Stanford Social Innovation Review Brasil #6

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VOLUME 2, NÚMERO 6 EDIÇÃO TRIMESTRAL DEZEMBRO 2023

Incorporação a serviço da saúde urbana Por uma cultura do cuidado Confiança: modos de obter e manter

Mike Kubzansky, CEO da Omidyar Network, propõe

Uma nova visão para o mundo high-tech

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Stanford Social Innovation Review Brasil / Dezembro 2023

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P U B L I C A DA P E L O S TA NFO RD C E N T E R O N P HIL A N T HR O P Y A ND C I V IL S O C IE T Y

sumário DEZEMBRO 2023 / VOLUME 2, NÚMERO 6

26 Uma nova visão para o mundo high-tech POR MIKE KUBZANSKY

Com a tecnologia digital cada vez mais ligada ao cotidiano, garantir que a inovação esteja a serviço da sociedade é fundamental; mas, para que seu potencial para construir um mundo melhor seja pleno, é preciso antes definir o ideal de sociedade que queremos

34 Por uma cultura do cuidado POR WHITNEY EASTON

A falta de confiança e a insatisfação dos pacientes com o setor de saúde são crescentes. Para melhorar a experiência do usuário e alavancar os indicadores de equidade nessa área, as empresas e os profissionais terão de adotar uma postura mais holística no atendimento ao público

42 Como o desenvolvimento imobiliário pode melhorar a saúde urbana POR ADELE HOUGHTON E MATTHEW KIEFER

Ao analisar a situação do setor de saúde, incorporadores podem criar projetos imobiliários que gerem um novo valor, o de promover o bem-estar da comunidade local

50 Confiança: modos de obter e manter ILUSTRAÇÃO DA CAPA

Brian Stauffer

POR SETH D. KAPLAN

Organizações sem fins lucrativos que buscam melhorar as comunidades enfrentam o trabalho árduo de construir confiança. O sucesso requer ouvir as pessoas e ter paciência

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“Na contramão dos mitos ocidentais sobre os paquistaneses não desejarem educar suas meninas, a disparidade de gênero não é uma questão do lado da demanda, mas do lado da oferta” — D E A E S C O L A Q U E R E C O N S T R Ó I A S O C I E D A D E C I V I L , P. 1 8

SEÇÕES 4 5

C A R TA A O L E I T O R

Tecnologia para o povo

EDITORIAL BRASIL

A volta da confiança SSIR ONLINE

Saúde mental em foco / Impacto x lucro / Arquitetando decisões / Narrativas de verdade / Labirintos cognitivos

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O QUE HÁ DE NOVO

Compra e venda de impacto social / Ajuda eletrônica a refugiados / Mineração de dados contra minas terrestres

P O N T O D E V I S TA

59 Encontre sua missão climática

O desafio não se limita aos que lidam com o tema; todos têm de achar seu papel

POR MATT DAMON E AMY BELL

61 O caminho da despolarização

Disciplina em ascensão, a comunicação de interesse público oferece soluções para um mundo amplamente dividido

POR ANGELA BRADBERY E JANE JOHNSTON

HISTÓRIAS DO CAMPO

11 Conectando jovens à sociedade

A Life Project 4 Youth Alliance promove o desenvolvimento pessoal e profissional de jovens carentes

Uma colaboração entre a Nike e o Tucker Center nos ensinou como manter garotas no esporte e tirar proveito de parcerias

POR ANDRA MARIA VALETTE

POR CAITLIN MORRIS E NICOLE M. LAVOI

13 Mapeando a rota do sufrágio feminino P. 1 1

O National Collaborative for Women’s History Sites criou uma trilha para celebrar a atuação das mulheres na democracia americana

POR MARIANNE DHENIN

15 Rumo à neutralidade de carbono

O think tank alemão Agora Energiewende desenvolve propostas de política energética e climática para a descarbonização

POR PAUL HOCKENOS

P. 15

63 Mudando o jogo

65 P E S Q U I S A

O ativismo no futebol americano / A diferença entre querer e precisar / As escolas e o lugar social dos jovens / Os direitos humanos em alta LIVROS

69 O complexo futuro do nosso presente

Inquietações de um Brasil contemporâneo

RESENHA DE SERGIO FAUSTO

ESTUDO DE CASO

18 A escola que reconstrói a sociedade civil

Como a ONG The Citizens Foundation está transformando a educação no Paquistão, com resultados notáveis para as crianças menos privilegiadas do país

71 Vitrine 72 Ú L T I M O O L H A R

Envolver para desenvolver

POR NOOR NOMAN

P. 21

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A publicação referência mundial em inovação social, agora no Brasil Com a missão de promover, informar e inspirar o campo da inovação social, buscando, cultivando e disseminando o que há de melhor em pesquisa e conhecimento baseado na prática, a plataforma reúne tópicos que vão dos direitos humanos ao investimento de impacto, passando por sustentabilidade, educação, saúde, ambiente, energia e desenvolvimento econômico, entre outros.

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Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review.

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Carta ao leitor Tecnologia para o povo

DUAS EDIÇÕES ATRÁS, A CAPA DA Stanford Social Innovation Review estampava o

artigo Como atingir uma democracia multirracial, de autoria de Angela Glover Blackwell, fundadora da PolicyLink. No texto, ela convocava os americanos a construírem uma sociedade que garantisse os princípios fundadores dos Estados Unidos – liberdade, igualdade e a busca pela felicidade – para o povo todo, não só para a população branca. Neste número, publicamos um novo chamado à ação. No artigo principal, Uma nova visão para o mundo high-tech, o diretor-executivo da Omidyar Network, Mike Kubzansky, defende a necessidade de que o povo garanta controle sobre as tecnologias digitais e se assegure de que elas sejam desenvolvidas e implementadas de maneira a contemplar os interesses da maioria, e não apenas os interesses particulares de uns poucos. Semicondutores, softwares, computadores, smartphones, a internet, mineração de dados, mídias sociais, inteligência artificial (IA) e mais – por trás de tudo houve financiamento de pesquisa pelo governo americano. Mas a implementação dessas tecnologias e o valor financeiro que elas geram têm sido controlados pelo capital privado. O governo se manteve à parte até agora. Hoje, a opinião pública vem amparando a necessidade de controlar essas tecnologias e as companhias que as detêm. Essa ideia nasceu com a apreensão quanto à privacidade digital e ao uso de dados, se fortaleceu com os pedidos por controle das mídias sociais e vem ganhando ímpeto com as preocupações sobre o uso não regulado de IA em aparentemente todas as esferas de nossas vidas. A inquietação recente ganhou tal vulto que muitas das pessoas que tiveram papel importante na criação e comercialização de tecnologias digitais e IA estão entre as que mais pregam pelo controle governamental. Entre elas, Kubzansky. Curiosamente, a Omidyar Network foi criada e mantida por Pierre e Pam Omidyar, que fizeram sua fortuna bilionária com o eBay, fundado por Pierre. E a Omidyar Network, segundo Kubzansky, investiu mais de US$ 750 milhões em startups de tecnologia. Até agora, a maioria dos esforços de controle tecnológico foi dirigida a questões individuais, como as mídias sociais ou algoritmos. Kubzansky argumenta que essa abordagem se tornou insuficiente: a onipresença da tecnologia digital exige que ela seja tratada como um sistema. Ele sustenta que o sistema digital tem de servir ao interesse público, com governança consciente em seus aspectos mais amplos, inclusive cultura, normas, tendências, instituições, ética e participação. É uma enorme empreitada, sem dúvida. Mas, como ponto de partida, Kubzansky nos insta a reconsiderar cinco questões fundamentais. Para criar um sistema de tecnologia digital que contribua para a sociedade, que premissas, posturas e ideias precisam mudar? Como promover a inclusão para criar um sistema de tecnologia digital mais forte? Como usar ética e transparência para aumentar a capacidade da tecnologia digital de servir à sociedade? Qual o papel de políticas públicas na criação de um novo sistema de tecnologia digital? Qual o modelo financeiro ideal para incentivar um sistema digital saudável? Kubzanksy formula todas essas questões em seu artigo, mas as respostas que dá são só o começo de uma conversa que todos temos que encarar. – ERIC NEE

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publicação trimestral volume 2 I número 6 I dezembro 2023

Diretora-geral

Carolina Martinez

Editora-chefe

Francesca Angiolillo

Editor-assistente Programador Web Estagiária Mídias sociais

carolina@ssir.com.br francesca@ssir.com.br

Bruno Ascenso Daniel Miranda Bárbara Lopes da Silva Rafael Dias

Colaboraram nessa edição: Arte Estúdio Monearte Tradução Revisão

Ada Felix, Aracy Mendes da Costa, Camilo Adorno, Cláudia Izu, Frank de Oliveira, Gabriela Fróes Mauro de Barros

Conselho Editorial Daniela Pinheiro Eliane Trindade Graciela Selaimen Guilherme Coelho Letícia Vidica Marcos Paulo Lucca Silveira Mantenedores Institucionais Fundação José Luiz Egydio Setúbal Instituto Sabin Movimento Bem Maior Samambaia Filantropias CIVI-CO | Negócios de Impacto Social R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 Pinheiros, São Paulo – SP, 05415-030 Quer falar com a SSIR Brasil? Redação: contato@ssir.com.br Projetos especiais, publicidade, eventos: marketing@ssir.com.br Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review.

Editor-chefe Editora acadêmica Editores Editora edições globais

Eric Nee Johanna Mair Aaron Bady, Barbara Wheeler-Bride, Bryan Maygers, David V. Johnson, Marcie Bianco Jenifer Morgan

Conselho Consultivo Acadêmico Paola Perez-Aleman, Universidade McGill Josh Cohen, Universidade Stanford Alnoor Ebrahim, Universidade Tufts Marshall Ganz, Universidade Harvard Chip Heath, Universidade Stanford Andrew Hoffman, Universidade de Michigan Dean Karlan, Universidade Yale Anita McGahan, Universidade de Toronto Lynn Meskell, Universidade Stanford Len Ortolano, Universidade Stanford Francie Ostrower, Universidade do Texas Anne Claire Pache, Essec Business School Woody Powell, Universidade Stanford Rob Reich, Universidade Stanford A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Universidade Stanford. Todos os direitos reservados.

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Editorial Brasil

A volta da confiança AO NOSSO REDOR, o mundo se transforma vertiginosamente. Mudanças variadas clamam por uma reação urgente em todos os setores sociais. Das metamorfoses contemporâneas, a crise climática é a mais gritante, mas nem de longe a única a se acelerar em um ritmo que parece superar nossos melhores esforços. As tecnologias digitais, o adoecimento das pessoas e o das cidades e a incerteza generalizada – que viceja na mesma proporção em que crescem a desigualdade e a incompreensão – nos jogam no que poderíamos chamar de a era da desconfiança. Será essa a grande crise subjacente a todas as demais que enfrentamos? Como saber que estamos fazendo tudo o que é preciso para lidar com o cenário de ficção científica desenhado sob nossos olhos pela inteligência artificial, provavelmente a maior revolução tecnológica do século? Como aceitar o paradoxo de que, em um mundo cada vez mais doente, temos sistemas de saúde cada vez menos universais? Como evitar que as cidades se tornem progressivamente mais hostis, contribuindo para esse adoecimento? E se a resposta para tudo isso não for assim nova, mas um velho segredo – ouvir o que o outro tem a dizer? Além do material de capa, abordado em detalhe por Eric Nee na página anterior, todos os demais artigos de destaque desta edição lidam, de alguma maneira, com a necessidade de voltarmos a confiar uns nos outros para que haja avanço social. Nossas piores suspeitas distópicas, infelizmente amparadas pelos fatos, nos preparam para exigir a consolidação da transparência necessária para conduzir a tecnologia digital no sentido da melhora social, como defende Mike Kubzansky. O descrédito em que está imerso o setor de saúde pode ser revertido por meio da construção de uma cultura do cuidado, como prega Whitney Easton – e isso depende, novamente, de entendimento mútuo. O diálogo comunitário também é o que norteia a transformação urbana baseada em dados de saúde pública que pode revolucionar a maneira como empreendimentos imobiliários moldam as cidades, de acordo com Adele Houghton e Matthew Kiefer. E, sobretudo, a confiança é o começo, o meio e o fim quando se trata de qualquer ação social no seio de uma comunidade, como advoga Seth D. Kaplan. Esperamos – confiamos – que as propostas reunidas nas próximas páginas nos tragam novas certezas – não as da convicção surda, mas as que brotam da busca pelo consenso possível. – FRANCESCA ANGIOLILLO

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CONTEÚDO EXCLUSIVO DO SITE SSIR.COM.BR

SSIRonline SAÚDE MENTAL EM FOCO ARTIGO | Por que tratar a saúde

facebook.com/ssirbrasil

mental masculina pode ajudar a todos

Um dos maiores desafios para os líderes de impacto social é alcançar pessoas marginalizadas pelas normas sociais e culturais. A masculinidade tóxica, por exemplo, impede que muitos homens procurem ajuda para tratar da saúde mental, apesar dos esforços do setor. Como é possível virar o jogo e que benefícios isso pode trazer não só para os homens, mas também para todos ao seu redor?

IMPACTO X LUCRO

ARTIGO | O investimento de impacto

que visa lucros não gera frutos

O ecossistema de financiamento continua obcecado pela noção de que é possível obter ao mesmo tempo retornos de mercado e retornos sociais completos. Para terem sucesso, investidores de impacto precisam ter expectativas mais realistas e fazer parte de um conjunto de capital maior e com foco na comunidade, incluindo investimentos filantrópicos que estabeleçam as bases para o impacto.

ARQUITETANDO DECISÕES

ARTIGO | As “lentes cor-de-rosa”

e outros obstáculos ao bom investimento de impacto

Quando se trata de impacto social e ambiental no mundo dos investimentos, as definições de desempenho costumam ser mais ambíguas, e a informação, menos completa. Estes fatores são um desafio cognitivo e levam a preconceitos que afetam o investimento de impacto. Mas, segundo este artigo, esse é o momento certo para implementar insights comportamentais nas estratégias de tomada de decisão.

linkedin.com/company/ssirbrasil @stanford.ssir.br

NARRATIVAS DE VERDADE ARTIGO | Como contar histórias

reais sobre impacto

O setor da mudança social funciona, muitas vezes, a partir de uma mentalidade de escassez, com a crença de que as organizações devem competir pelos recursos. Como resultado, as narrativas frequentemente enfatizam o papel da organização na mudança social, deixando em segundo plano personagens importantes, como os beneficiários de suas ações. É preciso rever princípios do storytelling para chegarmos ao tão desejado final feliz.

LABIRINTOS COGNITIVOS

ARTIGO | Combatendo a psicologia

dos vieses

Em meio à revolução digital, pessoas tomam decisões rapidamente e, na maioria das vezes, com base em atalhos mentais já trilhados. Com isso, casos de comportamento “irracional” ou de falhas na resposta a questões previsíveis são cada vez mais comuns. Sabendo mais sobre esses vieses cognitivos, organizações de impacto social podem trabalhar para criar contextos em que os processos que favorecem decisões de curto prazo possam, em vez disso, gerar benefícios a longo prazo e, assim, evitar as armadilhas da mente humana e suas consequências. O

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Feita por e para líderes de transformação social de todo o mundo e de todos os setores. Com informações especializadas e de credibilidade, unindo o melhor da teoria e prática da inovação social, a SSIR Brasil quer contribuir para gerar ações transformadoras na sociedade. Investir em uma publicação que fala com os mais influentes agentes de mudança no Brasil e no mundo é uma forma potente de inspirar e dar suporte a uma audiência qualificada dedicada a projetos de impacto social. Junte-se a essa iniciativa. Apoie um projeto necessário e urgente para a sociedade.

