplo, nasceu em 2000 e hoje administra cerca de US$ 50 bilhões em ativos – cifra superior ao PIB de mais de cem países. Ao mesmo tempo, o número de organizações não governamentais internacionais aumentou de modo significativo, de aproximadamente 1.000 em 1950 para 76 mil em 2023.2
As organizações não lucrativas cresceram não apenas em número, tamanho e alcance global, mas também em notoriedade: um punhado de grandes escândalos na década de 1990 fomentou uma reação ao seu recém-conquistado status. Alguns dos maiores nomes da época estavam envolvidos nessa onda, incluindo a United Way, maior ONG de financiamento privado do mundo. Em 1992, o seu CEO, William Aramony, foi condenado pelo uso indevido de aproximadamente US$ 1,2 milhão em doações, em parte gasto em assuntos extraconjugais. Especialistas em serviço social, Margaret
Gibelman e Sheldon Gelman identificaram 11 escândalos importantes que irromperam entre 1992 e 1998, enterrando a ilusão de que entidades não rentáveis seriam imunes a irregularidades.3
A partir disso, uma série de critérios e certificações invadiu o setor. Exemplos notórios de uso indevido de recursos por parte de instituições derivaram na criação de observatórios, como o CharityWatch, fundado em 1992, e de organizações que checam a boa reputação dessas entidades, como a GuideStar (hoje Candid) em 1994. A preocupação com peculato, evasão de divisas e incompetência generalizada deu vez a iniciativas como a Charity Navigator, fundada em 2001 para avaliar ONGs quanto ao uso e eficiência de recursos.
Também fez parte dessa infraestrutura de responsabilização o surgimento de organizações que divulgavam boas práticas de governança (por exemplo, a BoardSource, fundada em 1988) e transformavam princípios éticos em códigos de conduta que qualquer organização pudesse adotar, independentemente de sua área de atuação – caso, por exemplo, da Associação Mundial de Organizações Não Governamentais (Wango, na sigla em inglês, fundada no ano 2000). O passo seguinte seria a certificação das ONGs, e é por isso que hoje existem muitas agências como o Standard for Excelence Institute (fundado em 1998) e a NonProfits First (fundada em 2005). De modo geral, essas iniciativas buscavam não apenas reparar a combalida fé no setor, mas também conduzir as organizações não lucrativas a práticas racionais, eficazes e profissionais. Como resultado desse trabalho, a benevolência que se supunha inerente às ONGs passou a ser vista como algo aplicável a elas, mediante uma variedade de certificações externas.
Dimensões do movimento contemporâneo
À MEDIDA QUE O MOVIMENTO por responsabilidade social dentro das organizações não lucrativas evoluía, o seu caráter também se modificava. Ele nasceu contra o pano de fundo de escândalos de vulto e, talvez por isso, pautado por uma lógica de controle social. O movimento inicial ganhou ímpeto com o esforço por supervisão externa, na forma de certificações, credenciamentos e códigos de conduta.
Em contrapartida, hoje o movimento é conduzio por ONGs que incorporam de forma proativa uma gama crescente de questões sociais a seus valores essenciais. Isso as leva além de sua missão estrita e de suas responsabilidades básicas, como agir de forma lícita e ética, fazendo com que evidenciem seu dever para com uma extensa variedade de stakeholders e tomem a dianteira em questões sociais emergentes.
Em especial, identificamos no movimento contemporâneo cinco aspectos, que analisamos a seguir.
AS RESPONSABILIDADES DAS ORGANIZAÇÕES VÃO ALÉM DO BENEFÍCIO SOCIAL QUE APORTAM, ABRANGENDO TAMBÉM O FOMENTO A UM CAMPO DE AÇÃO SAUDÁVEL E PUJANTE PARA TODOS
A natureza crescente da responsabilidade social do terceiro setor
Se, por um lado, uma lista de responsabilidades convencionais se manteve, por outro, surgiram enfoques mais recentes, como cidadania, stakeholding, valores e lideranças.
ÊNFASE TRADICIONAL
Missão
• Exercer impacto positivo numa área essencial do trabalho social (por exemplo, déficit de moradia, pesquisas contra o câncer)
Responsabilização
• Prestar contas a doadores e comunidades e responder por falhas, falta de visão e escândalos
Legalidade/ética
• Seguir leis e regulamentações, bem como prescrições amplamente aceitas do que é certo e do que é errado
Governança e gestão
• Estabelecer regras e procedimentos para que os níveis inferiores da organização se alinhem com a missão geral e para integrar a responsabilidade social de maneira estrutural
ÊNFASE CONTEMPORÂNEA
O “bem maior”
• Enfrentar questões sociais mais amplas, ligadas ao trabalho de entidades não rentáveis (sustentabilidade, diversidade)
• Contribuir para um campo de ação saudável e pujante por meio de cidadania, participação e colaboração.
Stakeholding
• Identificar, envolver e gerir um grupo ampliado de pessoas com interesse legítimo no trabalho sem fins lucrativos
Valores
• Abraçar as convicções da ONG quanto aos principais problemas, causas e ideais
Liderança
• Motivar e inspirar os membros para um futuro visionário que pode exigir ações arrojadas e estimulá-los a assumirem a ponta de uma questão social, ou a serem seus apoiadores mais ferrenhos
Ir além da missão | Embora a benevolência das organizações não lucrativas seja tradicionalmente associada à sua capacidade de promover uma missão numa área determinada (por exemplo, a pesquisa do câncer ou o déficit de moradia), hoje elas também se voltam para a relação entre essa missão e um quadro mais amplo de questões sociais. A sustentabilidade, por exemplo, tem sido abarcada por um sem-número de ONGs cujo principal foco não é a proteção ambiental. Universidades como Oxford e Harvard, por exemplo, vetaram investimento de seus fundos em combustíveis fósseis, enquanto outras entidades passaram a apoiar a causa abolindo o papel, permitindo o teletrabalho e adotando a tecnologia verde.
A questão da diversidade também domina o setor. Hoje se espera que todas as entidades a contemplem o máximo possível. A Fundação Bill & Melinda Gates, por exemplo, fez o experimento de reduzir o viés de gênero adotando padrão duplo-cego para processos de concessão.4 A fundação também criou e contratou um chefe de divisão para diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês) para suas práticas internas.
A questão da diversidade ilustra dois outros pontos acerca do movimento. Em primeiro lugar, em alguns casos, as instituições não lucrativas ampliam suas missões para permitir um escopo mais alargado de impacto social. No início deste ano, por exemplo, a Associação Hospitalar Americana (AHA) expandiu sua missão com respeito à equidade (trechos novos destacados em itálico): “A missão da AHA é promover a saúde de todos os indivíduos e comunidades.
A AHA comanda, representa e atende a hospitais, sistemas de saúde e outras organizações relacionadas, responsáveis por comunidades e comprometidas com um atendimento equitativo e com a melhoria da saúde para todos”. Em segundo lugar, a questão da diversidade revela que o crescimento do fenômeno da responsabilidade tem se intensificado. De fato, uma vez que esse fator permeia o terceiro
setor, ela exige atenção em cada vez mais frentes. A ênfase em raça e gênero tem se ampliado para incluir idade, nacionalidade, sexualidade, nível de escolaridade e deficiências. Por exemplo, vemos uma crescente conscientização das organizações sem fins lucrativos em relação à necessidade de criar oportunidades de voluntariado de qualidade para a população baby boomer 5 e também em relação à acolhida, em universidades, de estudantes de primeira geração e daqueles com diferenças de aprendizado, como o autismo.
Enfatizar a vivência de valores sem fins lucrativos vai além da legalidade e da ética | As iniciativas dos anos 1990 para a responsabilidade enfatizavam a ética e, no mínimo, a legalidade. Ambas as dimensões continuam a ser importantes, como fica visível pela ubiquidade dos códigos de conduta do setor,6 os quais proporcionam diretrizes para o comportamento do funcionário com relação a tudo, de assédio sexual a denúncias de irregularidades.7 Existem hoje debates éticos e legais sobre, por exemplo, o que os funcionários podem dizer em mídias sociais; se as identidades de doadores devem ser secretas; sobre a legitimidade de pagar um resgate para hackers em caso de sequestro do sistema operacional da organização.
Hoje, porém, o setor se orienta mais por valores. A ética se traduz em prescrições morais de comportamento que têm impacto externo nas organizações, como regras e padrões que reflitam de maneira ampla as crenças comuns sobre o que é certo e errado. Por outro lado, os valores são ideais internos que diferem de uma entidade para outra e refletem seu apreço individual pelas aspirações culturais mais importantes para ela.
No início dos anos 2000, os valores se tornaram um tópico mais destacado, e especialistas passaram a aconselhar as organizações sem fins lucrativos a identificar um pequeno conjunto de prioridades, a fim de formalizá-lo numa declaração de valores essenciais. Hoje estes são lugar-comum em todo o setor e facil-
mente localizáveis nos sites das entidades. Esses documentos incorporaram muitas das dimensões e dos interesses do movimento de responsabilidade social, como “diversidade”, “gestão ambiental” e “responsabilização”.
Ir além da prestação de contas a doadores e comunidades servidas, a fim de incluir uma extensa gama de stakeholders | A prestação de contas é outra das responsabilidades que as organizações têm elaborado com mais profundidade. Uma ONG é responsável, por exemplo, para com doadores, comunidades servidas, por qualquer dano não intencional e quanto aos financiamentos. A prestação de contas está intimamente ligada ao dever de explicar e justificar, à prática de reportar e à própria atividade contábil – no sentido de registrar, verificar e analisar os recursos da organização. Quando entidades se tornam mais responsabilizáveis, por exemplo, por reportar suas despesas a auditorias externas, elas podem se tornar mais disciplinadas, com isso reduzindo desperdícios e abatendo despesas gerais desnecessárias. Quando entidades medem e reportam seus impactos sociais, elas podem se mostrar mais sensíveis a maneiras de aperfeiçoar seus programas. Quando divulgam seus doadores e submetem suas decisões de concessão a escrutínio público, podem afastar a percepção de que seriam controladas por “dinheiro sujo” ou nepotismo.
A responsabilização também implica responder por falhas ou malversação. Como tal, é um estímulo para evitar o malfeito antes que ele ocorra, introduzindo controles em diversos pontos e adotando melhores práticas e procedimentos supervisionados por indivíduos treinados e qualificados. A responsabilização preserva a confiança nas organizações, reforçando a lisura dos processos para quem está de fora.
O entendimento sobre a quem as entidades devem prestar contas tem se expandido. Além dos grupos dotados de laços diretos com organizações sem fins lucrativos, incluindo doadores, diretores, funcionários e comunidades servidas, hoje se incluem nesse público todos os grupos que de algum modo são afetados pelas operações de uma organização – em outras palavras, os stakeholders, termo que atualmente pode abranger até as gerações por vir e o ambiente natural.
Especialistas, em particular, solicitam às organizações que exerçam a gestão de stakeholders. Isso exige identificá-los, levantar suas necessidades e interesses, tratá-los com dignidade e respeito, mantê-los informados e criar canais para incluí-los nas tomadas de decisão. Sob esse ponto de vista, as entidades podem considerar, por exemplo, que seus funcionários, não apenas pessoas movidas por um ideal comum, mas stake-
holders com interesses legítimos, concretos e acessíveis, como pagamento, segurança no emprego, progressão na carreira e condições de trabalho.8 Esse trabalho de gestão não é apenas um imperativo moral, mas também um esforço estratégico que pode trazer benefícios operacionais, como maior confiança, empatia e satisfação entre os muitos grupos envolvidos no trabalho de uma entidade não lucrativa.
Ir além dos limites da organização quanto a cidadania e empreendimento coletivo | O aspecto “social” da responsabilidade sugere não apenas relações com stakeholders, mas também uma sociedade mais ampla e um empreendimento coletivo sem fins lucrativos. As responsabilidades das organizações vão além do benefício social que aportam, abrangendo também o fomento a um campo de ação saudável e pujante para todos. Mais especificamente, cidadania designa comportamentos, voluntários e muitas vezes não formalmente recompensados, vistos como contribuições para o bem público que todos, idealmente, deveriam fornecer.
Implicações para gestores do terceiro setor
O movimento pela responsabilidade social no setor não lucrativo impõe novas exigências a líderes enquanto promete benefícios operacionais
OS GESTORES SÃO HOJE INCENTIVADOS A...
ATENDER
a questões sociais para além da missão essencial da organização, a fim de melhorar a sociedade em mais frentes, ampliar seu escopo de operação e agregar sentido ao seu trabalho e gerar visibilidade junto a potenciais doadores
MIRAR
questões sociais ligadas ao cerne do trabalho de suas entidades, com o intuito de manter coerência de identidade e garantir que as competências existentes sejam alocadas com a máxima eficácia
COMPROMETER-SE
com questões sociais desde o topo da organização de modo a estimular o envolvimento confiante e motivado dos funcionários mais abaixo
INTEGRAR
as questões sociais em nível estrutural, inovando quando necessário, para evitar acusações de greenwashing ou de tirar vantagem do movimento por responsabilidade social apenas por marketing
TREINAR
líderes visionários que se mantenham informados sobre a evolução da sociedade, saibam gerir múltiplos stakeholders e aproveitar oportunidades de cruzamento entre a missão original e questões sociais mais amplas
Atualmente, organizações não lucrativas exercem essa cidadania de muitas formas. A YMCA, a Feeding America e a United Way estão entre as milhares que pagam a folga de seus funcionários no dia de eleições. Outras têm emprestado sua voz para questões que afetam todo o setor, como quando a Code for America, o Greenpeace e o Sierra Club assinaram uma petição para impedir a venda do registro online “.org” para investidores que visem lucro. Outras ainda, por sua vez, têm subscrito práticas que não são necessariamente desenhadas para elas, mas favorecem o setor como um todo, como o uso de formulário padrão para aceitação de pedidos de subvenção. Além disso, algumas entidades permitem que seus pares contratem seus trabalhadores e compartilham contatos de doadores com organizações em campos de atuação semelhantes. Com essas iniciativas, apoiam o setor e promovem o espírito cívico em seu meio.
Ir além da governança e da boa gestão para incluir liderança | A responsabilidade social começa no topo da organização não lucrativa e é exercida de modo mais orgânico e suave quando diretores, executivos e altos cargos estão alinhados e comprometidos. De modo específico, o movimento influenciou o foco tradicional e estrutural em governança e gestão e trouxe uma ênfase mais recente e dinâmica em liderança.
“Governança” é um termo que se refere à administração de alto nível por meio de regras e procedimentos, incluindo o modo como membros do conselho diretivo e de gerenciamento são nomeados, contratados, estruturados, monitorados, remunerados e mantidos independentes entre si. De modo semelhante,
“gerenciamento” refere-se à gestão e ao uso efetivo dos recursos humanos e físicos e ao estabelecimento de protocolos e melhores práticas para incorporar a missão da entidade nos níveis inferiores da organização. Governança e gestão eficientes integram a responsabilidade social ao cerne da organização não lucrativa. Por exemplo, o modelo de governança com múltiplos stakeholders serve para garantir que grupos impactados pela entidade estarão representados no conselho e participarão na tomada de decisões, incluídos aí os funcionários e as comunidades atendidas, além de doadores e especialistas do setor. As entidades podem promover responsabilidade social por meio de regimes de compensação, por exemplo, vinculando a remuneração de executivos a metas de diversidade ou sustentabilidade. Por meio de tais arranjos, a responsabilidade social se incorpora à organização, em vez de ser um acessório.
Mais recentemente, o discurso de acadêmicos e profissionais do campo sobre a gestão de organizações não lucrativas tem enfatizado a liderança. Nele as entidades aparecem não só como um sistema que demanda um planejamento adequado, mas que deve estar imbuída de vida e direção. Bons líderes não só mantêm a máquina funcionando, eles também inspiram e motivam os membros