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O QUE HÁ DE NOVO Novas abordagens para a mudança social

INVESTIMENTO DE IMPACTO

Compra e venda de impacto social O OutcomesX quer nivelar o campo para ONGs que buscam financiamento P O R S A R A H M U R R AY

FOTO CORTESIA DE ERUDIT

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oucos dias após a Rússia ter invadido a Ucrânia em fevereiro de 2022, a Fundação UBS Optimus lançou o Fundo de Ajuda à Ucrânia para que funcionários e clientes da empresa de serviços financeiros fizessem doações para jovens que sofriam com a guerra. A questão, contudo, era como identificar as organizações locais que utilizariam o dinheiro do fundo de forma mais eficaz. A fundação recorreu a um marketplace então em desenvolvimento. O OutcomesX, fundado por Jason Saul e Phyllis Costanza, tinha o objetivo de converter o impacto social em “unidades de impacto verificadas” (verified impact units, ou VIUs) que pudessem ser medidas, precificadas e vendidas a doadores. O OutcomesX foi lançado em abril de 2023 com um acordo para transferir US$ 2 milhões em receitas de VIUs, adquiridas pela fundação para ONGs locais que prestam serviços de educação e saúde mental a crianças na Ucrânia. O novo marketplace se baseia em dados do Impact Genome Registry (IGR), organismo independente que define unidades para mensurar o progresso relativo a um problema ou a um objetivo so-

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cial, como um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. As ONGs relatam o progresso – por exemplo, garantir segurança alimentar a mil famílias – ao IGR, que avalia os dados utilizando padrões baseados em evidências, revistos por pares, para verificar e determinar unidades de impacto social. O A Fundação UBS Optimus apoia IGR conta atualmente com 2,2 miprojetos como o lhões de programas sociais cadasErudit, que auxilia crianças trados e mais de 3.900 verificados. em Rivne Oblast, Depois que um doador espena Ucrânia cifica uma causa e uma região, a equipe do OutcomesX procura no IGR resultados verificados que correspondam a essa solicitação. O marketplace também pode criar um portfólio de VIUs de diferentes ONGs, se o doador preferir financiar uma causa em vez de uma única organização. O financiador, então, paga pelas unidades, além de uma taxa para o OutcomesX, que varia de 5% a 15%. É uma abordagem que revoluciona o financiamento tradicional. Em vez de apoiar programas sem fins lucrativos cujos resultados ainda não foram comprovados, os doadores podem pagar por resultados que já foram alcançados e verificados. As ONGs recebem o valor total pago pelas unidades – sem ter de produzir relatórios de impacto caros e demorados. Com isso, o risco de financiar organizações que não são eficazes é reduzido. “É um mecanismo mais preciso e eficiente para obter resultados”, diz Saul, que desenvolveu o IGR e é também diretor-executivo do Centro de Ciências de Impacto da Universidade de Chicago. Dado o tipo de subsídio que o Fundo de Ajuda à Ucrânia pretendia conceder, o OutcomesX era uma solução atraente. “Pode ser desafiador identificar organizações populares com um histórico sólido”, diz Marissa Leffler, diretora-executiva de assistência humanitária e saúde global da Fundação UBS Optimus. “Comprar resultados nos dá maior confiança de que nosso financiamento está gerando o impacto pretendido.” Além de garantir que o dinheiro dos doadores contribua de forma mensurável para a resolução de um problema social, a equipe do OutcomesX quer ajudar as pequenas ONGs a vencer seus desafios para angariar recursos. Sem orçamento de marketing, webmasters e equipes de desenvolvimento, muitas enfrentam dificuldades na disputa por fundos. “Cada dólar arrecadado custa, em média, US$ 20 para uma ONG”, diz Saul. “Portanto, as pequenas estão em desvantagem.”

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O QUE HÁ DE NOVO

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Um entrave ao uso do OutcomesX é que os doadores podem se sentir desconectados das causas ao comprar VIUs. O OutcomesX aposta em parcerias para suprir essa lacuna. Por exemplo, empresas que utilizam o marketplace para as doações de seus funcionários se valem de um acordo com uma plataforma de gestão de doações chamada Benevity. Com sede no Canadá e usada por mais de 900 empresas, ela conecta os doadores do OutcomesX com seu voluntariado, entre outras formas de envolvimento. Essa parceria também ajudará o OutcomesX em seu próximo objetivo: atrair mais doadores. “A infraestrutura está pronta para ser ampliada e nós o faremos na velocidade com que o mercado se mover”, diz Saul. Costanza acredita que as ONGs que resolvem problemas sociais de forma mais eficaz deveriam receber financiamento, independentemente do tamanho ou da marca. “Esperamos realmente que isso crie mais igualdade e nivele o jogo”, diz ela. O SA RA H MURRAY é jornalista, escritora, palestrante e repórter especializada em negócios, sociedade e meio ambiente. Colabora com o Financial Times e outras publicações.

DIREITOS HUMANOS

Ajuda eletrônica a refugiados

A agência da ONU para refugiados está implementando uma carteira digital para fornecer assistência na Jordânia POR ZOE H. ROBBIN E BAHAA MOHAMMAD

FOTO CORTESIA DE BAHAA MOHAMMAD

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m 2014, Omran Mansour, então com 29 anos, chegou a um campo de refugiados sírios perto de Azraq, na Jordânia, com sua esposa e dois filhos. Como não tinha visto de trabalho, foi forçado a lidar com o tortuoso sistema de ajuda humanitária das Nações Unidas, de ONGs e de organizações governamentais para sustentar sua família. Durante quase uma década, eles usaram cartões bancários, tecnologia de leitura de íris e centros de doação para acessar a ajuda da ONU. Desde o início da guerra na Síria, em março de 2011, refugiados como Mansour têm chegado à Jordânia, onde vivem como uma população desbancarizada. As organizações que atendem refugiados querem agilizar o proAs pessoas podem fazer compras com cesso de distribuição de ajuda. suas carteiras Mas as leis bancárias da Jordâdigitais em lojas tanto dentro quanto nia, com a finalidade de bloquear fora dos campos de o financiamento do terrorismo refugiados da Jordânia; na foto, a e a lavagem de dinheiro, impebanca de Awad dem que os refugiados abram Ahmad Al-Smadi contas, uma vez que, para verificar a identidade de um cliente, exigem-se documentos de identificação do país.

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Carteiras digitais para smartphones representam um novo método de distribuição de ajuda que coloca maior controle financeiro nas mãos dos refugiados. Na Jordânia, mais de 90% deles possuem um smartphone, segundo Mette Karlsen, chefe da unidade de intervenções em dinheiro do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) em Amã. Em 2018, o órgão lançou um projeto-piloto com carteiras digitais para transferir assistência financeira a 750 refugiados sírios que recebiam uma bolsa de estudos Dafi, que oferece a refugiados e repatriados a possibilidade de obterem um diploma de licenciatura em seu país de asilo ou no de origem. A covid-19 motivou o Acnur a expandir o projeto. No primeiro semestre deste ano, milhares de famílias de refugiados na Jordânia começaram a receber sua ajuda mensal por meio de carteiras digitais. Para promover essa expansão, o Acnur realizou um processo de licitação em 2021 em nome da Common Cash Facility, plataforma de assistência em dinheiro operada por um consórcio de provedores financeiros na Jordânia. Com base nos custos e serviços propostos, a agência selecionou a UWallet da Umniah para fornecer a ajuda, embora os refugiados possam utilizar qualquer um dos prestadores de serviços financeiros da Jordânia para receber auxílio. Antes de adotar as carteiras digitais, o Acnur, o Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP) e os membros da Common Cash Facility usavam tecnologia de leitura de íris, cartões de caixas eletrônicos ou dinheiro em espécie para fornecer assistência aos refugiados. Muitas vezes os regulamentos de gestão financeira do órgão deixavam os fundos disponíveis por um tempo limitado, depois do qual eram devolvidos ao caixa. “A carteira digital é um divisor de águas porque não se trata mais apenas de [os refugiados] receberem assistência”, diz Karlsen. “Trata-se de construir um futuro em que eles possam realmente administrar seu dinheiro e tomar suas próprias decisões.” O sistema filtra a ajuda aos refugiados por meio das empresas de carteiras digitais existentes, amplamente utilizadas na Jordânia para pagamento de contas, salários e outras transações. Isso significa que os refugiados podem utilizar sua cota de ajuda para compras fora dos campos sem necessitarem de cartões de refugiado que revelem seu status a terceiros.

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Eles também podem utilizar sua cota para bens e serviços fornecidos por membros da comunidade qualificados para isso, como é o caso de Awad Ahmad Al-Smadi, que gerencia um serviço de conserto de celulares no campo de Azraq. Al-Smadi espera que as carteiras digitais ajudem os refugiados a ter mais liberdade financeira e a fazer compras em sua banca. A parcela de refugiados que usam carteiras digitais cresceu para 60%, ou 32.500 pessoas, que vivem dentro e fora dos campos de refugiados de Zaatari e Azraq, desde a proliferação da tecnologia do Acnur, em 2020. Dentro dos campos, 98% das famílias de refugiados agora recebem assistência em dinheiro para serviços básicos por meio das carteiras. “Essa tecnologia tornou a vida dos refugiados muito mais fácil”, diz Mansour, que recebeu uma primeira cota mensal de 92 dinares jordanianos (cerca de US$ 65) em abril. O WFP começou a gerenciar a assistência alimentar por meio de carteiras digitais. As Nações Unidas também estão trabalhando com o Banco Central da Jordânia para elaborar uma nova estratégia de inclusão financeira destinada a expandir o acesso à tecnologia e aos serviços financeiros para refugiados. O uso para seguros, microcrédito e histórico de crédito está sendo avaliado por legisladores. Mette Karlsen espera que as carteiras digitais possam aumentar a inclusão financeira, ajudando os refugiados a solicitar e receber empréstimos, obter licenças comerciais e comprar cartões, entre outros serviços. “Essas são oportunidades fantásticas para investir na capacidade de as pessoas se tornarem mais autossuficientes”, afirma Karlsen. “Esse é o objetivo.” O Z OE H. ROB B IN (@zoe_robbin) é pesquisadora não residente do Instituto New Lines. É ex-bolsista de pesquisa da Fulbright na Jordânia. Seu trabalho foi publicado na Foreign Policy e na Al Jazeera, entre outros veículos. BA HA A MOHAMMAD é trabalhador humanitário e residente no campo de

refugiados de Azraq, na Jordânia.

TECNOLOGIA

Mineração de dados contra minas terrestres

IA está ajudando a localizar artefatos para acelerar sua remoção P O R E M M A WO O L L AC OT T

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esmo décadas após o fim de um conflito, o perigo representado pelas minas terrestres permanece. Restos explosivos de guerra mataram mais de 2.000 pessoas e feriram milhares de outras em 2021, de acordo com o Monitoramento de Minas e Agrupamento de Munições. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) estima que existam mais de 100 milhões de minas terrestres não detonadas enterradas em todo o mundo. O fato de que esses artefatos sejam comumente lançados de aviões torna impossível determinar sua localização precisa. Equipes de governos e de ONGs em terra podem detectar e remover minas terrestres, mas só se souberem onde verificar. De

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acordo com o consultor em contaminação de armas do CICV, Martin Jebens, enviar pessoal para locais que, no fim, se constata estarem livres de minas terrestres é, em última análise, um desperdício de recursos. “É desejável que sejamos o mais precisos possível na localização dessas áreas, porque então as minas são eliminadas mais rapidamente, de modo mais eficaz.” Num evento do CICV em 2019, Jebens conheceu Benjamin Butcher, gestor de relações globais da empresa japonesa de TI e eletrônica NEC Corporation, e os dois discutiram a dificuldade de identificar essas áreas. Butcher acreditava que a experiência da NEC com IA poderia ajudar as equipes trabalhadoras em terra a realizar sua difícil e perigosa tarefa. Atualmente, áreas com probabilidade de conter minas terrestres são identificadas por equipes de peritos que avaliam uma série de dados, desde registros de campos de batalha e relatórios policiais de vítimas até imagens de crateras e a localização de posições estratégicas, como rios e povoados. Butcher percebeu que esse demorado processo de coleta de informação poderia ser simplificado com IA por meio do método de “harmonização de dados”, que agrega “toda essa informação e a transforma em dados utilizáveis” e em formato acessível. A NEC e o CICV iniciaram esse trabalho em junho de 2021, em parceria com cientistas da Universidade Waseda, em Tóquio, que já trabalhavam na desminagem com drones usando tecnologia de reconhecimento de imagem baseada em IA. Cada sócio fornece pessoal e tecnologia à sua própria custa, com a equipe da NEC em Tóquio e as equipes do CICV em Genebra e na Dinamarca. Entre abril e outubro de 2022, os sócios lançaram um projetopiloto em uma região onde a presença de minas terrestres era conhecida. A IA recebeu informações geográficas e geológicas, e a localização de infraestruturas e edifícios importantes, assim como a indicação dos locais onde minas terrestres foram encontradas anteriormente. A IA analisou os dados para prever a localização dos explosivos, e as equipes agiram em terra para confirmar os apontamentos colhidos por essa pesquisa prévia. Ernö Kovacs, gerente sênior do Grupo IoT da NEC Laboratories Europe, afirma que a IA alcançou uma taxa de precisão de 90% tanto para possíveis áreas de minas terrestres como para áreas provavelmente livres delas. A equipe espera agora complementar os dados estáticos, que caracterizam o ambiente, com dados dinâmicos, como inteligência humana e relatórios. A NEC também está começando a incorporar mais dados de detecção remota fornecidos por satélites e drones, bem como informações de fotografias e vídeos das redes sociais, no processo de harmonização de dados. Eles também pretendem testar o sistema em outras regiões e estabelecer padrões para o compartilhamento seguro de dados sensíveis. A NEC está considerando uma variedade de modelos de negócio para oferecer o sistema amplamente a ONGs e governos até março de 2024, após a conclusão dos testes. “O método tem potencial para ser usado em nível nacional e assim determinar áreas contaminadas”, diz Jebens. “No futuro, não teremos de esperar que alguém pise em uma mina para encontrar essas áreas e torná-las novamente seguras para as pessoas.” O E M M A W O O LLACO T T, jornalista britânica, também escreve para a BBC, para a

Forbes e para vários veículos de tecnologia.

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HISTÓRIAS DO CAMPO Perfis de projetos inovadores

Conectando jovens à sociedade A Life Project 4 Youth Alliance promove o desenvolvimento pessoal e profissional de jovens carentes

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FOTO CORTESIA DE LAETITIA LEBEAU

POR ANDRA MARIA VALETTE

egundo um relatório anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre empregabilidade no mundo, em 2022, a taxa global de desemprego para jovens de 15 a 24 anos foi três vezes superior à de adultos. Mais de 23% dos jovens, indica o mesmo relatório, não trabalham, não estudam e não recebem capacitação – o que significa que não estão desenvolvendo as competências necessárias para um emprego digno, definido pela OIT como “trabalho produtivo […] em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana”. E, mesmo que estejam empregados, esses jovens têm maior probabilidade que os adultos de viver em pobreza extrema, ganhando menos de US$ 2,15 ao dia, e de trabalhar no setor informal, no qual não contam com proteções trabalhistas e benefícios. Os empresários e especialistas em marketing John e Laure Delaporte testemunharam a pobreza juvenil durante um ano de viagens internacionais com os filhos, entre 2008 e 2009. Assim que o giro pelo mundo terminou, eles lançaram um projeto-piloto de 18 meses em Manila, nas Filipinas, para capacitar 15 jovens em competências empreendedoras e de negócios voltadas para a conquista de um emprego digno. Os Delaportes escolheram as Filipinas, que haviam visitado, pelo baixo custo de vida e porque o inglês era uma das línguas oficiais. A posição geográfica do país

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também o tornava atraente para uma potencial expansão por toda a Ásia, onde a maioria dos jovens vive abaixo do limiar da pobreza. A experiência foi “muito gratificante porque, em pouco tempo, pudemos ver os jovens mudarem a vida deles e das famílias para sempre”, diz John Delaporte. O piloto resultou no lançamento da Life Project 4 Youth Alliance (LP4Y), uma federação internacional de 17 organizações em 14 países com a missão de ajudar a inserção social e profissional dos jovens. A LP4Y defende o empoderamento e a conexão entre os jovens e a sociedade como alavancas que podem tirá-los da pobreza extrema. Fundada em 2009, a LP4Y já apoiou mais de 6.700 adolescentes em 57 programas de educação e capacitação no mundo todo. ECOSSISTEMA DE INTEGRAÇÃO

As relações sociais e profissionais são

conexões que os jovens cultivam à medida que percorrem o “ecossistema de integração” da LP4Y. Os centros servem como hubs de engajamento. O ecossiste-

ma tem três camadas: relacionamentos locais, participação profissional e parcerias globais. Voluntários da LP4Y vão a favelas e zonas rurais para encontrar e engajar jovens que, dependendo do interesse manifestado, são encorajados a se candidatarem ao programa de formação profissional para empreendedores (professional training for entrepreneurs – PTE, na sigla em inglês) daquele centro. Cerca de 1.500 pessoas ingressam anualmente no programa PTE, que tem duas modalidades: um programa de formação e desenvolvimento de seis meses, para jovens em pobreza urbana, e um de “aldeia verde”, de três meses para os de zona rural. Em ambas, os participantes elaboram um plano para suas aspirações de carreira profissional e objetivos de vida. A LP4Y paga aos participantes um subsídio para cobrir as necessidades básicas e garantir que eles possam dedicar toda a atenção ao programa. Três pilares compõem a metodologia PTE: orientação, experiência de trabalho e exposição profissional. Os orientadores da LP4Y, chamados de “catalisadores”, conduzem os jovens ao longo do progra-

Participantes do PTE se mobilizam para recrutar novos jovens para o programa em Howrah, Bengala Ocidental, Índia, em 2021

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ma. “Os catalisadores estão sempre disponíveis para ajudar”, diz Colline Pusta, formada pela LP4Y Filipinas. Pusta se interessou por contabilidade ainda no PTE e agora está estagiando na área. “Eles realmente querem nos guiar para entendermos o que queremos ser, quais são nossos empregos dos sonhos, nossos objetivos e nossas aspirações para o futuro”, diz ela. No PTE, os jovens trabalham em equipes para construir e administrar um pequeno negócio – chamado de iniciativa microeconômica (micro-economic initiative – MEI, na sigla em inglês) – que atenda às necessidades da comunidade local, como oferecer aos moradores oficinas e treinamento para preservação de árvores, reciclagem e sustentabilidade ambiental. As MEIs funcionam como verdadeiros negócios “para familiarizar os jovens com a organização de uma empresa”, explica John Delaporte. Os participantes do PTE têm um horário de trabalho e assumem funções em departamentos como os das

participam de workshops para aprender sobre as operações. Durante as visitas, praticam suas competências profissionais em entrevistas simuladas. No fim do PTE, os participantes candidatam-se a empregos que tenham a ver com seu projeto de vida; mais de 70% tiveram sucesso. Os graduados também se tornam membros do Stars Club, a rede de ex-alunos, pela qual podem orientar outros jovens da LP4Y. EXPANDIR PARA INCLUIR

Desde o início do projeto-piloto, o casal de

fundadores acreditou que a proximidade com os jovens era crucial para construir relações de confiança. Todos os voluntários e eles próprios vivem modestamente entre as comunidades às quais servem. O regime de trabalho dos voluntários não segue o padrão habitual – cada um tem um contrato que cobre as necessidades básicas, incluindo seguro de saúde, previdência, vistos, transporte e um subsídio mensal.