da organização. Cada vez mais se espera que os líderes sejam visionários, que estabeleçam objetivos ousados e relevantes, capacitem e empoderem seus subordinados. Como reflexo dessa mudança, além de declarar sua missão, seus valores essenciais e códigos de conduta, as organizações têm divulgado também sua visão. Com isto, inspiram os stakeholders com utopias ambiciosas que a organização pode fazer prosperar por meio de seu trabalho social, como um mundo “onde todos tenham um lugar decente para viver” (da Habitat for Humanity) ou onde “nenhuma criança vá dormir com fome” (da Feed the Children).
A liderança é importante para a responsabilidade social por diversas razões. Em primeiro lugar, porque os líderes são não apenas funcionários da organização, mas também figuras de proa, e deles se espera que sirvam de modelo para os valores da entidade. Em segundo lugar, dado que a responsabilidade social muitas vezes envolve ações que estão apenas vagamente relacionadas com a missão da organização, líderes experientes devem ter carisma, persuasão e criatividade excepcionais para transformar ideias em um plano de ação coerente para stakeholders. Em terceiro lugar, líderes são frequentemente convocados a tomar decisões difíceis, como quando administradores de universidades se expõem ao risco de desagradar ex-alunos, por removerem dos campi monumentos a benfeitores que foram proprietários de escravos.
Implicações
DA LIDERANÇA À GESTÃO DE stakeholders e à cidadania, o movimento contemporâneo por responsabilidade social nas organizações não lucrativas impõe demandas extraordinárias. Exibir comprometimento com questões sociais mais amplas pode trazer benefícios operacionais, fortalecendo a legitimidade e a reputação de uma entidade. A atenção à responsabilidade social pode também imbuir o trabalho das organizações com uma razão de ser mais significativa, o que pode ajudar a melhorar o moral e as possibilidades de recrutamento. Por último, uma vez que muitas das atividades associadas incrementam a visibilidade, elas potencialmente aumentam a conscientização, o que pode levar a mais doações e engajamento voluntário.
Além disso, a consciência mais aguda de questões sociais intrinsecamente ligadas à atuação da organização pode fomentar inovações. Por exemplo, o Museu de Artes Fotográficas de San Diego, como muitos outros museus, ampliou seu acesso implementando uma política de “pague o quanto quiser”. Para combater a desigualdade de gênero nos salários, a Hillel Foundation, maior organiza-
O MOVIMENTO PELA RESPONSABILIDADE DAS ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS TAMBÉM TRAZ RISCOS. A
ATENÇÃO
ÀS RESPONSABILIDADES SOCIAIS NÃO ESSENCIAIS PODE DESVIAR O FOCO DE SUA MISSÃO ORIGINAL
ção voltada à vida de judeus nos campi, fez um teste com faixas de remuneração fixas para funcionários em diferentes posições, as quais eram conhecidas por todos. A fim de promover a saúde mental e tornar os locais de trabalho mais acolhedores para pessoas com deficiência, muitas organizações prestadoras de serviço introduziram licenças remuneradas ilimitadas.
O movimento pela responsabilidade das organizações sem fins lucrativos também traz riscos. A atenção às responsabilidades sociais não essenciais pode desviar o foco de sua missão original, em especial num setor que parece sempre operar com orçamentos apertados. As possibilidades de falhar na missão original, costumeiramente atribuídas à pressão de doadores ou à busca por financiamento, podem agora ser introduzidas na organização, vindas de todos os lados, de uma miríade de stakeholders. Com o tempo, as organizações sem fins lucrativos que não se atenham à sua vocação essencial e a suas competências-chave podem ver sua identidade e suas habilidades se tornarem menos eficazes, à medida que tentam fazer tudo para todos.
Uma potencial preocupação para líderes de organizações sem fins lucrativos é a redução de sua credibilidade em razão de promoções de responsabilidade social que pareçam excessivamente corporativas. De fato, mesmo o uso da linguagem da “responsabilidade social” para descrever as atividades pode ser problemático, uma vez que, no mundo corporativo, a expressão aparece frequentemente ligada a exercícios de branding enganosos e ineficazes. Pior ainda, as entidades poderiam ser acusadas de greenwashing, de superficialidade (isto é, exibindo uma aparência de preocupação com o ambiente ou com a diversidade construída por meio de mudanças mais simbólicas do que significativas) ou de privarem sua missão original de recursos. Para um setor fundado na noção de bem público, as consequências desse tipo de críticas podem ser muito mais deletérias do que seriam no mundo empresarial. Em quais das múltiplas responsabilidades sociais uma organização não lucrativa deveria manter o foco? Dadas as pressões para que instituições desenvolvam identidades claras e distintivas, que ecoem suficientemente junto a segmentos e a doadores específicos, para fazer com que abram a carteira, tais entidades poderão ser mais bem-sucedidas se mirarem causas adjacentes ao cerne de seu trabalho. Se é verdade que, em algum nível, todas as organizações devem ser responsáveis, éticas e bem administradas, na prática, elas também precisam decidir quanto desejam se aprofundar em cada aspecto dessa responsabilidade. Elas devem apenas cumprir com suas obrigações sociais ou tentar excedê-las, tornando-se pontas de lança num tema específico? Ao ponderar sobre essa questão, as organizações podem se mirar em exemplos de entidades que têm praticado a responsabilidade social com base em seus focos centrais de interesse. A Girl Scouts, por exemplo, expandiu um compromisso existente com os assuntos da mulher, proporcionando a seus
funcionários um período de licença parental remunerada relativamente longo, de 12 semanas. De modo semelhante, a Every Texan, entidade defensora de justiça econômica em políticas públicas com sede em Austin, respondeu de forma cooperativa e afirmativa ao empenho por sindicalização de seus próprios funcionários.
O movimento pela responsabilidade social tem produzido muitos efeitos práticos. Para dizer o mínimo, ampliou o conjunto de interesses em torno dos quais se estruturam os papéis e responsabilidades. Como resultado de seus esforços por equilibrar um crescente número de stakeholders e causas sociais, essas entidades têm se tornado operacional e estruturalmente mais complexas, impondo mais exigências aos líderes. Empreendimentos sociais, por exemplo, assumem formas híbridas para poderem equilibrar melhor seus objetivos comerciais e sociais. Além disso, as organizações têm demandado líderes com visão e carisma, capazes de se conectar com os mais diferentes stakeholders.
Um dos aspectos mais notáveis do setor não lucrativo contemporâneo é a rapidez cada vez maior com que novas causas sociais têm gerado uma maré de ações, políticas e testemunhos. Recentemente o movimento #MeToo e o Black Lives Matter deram ímpeto a ondas assim, além de terem reforçado a atenção aos direitos das pessoas trans, à linguagem de gênero neutro, ao direito ao aborto e à guerra na Ucrânia. A maior amplitude e frequência dessas questões sem dúvida reflete a natureza da sociedade de hoje – o caráter viral das mídias sociais, a polarização crescente nos Estados Unidos e em outros países, os níveis avançados de globalização. Desse modo, o surpreendente e, para muitos, bem-vindo desenvolvimento da responsabilidade social expandida das organizações tem tudo para se intensificar. O
SHAWN POPE é professor associado de estratégias de negócios da EMLV Business School.
PATRICIA BROMLEY é professora associada na Faculdade de Educação e na Escola Doerr de Sustentabilidade de Stanford e codiretora do Stanford Center on Philanthropy and Civil Society.
NOTAS
1 Patricia Bromley, “The Organizational Transformation of Civil Society”, The Nonprofit Sector: A Research Handbook, Walter W. Powell e Patricia Bromley (org.), Stanford: Stanford University Press (3. ed., 2020).
2 Estes são os números de organizações categorizadas como A, B, C ou D no Yearbook of International Organizations.
3 Margaret Gibelman e Sheldon R. Gelman, “Very Public Scandals: An Analysis of How and Why Nongovernmental Organizations Get in Trouble”, International Society for Third-Sector Research Fourth International Conference, Dublin, 7 jul. 2000.
4 Alex Daniels, “How Gender Bias Creeps Into Grant Making”, The Chronicle of Philanthropy, 4 jun. 2019.
5 Joshua Braverman e Ryan Kaitz, “Engaging Our Elders: The Power and Potential of Senior Volunteerism”, Nonprofit Quarterly, 18 fev. 2021.
6 Patricia Bromley e Charlene D. Orchard, “Managed Morality: The Rise of Professional Codes of Conduct in the US Nonprofit Sector”, Nonprofit and Voluntary Sector Quarterly, abril 2015.
7 Shawn Pope et al., “The Pyramid of Nonprofit Responsibility: The Institutionalization of Organizational Responsibility Across Sectors”, Voluntas, 17 set. 2018.
8 Jim Rendon, “Low Pay Hurts Nonprofits and Workers. Some Groups Are Fighting Back”, The Chronicle of Philanthropy, 4 set. 2019.
PONTO DE VISTA
Insights das linhas de frente
A invisívelpotência do terceiro setor
Para que ele cresça, novas narrativas devem destacar, além do impacto, sua força econômica POR LEONARDO LETELIER
Jogue ao vento a expressão “terceiro setor”. As imagens que vão voltar são de um caminhão cheio de mantimentos para apoiar famílias atingidas por uma emergência dessas que se repetem todos os anos, uma ação de plantio de árvores ou um mutirão de cirurgias para pessoas em situação de vulnerabilidade. As narrativas tradicionais sobre o setor privado sem fins lucrativos habitualmente destacam os resultados diretos de sua ação na sociedade.
Agora faça o mesmo com a expressão “setor Empresarial” (também conhecido como setor privado com fins lucrativos ou segundo setor). Fala-se sobre empregos, fração do Produto Interno Bruto e outros indicadores semelhantes. É sua contribuição para a economia o que se valoriza.
Essa diferença de olhar tem implicações relevantes. Ao darmos primazia para a geração de valor mensurável no curto prazo quando falamos do segundo setor, corremos o risco de ignorar suas externalidades – os danos causados por empresas, pelos quais não são responsabilizadas.
Por outro lado, enxergar prioritariamente o benefício público gerado pelo terceiro setor nos leva a desconsiderar sua contribuição para a economia. Isso alimenta estereótipos e má compreensão por parte dos encarregados de desenhar políticas públicas, impedindo a adequada representação do setor nos fóruns de tomada de decisões, o que reduz sua capacidade de gerar impacto.
O fato é que a relevância econômica do setor – que não é pequena – importa muito, mas é pouco conhecida.
Um breve passeio por alguns títulos recentemente publicados na mídia permite entender que o terceiro setor é visto ao mesmo tempo como ponta de lança na garantia de direitos sociais, dependente de verbas do Estado e carente de maior conformidade:
• Representantes da sociedade civil, da iniciativa privada e do terceiro setor lançam campanha de combate à fome
• SOS Yanomami: terceiro setor cria estratégia para combater crise humanitária
• Papel do terceiro setor na garantia dos direitos sociais
• Como saber se o terceiro setor traz mais eficiência ao Estado?
• Estudo expõe relação conflituosa entre terceiro setor e sistema financeiro
• Terceiro setor recebeu R$ 109 bilhões do Estado e dos municípios desde 2019
Embora respeitosos, os textos acima1 apontam para uma verdade parcial. Impressiona constatar que a suposta dependência do Estado – enquanto na verdade apenas
2,7% das organizações recebem algum subsídio público2 – continua sendo uma das mensagens mais propagadas acerca do setor.
RAIO-X
Recentemente foi publicado um estudo sobre a contribuição econômica do terceiro setor,3 iniciativa do Movimento por uma Cultura de Doação, coordenada pela Sitawi Finanças do Bem, com apoio de outras organizações e indivíduos e execução pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). A abordagem adotada utilizou uma matriz insumoproduto e avaliou a redução nos níveis gerais da economia, com a remoção hipotética das atividades econômicas do setor – organizado em atividades artísticas, de educação, de saúde e outras organizações associativas.
De forma consolidada, o terceiro setor 4 movimenta 4,27% do PIB, 3,39% do valor de produção e 5,88% das ocupações no país. Isso é muito relevante, especialmente se compararmos esses dados aos de setores de maior visibilidade, como o de fabricação de automóveis, caminhões e ônibus (1,73% do PIB) e o de agricultura (4,57% do PIB).
A contribuição econômica de um setor – como representação no PIB, ocupação ou valor de produção – é a soma de sua contribuição direta, decorrente da atividade econômica interna, e da indireta, efeito de sua demanda por insumos de outros setores, que aumentam a de outros.
Esperava-se um peso importante das atividades de saúde, puxado pelos grandes hospitais filantrópicos, e, em menor medida, pelas da educação. Mas, além dessas confirmações, os números como um todo são relevantes.
Outro estudo recente, conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aborda a dinâmica de abertura e fechamento de organizações do terceiro setor no Brasil nos últimos 120 anos.5 Entre 1901 e 2020, cerca de 1,16 milhão de organizações foram abertas no terceiro setor. Destas, cerca de 816 mil permanecem ativas e, ainda destas, 528 mil seguem prestando contas à Receita Federal, o que significa que mantêm algum nível de operação.6
Dados gerados por esse estudo indicam que a fração das organizações do terceiro setor que deixa de operar em cinco anos é 36%; o número pode parecer alto, mas, no caso das empresas com fins lucrativos, a taxa é de 60,7%, segundo outra pesquisa, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As que ficam inoperantes após dez anos são 50% – a comparar com 79,7% no caso das empresas, ainda de acordo com o IBGE.7 Essa comparação já exclui da composição as empresas inaptas e suspensas no terceiro setor, mesmo se isso não as impediria de exercer suas atividades regularmente.
Ainda que as formas de medir atividade operacional difiram entre os dois estudos, pode-se concluir que as organizações sem fins lucrativos se mostram mais resilientes do que as empresas rentáveis. Uma comparação simplificada – a divisão da fração das organizações pela fração de empresas ainda ativas após determinado período –indicaria uma razão de 1,6x para uma sobrevivência de cinco anos e 2,5x para dez.7 Não há razão para que gestores públicos não deem a devida atenção a um setor que contribui com mais de 4% do PIB e quase 6% da ocupação e que se mostra mais resiliente do que as empresas tradicionais com fins de lucro. Esses dados deveriam estar na mente dos gestores públicos ao formular suas políticas, sejam estas direcionadas ao terceiro setor ou transversais, que impactam a economia como um todo – inclusive o terceiro setor. Uma das consequências diretas de desconsiderar essa contribuição econômica é o impacto sobre o financiamento. Se empresas podem vender participação
mento do terceiro setor. É assim que os demais setores da economia agem com vistas a subsidiar seus esforços de incidência sobre políticas públicas e a fim de discutir regulamentações, impostos e benefícios.
Os setores tradicionais falam de empregos e impostos gerados nas tratativas governamentais. Mas, no marketing para seus clientes, abordam os benefícios de seus produtos e serviços. Também o terceiro setor tem de agir nesse sentido, de modo a reforçar sua legitimidade. Novas narrativas vão colaborar para a captação de recursos. Imaginemos as seguintes manchetes em jornais, sites e mídias sociais:8
• Desenvolvimento econômico e social: a força do terceiro setor
• Terceiro setor adiciona R$ 423 bilhões ao PIB, mas ainda está distante de seu potencial
• Seis milhões de ocupações e contando – o terceiro setor impressiona
• Terceiro setor não vive de favor, movimenta 4,27% do PIB do país e pede respeito
adequado dos formuladores de políticas públicas e se mostre merecedor de financiamentos mais eficazes, as estratégias de marketing das organizações precisam reforçar três mensagens-chave:
• O terceiro setor é parte da economia, não um efeito colateral;
• O investimento da sociedade no terceiro setor gera retorno social, ambiental, cultural, mas também econômico;
• Organizações socioambientais não são menos sustentáveis do que empresas. Na média, vivem mais tempo, mesmo sendo financiadas de forma menos flexível.
A fim de apoiar esse processo como um todo, os poucos e corajosos indivíduos e organizações que financiam o desenvolvimento da infraestrutura para filantropia no país poderiam criar um fundo coletivo, com recursos de longo prazo.
No fim das contas, um funcionamento melhor do terceiro setor traz benefícios –não só sociais, ambientais ou culturais, mas também econômicos – para todos. O
LEONARDO LETELIER, eleito Empreendedor Social do Ano 2021 pela Folha de S.Paulo e Schwab Foundation, é fundador e CEO da Sitawi Finanças do Bem e diretor-executivo da Endowments do Brasil.
acionária para financiar seu crescimento, o equivalente disso no terceiro setor, as doações irrestritas, é raro. A predileção dos doadores é por ver todo seu dinheiro investido “na ponta”, ou seja, nos serviços providos pelas organizações. Enquanto o segundo setor conta com a margem de contribuição de seus produtos ou serviços para crescer, do terceiro setor espera-se que opere sem essa margem. Mesmo quando é permitido o uso de algum recurso para custos indiretos, ainda não estamos falando em sobra para investir em crescimento ou melhoria das operações.
Não se pretende que doadores confiem cegamente nas organizações sem fins lucrativos, mas que tratem seus gestores como profissionais, dando-lhes recursos e cobrando em troca realizações compatíveis, como fazemos nos outros setores.
COMO AVANÇAR
Será necessário dar seguimento à geração de dados de qualidade sobre o funciona-
• Para você que pensou que economia e filantropia não estão relacionadas, leia isso
• Você conhece a “indústria” com mais impacto positivo no Brasil?
• Terceiro setor: a área que faz a máquina girar com dinheiro e propósito
• Doar faz bem para você e para a economia
• Terceiro setor “puxa” mais de 1 milhão de empregos em outros setores
• Você pode não conhecer o terceiro setor, mas se beneficia dele todos os dias
• Solidariedade ou automóveis: o que vale mais na economia e para o governo?
O ponto de partida é promissor, uma vez que 74% das pessoas concordam que “a maioria das organizações sociais trabalha arduamente para alcançar resultados positivos para aqueles que pretendem ajudar”, segundo a pesquisa Brazil Giving 2020.9
Em síntese, para que o terceiro setor seja devidamente levado em conta nas discussões de políticas econômicas, aumente a probabilidade de receber um tratamento
1 Títulos de textos publicados entre 2022 e 2023 nos sites G1 Observatório do Terceiro Setor, O Tempo, Migalhas e TCE-SP.
2 https://mapaosc.ipea.gov.br/arquivos/posts/2624-tdreduzido.pdf
3 “A Importância do Terceiro Setor para o PIB no Brasil e suas regiões”, disponível em https://info.sitawi.net/terceiro-setorpib-brasil
4 As organizações consideradas no estudo seguem o mesmo critério do Mapa das Organizações da Sociedade Civil (https:// mapaosc.ipea.gov.br/), ou seja, são aquelas privadas, sem fins lucrativos, com personalidade própria ou legalmente constituídas, autoadministradas e voluntárias. O ano-base foi o da última matriz brasileira de insumo-produto disponível pelo IBGE, 2015.
5 https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11453/2/ TD_2891_Web.pdf
6 Na visão do autor, a estimativa mais comumente utilizada para representar o número de organizações sociais (mais de 800 mil) superdimensiona o setor ao incluir organizações declaradas inaptas, ou seja, aquelas que deixaram de apresentar declarações fiscais de cinco ou mais exercícios consecutivos e que, mesmo após intimadas, não tenham regularizado a situação ou tenham deixado de apresentar essas mesmas declarações em um ou mais exercícios, porém não foram localizadas.
7 A hipótese de que a curta vida de microempreendedores individuais (MEIs) diminuiria a longevidade média das empresas foi refutada pelo estudo “Sobrevivência das empresas no Brasil”, de 2016, disponível em https://www.sebrae.com.br/Sebrae/ Portal%20Sebrae/Anexos/ sobrevivencia-das-empresas-nobrasil-102016.pdf. Na verdade, o oposto acontece.
8 Agradeço a Ana Americano, Bhaskar, Bianca Monteiro, Fernando Nogueira, Joana Mortari, Marcia Woods, Renata Veneri, Silvia Daskal, Silvia Morais e Tatiana Piva pelas sugestões.
9 https://www.idis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/ CAF_BrazilGiving2020.pdf
Não há razão para que gestores públicos não deem a devida atenção a um setor que contribui com mais de 4% do PIB e quase 6% da ocupação
O ESG em defesa de sua carteira
A administração dos acionistas deve priorizar os efeitos das empresas na economia e na carteira dos investidores
POR FREDERICK ALEXANDERPolíticos americanos de direita, como o governador da Flórida, Ron DeSantis, têm declarado guerra aos investidores que pressionam empresas a prestar mais atenção à governança ambiental, social e corporativa (ESG). Ao mesmo tempo, progressistas como Tariq Fancy, ex-diretor de tecnologia da informação de investimentos sustentáveis da BlackRock, criticam os esforços ESG como uma distração ineficaz dos esforços legais necessários para criar uma mudança real.
Essas críticas em lados opostos da dimensão política são reforçadas por uma imprecisão fundamental do movimento ESG: ele ainda precisa reconhecer o conflito que está no cerne da carteira de investimento moderno – certas empresas impulsionam os lucros com práticas que ameaçam os sistemas que estão na base das carteiras de seus próprios acionistas.
Ao identificar esse conflito e superar suas implicações, os stakeholders podem justificar seu interesse financeiro em determinadas empresas para responsabilizá-las por seus impactos na sociedade, no meio ambiente e na economia em geral. Essa administração de sistemas é uma solução essencial com base no mercado que pode utilizar os incentivos econômicos dos investidores para moldar as decisões tomadas por altos executivos e Wall Street.
QUANDO O ALFA FALHA
Comecemos com duas observações não controversas. Primeiro, é provável que os acionistas detenham posições em centenas ou mesmo milhares de empresas, de forma direta ou por meio de veículos de investimento. Essa diversificação permite que eles aumentem os rendimentos com risco mínimo. Segundo, se uma empresa de um investidor