Os fundadores da LP4Y acreditam que sua pedagogia é universal e que, portanto, o ecossistema é replicável corporações, desde compras e vendas até comunicações. “Tentamos fazer com que os jovens sejam atores da mudança – o que significa que não somos nós, os catalisadores, que identificamos a necessidade, encontramos uma solução e fazemos o [trabalho]”, diz Lorène Tonati, coordenadora nacional da LP4Y Nepal. A exposição profissional é um dos componentes principais do programa porque a maioria dos jovens nunca experimentou a vida fora de sua vizinhança. Para ser mais assimilável, esse segundo pilar se divide em diferentes etapas. Primeiro, eles aprendem habilidades como liderança, trabalho em equipe e gerenciamento de tempo por meio das MEIs. Também fazem cursos virtuais de informática básica (tecnologia da informação), inglês e comunicação profissional. Em seguida, visitam empresas para conhecer a cultura organizacional e ver como os funcionários se vestem e interagem. Eles também

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“Ser voluntário, tendo apenas uma pequena mesada, faz com que você se concentre no que é essencial”, diz Tonati. Ela acrescenta que está “aprendendo muito estando no Nepal, trabalhando com pessoas diferentes, estando com os jovens e conhecendo a comunidade”. Não é por falta de financiamento que a estrutura da LP4Y se baseia no voluntariado. Os Delaportes financiaram a federação por meio de doações privadas entre 2009 e 2012. Depois disso, estabeleceram parcerias com antigos clientes empresariais e lentamente incluíram instituições governamentais, como o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Europeus de Luxemburgo, e fundações como a BIC Corporate e a GKPM. Agora, a LP4Y tem mais de 450 parceiros que financiam suas operações e fornecem apoio de integração profissional aos jovens participantes sob a forma de estágios, capacitação e empregos. A estratégia da LP4Y para a expansão

baseia-se em parcerias – a característica definitiva do terceiro e último passo do ecossistema integrativo. A LP4Y começa esse trabalho criando alianças com organizações com missão semelhante e dispostas a compartilhar conhecimentos sobre inclusão juvenil. Os fundadores têm a convicção de que a pedagogia da LP4Y é universal e, portanto, o ecossistema é replicável, independentemente da localização. As parcerias da LP4Y produziram quatro iniciativas que têm favorecido a expansão global e garantido apoio para o sucesso profissional dos jovens. A primeira, batizada de Youth 4 Change Network, foi criada em 2012 e é uma rede internacional de 91 organizações localizadas em 37 países, que partilham as melhores práticas sobre a integração social e profissional de jovens excluídos. Fundada em 2016, a Youth Inclusion Network (YIN) é uma coalizão de empresas que oferecem oportunidades profissionais aos jovens. O YouthLAB, que surgiu em 2019, consiste de dois centros de inovação: um no Bronx, Nova York, com foco na defesa de direitos, oferece aos jovens uma plataforma para partilharem suas experiências de desafios ambientais e sociais; o outro está localizado no subúrbio parisiense de Seine-Saint-Denis, onde os jovens são treinados para se tornarem catalisadores e voluntários da LP4Y. A quarta iniciativa é a The Catalysts’ Co., lançada em 2020. A equipe de consultores internacionais com experiência na LP4Y oferece apoio a empresas, organizações sociais e instituições governamentais que estejam desenvolvendo programas de sustentabilidade. A LP4Y tem planos para construir centros no Egito e no Sri Lanka e, atualmente, aguarda a aprovação governamental final antes de começarem as obras. A federação também está explorando novos canais – incluindo suas redes sociais – que sirvam de plataforma para que os jovens falem sobre questões relacionadas à exclusão social e profissional. A julgar pela história da LP4y até aqui, seu ecossistema continuará a se expandir para o mundo todo. O ANDRA MARIA VALETTE é escritora especializada em desenvolvimento sustentável e inovação social.

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Mapeando a rota do sufrágio feminino O National Collaborative for Women’s History Sites criou uma trilha para celebrar a atuação das mulheres na democracia americana

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FOTO CORTESIA DE LISA BACHE

POR MARIANNE DHENIN

ezenas de pessoas se reuniram para um chá da tarde em frente a uma modesta casa de dois andares e meio, feita de tijolos aparentes, em Old Louisville, Kentucky, no último mês de agosto. A ocasião foi a inauguração de um marco histórico em homenagem às irmãs Georgia e Alice Nugent. Pintada de roxo, branco e dourado – cores do Partido Nacional da Mulher –, a placa informa aos transeuntes que as irmãs Nugent moraram ali entre 1919 e 1971 e eram “sufragistas afro-americanas e líderes comunitárias, [que] defendiam o direito de voto em nível local, estadual e nacional”. O registro é o 202º na National Votes for Women Trail (NVWT, trilha nacional do voto feminino), projeto estabelecido pelo National Collaborative for Women's History Sites [NCWHS, Coletivo nacional pelos locais da história feminina, em tradução livre] e por uma legião de voluntários em 2016. A NVWT homenageia marcos do movimento sufragista feminino dos Estados Unidos e faz parte da missão do NCWHS de aumentar a conscientização sobre a história das mulheres. Nos Estados Unidos, o número de parques nacionais, locais históricos e monumentos públicos que homenageiam os Pais Fundadores [líderes políticos e intelectuais que atuaram na fundação e formação dos Estados Unidos como uma nação independente], ex-presidentes e generais militares – todos homens – supera em muito os das mulheres. A Monument Lab, uma organização pública de arte e história sem fins lucrativos, catalogou menos de 300 monumentos a mulheres em seu conjunto de dados de quase 5.000 registros. “Quando visito locais históricos, a primeira coisa que pergunto ao guia turístico é ‘onde está a história das mulheres?’”, diz

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Laura Bache (à esquerda) posa em frente ao marco da casa das irmãs Nugent, ao lado de Jacqueline Glenn, atual proprietária do imóvel e ex-cuidadora de Alice Nugent

Marsha Weinstein, presidente do NCWHS. “Eu quero o resto da história; as mulheres estão sub-representadas.” Em resposta, o NCWHS decidiu desenvolver “um caminho diversificado para uma nação diversificada”, diz Weinstein. Infelizmente, assim como foi árdua a jornada para o sufrágio feminino, a criação da NVWT foi mais complexa do que os organizadores previam mais de 15 anos atrás. A BUSCA POR SUFRAGISTAS

O projeto que se tornaria a NVWT começou em 2007, quando a então senadora Hillary Clinton propôs financiamento a um projeto semelhante que teria criado uma trilha de locais relacionados com o sufrágio feminino no estado de Nova York, a serem administrados pelo National Park Service. Clinton vinha mantendo conversas sobre a preservação da história das mulheres com membros do NCWHS e com Coline

Jenkins, uma descendente de Elizabeth Cady Stanton, antepassada do movimento sufragista feminino. A legislação foi incluída pela Public Land Management Act de 2009 e assinada pelo presidente Barack Obama em 30 de março de 2009, mas o Congresso, liderado pelos republicanos, deixou o projeto à míngua. Em 2016, os voluntários do NCWHS lançaram uma base de dados virtual de locais sufragistas, como antigas sedes de associações que faziam lobby pelo voto feminino, cenários de marchas ou outras manifestações e túmulos de ativistas proeminentes. Para encontrar histórias pouco conhecidas, a organização convidou as comunidades locais para contribuir. “Há nomes que nunca tínhamos ouvido antes, que faltam na narrativa nacional, mas podem ser conhecidos cultural ou localmente”, explica Ida Jones, diretora associada de coleções especiais e arquivista universitária da Universidade Estadual Morgan em

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Baltimore, Maryland, e coordenadora do NVWT em Washington, DC. Dirigentes estaduais estabeleceram contato com organizações locais e indivíduos que indicaram áreas para o banco de dados. O NCWHS instituiu a meta de documentar 2.020 pontos até o fim de 2020. A colaboração também criou um mapa interativo para publicar suas descobertas. O mapa rapidamente chamou a atenção de Paula Miller, então diretora-executiva da Fundação William G. Pomeroy, que procurava formas para a organização celebrar, em 2020, o centenário da 19ª Emenda, que assegurou o voto feminino nos EUA. A Fundação Pomeroy se dedica a apoiar a celebração e a preservação das histórias comunitárias, financiando a colocação de marcos históricos em rodovias.

Paula Casey, coordenadora do Tennessee e agora presidente do NVWT, explica que usou registros do censo, listas telefônicas antigas, recortes de jornais e outras fontes históricas, mantidas na biblioteca e arquivo do estado e em outras bibliotecas locais, para encontrar e verificar as localidades. Killian O’Donnell, coordenador da Flórida, diz que acumulou mais de 11 mil arquivos relacionados às localizações do NVWT do seu estado. A busca por sufragistas de diversas origens raciais e étnicas de todo o país foi bem-sucedida. Marcos patrocinados pela Pomeroy homenageiam uma sufragista do povo nativo ojibwa em Dakota do Norte, eleitoras mexicano-americanas no Arizona e dezenas de sufragistas negras, ativistas dos direitos civis e outras militantes. Jones ga-

“É por isso que a trilha é tão importante. Temos que garantir que as pessoas conheçam sua história para que possamos mudar as coisas” Deryn Pomeroy, curadora e diretora de iniciativas estratégicas da fundação, diz que esse tipo de marcos se liga estreitamente à cultura de sua família. “Quando criança, sempre que passávamos por um marco histórico, parávamos e líamos juntos”, diz ela. O amor dos Pomeroys por esses elementos e pelo NVWT criou uma parceria perfeita. A fundação concordou em financiar a transformação de mais de 200 localidades digitais em marcos físicos e criou um processo de inscrição exclusivo para os coordenadores do NVWT submeterem áreas de seu estado para análise e aprovação da fundação. Em 2016, o NCWHS convocou um conselho de dez pessoas para examinar os locais indicados, antes de adicioná-los ao banco ou submetê-los à fundação. O financiamento do National Trust for Historic Preservation [entidade nacional do patrimônio histórico] e os fundos federais alocados pela Comissão do Centenário do Sufrágio Feminino cobriram os custos de trabalho do conselho e a criação do mapa digital. Os historiadores da Fundação Pomeroy revisam os documentos submetidos para garantir a precisão histórica dos locais e dos marcos.

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rantiu quatro marcos históricos sobre mulheres negras em Washington. Ela diz que a capital do país “era a conexão da classe intelectual negra” no século 19 e no início do 20, e os marcos celebram gerações de mulheres negras que lutaram pela igualdade de gênero. A casa das irmãs Nugent é uma conquista memorável para Laura Bache, que produziu, ainda no ensino médio, um relatório de cem páginas sobre as moradoras e o imóvel, levando-o a ser adicionado ao Registro Nacional de Locais Históricos e ao NVWT. Ela escolheu celebrar um lugar de sufrágio feminino porque combinava suas paixões por contar histórias, pesquisa histórica e empoderamento das mulheres. Bache, agora caloura na Universidade da Carolina do Norte, fez o trabalho para concorrer ao Girl Scout Gold Award, a maior premiação dentro das Meninas Escoteiras, concedida àquelas que implementam projetos que proporcionam benefícios duradouros a suas comunidades. “Ao sairem da escravidão, as mulheres negras tiveram que lutar muito mais pelo seu direito de voto, e eu queria contar essa história”, explica Bache.

EDUCAÇÃO COMO INSPIRAÇÃO

Hoje, a trilha possui mais de 2.400 localida-

des, e os coordenadores do país inteiro conseguiram financiar 210 marcos por meio da Fundação Pomeroy. Além disso, o NCWHS está produzindo planos de aula e conteúdo no YouTube para o público dos ensinos fundamental e médio, sabendo que há muito mais alunos como Bache que encontrariam inspiração nas histórias que estão por trás dos marcos da trilha. Em março de 2023, para coincidir com o Mês da História da Mulher, a parceria lançou a sua primeira série de planos de aula. A equipe pretende produzir mais conteúdo digital e, no momento, está buscando financiamento para um podcast. Cada episódio usará um ponto na trilha para ilustrar a diversidade do movimento sufragista. Angariar recursos é sempre um desafio, e o trabalho do NVWT continua a ser conduzido pelo voluntariado. Muitos dos que dedicam seu tempo dizem que são motivados pelo espírito sufragista e pelo desejo de capacitar a próxima geração de eleitores, políticos e ativistas. “Quero que conheçam a história como um motivador para exercerem seu direito de voto e para se envolverem civicamente”, diz Weinstein. Para Casey, residente no Tennessee, os recentes ataques à democracia, no seu estado e em outros, fazem com que o trabalho do NVWT pareça ainda mais urgente. Ela acredita que as histórias que a trilha conta oferecem uma forma de engajamento para educação cívica que poderia ajudar a romper tendências antidemocráticas. “É por isso que a trilha e a colaboração são tão importantes”, acrescenta Casey. “Temos que garantir que as pessoas conheçam sua história para que possamos mudar as coisas.” A expansão da trilha continuará a estimular uma compreensão mais complexa da democracia americana. “Essa é a intenção desses marcos”, diz Jones, “fazer com que sejam espaços viáveis e vivos para envolver a consciência dos americanos, dos futuros americanos e das pessoas que visitam o país para compreender como esta democracia foi concebida e como foi realmente vivida.” O MARIANNE DHENIN é uma jornalista premiada e

historiadora.

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Rumo à neutralidade de carbono O think tank alemão Agora Energiewende desenvolve propostas de política energética e climática para a descarbonização

A

FOTO DE MARCUS VIA ADOBE STOCK

P O R PA U L H O C K E N O S

transição da Alemanha para a energia limpa, chamada Energiewende [transição energética], já estava em curso em 2011 quando um fato a tornou mais urgente. Em 11 de março daquele ano, um poderoso terremoto e tsunami atingiram a central nuclear de Fukushima, no Japão, provocando um colapso em grande escala. Se uma nação tecnologicamente avançada como o Japão pôde sofrer um acidente tão devastador, então a Alemanha também poderia, deduziu a chanceler alemã conservadora Angela Merkel. Esse pensamento foi compartilhado por mais de 250 mil manifestantes que tomaram as ruas do país naquela semana, exigindo o fim da energia nuclear. O enorme protesto reforçou a motivação de Merkel para acelerar a Energiewende, posta em curso pela administração anterior. Em contraste com Merkel, o líder político do Partido Verde e antigo alto funcionário de energia Rainer Baake já havia muito se opunha à energia nuclear. Para ele, a resposta de Merkel a Fukushima abriu um caminho para as energias renováveis, mas exigia uma estratégia precisa. “Precisávamos de pesquisas boas e robustas e de um fórum onde as pessoas pudessem discutir abertamente”, lembra Baake. A Alemanha poderia se tornar pioneira na ação climática ao fazer a transição para um abastecimento de energia de baixa emissão de carbono que abandonasse não só os combustíveis fósseis, mas também a energia nuclear. O país já tinha prometido reduzir as emissões de CO₂, duplicando sua cota de energia renovável até 2020 – o que cumpriu – e aumentando-a de modo a cobrir mais de 80% de seu consumo de eletricidade até 2050. Até 2011, turbinas eólicas, hidroelétricas, células solares e digestores de biogás já representavam 20% da eletricidade do país, graças à legislação aprovada em 2000, que

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concedeu benefícios aos produtores independentes de energia limpa. Mas a inesperada e rápida expansão das energias renováveis na Energiewende – uma grande anomalia na Europa em 2011 – era generalizada e desestruturada, suscitando tantas perguntas quanto respostas. Como exatamente uma potência industrial como a Alemanha substituiria todo o seu fornecimento de energia sem destruir negócios lucrativos, paisagens de cartão-postal e estilos de vida amados? Para criar e concretizar uma estratégia de mudança para a energia limpa, Baake propôs um fórum inspirado nas ágoras gregas, onde as pessoas se reuniam para vender produtos e conversar. Em 2012, ele fundou a Agora Energiewende, consultoria baseada em políticas públicas com sede em Berlim que opera como um think tank multidisciplinar sem fins lucrativos. Quatro anos mais tarde, abriu uma filial em Bruxelas, que cobre a política climática da União Europeia (UE). A missão da Agora, segundo seu site, é oferecer “estratégias politicamente viáveis e baseadas em evidências para promover a meta de neutralidade climática” no mundo todo. UM MERCADO DE IDEIAS

A inspiração da Agora Energiewende não se

limita à Grécia antiga. Markus Steigenberger, que ajudou Baake no lançamento da organização sem fins lucrativos e atua como seu diretor administrativo, diz que eles recorreram a outros laboratórios de ideias do mundo em busca das melhores práticas. “A ideia era construir uma organização adequada ao contexto alemão e europeu que fornecesse soluções viáveis, com base em fatos científicos robustos.”

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Steigenberger argumenta que, em contraste com o caráter partidário dos think tanks dos EUA, na Alemanha a política é muito mais consensual e receptiva a diversas perspectivas. Nesse espírito de inclusão, a Agora reuniu um conselho de 25 stakeholders vindos de governos estaduais e do federal, partidos políticos, universidades, sindicatos e indústria. O conselho tem um homólogo em Bruxelas e, lá como em Berlim, reúne-se quatro vezes ao ano para discutir as descobertas científicas dos especialistas da Agora e propor soluções políticas. “Os políticos são responsáveis pelo processo legislativo”, explica Steigenberger. “A Agora contribui para o debate com estratégias e soluções que estão à frente do problema, mas são política e tecnicamente viáveis.” Por exemplo, o primeiro documento político da Agora, “12 Insights on Germany’s Energiewende”, de 2013, argumentou que as energias eólica e solar são mais baratas que outras matrizes limpas e têm potencial único para uma expansão massiva. A energia hidrelétrica, por outro lado, é limitada pelo número de rios que podem ser represados. Portanto, o governo devia apoiar o desenvolvimento de parques eólicos e solares, bem como a rede de transmissão necessária para lidar com essas fontes, concluía o relatório. O documento guiou o colossal desenvolvimento de energia solar e eólica na Alemanha durante mais de uma década. Desde sua publicação, a Alemanha reformulou seus roteiros energéticos, comprometeu-se com uma ampla eletrificação, reescreveu normas, planejou e construiu novas redes inteligentes, iniciou um programa de energia eólica em alto-mar, ajustou os mercados de energia para melhor acomodar as

A pesquisa da Agora Energiewende está liderando a transição para energias limpas, incluindo parques eólicos, na Alemanha

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fontes renováveis e alterou seus critérios de subsídios para energia solar e eólica – uma revisão que fez com que a capacidade das energias renováveis mais que dobrasse. Fontes renováveis respondem hoje por cerca de metade do consumo de eletricidade da Alemanha. O país está determinado a duplicar novamente a capacidade de energia eólica e a quadruplicar a energia solar para se tornar dependente apenas de fontes renováveis até 2035. “Algumas dessas ideias já estavam circulando”, observa Toby Couture, diretor da empresa de consultoria energética E3 Analytics, de Berlim. “Mas a Agora, por meio de relatórios bem escritos, conseguiu captar a imaginação do público e definir a

e para a agricultura em 2022. “O trabalho da Agora é sobre a transformação para a neutralidade climática em todos os setores – da agricultura até os transportes e a indústria”, diz Steigenberger. “Todos eles são essenciais para a descarbonização da nossa economia e sociedade. Nós investigamos ligações complexas, trade-offs e interdependências à medida que a transição para a neutralidade climática avança.” As iniciativas filantrópicas independentes Mercator Foundation e European Climate Foundation (ECF) comprometeram-se a financiar a Agora Energiewende durante sua primeira década. Hoje, ela opera com uma tutela privada. Aproximadamente 80% do orçamento de € 19 mi-

Ao longo de uma década, a Agora definitivamente moldou a agenda de proteção climática na Alemanha e na Europa narrativa. A tese sobre sol, vento e eletrificação permanece válida até hoje.” Ao longo de uma década, a criação de Baake definitivamente moldou a agenda de proteção climática na Alemanha e na Europa. Hoje emprega cerca de 150 especialistas de 30 nacionalidades – de engenheiros a economistas e cientistas políticos –, os quais nutrem os mais importantes programas de transição energética do país com propostas que recomendam estratégias, táticas e políticas. A metodologia da Agora combina pesquisa interna e trabalhos encomendados a especialistas de fora para garantir que todas as conclusões sejam abrangentes e confiáveis. A Agora também promove o diálogo e as relações públicas entre tomadores de decisão, grupos de interesse, pesquisadores e mídia. Seus gráficos baseados em medições do laboratório, acessíveis ao público, traçam a composição do fornecimento de energia em constante mudança e do nível de consumo da Alemanha. E todos os seus documentos estão disponíveis gratuitamente no site, em quatro idiomas. Em 2016, a Agora lançou uma consultoria dedicada a conversões sustentáveis em transportes. Seguiram-se duas consultorias adicionais, para a indústria em 2021

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lhões provém de fundações privadas do mundo todo, como a ECF e a Aspen Global Change Institute, enquanto cerca de 15% são disponibilizados por doadores governamentais cujos fundos são exclusivamente para trabalho internacional. AINDA NÃO TÃO NEUTRO

Hoje, as metas climáticas da Alemanha e

da UE são consideravelmente mais ambiciosas que uma década atrás – graças, em parte, aos dados da Agora. Suas pesquisas também fundamentaram a revisão da meta alemã para redução de emissões e neutralidade climática em toda a economia: 65% até 2030 e 88% até 2040. O país pretende alcançar a neutralidade climática até 2045 – cinco anos antes da UE. Com a Guerra da Ucrânia, tornou-se mais premente para a Europa abandonar os combustíveis fósseis. A energia – e particularmente o comércio de combustíveis fósseis com a Rússia – desempenha um papel central para o continente. No início da guerra, em fevereiro de 2022, mais de metade do gás natural da Alemanha e quase dois quintos das necessidades de gás da UE vinham da Rússia. Os especialistas da Agora acreditam que o bloco europeu pode reforçar tanto a sua segurança energética

quanto a geopolítica reduzindo para metade a utilização de combustíveis fósseis dentro de apenas sete anos. Isto significa, acima de tudo, utilizar menos gás. A tarefa é grande, mas exequível, especialmente se a Europa se comprometer a acelerar a sua transição para as energias renováveis e a adotar práticas de economia de energia. “A reação da Europa à pandemia e à crise energética que se seguiu à invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia mostrou que a UE pode agir rapidamente quando é necessário, observa. Steigenberger. “O que é fundamental para uma transição bem-sucedida para a neutralidade climática é que todas as partes da sociedade sintam que são parte ativa dela.” A crise climática não conhece convenções geopolíticas, por isso esse trabalho deve acontecer além-fronteiras. A Agora conduz essa missão por meio de parcerias com organizações em mais de duas dezenas de países, incluindo o Centro Nacional para Energia Renovável da China, o Laboratório de Energia Renovável dos EUA e a Agência Energética da Dinamarca. Além disso, essas organizações patrocinam uma bolsa anual de seis semanas para especialistas em energia e clima de países de baixa e média renda para que questões de suas nações de origem sejam abordadas com especialistas da Agora. A força da China em questões energéticas e climáticas, bem como seu lugar como maior emissor de carbono no mundo, torna crítica a participação do país na meta do planeta de emissões líquidas zeradas para meados do século. Para esse objetivo, e apesar das tensões geopolíticas entre o Ocidente e a China, a Agora tem trabalhado para coordenar seus sistemas de fixação de preços do carbono, maximizar o impacto deles e não perturbar as relações comerciais. Steigenberger acredita que a Energiewende é o “presente da Alemanha para o mundo”. Para ele, “as contribuições da Agora à transição para energias limpas ajudarão esse presente a florescer, servindo como base para outros países criarem suas próprias abordagens de acordo com suas circunstâncias”. O PAUL HOCKENOS é escritor e vive em Berlim. É

autor de vários livros, incluindo Berlin Calling: A Story of Anarchy, Music, the Wall, and the Birth of the New Berlin.

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ESTUDO DE CASO Um olhar profundo para o interior de uma organização

A escola que reconstrói a sociedade civil

KAINAAT ANSARI começou a vida em

Como a ONG The Citizens Foundation está transformando a educação no Paquistão, com resultados notáveis para as crianças menos privilegiadas do país POR NOOR NOMAN

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uma katchi abadi – nome dado, no Paquistão, a assentamentos de baixa renda derivados de ocupações ou subdivisões informais de terra. Localizado em Orangi, o lugar onde ela cresceu é a maior favela do mundo com quase 2,5 milhões de habitantes, e se estende ao longo da periferia noroeste de Karachi, no Paquistão. Mais velha de três filhos de uma família pobre, em um país com pouca mobilidade ascendente, Ansari tinha perspectivas de vida limitadas. Ainda que sua mãe tivesse pouca escolaridade, incutiu na menina o valor da educação contando histórias inspiradoras sobre mulheres transformadoras e figuras influentes, como Benazir Bhutto, primeira e única primeira-ministra do Paquistão. “Sempre disse à minha mãe que teria uma educação para ser como elas”, lembra Ansari. “Minha mãe ria e dizia: ‘Só concluir [os exames finais] já é tão difícil’.” Mas, acrescenta Ansari, “no fundo, ela meio que encorajou isso”. Até os 13 anos, em 2014, Ansari e seu irmão mais novo, então com 11, só tinham frequentado uma escola do governo, onde os alunos se sentavam no chão em salas superlotadas, e os professores faltavam muito. A pedagogia enfatizava a aprendizagem mecânica, baseada principalmente na memorização de livros didáticos em inglês. No entanto,

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F O T O S C O R T E S I A D E C I T I Z E N S F O U N D AT I O N

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Nas escolas da TCF, estudantes são encorajados a ser curiosos e fazer perguntas aos professores

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como 94% dos professores do ensino fundamental e médio no Paquistão não são proficientes no idioma, a maioria não compreende o que está ensinando e é incapaz de educar os alunos sobre o que estão memorizando. Não surpreende, portanto, que o país tenha uma das menores taxas de alfabetização do mundo – 58%, de acordo com os dados mais recentes do Banco Mundial. O dado é ruim, mesmo se comparado ao de outros países do sul da Ásia. No Butão e no Nepal, a taxa é de 71%; na Índia, de 74%; em Bangladesh, de 75%; e no Sri Lanka, de 92%. Um dia, naquele ano, um amigo recomendou ao pai de Ansari que mandasse o filho para uma escola administrada pela organização sem fins lucrativos The Citizens Foundation (TCF), fundada em 1995 por um grupo de seis ativistas civis paquistaneses. O sistema coeducacional da TCF – que hoje opera em 1.833 escolas primárias e secundárias em todo o país – já tinha, à época, a reputação de oferecer educação de qualidade e acessível. Noventa por cento dos graduados da TCF buscam o ensino superior, e cerca de metade desses de fato se matricula em escolas técnicas e universidades. As cifras contrastam fortemente com os dados nacionais de 2022, que registraram uma taxa de abandono de 33% no ensino fundamental e de 73% no ensino médio. A taxa de matrículas no ensino superior foi de 12% em 2019, segundo dados do Banco Mundial. Ansari acompanhou a mãe e o irmão no dia da matrícula dele na TCF. “Ainda me lembro, de forma muito vívida, de caminhar até a escola”, diz ela, hoje com 23 anos. “Tinha um playground imenso, onde, pela primeira vez, vi meninas jogando basquete e badminton. E eu fiquei, tipo, ‘caramba, o que está acontecendo aqui? As pessoas realmente fazem isso?’ Fiquei muito feliz!” Ela se entusiasmou tanto que perguntou à mãe se também poderia se matricular. “Minha mãe falou: ‘Não, você está louca? Não dá para você vir de tão longe’”, Ansari continua. A menina, porém, desafiou a mãe e convenceu o diretor a deixá-la tentar o exame de admissão naquele dia. Ela não passou, mas a organização, em vista de seu compromisso de ajudar crianças carentes e da paixão que ela demonstrou, lhe disse que seria aceita se concordasse em repetir a oitava série. Ansari persuadiu seus pais a permitir que ela frequentasse a escola secundária TCF, onde se formou, em 2017. As escolas secundárias da TCF só passaram a contar com o ensino médio completo em 2016. Muitos graduados da TCF, incluindo Ansari, concluíram o ensino médio em instituições externas à organização. Ela foi aceita pela United World Colleges, rede global de escolas que oferece o International Baccalaureate, equivalente internacional de um diploma do ensino médio. Ansari foi então aceita no Whitman College, em Walla Walla, no estado americano de Washington, e fez um intercâmbio de um semestre, em 2022, no Lady Margaret Hall da Universidade de Oxford – faculdade que escolheu por ter Benazir Bhutto e Malala Yousafzai, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, entre as ex-alunas.

Muitas vezes, ao passar por um retrato de Bhutto em uma parede da instituição, Ansari recordou, ainda sem acreditar, a promessa feita por sua versão mais jovem. O feito de Ansari, embora notável, não é singular, mas compartilhado por muitas das 280 mil crianças que se formaram pela TCF. Muskan Amjad, filho de um motorista de riquixá, foi para uma universidade paquistanesa de ponta depois de se formar na TCF e agora trabalha em uma empresa de software. Javaria Yousaf descobriu seu amor pelos números na TCF, fez um mestrado em economia na Universidade de Punjab e, depois, voltou à TCF como professora de matemática. Temos ainda Asad Ahmad, filho de um vendedor de frutas que se formou na TCF e depois no Instituto Ghulam Ishaq Khan de Ciências e Tecnologia de Engenharia, uma das principais universidades do país. Ele foi contratado por uma empresa de software logo após concluir o curso.

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A V I SÃO D O S AT I V I S TA S PA R A A S O C I E DA D E

s fundadores da tcf se conheceram em 1993. Eles faziam parte de um grupo ativista, informalmente chamado de “grupo da quarta-feira”, que se reunia semanalmente em Karachi, no Paquistão, para formular respostas cívicas ao agravamento da deterioração social e política do país. O Paquistão vinha se recuperando de uma década de governo sob o mando do general fundamentalista religioso Muhammad Zia-ul-Haq, que orquestrou um golpe no fim dos anos 1970 e morreu em um acidente aéreo em 1988, sob circunstâncias misteriosas e amplas suspeitas de sabotagem. Sob o mando de Zia-ul-Haq, o país foi de relativamente liberal a fechado, conservador e fragmentado. Ele introduziu a sharia – sistema jurídico baseado em uma interpretação reacionária do Alcorão, segundo a qual, por exemplo, mulheres que sofram estupros podem ser presas por terem tido relações sexuais ilegais – e catalisou a islamização da economia, incluindo a eliminação de juros do sistema bancário. (A cobrança de juros é considerada anti-islâmica.) Sua insistência em desenvolver uma bomba nuclear agravou a ameaça de sanções econômicas, desestabilizando ainda mais os mercados do país. Apesar dos esforços para reconstruir a economia no fim dos anos 1980 e 1990, o Paquistão estava “preso em um círculo vicioso de pobreza, baixo crescimento, baixa poupança e baixo investimento”, explica o economista e ex-ministro do Comércio do Paquistão Mohammad Zubair Khan no relatório “Liberalização e Crise Econômica no Paquistão”, de 2000. Essa instabilidade econômica alimentou uma maior agitação social e política. “O Paquistão sempre enfrentou desafios, mas naquela época eles eram especialmente ruins, em termos de ilegalidade, sequestros e crimes com armas de fogo”, lembra Mushtaq Chhapra, ativista civil e cofundador da TCF. Os ativistas foram “pessoalmente

Os fundadores da TCF sabiam que, ao entrarem no setor educacional, enfrentariam resistência tanto de funcionários do governo quanto de educadores, que defendiam a agenda política nacional

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ameaçados”, diz ele. “Nossos filhos e nossas famílias estavam em risco, muitos de nossos amigos foram sequestrados – foi uma espécie de despertar.” O grupo da quarta-feira inicialmente adotou o vigilantismo como linha de ação. Mas as mentes mais frias prevaleceram, e as discussões se voltaram para abordagens sustentáveis e não violentas dos problemas do país. Determinaram a educação como alavanca crítica para construir e sustentar uma sociedade civil estável. Isso se tornou a base da missão da TCF: oferecer educação de qualidade a todos. Chhapra considerava que o histórico do país no campo da educação era terrível e acreditava que era seu dever cívico agir. “[A falta de] educação é a raiz de muitos males”, ele diz. “Em uma sociedade, comunidade ou país onde as pessoas são educadas, elas são mais tolerantes, pacientes e ouvirão mais.” A educação, observa ele, é um indicador significativo de múltiplos determinantes sociais, incluindo melhores resultados de saúde e redução da probabilidade de criminalidade. Chhapra, que é magnata do setor de manufatura, no momento atua como presidente do conselho da TCF, que conta com os outros dois fundadores remanescentes: Ateed Riaz, codiretor e copresidente da casa de negócios Imrooz, e Ahsan M. Saleem, CEO da Crescent Steel e da Allied Products Limited. Os empresários Hamid Jafar e Rashid Abdulla, além do irmão de Rashid, Arshad Abdulla, único arquiteto do grupo, são os outros três fundadores. Arshad Abdulla projetou o primeiro grupo de escolas TCF. Os fundadores queriam uma PoC (prova de conceito, no acrônimo em inglês) antes de embarcar na arrecadação de fundos, então juntaram seus fundos pessoais para construir cinco escolas nas katchi abadis de Karachi em 1996. Foram matriculadas, por ordem de chegada, 800 crianças nessas escolas. Eles também estabeleceram um sistema de tarifas no qual a anuidade total a ser