com carteira variada aumentar seu valor por meio de um procedimento que representa riscos para os sistemas sociais e ambientais críticos para a economia, o dano resultante pode causar perdas em toda a carteira e superar em muito qualquer ganho que ele receba de uma participação relativamente pequena em uma empresa.
Por outro lado, os executivos que dirigem companhias são incentivados financeiramente a se preocupar somente com o valor delas, não com o valor agregado das carteiras dos acionistas. Decisões que impactam esses dois valores de forma diferente criam uma divergência de interesse entre os gestores da empresa e seus investidores.
Os acionistas tendem a ignorar esse conflito e tratar empresas individuais como
Por exemplo, investidores tendem a defender a remuneração com base em ações, segundo a qual gerentes são recompensados quando o valor dos ativos de uma companhia em bolsa sobe, mesmo se seu modelo de negócio é baseado numa externalização de custos que ameaça a performance mais ampla do mercado. De maneira similar, gestores ou assessores de investimentos são recompensados quando suas carteiras batem outras de risco semelhante, relegando o impacto que os “vencedores” provocarem na economia ou no retorno geral do mercado.
unidades críticas para medir o sucesso financeiro, em vez de se concentrarem em como as decisões da empresa afetam amplos retornos de mercado. Executivos e gestores de ativos são recompensados por gerar alfa (a diferença entre os retornos de uma empresa ou carteira e o retorno médio para investimentos de risco semelhantes) – independentemente do impacto que isso possa ter nos sistemas que determinam os amplos retornos de mercado, especialmente relevantes para investidores com aportes diversificados.
Infelizmente, os ativistas ESG tendem a compartilhar essa concepção, pelo menos quando explicam seus motivos. Eles defendem o ativismo próprio quase exclusivamente em termos do potencial de melhorar o alfa de empresas individuais, melhorando seu impacto social e ambiental. O movimento ESG evita a retórica que aborda diretamente os trade-offs que eventualmente existem entre os efeitos positivos que uma decisão da empresa tem sobre seu próprio valor financeiro e a ameaça que essa decisão pode representar para o desempenho geral do mercado. Como resultado, a externalização das despesas e consequências continua. Veja o ativismo climático, por exemplo. Ainda que o clima desempenhe um papel importante nas estratégias ESG, os investidores não têm efetivamente pressionado as empresas a alinhar sua pegada de carbono com o Acordo de Paris – o acordo internacional mediado pelas Nações Unidas para manter o aumento da temperatura global, intensificado pelos gases de efeito estufa, a menos de 2 ºC acima dos níveis préindustriais. Nossa pesquisa mostra que o fracasso coletivo da economia em se alinhar com o Acordo de Paris significará que um típico trabalhador de 32 anos que economiza para a aposentadoria provavelmente terá de 7% a 14% menos dinheiro nessa fase, com o risco de perdas muito maiores.
PONTO DE VISTA
A mesma história se repete para a maioria das questões ESG, incluindo desigualdade, direitos dos trabalhadores e biodiversidade. O equívoco em não abordar esses temas ameaça perdas econômicas que reduzirão o valor do portfólio para investidores diversificados. O alfa que algumas empresas podem obter ignorando esses pontos não pode compensar os danos aos retornos de mercado pelos quais são responsáveis.
economicamente ineficiente. Além disso, a busca por alfa pelas empresas muitas vezes as leva a interferir no processo regulatório, um aspecto da obsessão pelo lucro que a administração de sistemas pode abordar.
A lacuna regulatória pode ser melhorada por acionistas diversificados que, ao contrário dos executivos corporativos, estão bem posicionados para limitar as estratégias de negócios que ameaçam os
Uma razão para esse fracasso é o contraste entre a saliência do alfa e o silêncio do beta – o retorno médio para um investidor diversificado. Os investidores sempre podem comparar o desempenho de um fundo com seu histórico e o desempenho de uma empresa com o de seus pares. Assim, um fundo ou empresa que gera alfa pode reivindicar sucesso apontando para retornos históricos. Por outro lado, as contribuições para o retorno do mercado (e dos sistemas que o suportam) beneficiam igualmente a todos os investidores diversificados e, portanto, não aparecem nas comparações.
Claro, o alfa é importante para os acionistas. O conhecimento de que os executivos estão trabalhando para otimizar o alfa incentiva o comprometimento do capital residual permanente necessário para financiar uma sociedade moderna complexa. Títulos como ações ordinárias exigem a promessa de que os interesses desses investidores venham em primeiro lugar. A entrega de alfa é o cumprimento dessa promessa.
Mas todo o alfa e nenhum beta é a receita para o desastre. A administração de sistemas autêntica pode preservar o papel de buscar o alfa, sem comprometer o beta e os sistemas dos quais a economia global depende.
O PODER DOS ACIONISTAS
Idealmente, as leis e os regulamentos poderiam abordar as externalidades que ameaçam o beta. Mas, por motivos que vão além do escopo deste artigo, o esquema regulatório global deixa amplo espaço para que as empresas externalizem custos de maneira
sistemas sociais e ambientais. Eles têm a motivação econômica certa – proteger o valor intrínseco da economia na qual estão investidos. Também têm o poder, por meio de um mercado globalizado, de impor limites consistentes transversalmente. Enquanto os políticos não interferirem nos direitos dos investidores de administrar seu próprio capital, os acionistas seguirão livres de muitas das restrições políticas que impedem os reguladores de abordar questões sociais e ambientais críticas.
Uma visão de administração de sistemas permite que os investidores preservem a economia global e, ao mesmo tempo, suas carteiras; eles podem insistir para que suas empresas busquem alfa, mas que o façam apenas dentro dos limites que protegem os sistemas que sustentam nossa economia. Essa gestão pode servir como um sistema de feedback crucial em nossa complexa economia de mercado, quando as empresas são tentadas a externalizar custos que ameaçam os limites sociais e planetários.
Os gestores do sistema devem se concentrar na área em que a voz do acionista é mais necessária: a conduta corporativa que cria o alfa enquanto mina o beta do qual os investidores diversificados dependem. Se essa administração não abordar situações em que a entrega de alfa é necessária para proteger o beta, os executivos corporativos continuarão a buscar essas estratégias extrativas. As empresas que maximizam seus próprios retornos continuarão a reduzir o valor de portfólios diversificados e a alocar capital incorretamente em toda a economia.
Por outro lado, a prática atual de administração apenas do alfa cede a gestão à autoridade dos acionistas. Afinal, embora os investidores possam defender o valor da empresa para a administração corporativa, esses executivos já possuem o conhecimento e a motivação para estruturar fluxos de caixa da empresa. Somente os acionistas têm motivação para proteger o beta. Assim, embora possa ser contraintuitivo, o argumento de um stakeholder de que uma empresa deve mudar uma prática para proteger o beta a um custo para alfa é realmente muito mais confiável do que um argumento de que se deve mudar uma prática simplesmente para proteger o alfa – uma área na qual a corporação indiscutivelmente tem a maior qualificação. Uma confiança estrita nos argumentos alfa também fortalece os oponentes do ESG – cujos objetivos parecem ser projetados para proteger resultados sistêmicos. Os críticos podem alegar com credibilidade que as alegações alfa ESG são apenas uma distração para argumentos de administração que não promovem verdadeiramente o valor da empresa. Se o alfa for aceito como a verdadeira medida do sucesso empresarial, eles podem insistir que o ESG é um antinegócio e ruim para os investidores. Por outro lado, se os proponentes do ESG declaram claramente seu objetivo de preservar sistemas vitais cruciais para a economia como um todo, a fim de reforçar os retornos de portfólios diversificados (rejeitando explicitamente o alfa individual da empresa como a única medida de sucesso), eles podem responder a tais alegações diretamente e ter um argumento melhor para defender a autoridade dos acionistas.
A administração dos investidores sobre os sistemas sociais e econômicos cria uma abordagem baseada no mercado para essas questões, permitindo aos acionistas garantir que seu capital seja empregado de forma eficiente em seu nome. A adoção da administração de sistemas mostra que é o movimento anti-ESG que é anticapitalista: ao legislar contra a gestão dos stakeholders, eles estão “escolhendo vencedores” que não conseguem sobreviver sozinhos em um sistema de mercado no qual os investidores – os verdadeiros capitalistas – são capazes para direcionar como seu capital é aplicado. O
FREDERICK ALEXANDER é o CEO da The Shareholder Commons.
Se alfa for aceito como a verdadeira medida de sucesso empresarial, os críticos podem insistir que o ESG é um antinegócio e ruim para os investidores
Classificando fundações sem sua permissão
Criamos a Foundation Practice Rating para encorajar as fundações do Reino Unido a melhorar suas práticas