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paga por uma família variava segundo uma escala que ia de 10 rupias (US$ 0,036) para a escola primária a 20 rupias (US$ 0,07) para a escola secundária. Hoje, a taxa mínima para ambas as escolas é de 25 rupias (US$ 0,09). “Quando você tira essa restrição e diz: ‘Mande todos, vamos cobrar o mesmo valor’, as coisas mudam”, diz Zia Akhter Abbas, vice-presidente-executiva de desenvolvimento e parcerias da TCF. “O valor absoluto não aumenta; na verdade, cai por criança [inscrita]. Então há um incentivo para enviar todos os seus filhos.” As escolas alcançaram uma popularidade tão imediata que, decorrido um ano, os idealizadores da TCF convidaram doadores potenciais para visitá-las. AS PROMESSAS E OS PERIGOS DA EDUCAÇÃO

os fundadores da tcf sabiam que, ao entrarem no setor educacional, enfrentariam resistência tanto de funcionários do governo quanto de educadores, que defendiam a infraestrutura existente e a agenda política nacional para aumentar as taxas de matrícula, em vez de melhorar a qualidade do ensino. A estratégia oficial tinha algum sentido: o Paquistão é um dos três países com menos crianças escolarizadas no mundo. Cerca de 44% (ou 23 milhões) das crianças entre 5 e 16 anos não estão na escola, de acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). As disparidades regionais tornam o acesso à educação ainda mais difícil para certas populações: em Sindh, a província de Ansari, onde fica Karachi, 52% das crianças (e 58% das meninas) com idades entre 5 e 16 anos estão fora da escola. O governo descentralizado do Paquistão delegou a política educacional às administrações regionais, o que gerou disparidades significativas, tanto na qualidade como na uniformidade e no acesso, exacerbadas por décadas de corrupção. Em 2010, um relatório da Save the Children estimou que havia 30 mil escolas fantasmas no país, existentes apenas no papel para que funcionários do governo pudessem desviar recursos federais. Estimou A TCF também a existência de escolas operacioredesenhou nais, de acordo com a conselheira sênior suas salas de da TCF, Nadia Naviwala, em seu relatório aula para alunos “A crise da educação do Paquistão”, que mais novos, de existem em áreas representadas por pomodo a enfatizar pesquisa e jogo; líticos seniores. Essa corrupção também ao lado, crianças se estende aos educadores. Apoiadores reunidas na de um partido no poder às vezes são conLab School da tratados como professores, apesar de não periferia de terem qualificação. Ao longo de 2015, o Karachi Partido Popular do Paquistão (PPP), que governava Sindh, empregou 14 mil de seus apoiadores como professores na província. É comum que esses professores faltem muito ou que, quando presentes, tratem mal as crianças, ordenando-lhes que lhes façam massagens ou busquem refeições. Esse quadro faz com que o Paquistão tenha “um dos sistemas educacionais mais fragmentados e iníquos do mundo”, diz Faisal Bari, professor associado de educa-

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ção e economia da Escola de Educação de Ciências da Administração da Universidade de Lahore. A recusa dos pais em matricular seus filhos na escola e as taxas de evasão são desafios adicionais. A infraestrutura física precária – escolas sem muros, água potável, eletricidade e acesso a banheiros – é um problema significativo. Quase 30% das instituições primárias no país não têm banheiros utilizáveis, e as crianças são forçadas a se aliviar nos campos. “Toda vez que vou aos campos com minhas amigas, rezo para que voltemos para a escola em segurança”, disse uma menina de 11 anos em Punjab à Assembly, uma publicação do Fundo Malala. “O medo de sermos molestadas ou picadas por uma cobra ou escorpião nos deixa muito tensas”, acrescentou. “A ideia de estar sendo observada também.” Entre outras barreiras, estavam a proximidade da escola, professores do sexo masculino e desastres relacionados ao clima. A proximidade é determinante no caso das meninas, pois os pais temem pela segurança de suas filhas no trajeto. Segundo dados da Harvard Kennedy School, se uma menina paquistanesa mora a 500 metros de distância de uma escola, ela tem 15% menos probabilidade de frequentar a escola do que uma que more mais perto. Para os fundadores da TCF (cinco dos quais eram empresários) a maioria dos desafios estruturais da educação, se não todos, poderiam ser resolvidos com uma gestão ética e de qualidade. Assim, diz Chhapra, a abordagem de projeto para o sistema escolar foi “criar e operar o sistema a partir do paradigma da gestão, e não de um paradigma da educação”.

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F L E X I B I L I DA D E PA R A F U N C I O NA L I DA D E

gestão é a pedra angular do sistema da TCF. Ainda que a organização tenha uma estrutura organizacional tradicional – um CEO, vice-presidentes-executivos e gerentes regionais e de área –, o sistema escolar foi projetado para capacitar a equipe em todos os níveis. As operações são padronizadas: os diretores das escolas determinam e executam seus próprios planos de melhoria do estabelecimento sob a condição de que a comunicação seja aberta e os professores possam dar feedback. O objetivo dos fundadores era garantir que a organização os superasse e contribuísse para a reconstrução de uma sociedade civil. “O que falta mais que tudo ao Paquistão não são escolas, mas instituições que sobrevivam aos indivíduos que o criaram”, diz Abbas sobre as intenções dos idealizadores da iniciativa. A estrutura é uniformizada para evitar muitas das consequências da descentralização das escolas estatais. Cada escola primária tem um diretor, seis professores e um máximo de 180 alunos. Há um professor por série – do jardim de infância até o quinto ano –, de modo que nunca há mais de 36 alunos por turma. Da mesma forma, cada escola secundária tem um diretor, cinco professores

e um máximo de 180 alunos. Do sexto ao décimo ano, as escolas secundárias têm uma turma por série, com um professor e um máximo de 36 alunos em cada sala de aula. Todos os professores da TCF devem passar nos exames de admissão da instituição, desenvolvidos pela equipe de recursos humanos. Os gerentes regionais e de área são militares aposentados. Naviwala afirma que isso não apenas incentiva os funcionários a levar seus papéis a sério como estimula um senso de responsabilidade raro no setor da educação e “cria uma ideia de serviço nacional e disciplina”. A tecnologia agilizou a gestão. “Com uma organização desse tamanho, tornou-se quase impossível usar um sistema baseado em papel”, diz Ghazala Nadeem, vice-presidente-executivo de recursos humanos, tecnologia e excelência organizacional da TCF. O sistema de gerenciamento operacional funciona por meio de aplicativo para smartphone, que permite realizar todo o trabalho administrativo e se divide em três módulos – de alunos, funcionários e finanças. Somente a direção pode acessá-lo, e essa centralização funciona como controle de qualidade. Por exemplo, só diretores matriculam ou desmatriculam alunos, o que garante que cada escola nunca ultrapasse o número máximo por turma ou por escola. Apesar da uniformização, a TCF também se esforça para ser adaptável. Por exemplo, a primeira avaliação externa da TCF, realizada em 2012 pelo Instituto Universitário Aga Khan para o Desenvolvimento Educativo, identificou fragilidades no conhecimento dos professores quanto a conteúdos e liderança escolar. A TCF respondeu rapidamente. Em primeiro lugar, comunicou os resultados a seus investidores e doadores. Para a organização, a transparência é fundamental para angariar e manter a confiança com os membros da comunidade. Alguns conselheiros, como Shashi Buluswar, fundador e ex-CEO do Instituto de Tecnologias Transformadoras do Lawrence Berkeley National Lab, disseram à organização que transparência é importante, mas que a TCF superenfatiza suas fraquezas. Abbas discorda: “Acho que é um superpoder muito bom para que uma organização seja muito real consigo mesma e autêntica”. Após a avaliação fraca, a TCF introduziu testes de conteúdo duas vezes por ano para todos os seus professores e vinculou seus resultados à remuneração. Metas claras de melhoria foram estabelecidas para cada professor. Os novos incentivos conseguiram aumentar as notas dos testes. A TCF também ajudou os professores a sanarem seus pontos fracos, distribuindo recursos impressos e links com vídeos educativos enviados a seus celulares. Para abordar a segunda questão, a TCF instituiu um treinamento anual para diretores, com foco em liderança e gestão, e estabeleceu um índice de qualidade, determinado por uma visita de um avaliador certificado que avalia o desempenho de cada diretor ao longo de um dia e fornece feedback.

Na contramão dos mitos ocidentais sobre os paquistaneses não desejarem educar suas meninas, a disparidade de gênero não é uma questão do lado da demanda, mas do lado da oferta

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alunos são guiados por atividades que permitem que expressem seus sentimentos, como entrar em contato com as coisas pelas quais são gratos ou dizer algo que gostariam de ter feito de diferente”, explica Abbas. Por exemplo, os alunos aprendem que a raiva muitas vezes mascara a vergonha e o constrangimento, e há um espaço seguro no qual podem discutir esses sentimentos – lição particularmente valiosa para meninos, geralmente criados sob a crença de que a masculinidade exige a supressão de suas emoções. As salas de aula para alunos mais jovens foram redesenhadas para elevar a interação e a socialização, colocando as carteiras voltadas umas para as outras em vez de apontadas para um professor na frente. A TCF está migrando a avaliação dos alunos da banca examinadora local para a federal, mais exigente. Ainda que a organização pudesse ter melhores resultados nos exames caso permanecesse com a banca local, a transição visa melhorar a qualidade dos padrões e resultados educacionais de longo prazo. “Neste momento, estamos passando por muita turbulência”, comenta Abbas sobre a mudança, que exigiu mais formação de professores para se adaptar a um currículo mais rigoroso.

A TCF centralizou o treinamento das professoras, conduzido pelas diretoras das escolas; na foto, aula de conduta e pedagogia ministrada por diretora de escola construída em um terreno doado pela Guarda Costeira do Paquistão em Korangi

UM PROCESSO DE APRENDIZAGEM

a pedagogia seguida pela TCF prioriza o pensamento crítico, a resolução de problemas e a aprendizagem emocional por meio de uma abordagem interativa e centrada no aluno. Em contraste com a das escolas públicas, ela diminui a ênfase na aquisição mecânica e nos testes baseados em memorização e avalia os alunos sobre compreensão de leitura, análise textual e lógica. Nos primeiros anos, a TCF dependia de livros didáticos emitidos pelo governo, para as aulas em urdu, e de editoras acadêmicas, como a Oxford University Press, para livros de matemática e ciências. Em 2009, insatisfeita com os livros do governo, passou a desenvolver seus materiais em colaboração com a organização sem fins lucrativos Educational Resource Development Centre. Em 2016, a equipe acadêmica da TCF criou livros didáticos que refletiam a pedagogia da instituição, escritos em urdu e com conteúdos que permitem que os alunos se identifiquem, em termos culturais. “Os livros em inglês mostravam, digamos, um caminhão de sorvete rolando pela rua, com ‘Sam the ice cream man’ vendendo sorvetes de casquinha”, Abbas observa. “Nossos livros têm o kulfi wala [sorveteiro local] em uma bicicleta, e isso faz o aluno pensar: ‘Isso é para mim. Eu sou o centro desse universo’.” A TCF também acredita que o currículo em urdu traga benefícios culturais e emocionais, além dos práticos. Ele foi pensado para derrubar a mensagem dominante de que o inglês é superior, e que o urdu, idioma nativo das crianças, é reservado para interações e pensamentos inferiores, menos sutis ou complexos. Para promover a língua e a cultura nacionais, a TCF oferece seus livros didáticos gratuitamente. Hoje, seus livros são usados por mais de 300 escolas particulares em todo o Paquistão. A aprendizagem emocional é a mais nova habilidade adicionada à pedagogia da TCF. “Há períodos específicos em que os

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PROPORÇÕES DE GÊNERO

ao incluir aprendizagem emocional na pedagogia, a TCF se mostra comprometida em educar os alunos sobre como o gênero estrutura as relações e a sociedade. Os fundadores entendem que alcançar a paridade em sala de aula deve ser uma prioridade para que realizem sua missão. A falta de escolas próximas, a infraestrutura precária e a ameaça de predação por parte de professores do sexo masculino são os principais impedimentos práticos para as meninas em idade escolar, segundo seus pais. Na contramão dos mitos ocidentais sobre os paquistaneses não desejarem educar suas meninas, a disparidade de gênero não é uma questão do lado da demanda, mas do lado da oferta. A TCF acreditava que poderia fechar a lacuna de gênero caso resolvesse essas barreiras. Primeiro, a entidade decidiu contratar apenas professoras e diretoras mulheres, a fim de aliviar o medo dos pais. Em áreas rurais, procurou diminuir o tempo de viagem das meninas até os estabelecimentos. Todas as escolas da TCF têm água potável e banheiros funcionando; muros protegem a escola e as meninas, minimizando as ansiedades dos pais em relação ao assédio, abuso ou violência. A TCF atingiu a paridade de gênero rapidamente, embora não se possa identificar com precisão quando ela foi alcançada. Essa conquista difere muito dos dados registrados pelo Banco Mundial, que indicam que, no Paquistão, meninas de origem pobre têm cerca de 22% menos probabilidade de serem enviadas para a escola do que meninos.

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A ação gerou um efeito cascata. A TCF é “o maior empregador individual de mulheres fora do setor público do Paquistão”, de acordo com um artigo de 2018 na revista The Economist. A afirmação continua válida até hoje. Dos 18 mil funcionários da TCF, aproximadamente 13 mil são mulheres, 11.800 das quais são professoras, e 1.200, diretoras.

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DÓLARES DA DIÁSPORA

TCF priorizou a manutenção de uma base de doadores leais, concentrando-se em três comunidades: indivíduos ricos, membros da diáspora paquistanesa e aqueles que acreditam no poder da educação. E, embora a meta inicial fosse a de garantir mil doadores para financiar mil escolas, foi surpreendente saber que precisavam de muito menos indivíduos, graças às doações recorrentes. “Uma vez que [um doador] vê o impacto, quer ajudar com mais de uma escola”, diz Abbas. “Os fundadores construíram uma comunidade de pessoas à qual se dirigir todos os anos e tratar como se fossem proprietários.” A diáspora paquistanesa – cerca de 9 milhões de pessoas – é uma fonte significativa de arrecadação de fundos. A TCF tem comitês sem fins lucrativos em cidades ao redor do mundo, incluindo na América do Norte (há 42 comitês só nos Estados Unidos), no Reino Unido e no Oriente Médio. Todos arrecadam fundos regularmente para a organização central, por meio de eventos como festas e torneios. Shehlah Zaheeruddin, que mora em Karachi, ficou sabendo da TCF por meio de apresentações de teatro locais realizadas para arrecadar fundos há quase duas décadas. Antes de cada apresentação, um investidor da TCF dizia algumas palavras sobre a organização e sua missão. Zaheeruddin logo se tornou doadora regular. Seu investimento na TCF se aprofundou há 15 anos, quando ajudou a TCF a criar um programa de mentoria para alunos do oitavo e nono anos – o programa Rahbar – em 2008. Zaheeruddin diz que ser voluntária e doar para a TCF faz parte de seu dever cívico. “Acho que é a coisa mais importante que nós [paquistaneses] podemos fazer”, explica. Buscar doadores individuais permitiu à entidade desenvolver ações ágeis e recorrentes para fornecer educação de qualidade, sem ser limitada por condições associadas a doações maiores. Financiamentos por subvenção, diz Abbas, são muito focados e temporais. “A educação é uma jornada de 11 anos para cada aluno, então você tem que manter o financiamento em andamento.” Uma parte menor do financiamento e do apoio dados à TCF vem de doações e subsídios corporativos. Neste ano, a Fundação Bill e Melinda Gates doou US$ 500 mil à TCF nos Estados Unidos para conduzir um estudo de dois anos sobre o que a exposição sus-

tentada das comunidades à educação de qualidade revela sobre as percepções de gênero. Outra fonte de receita, sem dúvida surpreendente, tem sido o governo nacional, com o qual a TCF fez uma parceria em 2016 para operar escolas públicas. Hoje são aproximadamente 400 escolas em prédios governamentais de 11 distritos escolares. A TCF recruta e treina o corpo docente com base em seus próprios padrões; o governo subsidia todos os custos. Embora reconheça que há problemas em o governo se eximir de oferecer ensino público, Bari é pragmático e vê a parceria como uma forma de o Estado honrar sua responsabilidade de entregar educação de qualidade. “Podemos ter dúvidas sobre se a educação deve ser um negócio ou não, mas acho que no Paquistão essa decisão foi tomada há muito tempo”, diz ele. A organização tem um orçamento anual de US$ 30 milhões. Quase dois terços vão para remuneração e benefícios da equipe. Aproximadamente 5% são destinados ao treinamento de pessoal e transporte de e para a escola. Apenas 12% são gastos em captação de recursos e custos administrativos – um aceno à eficiência operacional da TCF. Os recursos restantes são destinados a manutenção predial, pesquisa e desenvolvimento, supervisão e monitoramento de campo, livros didáticos, uniformes escolares e material didático. Chhapra diz que a transparência contábil tem sido um dos pilares da TCF desde o início. A TCF é auditada anualmente por uma lista rotativa das maiores empresas de contabilidade do mundo – Deloitte, Ernst Young, KPMG e PwC. “Seguindo as melhores práticas de governança corporativa”, explica Abbas, “mantermos esse rodízio de empresas [...] permite ter sempre um novo olhar que verifique as contas e operações e as valide”. INVESTIMENTO COMUNITÁRIO

a base de doadores fiéis permitiu que a TCF expandisse sua missão para além das escolas primárias e secundárias, contribuindo com as comunidades onde estas estão sediadas. “Não é uma organização humanitária. É uma organização de educação”, diz Buluswar. “Mas eu diria que a evolução mais interessante foi descobrir que não é apenas um sistema escolar. Se você quer ser um pilar da comunidade, tem que estar disposto a dar um passo para fora do núcleo do que você faz.” Em 2005, a TCF lançou seu primeiro programa comunitário. Batizado de Aagahi [conhecimento em urdu], ele visa alfabetizar e dar letramento matemático a mulheres em favelas e áreas rurais, o que lhes traz amplos benefícios, como empoderamento financeiro para fazer compras e a capacidade de ler números de ônibus sozinhas. O curso gratuito, que dura quatro meses, é realizado semestralmente em 4.300 locais – de escolas TCF a centros comunitários e casas de moradores – em todo o país. A cada ano,

A guinada autocrática do Paquistão representa uma ameaça à parceria entre governo e TCF. Ela pode ser alterada ou até eliminada dependendo do resultado das próximas eleições gerais

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20 mil mulheres se inscrevem no programa, e 160 mil já concluíram o programa até o momento. Em 2017, o programa Aagahi ganhou o Prêmio Confúcio de Alfabetização, dado pela Unesco a governos, ONGs e indivíduos que promovam avanços notáveis no tema em áreas rurais. Além de um benefício financeiro, os US$ 30 mil foram um excelente endosso para o programa. Em 2015, a TCF lançou um programa gratuito de formação profissional de quatro meses para mulheres, com o objetivo de ensinar-lhes habilidades técnicas com fins comerciais. O programa se concentra em design de moda, incluindo alfaiataria, bordado e habilidades de empreendedorismo – áreas em alta e que também se prestam a microempresas e ao trabalho em casa. O programa é oferecido em 15 centros vocacionais localizados em comunidades onde há escolas de TCF e já produziu 3.000 graduados. Esses centros também aceitam encomendas, entre as quais pedidos de uniformes da TCF, pelas quais as mulheres do programa são pagas. A ajuda humanitária é um aspecto crescente do investimento comunitário da TCF. Após as inundações do ano passado, que devastaram a infraestrutura e a economia do Paquistão e deixaram milhões de desabrigados, a TCF lançou uma campanha de alívio, que forneceu mais de 5 milhões de refeições e ajudou mais de 65 mil famílias a se reconstruírem em 32 distritos. Durante a pandemia de covid, a TCF já havia lançado um apelo que angariou doações em dinheiro para as famílias mais pobres e mais atingidas e forneceu equipamentos de proteção individual para os trabalhadores da linha de frente. G E R E N C I A N D O AT R AV É S DA I N C E R T E Z A

embora a TCF tenha se estabelecido como um bastião para oferecer educação de qualidade às crianças paquistanesas, vários desafios estão por vir para a organização, desde a instabilidade política até a ascensão da inteligência artificial.

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A turbulência política atingiu seu ápice em abril de 2022, quando o ex-primeiro-ministro Imran Khan foi deposto por meio de uma moção de desconfiança, sendo preso em maio deste ano sob acusações de corrupção. Desde então, o primeiro-ministro Shehbaz Sharif, chefe do partido da Nawaz, a Liga Muçulmana do Paquistão, pôs o país em uma direção autocrática, e os militares – que já são a instituição mais poderosa do país – agora exercem maior poder. A guinada autocrática do Paquistão representa uma ameaça à parceria entre governo e TCF – que pode ser alterada ou até eliminada dependendo do resultado das próximas eleições gerais, inicialmente previstas para outubro passado e adiadas para janeiro de 2024. Isso sem falar na grave crise econômica, que ameaça o financiamento do programa de parcerias. A inflação, o aumento dos custos e a depreciação da rupia devastaram a economia. Em junho, o Paquistão conseguiu um empréstimo de US$ 3 bilhões, visto por especialistas como um paliativo insuficiente para salvar a economia do país no longo prazo. Um desafio perene para a TCF é crescer sem comprometer sua missão de oferecer educação de qualidade. Sua meta para 2023, ambiciosa diante da conjuntura, é abrir 130 novas escolas. Além disso, sua decisão de expandir construindo, e não alugando escolas, significa que mais dinheiro deve ser arrecadado por estabelecimento, o que desacelera o ritmo de expansão. Bari observa, no entanto, que há benefícios qualitativos nesse modelo: prédios novos proporcionam às crianças uma sensação de que estão sendo cuidadas e valorizadas. Assim como os sistemas educacionais em todo o mundo, a TCF também está começando a lidar com o impacto da inteligência artificial na educação. “Acho que o maior desafio que eles vão enfrentar é com a tecnologia”, afirma Buluswar, cujo doutorado é em IA. Como o ChatGPT opera em urdu, eles poderiam usá-lo para concluir seus deveres e escrever suas redações – fazendo assim uso superficial do material de aprendizagem e deixando o pensamento para a máquina. A crescente dependência A TCF conseguiu dos alunos da IA desafia os professores, alcançar equidade que não conseguem determinar quando de gênero entre programas como o ChatGPT estão senos estudantes do usados. No entanto, Buluswar afirma de sua escola e que a IA deve se tornar “uma parte fundaatribui o sucesso à decisão de só mental do modelo de educação” para que contratar mulheres a TCF seja relevante e bem-sucedida na como diretoras e próxima década. professoras Para Bari e Nadeem, o sucesso da entidade tem a ver com a flexibilidade de seu sistema, o que inclui saber aproveitar novas tecnologias. Eles não só são otimistas quanto à capacidade da TCF de se adaptar à revolução da IA como acreditam que seu sistema escolar continuará a servir como líder no desenvolvimento – e democratização – da sociedade civil do Paquistão. 0 N O O R N O M A N mora em Nova York e é colunista da

MSNBC e jornalista freelancer. Elu cobre questões relativas ao sul da Ásia com foco na intersecção entre cultura e política.

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Com a tecnologia digital cada vez mais ligada ao cotidiano, garantir que a inovação esteja a serviço da sociedade é fundamental; mas, para que seu potencial para construir um mundo melhor seja pleno, é preciso antes definir o ideal de sociedade que queremos

Uma nova visão para o mundo high-tech Durante décadas, os Estados Unidos deixaram a tecnologia digital avançar sem qualquer vínculo com uma visão de sociedade. Apesar de sua história de proteção dos direitos das pessoas, o país se mantém estranhamente passivo quanto a essa questão, aceitando como inevitável o impacto da tecnologia digital na economia, na democracia, no sistema de Justiça criminal e no próprio tecido social. Essa indiferença pode estar se esgotando. No começo do ano, o sistema municipal de ensino de Seattle entrou com uma ação contra as redes Facebook, Instagram, Snapchat, TikTok e YouTube, alegando que as plataformas estariam contribuindo para a crescente crise de saúde mental entre os jovens. De lá para cá, outros distritos escolares seguiram o exemplo. Em março de 2023, um condado na Califórnia – San Mateo, que inclui 23 distritos em pleno Vale do Silício – e outras duas autoridades escolares também foram à Justiça contra as redes sociais, com o argumento de que estariam empregando inteligência artificial e machine learning para criar plataformas que viciam e prejudicam os jovens – tese corroborada por numerosos estudos.1

P OR MI KE KUBZ A NSKY Ilustrações de Brian Stauffer

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Seguradoras, bancos, hospitais, donos de imóveis e empresas em geral estão, cada vez mais, usando algoritmos preditivos e inteligência artificial generativa (a IA que usa montanhas de dados para gerar conteúdos e ideias) na hora de conceder empréstimos, avaliar potenciais locatários e até definir tratamentos médicos. É algo preocupante do ponto de vista da equidade e da justiça. Um estudo de 2021 da Consumer Reports constatou que a automação de decisões faz seguradoras de veículos cobrarem mais de indivíduos com escolaridade e renda menores.2 No ano passado, três parlamentares americanos do Partido Democrata – os senadores Ron Wyden e Cory Booker e a deputada Yvette Clarke – apresentaram um projeto de lei (o Algorithmic Accountability Act) que, se aprovado, exigiria que toda empresa que utiliza e vende sistemas automatizados avaliasse seu impacto e fosse mais transparente sobre quando e como tais sistemas são usados; o projeto empacou na comissão responsável. Um projeto similar, de 2019, tampouco avançou. Neste ano, o líder da maioria no Senado, o democrata Chuck Schumer, vem encabeçando uma iniciativa na Casa para criar um arcabouço legislativo que forneça “um novo regime regulatório para a IA”. Enquanto aguardam diretrizes no plano federal, diversos estados americanos consideram medidas para regular o uso de algoritmos. No Colorado e em Connecticut, por exemplo, autoridades do setor de seguros tentam limitar o uso de IA por suas afiliadas na hora de decidir quem segurar e a que custo. Normas em estudo exigiriam testes mais rigorosos e um monitoramento contínuo de tecnologias de IA, além de maior transparência na comunicação com clientes. Com a inteligência artificial no centro do debate político, social e econômico, a preocupação com possíveis efeitos negativos é natural – sobretudo em um momento em que a sociedade começa a ser alertada acerca dos riscos à própria existência humana e do real perigo de discriminação racial e desinformação. Tanto na esfera pública quanto na privada, lideranças lamentam não ter instituído uma boa governança quando as redes sociais surgiram. Com o rápido avanço da IA generativa, essa necessidade é ainda mais urgente. Os próprios criadores dessas tecnologias estão clamando por regulamentação. Em maio, mais de 350 executivos, acadêmicos e engenheiros envolvidos no trabalho com IA firmaram uma declaração que dizia: “Mitigar o risco de extinção pela inteligência artificial deve ser uma prioridade global ao lado de outros riscos em escala social, como pandemias e guerra nuclear”. 3 Toda essa atenção para o perigo de permitir que tecnologias (e seus criadores) ditem as regras gera um salutar debate sobre como garantir que a sociedade esteja no comando da tecnologia, e não o contrário. A Omidyar Network defende há muito o poder e o potencial da tecnologia digital e já investiu mais de US$ 750 milhões em startups de tecnologia dedicadas a melhorar a vida das pessoas. Lições tiradas desse trabalho mostram que, a fim de beneficiar a maioria, e não só uns poucos, tecnologias devem equilibrar inovação com responsabilidade social, independentemente de serem introduzidas por indivíduos, por empresas ou pelo poder público. Canalizar o poder da tecnologia para o bem comum requer certo consenso sobre o que seria uma sociedade ideal. Apesar da cres-

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cente polarização do país, a maioria dos americanos defende em tese a democracia representativa e os três direitos fundamentais – à vida, à liberdade e à busca da felicidade – entronizados na Declaração de Independência do país. Liberdade e garantias individuais, entre as quais as liberdades de expressão, de religião e de reunião, além do direito à privacidade, são fundamentais para o ideal de país da maioria dos americanos. O mesmo pode ser dito de igualdade para todos, de um sistema legal justo e de uma economia forte. Há, também, amplo consenso em torno da necessidade de investir na primeira infância, de garantir acesso a necessidades básicas como saúde, alimentação e moradia e de cuidar do planeta. Criar um sistema de tecnologia digital pautado por esses valores seria uma oportunidade para que a sociedade promovesse seus interesses e garantisse um sistema com melhores resultados no futuro. Coletiva, essa ação requer um amplo debate sobre a natureza da sociedade almejada pelos americanos e o papel da tecnologia digital nessa visão. Para iniciar a discussão, sugiro que filantropos, tecnólogos, empreendedores, legisladores, acadêmicos, ativistas, líderes de movimentos diversos, estudantes, consumidores, investidores e todos aqueles com um interesse no futuro da nação comecem, desde já, a fazer cinco perguntas.

1.

Para criar um sistema de tecnologia digital que contribua para a sociedade, que premissas, posturas e ideias precisam mudar? IDEIAS IMPORTAM. Elas surgem de valores e sua influência se estende no tempo. Elas geram debates sobre o que é possível e ajudam a determinar que políticas irão vingar ou não. As ideias que hoje norteiam a economia americana – e, portanto, boa parte do sistema atual de tecnologia digital – surgiram no fim da década de 1970 entre um grupo relativamente reduzido de acadêmicos, políticos, dirigentes empresariais, indivíduos de patrimônio elevado e outros grupos de elite que as disseminaram por toda a sociedade. Para eles, a liberdade do indivíduo e o “livre” mercado estavam acima de tudo. Eficiência econômica, Estado mínimo, carga tributária baixa, lucro para investidores e responsabilidade individual viraram a norma, erradicando da economia qualquer outro propósito. Como a tecnologia digital ganhou força durante o auge dessa filosofia de livre mercado, autoridades reguladoras encararam sua governança (ou a ausência dela) com um certo laissez-faire – para o infortúnio de consumidores, comunidades e da sociedade em geral. Um exemplo é o da primazia do acionista: a ideia (do inglês shareholder primacy) de que, em uma empresa, o interesse de investidores deve estar acima de todos os demais. Essa tese prioriza o lucro de empresas (inclusive de tecnologia) e de investidores em detrimento do bem-estar de trabalhadores, da democracia, do tecido social da nação e até do planeta. Para piorar, o paradigma econômico atual incentiva a privatização do lucro e a socialização do prejuízo – e minimiza a cobrança de responsabilidades. Firmas de private equity e grandes investidores investem em empresas para ter o máximo retorno possível, ainda que isso signifique cortar

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tas de aplicativos como Uber e Lyft, empregos, salários ou benefícios. entregadores e outros trabalhadores Quando um negócio dá certo, essas da chamada gig economy, por exemfirmas e seus investidores colhem plo, poderiam usar esse recurso os lucros. Já quando a coisa vai mal, digital para agrupar seus dados e o custo é socializado, deixando emfazer pressão coletiva por remunepresas até então sadias ou startups ração justa e melhores condições promissoras em bancarrota ou em de trabalho. situação precária. Para reimaginar o sistema de Em vez de aceitar a realidade Como muitos dos sistemas tecnologia digital e garantir que atual como inevitável, a sociedade preste um serviço melhor à sociepode lutar por um novo paradigma atuais, a tecnologia dade, é preciso investigar mais os econômico, que inclua o setor de digital foi moldada por prós, os contras e as limitações tecnologia digital e priorize o bemum universo limitado de dados. É útil ver o que parte do estar do indivíduo, da comunidade e mundo já está fazendo. A União Euda sociedade. Para que o novo sistede vozes – basicamente ropeia adotou um admirável papel ma de tecnologia digital contribua as dos homens brancos de ponta com duas leis para a criapara a sociedade, é preciso começar heterossexuais. Nos EUA, ção de um espaço digital mais segupor substituir ideias ultrapassadas ro. Chamadas Digital Services Act e, em muitos casos desacreditadas, 80% dos executivos de (DSA) e Digital Markets Act (DMA), por novas, que reflitam a realidade tecnologia são homens e elas resguardam direitos fundado mundo atual. Um dossiê de 2020 82%, brancos; apenas 3% são mentais de usuários e nivelam as da Omidyar Network – “Our Call to regras do jogo para empresas. Um Reimagine Capitalism in America” latinos e só 2% são negros dos aspectos centrais da DSA são os [um chamado a reimaginar o capinovos critérios de transparência e talismo nos Estados Unidos] – desmais poder para o cidadão, com mecreve as cinco principais áreas da canismos para facilitar a denúncia economia a serem abordadas para de conteúdo ilegal. Já a DMA inclui a criação de um novo ideário econormas voltadas a promover a concorrência e garantir que emprenômico fundado no bem-estar do indivíduo, da comunidade e da sas tenham acesso equânime a mercados digitais. sociedade e do qual todos possam efetivamente participar. Reformular o sistema de tecnologia digital para promover uma sociedade mais equânime, inclusiva e resiliente significa que empresas de tecnologia terão de fazer mais do que simplesmente gerar e maximizar lucros. Um sistema que promova o ideal americano de liberdades e garantias individuais deve priorizar o traComo promover a inclusão para criar um tamento e a proteção de dados pessoais. Hoje, o consumidor não sistema de tecnologia digital mais forte? tem um meio simples de saber como seus dados estão sendo vendidos ou compartilhados. Modelos de negócios tratam dados como “NÓS NOS COMPROMETEMOS MUTUAMENTE COM NOSSAS VIDAS, NOSmercadoria, entregando o ouro a quem pagar mais. Desequilibrada, SAS FORTUNAS E NOSSA HONRA SAGRADA.” Com esse desfecho, a Deessa proposta de valor ignora os produtores de dados – nós todos claração de Independência dos Estados Unidos afirma que a nação – e sublinha o poder que empresas detêm sobre a informação do depende da contribuição de todos os seus cidadãos. Uma economia cidadão. Consentimento, cookies e políticas de privacidade não remais democrática deve dar a todos – incluindo trabalhadores, consolvem o problema. Quem nega o consentimento (faz o opt-out) é sumidores, pequenas empresas e famílias – igual capacidade de se injustamente punido, pois é excluído de participar plenamente do fazer ouvir e de progredir. mundo digital do qual a vida de cada um de nós depende. O sistema Como muitos dos sistemas atuais, a tecnologia digital foi moldaengana, coage e subtrai do público. da por um universo limitado de vozes – basicamente as dos homens A adoção de uma nova mentalidade econômica e de modebrancos heterossexuais. Nos Estados Unidos, 80% dos executivos los de negócios sem caráter extrativista traz a oportunidade de de tecnologia são homens e 82%, brancos; apenas 3% são latinos reimaginar a informação e de determinar maneiras de calcular e e só 2% são negros. Mulheres, pessoas de cor, LGBTQIA+, jovens compartilhar o valor econômico desses dados para promover uma e pessoas com deficiências e necessidades especiais são reiteradaabordagem mais justa. Em vez de enxergar a informação como mente sub-representados, seja como criadores ou como usuários. mercadoria, a sociedade deve encará-la mais como um bem públiA baixa representatividade e a subamostragem desses grupos co cujo uso promove o interesse comum. A organização sem fins nos dados que alimentam a IA fazem com que a tecnologia digital lucrativos Worker Info Exchange, que ajuda o trabalhador a acesseja otimizada para uma parcela estreita do mundo, podendo, porsar e a usar em benefício próprio toda informação coletada sobre tanto, agravar preconceitos. Um exemplo: programas de reconheele no trabalho, já vem colocando essa visão em prática. Motoriscimento facial usados por órgãos de segurança pública para ace-