Os curadores de fundações de caridade no Reino Unido são predominantemente brancos, homens e estão acima da idade de aposentadoria. A prática também sugere que a maioria é sofisticada, assim como a equipe deles. Essas características tornam os curadores uma combinação ruim, demograficamente, para as comunidades que suas fundações atendem. Essa disparidade certamente os impede de compreender os problemas que trabalham para mitigar e as organizações que apoiam, bem como possivelmente para dissuadir alguns possíveis candidatos a bolsas e a empregos.
As fundações são excepcionalmente inexplicáveis. Não precisam competir por nada, porque a maioria delas já conta com recursos. O governo não exige avaliação de desempenho ou das práticas dessas organizações, e a maioria dos relatórios é opcional: as entidades decidem se devem ser avaliadas ou fazer uma pesquisa com seus beneficiários e publicar os resultados.
Um grupo de fundações doadoras do Reino Unido acredita que isso não é suficiente – que mais progresso é necessário para que possa surgir algum controle externo. Juntas, elas financiaram a Foundation Practice Rating, uma iniciativa inovadora que todos os anos escolhe cem fundações comunitárias e grandes entidades do Reino Unido e avalia suas práticas em diversidade, responsabilidade e transparência. A definição dos critérios, a criação de um sistema e a condução de pesquisa e análise são terceirizadas para a Giving Evidence, uma empresa independente de pesquisa e consultoria que lidero. A apuração usa apenas as informações publicamente disponíveis das fundações, como o que é divulgado em sites e relatórios anuais estatutários – ou seja, o mesmo tipo de informação disponí-
vel para possíveis beneficiários ou candidatos a emprego.
As fundações selecionadas não podem optar por não participar, nem podem influenciar o processo ou as conclusões. Cada uma recebe uma classificação em três domínios, mais uma geral: A (a mais alta), B, C ou D. A Foundation Practice Rating (FPR) não é um ranking e não é baseada em curva: todas podem receber um A ou todas podem obter um D, e uma entidade pode subir sem outra cair. Publicamos todos os resultados, junto das análises.
A classificação é uma auditoria sem precedentes dessas organizações. Percebemos que anos de reuniões e discussões sobre di-
como o GlassPockets (um site norte-americano, agora desativado, administrado pelo Foundation Center para tornar as informações públicas das fundações mais fáceis de encontrar, incluindo dados sobre prioridades, suas equipes e se/como elas permitem que os beneficiários deem feedback) ou o Racial Equity Index (ferramenta que está sendo criada para aumentar a responsabilidade pela equidade racial no desenvolvimento global). Em vez de definirmos as características pelas quais avaliamos a diversidade, usamos as três características que a Equality and Human Rights Commission, do Reino Unido, sugere para relatórios sobre diferenças salariais: etnia, deficiência e gênero.
Não avaliamos as práticas de financiamento em si – por exemplo, quantidade ou restrições de doações ou processos de monitoramento – não por que essas questões não sejam importantes, mas porque as melhores práticas geralmente variam de acordo com o setor e as metas, além de normalmente não serem públicas. Da mesma forma, não quantificamos o impacto: estabelecer a influência de uma fundação é uma tarefa importante – o Giving Evidence faz isso em outros lugares. Mas atribuir métricas aplicáveis para cem fundações e fazer comparações significativas ignorando a heterogeneidade do trabalho delas não traz resultados realistas.
versidade e responsabilidade tiveram pouco efeito nas práticas das fundações. Pensamos que, ao criar tal auditoria, poderíamos incentivar seu progresso.
MÉTODOS E DESCOBERTAS
Com o objetivo de avaliar um conjunto heterogêneo de fundamentos, revisamos as práticas de diversidade, responsabilidade e transparência que são amplamente aplicáveis e visíveis para pessoas de fora. Procuramos ser o mais neutros e objetivos possíveis, então nossos critérios se baseiam nos sistemas de classificação existentes,
A cada ano, realizamos uma pesquisa pública para definir e refinar o processo e os critérios da FPR. Em seguida, nós os publicamos, com recomendações sobre como ter uma boa performance, antes de iniciar a pesquisa – a FPR não tem a intenção de surpreender as pessoas. A cada ano, nosso conjunto de cem fundações compreende as financiadoras da FPR (para que ninguém sinta que elas estão apontando o dedo para as outras), as cinco maiores organizações do Reino Unido em termos de orçamento para doações (porque dominam a experiência dos beneficiários) e uma seleção aleatória dentre fundações
comunitárias do Reino Unido e de uma lista independente das cerca de 300 maiores fundações do país. Cada uma é pesquisada por dois investigadores autonomamente; suas descobertas são comparadas e moderadas por um terceiro. As instituições são isentadas quanto a critérios irrelevantes (por exemplo, aquelas sem funcionários, ou com poucos, não têm de relatar dados de diferenças salariais).
Coletamos os dados do primeiro ciclo no segundo semestre de 2021 e os publicamos em março de 2022; os da segunda etapa foram coletados no segundo semestre de 2022 e publicados em março. Não alteramos critérios entre os dois períodos (embora tenhamos alterado um limite de isenção), porque queríamos evitar confusão, manter uma visão consistente e fazer comparações.
Talvez nossa descoberta mais surpreendente tenha sido que as fundações recebe-
mais baixa diziam respeito à diversidade. Nossos parâmetros no assunto abrangem a acessibilidade (por exemplo, se o site pode ser usado por pessoas com deficiência visual) porque isso afeta a gama de pessoas que pode se envolver com a fundação.
Sobre a diversidade real da equipe e dos curadores das entidades, não podemos fazer comentários, porque poucos relatam esses dados. No primeiro ano da FPR, encontramos apenas quatro instituições que publicaram algum detalhamento desse tema (por exemplo, com relação a gênero, etnia e/ou deficiência na equipe) e apenas uma publicou um detalhamento a respeito do curador. No segundo ano, os números aumentaram um pouco: seis fundações relataram diversidade de funcionários, e cinco, de curadores.
Muitas instituições são difíceis de contatar. Muitas não têm um website – era o caso de 27 das cem entidades avaliadas no
pontuação geral D tinham dez funcionários ou menos (exceto uma, com 13). Isso em geral também vale para os curadores: ter mais deles está relacionado a um melhor desempenho. Não sabemos por que esses padrões surgem, mas suspeitamos que boas práticas em diversidade, responsabilidade e transparência exigem trabalho, e ter poucos funcionários impede a realização desse trabalho.
PRÓXIMOS PASSOS
A FPR está afetando as práticas das fundações? É muito cedo para dizer. Qualquer entidade relativamente grande do Reino Unido pode ser incluída na FPR, de modo que todas tenham o incentivo para melhorar. Além disso, todas podem ver os critérios e aprimorá-los – nós também indicamos meios para que possam evoluir.
No entanto, podemos ver que, no geral, as fundações classificadas nos dois anos melhoraram nas três áreas. Por outro lado, entre as entidades selecionadas aleatoriamente, as mudanças nas pontuações foram mistas de um ano para outro. Também ouvimos muitas histórias sobre o processo e os critérios serem úteis para as instituições.
ram bem a iniciativa. Muitos disseram que lhes deu ímpeto para a mudança; que colocou algumas questões em pauta e destacou preocupações até então negligenciadas. Nesses dois anos, soubemos de participantes usando os critérios da FPR como uma “lista de verificação” para autoavaliação. No primeiro ano, apenas três fundações alcançaram um A geral; no segundo, esse número subiu para sete. No período completo, as fundações mais bem avaliadas incluíram uma grande instituição (Wellcome, a maior da Europa), uma pequena subvencionada e uma entidade comunitária selecionada aleatoriamente. Conclui-se que qualquer instituição pode pontuar bem independentemente de sua estrutura ou tamanho financeiro.
Cada critério foi cumprido por pelo menos uma entidade. Evidentemente, não estamos pedindo nada impossível.
A diversidade foi, de longe, a área mais fraca. Em nenhum dos anos uma fundação obteve nota A no quesito. Enquanto isso, muitas avaliadas a obtiveram nas outras duas áreas. Além disso, em todo o período, quase todos os dez critérios de pontuação
primeiro ano (incluindo uma vinculada ao Goldman Sachs, um grande banco de investimento multinacional). No segundo período, 22 não possuíam website. Lembrando que quase todas as organizações que avaliamos estão entre as maiores do país.
Além disso, enviamos a cada fundação selecionada uma avaliação dos seus dados para apreciação. Para tal, utilizamos o contato divulgado por elas. Infelizmente muitas vezes trata-se de um endereço postal, não um endereço de email. Para outras, é um email genérico, como “info@empresa.com” ou “consultas@empresa.com”. As fundações costumam dizer que esses emails não são recebidos, supostamente indo para pastas de spam, que não são verificadas. Em outras palavras, para muitas instituições, os contatos detalhados que pessoas de fora – incluindo possíveis candidatos – podem usar para contatá-las não permitem que as pessoas as alcancem.
O tamanho financeiro, por ativos totais ou orçamento, não se correlaciona com as classificações. Mas o número de pessoal, sim. Nos dois anos, todas as fundações com
Algumas pessoas do setor sugerem que ampliemos nosso escopo – por exemplo, para examinar práticas de financiamento ou o impacto ambiental das fundações. Não o faremos, não por ora, pelas razões acima expostas.
A FPR continuará avaliando cem fundações a cada ano e publicando os resultados. Também continuaremos a coletar evidências anedóticas do efeito. Convidamos qualquer entidade – no Reino Unido ou fora dele – a usar nossos critérios a se avaliar e identificar práticas a serem aperfeiçoadas.
Outros países poderiam fazer suas próprias versões da FPR. Nosso sistema pode precisar de adaptações, por exemplo, relativas à regulamentação para fundações nesses países, o que elas já são obrigadas a divulgar e as referências e políticas nacionais existentes. Nossa experiência até agora é que a hipótese se sustenta: a classificação pública de instituições realmente cria um incentivo a melhorar em áreas importantes. O
CAROLINE FIENNES é diretora da Giving Evidence, que conduz a pesquisa para a FPR e aconselha doadores e financiadores sobre contribuições com base em evidências sólidas. Ela é pesquisadora visitante no Centre for Strategic Philanthropy da Universidade de Cambridge.
Para muitas fundações, contatos detalhados que pessoas de fora poderiam usar para contatá-las não permitem que as pessoas as alcancem
A visão de Deus sobre o ESG
A tecnologia de satélite pode mudar a divulgação de questões ambientais, sociais e padrões de governança

Imagine uma tecnologia que pudesse ver a Terra de cima, em tempo real, e identificar padrões tão bem quanto um analista humano. Que efeito teria no setor financeiro?
Se muitos órgãos tivessem acesso a ela, o mercado poderia detectar externalidades antes invisíveis e aproximar os preços de mercado da contabilidade social que reduz o real valor da produção e do consumo. Essa descoberta poderia afetar o capital quanto a sustentabilidade e equidade, transformando uma informação financeira melhor em alavanca para mudanças econômicas transformadoras.
A tecnologia que descrevemos não é uma fantasia. Na verdade, está quase aqui. Todos os dias imagens de alta resolução por satélite já são disponibilizadas comercialmente, e a interpretação automática via machine learning e IA está se expandindo rapidamente.
Porém mesmo a visão panóptica tem seus limites. Muitos dos valores com os quais os investidores se preocupam (como os resultados sociais) não são visíveis do alto, embora possam deixar assinaturas físicas que permitam medição indireta. Na prática, os fenômenos não físicos incluem as relações entre as pessoas que organizam a atividade econômica (como a posse da terra e os acordos comerciais). Sem um mapa dessas relações, apenas observar as externalidades não produz informações úteis. A maneira como o enorme fluxo de dados é resumido e apresentado aos tomadores de decisão financeira também é importante.
O progresso tecnológico está aprimorando nossas habilidades para identificar externalidades usando dados de observação da Terra (EO, na sigla em inglês), mas a aceitação em finanças está apenas começando.
Apesar de uma indústria estabelecida na entrega de dados EO como business intelligence, o potencial dos sensores da geração atual para medir o desempenho corporativo em metas ESG ainda é pouco explorado. A maioria (embora não todos) dos valores ambientais gera sinais físicos observáveis em dados EO, enquanto poucos (ainda que não nenhum) valores sociais e de governança o fazem. No entanto valores ambientais emergentes, como a biodiversidade ou a resiliência do ecossistema, só podem ser monitorados indiretamente, e a interpretação de imagens e a construção de modelos são caras e limitam a precisão.
FINANÇAS ESPACIAIS
A capacidade de sensores espaciais para identificar valores sociais e de governança é mais limitada. Alguns valores sociais têm
Para que as externalidades identificadas afetem os preços, elas devem ser atribuídas à atividade financeira global. Não há substituto tecnológico para fontes de dados tradicionais (por exemplo, registros fiscais) no rastreamento de vínculos complexos pelos quais o setor financeiro custeia atividades nocivas, está exposto à transição de riscos relacionados e investe em sustentabilidade. Relatórios corporativos voluntários não resolvem essa lacuna, pois líderes de alto desempenho se beneficiam de poder destacar publicamente aquilo que os distingue da concorrência. O machine learning pode ser usado para mapear ativos físicos (fazendas, infraestrutura) no registro de dados EO, mas os dados tradicionais ainda são necessários para vincular esses ativos a instituições financeiras (como carteiras de investimento). O sucesso depende, em última análise, da estrutura de relacionamento tradicional e da descoberta de dados.
sinais físicos e podem ser medidos por proxy (por exemplo, materiais usados em coberturas podem ser categorizados para mensurar prosperidade de residências); outros podem ser inferidos combinando dados em diferentes níveis (por exemplo, proximidade de moradias a ativos poluentes por faixa de renda). A comparação de esforços e de ações corporativas com o registro de dados EO pode permitir inferências sobre governança.
Para que os dados EO tenham o máximo impacto, as companhias devem ser obrigadas a publicar relatórios ESG. As estruturas e padrões internacionais para relatórios de sustentabilidade ainda são amplamente voluntários, mas essa norma pode mudar. Em 2021, os ministros das Finanças e os governadores dos bancos centrais dos países do G7 se comprometeram a “avançar em direção a divulgações financeiras obrigatórias relacionadas ao clima”, e a União Europeia adotou recentemente as Diretrizes de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa, que exigirão que uma ampla gama de empresas divulgue os impactos ESG.
Para elementos de portfólios financeiros intocados pelas publicações ESG, a atribuição de externalidades depende de estatísticas comerciais e cotas de produção, por exemplo. Essa atribuição ampla não permite identificação de alta qualidade, com potenciais resultados perversos. Reduzir a exposição aos impactos ESG é fácil para investidores com alcance global, e empresas
de alto desempenho em jurisdições de relativo baixo padrão, como muitos países em desenvolvimento, podem se ver privadas de financiamentos voltados para o desenvolvimento sustentável.
Em última análise, a informação que chega aos tomadores de decisão financeira é o que altera o comportamento (e, portanto, os preços). O enorme volume de dados associados à atividade econômica em todo o portfólio garante que as escolhas sobre quais informações comunicar (e como) tenham implicações de longo alcance. Classificações ESG são vitais, mas podem não estar fornecendo informações necessárias para que atores financeiros priorizem atividades susten-
ceiros (por exemplo, produtos vinculados ao desempenho) que trazem capital para enfrentar os desafios da sustentabilidade.
Para encerrar, oferecemos algumas recomendações para concretizar o potencial das finanças espaciais. Primeiro, a assimilação limitada de dados EO dentro das estruturas de relatórios ESG demonstra a necessidade de fortalecer conexões interdisciplinares entre finanças e monitoramento remoto. Os arcabouços regulatórios existentes, obrigatórios e voluntários, devem ser revisados (e novos, construídos) para se tornarem compatíveis com fluxos de dados EO emergentes, como identificação e monitoramento de ativos baseados em objetos. Para garantir
de regulamentação financeira e autoridades de supervisão são um avanço importante, mas tiveram sucesso apenas em algumas jurisdições – e ainda não afetam empresas não listadas ou pequenas ou médias empresas. Após décadas de rápido progresso na observação baseada no espaço e no reconhecimento de padrões ativado por máquinas, a qualidade e a disponibilidade dos dados econômicos tradicionais tornaram-se indiscutivelmente o fator limitante na transformação financeira conduzida por responsabilidade.
táveis. O uso de métricas diferentes produz relatórios de sustentabilidade divergentes, e a seleção dos dados publicados não segue o rigor científico. Na prática, os indicadores geralmente medem os processos corporativos em vez dos impactos ESG. Agregação, propagação de erro e viés de seleção apresentam outras complicações.
PRIORIDADES POLÍTICAS
Os dados EO podem fortalecer as alavancas financeiras para promover a sustentabilidade econômica, atribuindo custos, ajustando preços e realocando capital, mas abordagens paralelas são necessárias para maximizar o impacto. Os bancos comerciais, por exemplo, precisam de métricas ESG confiáveis e escaláveis que comuniquem o alinhamento de valores aos investidores de varejo, enquanto os bancos de investimento podem empregar um conjunto mais amplo de produtos especializados baseados em EO. Os bancos centrais exigem camadas de dados de toda a economia para modelagem macroeconômica e avaliações financeiras de risco e estabilidade, incluindo valores como armazenamento de carbono ou perda de biodiversidade. O uso de dados EO para atender a essas necessidades pode ajudar a identificar riscos, redirecionar investimentos, alterar custos de capital (por exemplo, termos de emissão de dívida) e apoiar novos instrumentos finan-
ainda mais a compatibilidade futura, as coordenadas geoespaciais para todos os ativos e a legibilidade da máquina devem ter sua divulgação exigida. Esforços de líderes, como as Diretrizes de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa da UE, devem incluir tais requisitos em suas orientações.
Para os formuladores de políticas, é importante criar as condições para a colaboração. Iniciativas como a Estratégia Espacial Nacional do Reino Unido têm um papel vital a desempenhar na promoção do intercâmbio interdisciplinar e do letramento compartilhado. Por exemplo, os cientistas reconhecem que a qualidade dos dados EO é importante para produtos financeiros vinculados à sustentabilidade, mas desconhecem o papel desempenhado pelo aumento da frequência temporal nas finanças. Por outro lado, os usuários financeiros de produtos com dados EO em geral superestimam a importância da resolução espacial. As competências compartilhadas também ajudam a evitar erros, como ignorar as limitações de dados.
Em segundo lugar, a disponibilidade limitada de dados de atribuição prejudica a capacidade dos dados EO de criar ajustes de preços no sistema financeiro. Esse desafio não pode ser superado apenas pelo setor privado, uma vez que muitos atores econômicos não se beneficiam de uma maior divulgação. Os esforços para obrigar a divulgação por meio
Resolver o desafio de atribuição não é fácil, mas a atenção concentrada de iniciativas de alto nível em sustentabilidade corporativa e financeira pode ajudar. (A Net-Zero Asset Owner Alliance convocada pela ONU ou a Network for Greening the Financial System [NGFS] são exemplos.) Onde as estatísticas econômicas básicas são inacessíveis, os líderes empresariais devem promover normas de transparência e de divulgação para revelar a cadeia de suprimentos globais. Financiar e treinar institutos nacionais de estatística em países economicamente menos desenvolvidos para permitir o mapeamento subnacional dos locais de produção seria um avanço importante. E mais pode ser feito para incentivar a divulgação voluntária conectando empresas líderes a fontes de financiamento orientadas por valores.
Um conjunto final de questões diz respeito à equidade e à privacidade. A capacidade de transformar dados em informações processáveis não é distribuída uniformemente e, portanto, não se deve tomar por garantida a legitimidade do aumento do uso de dados EO para monitoramento e avaliação dentro do sistema financeiro global. Cabe aos desenvolvedores antecipar os impactos e convidar à participação atores econômicos marginalizados. Diante da crescente liderança do setor privado no espaço, esse é um esforço urgente. O
BEN FILEWOD é professor assistente de pesquisa na Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres.
MURRAY COLLINS é CEO e cofundador da Space Intelligence.
SIMON DIKAU é pesquisador da Escola de Economia e Ciências Políticas de Londres. Ele também é diretor de pesquisa do INSPIRE.
ALEXIS MOYER é chefe de desenvolvimento de negócios da Space Intelligence.
LUCA TASCHINI é professor e presidente em financiamento de mudança climática na Escola de Administração da Universidade de Edimburgo.
Os usuários financeiros de produtos com dados de observação da Terra em geral superestimam a importância da resolução espacial
PESQUISA Destaques de revistas acadêmicas
FILANTROPIA E FINANCIAMENTO
A filantropia corporativa da Índia
Como as empresas podem direcionar seus gastos para caridade quando são obrigadas a doar? Em um novo artigo, duas estudiosas de negócios examinam o que aconteceu na Índia, quando uma lei de 2013 determinou que empresas acima de certo porte ou limite gastassem pelo menos 2% de seus lucros líquidos em iniciativas sociais. Elas descobriram que despesas filantrópicas de empresas indianas foram, em geral, influenciadas pelo desejo de apaziguar importantes grupos de investidores.
As autoras – Aline Gatignon, professora assistente de gestão na Escola Wharton da Universidade da Pensilvânia, e Christiane Bode, professora assistente de estratégia na Escola de Negócios do Imperial College de Londres –analisaram uma imensa coleção de dados para determinar quantas e quais causas elas priorizavam, para onde as empresas direcionavam fundos em termos geográficos e se elas trabalhavam diretamente
nessas causas ou em parceria com ONGs.
Gatignon e Bode usaram dados do Ministério Indiano de Assuntos Corporativos relativos a 12.086 empresas e 86.755 projetos de caridade no período de 2014 a 2017. Os dados revelam que a maioria dos projetos financiados sob a lei (55,7%) tinha como
por gerir seus próprios projetos, enquanto 39% delas trabalharam com organizações sem fins lucrativos para pôr seu financiamento em ação.
Olhando os dados sob quatro diferentes óticas de análise, Gatignon e Bode descobriram que as escolhas das empresas indianas por gastos de responsabilidade social corporativa
investidores, clientes e governo. Por exemplo, empresas priorizaram educação e saúde mesmo em regiões onde a educação e os recursos para saúde eram abundantes.
As autoras também viram uma oportunidade perdida: as empresas estavam doando dinheiro, mas não acompanhavam suas doações com contribuições de conhecimento ou escolhendo setores em que tivessem especial qualificação para ajudar.
“As empresas adotam duas principais estratégias de CSR: a primeira e mais comum tem foco restrito, enquanto a segunda, seguida por poucos (normalmente empresas líderes e estatais), é mais ampla”, escrevem. “Embora a segunda gere uma diferenciação mais forte e maior potencial de impacto social, nenhuma estratégia alavanca a eficiência comparativa das empresas sobre os atores sem fins lucrativos.”
objetivo resolver problemas de educação e saúde, com 6,1% destinados ao desenvolvimento rural; 5,6% para o combate à pobreza e trabalho contra a fome; e 5,1% para sustentabilidade ambiental. Metade das empresas optou
(CSR, na sigla em inglês) foram consistentes com uma abordagem de “investidor instrumental”: elas selecionaram locais, projetos, parceiros e causas que acharam que as fariam parecer melhor diante de importantes grupos de interessados, como
As autoras tiveram a ideia do questionamento da pesquisa porque a lei de CSR da Índia – um encargo “pioneiro” incomum no mundo – gerou uma série única de arquivos corporativos. O banco de dados continha perspectivas potencialmente reveladoras sobre filantropia corporativa no mundo em desenvolvimento, uma área em que estudiosos “realmente sofrem” para encontrar dados, diz Gatignon.
A lei de CSR foi um importante passo para a Índia, “um país enorme com uma grande