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lerar a identificação de suspeitos acertam mais no caso de rostos masculinos do que de femininos e no de gente de tez branca do que de indivíduos de pele mais escura. Para que a tecnologia digital promova uma sociedade justa e imparcial, aqueles que a concebem, financiam, criam, administram e desenvolvem devem ser um reflexo da sociedade que o sistema visa apoiar. Já há investidores, como a Kapor Capital, apoiando iniciativas para criar uma força de trabalho diversificada nesse setor e, com isso, contemplar não só interesses comerciais, mas sociais também. Uma coalizão de fundações filantrópicas, centros de estudo e universidades também vêm investindo pesado em tecnologias de interesse público. Parte do trabalho desse grupo é promover a contratação de mais negros no setor de tecnologia e incluir na campanha instituições de ensino superior tradicionalmente voltadas à população negra, como a Universidade Howard. Já organizações da sociedade civil, como a Black & Brown Founders, vêm se unindo a investidores para diversificar o universo de fundadores de empresas de tecnologia. O setor de tecnologia digital pode e deve adotar práticas de contratação afirmativas, obrigações contratuais e novos padrões, bem como atender a apelos do público por mudanças. Um universo mais amplo e diverso de atores em todos os níveis do sistema – entidades normativas, reguladores, governantes e organismos internacionais – irá garantir que decisões sobre o futuro da tecnologia reflitam interesses, necessidades e contribuições de todos os interessados.

3.

Como usar ética e transparência para aumentar a capacidade da tecnologia digital de servir à sociedade? PARA SERVIR À SOCIEDADE, A TECNOLOGIA DIGITAL deve ser pautada

por códigos éticos claros e normas erguidas sobre valores comuns a todos. “Temos buscado, reiteradamente, adaptar práticas de mercado e regulamentos para que novas tecnologias (criptomoedas, fintechs) se encaixem em velhas normas e regras”, disse Gene Kimmelman, que foi assessor especial do Departamento de Justiça americano e presidente do grupo de defesa da internet aberta Public Knowledge. “Para começo de conversa, o certo seria tentar descobrir se as implicações éticas da tecnologia são tão profundas a ponto de que sua adoção devesse ser questionada. Não temos um ‘nuclear freeze’ [uma moratória] ou um mecanismo automático para reverter esse processo”, completou. A maioria das grandes descobertas dos séculos 19 e 20, em áreas como biomedicina, genética, saúde, agricultura e transgênicos, é regulada por um arcabouço ético. Há décadas estudiosos discutem a ética da energia nuclear. Seu potencial de reverter o impacto de mudanças climáticas deflagrou um debate totalmente novo acerca de se haveria um nível “moralmente aceitável” de produção de energia nuclear. No plano da moral, a tecnologia digital não deveria ser exceção. Vieses na inteligência artificial e a capacidade da IA generativa de evoluir de modo imprevisível apontam para a necessidade de sistemas digitais serem norteados por um arcabouço ético. Hoje, vas-

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tas esferas da sociedade são alimentadas, sustentadas e governadas por algoritmos, conferindo à tecnologia um impacto econômico e social descomunal. Para decidir se concede a alguém liberdade mediante fiança, por exemplo, um juiz pode usar o risco de reincidência calculado por algoritmos alimentados por décadas de históricos criminais. Instituições de crédito imobiliário podem determinar juros com base no risco de calote previsto por algoritmos. Serviços sociais públicos podem contar com a ajuda de algoritmos para decidir a quem conceder auxílio financeiro.4 Um sistema de tecnologia digital que promova uma sociedade justa e equânime deve purgar algoritmos de toda forma de preconceito (velhos, novos, técnicos). Arcabouços éticos são fundamentais também para enfrentar desafios ligados a outras tecnologias digitais. O software de código aberto (“open source”) na base da internet, por exemplo, move grande parte de nossa infraestrutura crítica – redes de energia elétrica, hospitais, sistemas de telecomunicações e transporte, telefonia, automóveis e aeronaves que tornam possível o comércio e a indústria. Esse software tem o poder de conectar comunidades, fomentar inovação e colaboração e inserir transparência e responsabilização no sistema. Uma vez que o código aberto impede que se controle o que os outros fazem com o código original, qualquer um pode, com mínimas restrições, utilizar, recombinar ou aplicar comercialmente esse código em novas aplicações tecnológicas. Só que essa mesma abertura, embora promova a inovação, também traz riscos e vulnerabilidades que devem ser abordados. Um ator mal-intencionado pode usar o código para fins malévolos ou alterá-lo para minar sua segurança e estabilidade. Comunidades destituídas de uma figura central de autoridade, como organizações autônomas descentralizadas (DAOs, na sigla em inglês), foram projetadas para respeitar os interesses de todos os stakeholders do grupo sem que haja controle por uma única parte. Elas são o alicerce de boa parte das inovações em criptomoedas e Web 3.0 ocorrendo hoje. Sua popularidade crescente torna ainda mais importante que haja diretrizes éticas para garantir a confiança do público e uma boa gestão da reputação. Abordar considerações éticas envolvendo tecnologias de voz e biometria (consentimento, tratamento de dados e possíveis vieses, por exemplo) é crucial para evitar uso indevido ou discriminação. Diretrizes éticas também ajudariam a garantir que a criptografia – indispensável para a proteção de dados – não impeça o acesso legítimo por órgãos de segurança pública. Certas empresas de tecnologia já têm especialistas em ética e profissionais que criam pensando no ser humano. É uma tendência animadora e louvável. No entanto, essas equipes devem ser incentivadas a fazer avaliações honestas e precisam ter autonomia para lidar com possíveis desvios. A maioria das companhias ainda opera com uma ótica restrita ao produto, e não com uma perspectiva mais ampla sobre o efeito dessa ou daquela tecnologia no mundo real. A fim de incentivar indivíduos responsáveis a fazer perguntas difíceis e para considerar de antemão as implicações de seus produtos, fazendo eventuais correções, a Omidyar Network criou, em parceria com vários colaboradores, um guia digital. O Ethical Explorer Pack traz ferramentas e recursos para a revisão de práticas internas, bem como lições tiradas da experiência de outras empresas. O poder público pode dar sua contribuição ao exigir de potenciais provedores a adesão a normas e condutas éticas comprová-

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veis que levem a melhores resultados. Nos EUA, organizações da sociedade civil como Trust & Safety Professional Association, Integrity Institute, Whistleblower Aid, Coworker.org e Algorithmic Justice League, ao lado de associações de classe como o Institute of Electrical and Electronics Engineers, também têm um importante papel a desempenhar na definição de novos padrões. Todo esse arcabouço deveria levar em consideração o impacto indireto de tecnologias digitais em indivíduos e comunidades (incluindo a substituição de trabalhadores por automação e IA, o impacto ambiental negativo de data centers e criptomoedas e a erosão da privacidade e da confiança devido à disseminação e venda de dados pessoais). O consumidor também deve fazer sua parte na definição e exigência de um código de ética mais forte. À medida que nativos digitais assumem a dianteira, é preciso começar logo cedo, ainda na sala de aula, a incutir na criança a necessidade de considerações éticas e escolhas normativas que levem a tecnologia digital a promover uma sociedade ideal. Essa nova compreensão pode, com o tempo, levar a uma demanda generalizada por mudanças radicais na governança da tecnologia digital. Para que normas éticas tenham adoção mais ampla, é preciso mais transparência. Outros setores, como o da moda e o da ali-

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mentação, sugerem um modelo para a resposta a esse clamor, disponibilizando informações sobre suas cadeias de suprimentos. Ao exigir saber como seus dados pessoais são coletados, utilizados, armazenados e compartilhados, o consumidor pode submeter empresas de tecnologia digital a um escrutínio similar. A Consumer Reports criou o aplicativo Permission Slip, que traz informações sobre o tratamento dos dados e permite ao usuário solicitar que uma companhia exclua ou deixe de vender suas informações pessoais. Hoje, o debate sobre a IA generativa passou a ver a transparência e auditorias como possíveis antídotos contra eventuais prejuízos à sociedade. Criadores de Large Language Models (LLMs) resistem, no entanto, e declaram ser muito difícil demonstrar como esses modelos tomam decisões. É difícil acreditar nesse argumento. Afinal, já há tecnologias para que empresas privadas compartilhem dados com o poder público. É o que a SEC (Securities and Exchanges Comission, órgão que regula o mercado de ações nos EUA) faz com dados financeiros por meio da plataforma Edgar, que pode ser acessada por qualquer pessoa para pesquisar e baixar (gratuitamente) documentos de registro de empresas e demonstrativos financeiros, entre outros. Mas, para que isso ocorra em grande escala, é preciso que a sociedade exija. Muitas questões técnicas exigem transparência: algoritmos, dados e privacidade; práticas empresariais e trabalhistas, incluindo direitos humanos; manufatura; procurement; considerações ligadas a contratação e diversidade, equidade e inclusão; e danos e infrações. A ampliação da transparência também requer a adoção de código aberto, maior interoperabilidade e novos protocolos que promoverão, naturalmente, a troca de conhecimento entre distintos atores (incluindo a potencial criação de sistemas que permitam às pessoas ver onde seus dados estão sendo vendidos ou compartilhados). Disponibilizar mais dados (em caráter anonimizado) para profissionais qualificados no mundo acadêmico, na imprensa, na sociedade civil e em órgãos governamentais irá melhorar a compreensão de tendências atuais, embasar ações futuras, proteger o interesse público e facilitar a cobrança de providências de partes responsáveis. Em 2022, o centro de estudos progressista Demos, apoiado pela Omidyar Network, publicou o estudo “The Open Road”, pesquisa seminal sobre sistemas de código aberto sustentáveis. “Mais abertura significa mais inovação”, concluiu o material. “Mais transparência significa mais vigilância, o que significa menos brechas de segurança ignoradas. A abertura contribui para o desenvolvimento de ‘boas tecnologias’ cuja concepção incorpore a proteção à privacidade e à segurança, entre outras”.5 A abertura lança luz sobre falhas no código e no desenho, levando a soluções e aplicativos mais robustos. Em suma, a abertura promove a inovação e poderia contribuir para um sistema de tecnologia digital que preveja freios e contrapesos para o consumidor e favoreça, assim, a equidade e a justiça.

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todos estudiosos do impacto da IA na sociedade – lançaram uma nova iniciativa de governança da IA, o Catai (acrônimo em inglês de Centro para o Avanço da Inteligência Artificial Confiável), com Qual o papel de políticas públicas na criação de apoio financeiro da Omidyar Network. A meta é contribuir para a um novo sistema de tecnologia digital? criação de modelos globais de governança da IA mais confiáveis por meio de investimentos em pesquisa básica e aplicada. Ao planejar intervenções regulatórias, o poder público preciAUTORIDADES ELEITAS para defender o Estado democrático de direisa saber avaliar a importância sistêmica, a escala, a maturidade e to e o bem-estar de seus cidadãos podem ajudar a pautar a transipossíveis efeitos negativos da tecnologia na vida real. E, se necesção para um sistema de tecnologia digital mais responsável. Hoje, sário, adaptar ou repensar marcos regulatórios existentes ou adono entanto, boa parte da classe política está financeiramente atretar teorias e estruturas para fazer frente a modelos de negócios lada a empresas de tecnologia ou sob excessiva influência do setor. cujo custo para o consumidor não é explícito. Facebook e Google, As cinco maiores delas – Apple, Amazon, Microsoft, Alphabet e por exemplo, dão seu produto de “graça”, mas precisam ser de Meta – gastam cerca de US$ 69 milhões por ano em atividades de alguma forma fiscalizados para evitar prejuízos ao consumidor e lobby só nos Estados Unidos. concentração de mercado. Na ausência de uma política eficaz de concorrência, o valor de Nos Estados Unidos, o poder público tem feito alguns avanços mercado combinado dessas cinco empresas chegou, em agosto de importantes. Nos últimos meses, o governo intensificou a campa2022, a quase US$ 8,5 trilhões. É mais do que o PIB da Alemanha nha para impor freios ao setor digital com uma série de medidas ou do Japão. Isso gera uma concentração de poder desmedida, voltadas a criar uma sociedade mais saudável e vibrante. Projetos inibindo a inovação e tolhendo a capacidade do Estado de fazer de lei em tramitação no Congresso pretendem tornar a tecnologia essas empresas agirem com base nas necessidades da sociedade digital mais segura para o público infantil, com ações para reduou respaldarem os valores da nação.6 zir riscos de cyberbullying e publicidade dirigida, por exemplo. A solução não é opor inovação a regulamentação. Um sisteEm maio, o governo Biden tomou o que classificou de “medidas ma de tecnologia digital que promova os ideais de uma sociedade que promoverão ainda mais a inovação responsável em inteligêndemocrática precisa de ambas. A regulação não deve, necessariacia artificial no país e garantirão os direitos e a segurança da pomente, ser inimiga do crescimento ou da inovação. A atividade pulação”. Entre as medidas está a liberação de US$ 140 milhões bancária, por exemplo, é uma das mais reguladas do mundo, mas para criar sete institutos nacionais de pesquisa em IA, destinados nada disso impediu que fintechs ajam dentro da lei e sejam um a incentivar a colaboração entre instituições de ensino superior, dos grandes destinos do capital de risco. A biomedicina é outro órgãos federais e indústria para garantir que os avanços no tema setor fortemente regulado; não obstante, em menos de nove mesejam “éticos, confiáveis, responsáses toda uma nova classe de vacinas veis e voltados ao bem público”. de mRNA contra a covid foi criada e Com certo atraso, estados tamlançada. Com incentivos melhores e O modelo atual de bém começam a agir. Em uma iniregulamentação, o setor de tecnoloinvestimento prioriza ciativa para proteger a população gia digital vai poder criar produtos, infantil, a Califórnia aprovou uma modelos de negócios e mecanismos a aquisição de mais e lei, o Age-Appropriate Design Code de concorrência inovadores, que mais usuários para fazer Act, para exigir que plataformas dipromovam o bem comum. a empresa crescer e dar gitais considerem o que é melhor Nos Estados Unidos, onde agênpara o público infantil e adotem cias estatais, Congresso e Casa retorno. O investidor medidas de privacidade e segurança Branca trabalham para determiaceita bancar operações para preservar não só a saúde mennar qual seria a melhor abordagem deficitárias para minar tal e física da criança, mas também regulatória, falta ainda definir a seu bem-estar. Outros estados vão estrutura de um possível ente reconcorrentes que estão pelo mesmo caminho. Com mais de gulador e a que alçada pertenceria. tendo receita e lucro e 600 milhões de crianças circulando A complexidade e a superposição usando isso para crescer. pela internet, o setor precisa condas questões em pauta podem levar siderar a segurança e a privacidade agências como a Comissão FedeNo modelo bancado desse público desde a concepção ral do Comércio (FTC, na sigla em pelo capital de risco, a de seus produtos, sendo chamado a inglês) a acolher uma missão mais empresa está mais voltada responder por isso em todas as esestrita e uma autoridade mais clara feras do poder público. e, quem sabe, até originar a criação a agradar o investidor do Nos Estados Unidos, quase 20 de instituições, com novos poderes que a satisfazer as pessoas, estados já discutem amplas leis de e funções. Em uma cúpula da ONU mercados e a sociedade proteção à privacidade. A maioria em julho, denominada ”Inteligência desses projetos daria ao consumiArtificial para o Bem”, Gary Marcomo um todo dor o poder de acessar, excluir ou cus, Karen Bakker e Anka Reuel –

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corrigir seus dados pessoais na internet, optar por não receber propostas comerciais e publicidade dirigida ou exigir consentimento prévio para o tratamento de informações sensíveis. Com a evolução contínua da tecnologia, com mudanças dia após dia, normas e leis precisam se antecipar ao que está por vir, em vez de só correr atrás das mudanças.