população, mas diversas questões sociais a encarar”, diz Gatignon. “É o tipo de inovação regulatória que outros países podem estar procurando.” Uma legislação semelhante em todo o mundo poderia ajudar a movimentar dinheiro corporativo e conhecimento para o terceiro setor.
“A pesquisa oferece uma das mais abrangentes análises dos padrões de gastos sociais dos milhares de empresas afetadas pela lei de CSR”, diz Ramakrishna Nidumolu, professor de comportamento organizacional na Escola Indiana de Negócios. “As descobertas são importantes porque sugerem que gastos com CSR geralmente são mais voltados para satisfazer investidores do que para alavancar as eficiências comparativas das empresas ou visar as causas mais carentes.” O
Aline Gatignon e Christiane Bode, “When Few Give to Many and Many Give to Few: Corporate Social Responsibility Strategies Under India’s Legal Mandate”, Strategic Management Journal
DIREITOS HUMANOS
A mulher invisível
POR CHANA R. SCHOENBERGERUm problema que afeta muitas mulheres não brancas em locais de trabalho: colegas e gerentes ignoram suas contribuições, não as incluem em ocasiões sociais e esquecem reiteradamente seus nomes ou, ainda, as confundem com outras funcionárias. Problemas como esses dificultam que elas avancem na carreira ou que tenham uma sensação de pertencimento no trabalho.
Um novo artigo apresenta um quadro teórico para essa “invisibilidade interseccional” – o fenômeno de fazer com
que elas se sintam invisíveis ao longo de múltiplas e compostas linhas de identidade marginalizadas, como gênero, raça, idade, posição de trabalho e status imigratório. Uma pesquisa examina como isso acontece e como as mulheres reagem, desde sentir vergonha até se pronunciar e tentar se unir a outras pessoas para criar mudanças sistêmicas. O estudo fornece evidências de que essa questão vista como menor é real, mas muitas vezes não abordada.
As autoras – Barnini Bhattacharyya, professora assistente de comportamento organizacional na Escola de Negócios Ivey da Universidade de Western Ontario e Jennifer L. Berdahl, professora de sociologia na Universidade da Colúmbia Britânica –entrevistaram 65 mulheres não brancas que trabalhavam no setor corporativo ou no setor público (educação, organizações sem fins lucrativos ou saúde) nos Estados Unidos e no Canadá. As pesquisadoras investigaram como as mulheres vivenciavam o trabalho, como os colegas interagiam com elas e como elas respondiam aos sentimentos de invisibilidade.
As docentes identificaram quatro tipos de invisibilidade: apagamento (suas contribuições foram ignoradas ou as pessoas falavam por cima delas em reuniões), homogeneização (foram reiteradamente chamadas pelos nomes de outras pessoas ou confundidas com outras colegas também não brancas), exotização (foram tratadas como estrangeiras ou incomuns, às vezes com conotação sexual) e clareamento (tiveram suas semelhanças com os brancos elogiadas e características de suas identidades não brancas ignoradas).

As mulheres reagiram aos incidentes de formas que se
enquadram em três categorias: afastamento, aproximação e pragmatismo, que variam segundo seu status no local de trabalho, em termos de idade e classificação profissional. Mulheres com status superior foram mais propensas a confrontar um colega de trabalho sobre o incidente e a enxergar a questão como sistêmica, precisando de correção. Mulheres de status inferior, ao contrário, tenderam a ficar quietas e interiorizar sentimentos de culpa.
A pesquisa nasceu da experiência pessoal. Ao se mudar de sua Índia natal para Vancouver a fim de fazer seu doutorado, Bhattacharyya teve pela primeira vez a experiência de ser uma mulher não branca em meio a uma maioria branca. De imediato descobriu que colegas de trabalho a tratavam de forma diferente, mas não por que ela parecia invisível para as pessoas que encontrava no ambiente profissional. “Eu realmente não tinha como expressar o que estava acontecendo.”
Amigas narraram histórias semelhantes. Uma colega coreana, por exemplo, disse que estava em um grupo de trabalho que se dizia uma família, mas, quando se reuniam para o Dia de Ação de Graças, se esqueciam de convidá-la. Bhattacharyya quis entender os fundamentos teóricos desse problema, que parecia geral. “Fiquei muito interessada em saber se esse fenômeno era realmente válido.”
O passo seguinte, de acordo com Bhattacharyya, é trabalhar para corrigir esse problema para mulheres não brancas no trabalho. “Começa-se reconhecendo que esse é um problema real em vez de descartá-lo como uma reação exagerada”, diz ela. “Maus-tratos não são mais evidentes na maioria dos espaços de colarinho branco, mas são sistemáticos e contínuos para a maioria das pessoas.”
Uma das descobertas do artigo é que “em espaços onde as mulheres se sentiam seguras, elas foram capazes de dizer ao
infrator o que aconteceu”, e a pessoa muitas vezes afirmava não ter percebido que estava causando um problema, diz Bhattacharyya. Executivos podem lidar com o problema ajudando mulheres não brancas a encontrar mentores e, principalmente, patronos que possam defendê-las quando não estão presentes.
Na luta contra essa invisibilidade, empresas também podem garantir que estejam financiando equidade e inclusão, inclusive contratando coordenadores com experiência em diversidade, em vez de pedir que pessoas não brancas façam esse trabalho sem pagá-las, diz ela.
“Nossa pesquisa destaca a necessidade de desenhar práticas mais sofisticadas em torno de equidade, diversidade e inclusão no trabalho para criar um ambiente e condições propícias para o diálogo, em que conversas honestas possam ocorrer em ambientes psicológica e socialmente seguros, reconhecendo barreiras estruturais à centralidade e visibilidade de mulheres não brancas”, escrevem as pesquisadoras. O
Barnini Bhattacharyya e Jennifer L. Berdahl, “Do You See Me? An Inductive Examination of Differences Between Women of Color’s Experiences of and Responses to Invisibility at Work”, Journal of Applied Psychology, fev.23.
AMBIENTE
Política, valores e a transição verde
BLEI
POR DANIELAHistoriadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Suas produções podem ser encontradas em daniela-blei.com/writing.
Twitter: @tothelastpage
Trabalhando na intersecção entre economia e ciência
política, Torsten Persson pesquisa os efeitos da elaboração de políticas econômicas, mas também os aspectos essencialmente políticos por trás dessa elaboração. Em um novo artigo que traz uma abordagem interdisciplinar para lidar com a questão da mudança climática, Persson, professor de economia na Universidade de Estocolmo e centennial professor da Escola de Economia de Londres, questiona como padrões de produção e consumo podem passar por uma “transição verde” para chegar a uma economia baseada em tecnologias sustentáveis.
Ao lado de Sir Timothy Besley, professor de economia e ciência política na mesma escola, Persson inspira-se na literatura da sociologia e da antropologia para levar em conta valores e estilos de vida que estão além do escopo da análise econômica convencional. Os dois formularam um modelo novo e mais sofisticado de como uma transição verde pode ou não acontecer.
“Muitos parecem concordar que o que precisamos agora é de uma transição verde, ou seja, que tanto a produção quanto o consumo sejam feitos de maneira mais ecológica”, diz Persson. “Mas, se você perguntar a um cientista e a um profissional de ciências sociais, eles têm opiniões diferentes sobre como isso deveria acontecer.”
Os pesquisadores decidiram estabelecer o que acontece quando os valores do consumidor são integrados a instrumentos econômicos adotados por criadores de políticas: impostos sobre o carbono e subsídios a bens marrons (poluentes) ou verdes (não poluentes). Eles chegaram a duas conclusões importantes. Primeiro, há uma dupla realimentação entre consumidores e produtores que muda ao longo do tempo.
Considerando que consumidores vivem ao longo de distintas gerações e como os jovens formam valores – tomando emprestado de antropólogos, para quem os pais não são apenas agentes biológicos, mas também culturais –, os pesquisadores teorizaram que, quanto mais pessoas houver com valores verdes, mais os produtores escolherão uma tecnologia verde. E, quanto mais verdes são os produtores, mais convém ser um consumidor verde.
A maioria dos economistas vê consumidores-padrão como sendo todos iguais, mas os pesquisadores concluem que mudar os valores do consumidor a par das forças de mercado pode resultar em um “equilíbrio verde duradouro” que acelera uma transição verde, diz Persson. Ou, de maneira inversa, um “equilíbrio marrom duradouro”, que a impede.
“De início, se não houver muitas ‘pessoas verdes’ entre os consumidores, não haverá muitas empresas verdes. Então, quando as pessoas forem escolher, não acharão a opção verde conveniente”, explica Persson. “Menos pessoas se tornarão verdes e, portanto, menos empresas também.” Logo, atingir um equilíbrio verde requer uma grande parcela de consumidores verdes para começar. Isso significa que educação e outros fatores, como empresas que incentivem escolhas verdes, influenciam a possibilidade de uma transição verde impulsionada pelo mercado.
A segunda percepção dos pesquisadores é que políticas econômicas tradicionais, como impostos que ajudem indivíduos a internalizar os custos de consumo nocivo ao meio ambiente, podem encorajar a mudança, mas não garantem a transição. Mesmo quando políticos em campanha defendem
impostos verdes para conquistar eleitores verdes, o consumo verde e os padrões de produção podem não vir em decorrência disso. Os pesquisadores mostraram que as políticas servem mais como um facilitador do que como condutor da mudança e que o fracasso político pode compor a falha de mercado. Em um esforço para compreender a relação entre política e o que as pessoas querem, os pesquisadores introduziram um componente moral à sua análise. Quando há mais consumidores com preocupações morais pelo meio ambiente, e não apenas um gosto pelo consumo verde, políticos motivados a ganhar eleições são pressionados a adotar políticas verdes. Mas, em contextos mais ricos, empresas de lobby tentarão moldar a política por meio de contribuições de campanhas. Se empresas marrons são mais ricas e mais bem organizadas, um equilíbrio verde de longo prazo é menos provável, e a transição verde, se ocorrer, torna-se mais lenta.
Outra extensão de sua análise é a “política privada”, ou ativismo feito por indivíduos e famílias. Os pesquisadores descobriram que indivíduos e grupos podem pressionar empresas agindo no mercado, não só nas urnas, aumentando assim a probabilidade de um equilíbrio verde a longo prazo.
“O artigo acrescenta muito ao nosso entendimento das restrições à implementação de uma transição verde”, diz Stefanie Stancheva, professora de economia política na Universidade Harvard. “Ele leva a sério o fato de que não só considerações tecnológicas, mas também valores podem mudar com tecnologias e políticas.” O
LIVROS Lançamentos no Brasil e no mundo
Desmontando o racismo à brasileira
Tese de Sueli Carneiro, finalmente publicada em livro, ajuda a desenhar um futuro de equidade

As contribuições de Sueli Carneiro no enfrentamento ao racismo e ao sexismo são amplamente reconhecidas no campo da inovação social, tanto no Brasil quanto internacionalmente. A ativista, como ela se descreve, tem sido uma força motriz na formulação de estratégias coletivas de transformação ao longo de quatro décadas. Esse compromisso com a mudança é evidenciado em sua produção intelectual.
Neste 2023, 18 anos desde a defesa na Faculdade de Educação da USP, sua tese de doutorado foi finalmente publicada sob o título Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser, pela editora Zahar. O posfácio, elaborado por Yara Frateschi, professora do Departamento de Filosofia da Unicamp, destaca: “Temos em mãos um dos livros mais relevantes de filosofia política escritos no Brasil”. A afirmação não é exagerada.
Ao longo de décadas, o Brasil foi propagandeado globalmente como um país que abraçava a miscigenação e supostamente não era racista, propagando o mito da democracia racial – que se tornou uma ferramenta poderosa de perpetuação de um racismo nosso, típico, um racismo à brasileira. Sueli Carneiro e sua geração enfrentaram coletivamente o desafio de desmantelar o mito da democracia racial e suas consequências. Os escritos de Sueli, desde a década de 1980, têm sido instrumentos na elaboração de estratégias políticas. Sua tese de doutorado
não é exceção. Nela, a autora desnuda as ideias, discursos e práticas racistas que permeiam a sociedade nacional.
No Brasil, segundo Sueli, se produziu a forma mais sofisticada e perversa de racismo do mundo porque nosso ordenamento jurídico assegurou uma igualdade formal, com uma suposta igualdade de direitos e oportunidades, e autorizou toda e qualquer forma de discriminação racial.
A noção de racialidade, na sua abordagem, é relacional, e o Brasil apresenta uma divisão marcante entre dois polos: negros, compreendendo a soma de pretos e pardos, e brancos. Por construções históricas e culturais, uma série de concepções moldou e hierarquizou esses grupos, conferindo privilégios ou impondo prejuízos. Na dinâmica das relações raciais brasileiras, os brancos estabelecem sua superioridade ao construírem a inferioridade dos negros. Como denota o título da tese – adotado como subtítulo do livro agora publicado –, a construção do “Outro” (negro) é o fundamento da definição do “Ser” (branco).
Para desenvolver essa abordagem, Sueli utiliza a obra de Michel Foucault como uma caixa de ferramentas conceituais. A partir
do conceito foucaultiano de “dispositivo”, Sueli Carneiro apresenta o “dispositivo de racialidade”, que estabelece a branquitude como um estatuto humano que reconfigura todas as dimensões da experiência humana e as hierarquiza com base na proximidade ou distanciamento do padrão branco. Nesse processo, pessoas negras são inseridas em um paradigma de inferioridade.
Empregando a abordagem genealógica de Foucault, que busca investigar origens e finalidades, a autora identifica uma virada histórica na origem do dispositivo de racialidade: o “contrato racial”, conceito definido pelo filósofo afro-jamaicano Charles Mills, recentemente traduzido e publicado no Brasil também pela editora Zahar. A partir do século 15, durante a expansão ultramarina e a violenta dominação europeia, surge uma nova tríade de poder, conhecimento e subjetividades moldada pela racialidade, estabelecendo uma dinâmica entre homens vs. nativos, brancos vs. não brancos. Uma supremacia branca é solidificada por meio do contrato racial. Respeito e justiça são pactos entre iguais, enquanto os desiguais são subjugados por meio da violência.
Nesse contexto, o Estado desempenha um papel de preservar e perpetuar a ordem racial, mantendo privilégios para os brancos e reforçando a subordinação dos não brancos tanto pela lei como pelos costumes. A teoria defendida por Mills se sustenta no contratualismo, tão caro à filosofia política, que ignora o colonialismo, a escravização negra, o racismo. A supremacia branca foi constituída na proliferação de discursos associados à racialidade: bulas papais, discussões sobre colonialismo, decisões jurídicas, debates sobre a humanidade dos não brancos. Sueli Carneiro mostra que as representações sobre o negro que passaram a circular nesse período consolidaram a justificativa para ser possível a existência de senhores e escravos.
Trabalhando com a noção também foucaultiana de biopoder, Sueli Carneiro mostra como o Estado mobiliza sua estrutura para promover a vida do “Ser”, enquanto abandona à morte – ou extermina – o “Outro”. As execuções policiais, portanto, não são “efeito colateral” de uma política de segurança pública, mas ação intencional de controle que, apesar da inexsistência de pena de morte no Brasil, emprega dinheiro público em balas direcionadas a corpos negros periféricos e favelados.
Mas, se há dispositivo, há também resistência. E a segunda parte do livro está dedicada a apresentar quatro ativistas de movimento negro: Edson Cardoso, Sônia Maria Pereira Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier. Dois homens e duas mulheres, dois negros de pele clara e dois de pele escura, que encarnaram em suas vidas o processo de construção da identidade, os enfrentamentos com o racismo e a discriminação, a tomada de consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo, a construção da crítica e da autonomia. Quatro testemunhos da resistência ao racismo.
Edson Cardoso, militante histórico do movimento negro dedicado à agitação e propaganda, como gosta de dizer, atuou sempre na articulação política, formação e circulação de informação. Foi membro do Movimento Negro Unificado (MNU), assessor parlamentar no Congresso e esteve à frente da organização da Marcha Zumbi dos Palmares, pela Cidadania e pela Vida de 1995, e da articulação que criou o Comitê Impulsor para Durban. Na época em que a tese foi escrita, ele era mestre em comunicação social e ainda não havia ingressado no doutorado em educação na USP, que defenderia em 2009.
Sônia Maria Pereira Nascimento, advogada especialista em direito de família, direitos humanos e de mulheres, foi presidenta da Geledés por dois mandatos, depois coordenadora executiva, responsável pelo programa PLPs (Promotoras Legais Populares) e, naquele momento, pelo atendimento de mulheres vítimas de violência.
Fátima Oliveira era médica, militante feminista e antirracista, autora especialista nas áreas de direitos reprodutivos e da saúde da população negra. Pioneira nos estudos
VITRINE
de genética e bioética de uma perspectiva feminista e antirracista. Em 2017, morreu em decorrência de um câncer.
Arnaldo Xavier, poeta, publicou inúmeros poemas, em português, francês e alemão, além de peças de teatro. Morreu em 2004 –seu testemunho, portanto, foi in memoriam já quando na defesa da tese.
Os regimes de verdades impostos pelo “Ser” ao denominado “Outro” são constante e permanentemente desmentidos pela resistência negra brasileira. E aí está a grandeza do livro de Sueli Carneiro. Além de nos permitir compreender as nuances que engendram nosso racismo, é possível vislumbrar a ação coletiva como possibilidade e esperança de um futuro de justiça social, forjado na equidade de raça, gênero e no enfrentamento às desigualdades. O
Outros títulos que ajudan a refletir sobre o campo
Filho de culturas divergentes, David Good nos leva, em Eu, yanomami, por uma jornada em busca de sua identidade, dividida entre os mundos de seu pai, o antropólogo Kenneth Good, e sua mãe, Yarima, indígena que, sem se adaptar, deixou Nova Jersey e o filho de 6 anos para voltar à Amazônia venezuelana. O relato, escrito com Daniel Paisner, entrelaça história, antropologia e o processo de autodescoberta de Good, que hoje, como professor universitário nos Estados Unidos, busca o diálogo entre os yanomamis e o resto do mundo.

(Best Seller, 2023, 356 págs., R$ 79,90)
Em Sustentabilidade econômica das organizações da sociedade civil, João Paulo Vergueiro abrange, através de gráficos e seções didáticas, tópicos como planejamento, métodos para angariar recursos, a importância da comunicação e a transparência. Com capítulos sucintos, o livro serve como um guia dos aspectos fundamentais para que as organizações sejam economicamente sustentáveis.
(Senac São Paulo, 2023, 149 págs., R$ 15,50)

último olhar
Imagens que inspiram
Além da comunidade
O Projeto Click Na Favela nasceu em 2019 em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, quando um grupo de jovens decidiu compartilhar conhecimentos de fotografia com moradores locais. Hoje atinge cerca de 80 pessoas, também no Grajaú e no Campo Limpo. O fotógrafo e documentarista Daniel Eduardo diz que o projeto, que ele fundou, visa, além de democratizar o acesso ao audiovisual, transformar a vida de jovens que não têm recursos para entrar no mercado. A turma mais recente selecionou 23 alunos entre mais de 100 inscritos pelo Instagram (@projetoclicknafavela). A iniciativa tem apoio do Programa Einstein na Comunidade de Paraisópolis, Quebrada Produções, Instituto Conhecimento Liberta, entre outros. Saiba mais e veja como colaborar em projetoclickfavela.com.

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina, Bolívia e Guatemala.
Conheça alguns de nossos projetos:


Cooperativas Sociais - Capacitação profissional e geração de renda para pessoas privadas de liberdade, egressas do sistema prisional e vítimas de violência doméstica, através de cooperativas sociais formadas dentro e fora de penitenciárias.

LAB360 - Cessão de computadores para unidades prisionais para que pessoas privadas de liberdade possam receber ensino a distância, fazer videoconferências com seus familiares.
Índice de Engajamento Cidadão das

Américas - Comparativo do nível de engajamento e participação cívico-social dos habitantes de países do continente em parceria com a The Economist Intelligence Unit (EIU).
Tecendo a Liberdade - Documentário revelando as contradições do sistema de Justiça Criminal brasileiro sob a perspectiva das mulheres que trabalham nas cooperativas sociais apoiadas pelo H360.

Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360


Nosso propósito é reduzir a violência, promover a cidadania ativa, justiça climática e transparência.