5.

Qual o modelo financeiro ideal para incentivar um sistema digital saudável? TODA GRANDE REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA costuma vir acompanha-

da de uma revolução financeira. Não é diferente com a revolução digital: já há todo um novo aparato de investidores, sistemas e incentivos voltados a fomentar a tecnologia digital, o que fez surgir uma cultura e um motor de inovação e investimentos que a um só tempo ancora e faz avançar o setor. Em 2022, fundos de capital de risco investiram US$ 1,37 bilhão em 78 transações envolvendo IA generativa – cifra quase idêntica ao total aportado a essa mesma modalidade de IA nos cinco anos anteriores.7 Mas há problemas. Para satisfazer investidores em busca de retorno imediato, tanto o modelo de financiamento quanto a cultura hoje reinantes priorizam o crescimento a qualquer custo. “Chegamos a um ponto no ecossistema de startups em que, para grandes fundos de VC [capital de risco, na sigla em inglês], uma startup que dê um resultado de US$ 1 bilhão é praticamente insignificante”, diz Evan Armstrong, ex-investidor da área. O próprio Armstrong completa: “Para multiplicar três ou cinco vezes o investimento de um fundo, uma firma de VC busca startups que sejam avaliadas em mais de US$ 50 bilhões na estreia em Bolsa [...]. Se pegarmos todo o universo de empresas de tecnologia de capital aberto, há apenas 48 com um valor de mais de US$ 50 bilhões” 8. Isso significa que o empreendedor precisa assumir riscos cada vez maiores para garantir que seu produto atinja uma posição de liderança no mercado. A tese da “primazia do acionista” não incentiva de forma alguma os investidores a considerar possíveis impactos na sociedade. Para piorar, o modelo atual de investimento prioriza a aquisição de mais e mais usuários para fazer a empresa crescer e dar retorno. Ou seja, o investidor aceita bancar operações deficitárias para minar concorrentes que estão tendo receita e lucro e usando isso para crescer. No modelo bancado pelo capital de risco, a empresa está mais voltada a agradar o investidor do que a satisfazer usuários, comunidades, trabalhadores, mercados e a sociedade como um todo.9 Precisamos urgentemente de modelos de financiamento privado de horizonte mais largo que aliviem a pressão pelo lucro imediato e levem em conta outros fatores além do retorno financeiro. Grandes investidores institucionais – incluindo fundos de pensão, fundos patrimoniais de universidades e fundos soberanos, que muitas vezes já representam interesses públicos maiores – podem e devem usar sua influência para incentivar o setor de capital de risco a agir de forma mais responsável. Entre fontes de capital, já aparecem inovações envolvendo modelos de geração de receita, estruturas societárias e alocação

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de retornos e dividendos – embora ainda sejam uma notável exceção, não a norma. Quem propôs uma nova abordagem foi a Indie. vc, do investidor Bryce Roberts, bancada, inicialmente, por gente como Pierre Omidyar, que criou o eBay e é um dos fundadores da Omidyar Network. Em vez de liberar grandes somas para ajudar um empreendedor a tirar uma ideia do papel, a Indie.vc optou por fazer investimentos menores em startups promissoras, mas já de pé – incluindo várias de regiões ou grupos sociais comumente ignorados. E sem adquirir, de saída, uma participação no negócio. A ideia era permitir que uma empresa já existente se concentrasse em crescer, não em dar lucro para seus investidores. No final, a Indie.vc não conseguiu atrair investidores suficientes para crescer. A adoção de modelos de financiamento menos imediatistas só tem a contribuir para inovadores que incorporem os valores necessários para aprimorar o sistema de tecnologia digital – entre eles a proteção de direitos, a defesa da justiça e o incentivo a tecnologias voltadas ao bem social.

Um mundo melhor é possível NA HISTÓRIA DO PROGRESSO tecnológico, a tecnologia digital – e, agora, a IA generativa – talvez seja singular. Seu crescimento foi rápido, a tecnologia permeia toda a sociedade e uma série de atividades sociais básicas hoje depende dela. Sua capacidade de autoaprendizado, suas engrenagens e complexidade escapam à compreensão da maioria. Tudo isso, somado ao temor de riscos existenciais, contribui para uma sensação de inevitabilidade, de que nada pode ser feito para alterar seu curso. É preciso combater essa narrativa. É possível, sim, conduzir, influenciar e governar a tecnologia digital em prol de uma sociedade democrática. Para isso, devemos deixar de medir o sucesso simplesmente pela velocidade e escala dos avanços na tecnologia digital e priorizar sua contribuição para o desenvolvimento de uma visão positiva para a sociedade. O MIKE KUBZANSKY é CEO da Omidyar Network. NOTAS

1 Elena Bozzola et al., “The Use of Social Media in Children and Adolescents:

Scoping Review on the Potential Risks” [O uso de mídias sociais por crianças e adolescentes: uma revisão de escopo dos riscos potenciais], International Journal of Environmental Research and Public Health, vol. 19, no. 16, 2022. 2 Kaveh Waddell, “Why Your Education and Job Could Mean You’re Paying Too Much for Car Insurance” [Por que seu grau de escolaridade e trabalho o fazem pagar um seguro de carro mais caro], Consumer Reports, January 28, 2021. 3 Center for AI Safety, “Statement on AI Risk” [Declaração sobre riscos de IA]. 4 Frederic Gerdon et al., “Social Impacts of Algorithmic Decision-Making: A Research Agenda for the Social Sciences” [Impactos sociais da tomada de decisão por algoritmos: uma agenda de pesquisa para as ciências sociais], Big Data & Society, January-June, 2022. 5 Alex Krasodomski-Jones et al., “The Open Road: How to Build a Sustainable Open Infrastructure System” [A via aberta: como construir um sistema de código aberto sustentável], Demos, January 2022. 6 Nandita Bose, “Scathing Congressional Report Suggests Big Trouble for Big Tech If Biden Wins” [Relatório parlamentar severo sugere graves problemas para as big techs, se Biden vencer], Reuters, October 7, 2020. 7 Marina Temkin, “VCs Try to Parse through the ‘Noise’ of Generative AI” [VC tenta analisar através do 'ruído' da IA generativa], Pitchbook, December 23, 2022. 8 Evan Armstrong, “Venture Capital Is Ripe for Disruption” [O capital de risco está pronto para a disrupção], Every, October 27, 2022. 9 Anil Dash, “12 Things Everyone Should Understand About Tech” [12 coisas que todos deveríamos entender sobre tecnologia], Medium, March 14, 2018.

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A falta de confiança e a insatisfação dos pacientes com o setor de saúde são crescentes. Para melhorar a experiência do usuário e alavancar os indicadores de equidade nessa área, as empresas e os profissionais terão de adotar uma postura mais holística no atendimento ao público

por uma cultura do cuidado NO MUNDO TODO, OS SISTEMAS DE SAÚDE ESTÃO FALHANDO EM OFERECER SERVIÇOS CONFIÁVEIS E SATISFATÓRIOS AOS PACIENTES. A confiança na assistência de saúde chegou a uma taxa de 66% nos 27 países pesquisados em 2022 pelo Barômetro de Confiabilidade Edelman. Nos Estados Unidos, onde a maioria da população acredita que o sistema de assistência à saúde esteja em crise, a Deloitte relata que a insatisfação é a maior já registrada e que disparidades no grau de confiança têm forte correlação com fatores raciais e étnicos. Embora as condições sejam propícias para uma mudança sistêmica, métodos e ferramentas antigos não nos levarão a atingir a equidade na saúde. Em vez disso, proponho uma “cultura do cuidado”, uma visão holística, voltada para o ser humano e ciosa de aspectos culturais, como meio para reverter a queda de confiança e de satisfação e a desigualdade no setor.

POR WHITNEY EASTON I LU S T R AÇ Õ E S

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A adoção de uma cultura do cuidado requer, primeiro, que os serviços de assistência à saúde adotem uma visão mais diversificada sobre o que é uma cultura. O discurso vigente no setor se centra principalmente nas discussões sobre competência cultural – entendida, basicamente, como uma barreira espinhosa que os profissionais de saúde precisam vencer por meio de treinamento. Nesse contexto, a visão das organizações é muito limitada, porque elas não percebem o papel que desempenham como criadoras ativas de uma cultura que afeta todos os envolvidos no sistema, desde os pacientes e seus familiares até os médicos e suas equipes. E se a cultura fosse passível de inovação, como a tecnologia? Para os antropólogos, a cultura não é estática. A antropologia da saúde a define como “as formas padronizadas por meio das quais vidas individuais se desenrolam em contextos de grupo dinâmicos e multifacetados”, o que sugere que os grupos e identidades não são monolíticos, mas heterogêneos, e se sobrepõem.1 Uma visão antropológica da cultura também ilumina a criação de sentidos em consultas médicas e como isso informa os processos de cura. Antropólogos da saúde já mostraram como as ferramentas que os profissionais da cura utilizam possuem tanto funções práticas como simbólicas. O jaleco branco do médico, por exemplo, é um símbolo de sua expertise, servindo para despertar confiança nos pacientes. Tais simbologias criam e legitimam a fé do paciente em seu médico, o que molda positivamente todo o processo de diagnóstico, tratamento e cura. Considerando que a cultura se constrói socialmente e é, em essência, dinâmica, como os sistemas de saúde podem criar uma cultura de cuidado que traga uma melhor experiência e melhores resultados para o paciente? Neste artigo apresentamos quatro vetores de mudança que podem transformar o setor: atendimento médico centralizado, a fim de humanizar a assistência; maior autonomia do paciente, para consultas mais produtivas; melhor compreensão e mais respeito entre médico e paciente, para aumentar a satisfação e gerar confiança; atendimento que leve em conta o contexto e a experiência, a fim de atingir populações marginalizadas.

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“Atenção ao atendimento”

CUIDADO É A COLA HUMANA QUE UNE FAMÍLIAS, comunidades e sociedade”, afirma o antropólogo da saúde e psiquiatra Arthur Kleinman, em seu livro, The Soul of Care (A alma do cuidado, de 2020, sem tradução no Brasil). “O cuidado oferece uma alternativa à forma como vivemos e a quem somos. Mas ele tem sido negado e desvalorizado, sendo sacrificado em nome da economia e da eficiência”. As observações de Kleinman revelam as fortes tensões existentes entre os cuidados aos pacientes e o lucro perseguido pela indústria de assistência à saúde. A crítica de Kleinman nasce de sua própria experiência de ter que suprir falhas no tratamento de Alzheimer de sua mulher. Quando as organizações depreciam o atendimento médico, elas prejudicam não só a experiência do paciente, mas também a satisfação do profissional de saúde. A seguir, fazemos quatro recomendações por uma cultura do cuidado. Elas se baseiam nos estudos de Kleinman e no trabalho teórico e prático de outros pesquisadores.

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O atendimento médico deve ser a principal preocupação dos profissionais. | Nas empresas de saúde que visam lucros, os médicos

são cada vez mais pressionados a reduzir o tempo das consultas. Nos Estados Unidos, a duração média é de 13 a 16 minutos. Em geral, esse é o tempo máximo que as seguradoras reembolsam aos prestadores de serviços. A título de comparação, um médico de família, por exemplo, gasta, em média, mais de 16 minutos com o prontuário eletrônico de saúde (EHR, na sigla em inglês) para cada consulta padrão com pacientes adultos. A burocracia consome a maior parte das atividades do médico e contribui para seu burnout. Para que os médicos possam dispor de mais tempo para os pacientes, é preciso que as empresas de assistência médica aloquem mais recursos. Pesquisas mostram que consultas mais longas significam mais atenção a problemas psicossociais, menos e melhores prescrições, menos encaminhamentos para especialistas e taxas de retorno mais baixas, melhorando os indicadores de satisfação do paciente. Esses efeitos sugerem mais confiança e conexão com os médicos. Pesquisas compiladas pela psicóloga clínica Shamini Jain mostram que os tratamentos em que o paciente recebe mais apoio dos profissionais de saúde são mais bem-sucedidos. Kleinman e Jain mostram que, mesmo nas empresas de assistência menos flexíveis com o tempo, os médicos podem melhorar a experiência fazendo contato visual, utilizando linguagem corporal tranquilizadora, gestos solidários, ouvindo atentamente, explicando de forma clara e compreensível o diagnóstico e o tratamento e empregando palavras encorajadoras. O atendimento deve ser uma interação, não uma transação. | Alguns fatores fazem o atendimento parecer mais uma transação comercial que uma interação médica. Entre eles, plataformas digitais mal projetadas e contatos distantes, nos quais o paciente sente mais frieza que acolhimento. As tecnologias de diagnóstico e tratamento consomem cada vez mais tempo do médico, substituindo ou comprometendo seriamente a interação direta com o paciente. O atendimento também não é levado em conta quando se projetam ferramentas e tecnologias clínicas como o EHR. Até há bem pouco tempo, não existia, na maioria das versões do EHR, espaço para observações dos médicos sobre o bem-estar emocional dos pacientes. Estas não eram consideradas informações importantes para o tratamento. No entanto, a tecnologia não precisa estar na contramão do atendimento, da construção de relacionamentos ou da experiência do paciente. Em nosso estúdio, o Artefact, criamos recentemente a plataforma Traverse, uma carteira digital de dados controlada pelos pacientes, que utiliza IA e processamento de linguagem natural para oferecer atendimento médico personalizado, culturalmente responsivo, sem comprometer a experiência do paciente. A Traverse foi criada para promover a capacidade de os profissionais de saúde utilizarem nas consultas sua habilidade de ouvir, aprender e adaptar-se a todo o espectro de valores culturais dos pacientes, práticas relacionadas à saúde e identidades multifacetadas. A plataforma oferece aos profissionais recursos relevantes e as ferramentas para tal, como acesso em tempo real à informação sobre o histórico dos pacientes e acompanhamento exclusivo e culturalmente responsivo a eles, garantindo ao médico capacitação contínua e estimulando o aprendizado e a autorreflexão.

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Todos os profissionais de saúde são parceiros no processo de tratamento. | Embora seja comum na assistência comunitária, o

atendimento colaborativo que inclui a rede de apoio direta do paciente no tratamento ainda é raro na maioria das empresas do setor. O atendimento colaborativo cria uma parceria entre a família e os profissionais da saúde para melhorar a qualidade do serviço e facilitar a transição da orientação clínica para a domiciliar. Nessa modalidade, os profissionais de saúde informam a família e as equipes de assistência sobre as expectativas do tratamento e ajudam a formar uma rede de apoio. As outras partes, por sua vez, podem ajudar os médicos informando sobre o estado clínico do paciente com base nas observações e contextos diários. Criar formas simples para incorporar às consultas o conhecimento dos familiares que cuidam do paciente pode orientar o tratamento e garantir que os pacientes recebam um pós-tratamento eficiente. O atendimento médico deveria ser uma disciplina e prática padrão nos cursos, no treinamento e na profissão. | Uma pesquisa reali-

zada nos EUA mostrou que, à medida que os alunos de medicina avançam no curso, a empatia com os pacientes diminui. A correlação sugere que o treinamento deprecia sua capacidade de cuidar e/ou que as faculdades não valorizam o atendimento ao paciente. Programas alternativos de treinamento, como a medicina social e narrativa, tentam suprir essa falha. A crescente popularidade desses programas, que hoje integram o currículo em 80% das faculdades de medicina americanas, expõe tanto as deficiências do ensino convencional como o apetite dos alunos pelo atendimento empático. Recentemente, algumas faculdades, centros de treinamento e hospitais passaram a avaliar a empatia dos alunos de medicina e suas habilidades interpessoais como fatores para ingresso e aprovação. Essas mudanças institucionais provavelmente melhorarão a satisfação profissional dos médicos, em especial a daqueles em crise moral devido à corporatização do setor. Recentemente, na revista The New York Times Magazine, o sociólogo e jornalista Eyal Press descreveu como “chaga moral” o fato de que os médicos têm de comprometer sua ética de bom atendimento por causa dos cortes de gastos promovidos por um setor movido pelo lucro. Um estudo citado por Press mostrou que mais de 70% dos médicos de prontosocorro concordam que o corporativismo crescente da assistência prejudicou tanto a qualidade do atendimento quanto sua satisfação profissional. A gestão que rastreia a produtividade horária, a exigência de que eles sejam mais ágeis e a avaliação de seu desempenho por unidades de valor relativo – usadas para estabelecer reembolsos, favorecendo assim pedidos de exames, mais lucrativos, em vez de conversas – são todas medidas que produzem efeitos negativos na satisfação no trabalho.

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Esse descontentamento médico indica que pode estar havendo uma crise de liderança. Por outro lado, os gestores dos serviços de saúde precisam se posicionar contra as justificativas apresentadas para os lucros e os problemas sistêmicos que prejudicam a eficiência e a rentabilidade no atendimento ao paciente. Além disso, os líderes precisam desafiar essas estruturas limitadoras e tomar medidas para reduzir a carga dedicada à burocracia, combatendo práticas arraigadas nas empresas de seguros de saúde.

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“Aumente a autonomia dos pacientes”

RIORIZAR O ATENDIMENTO AO PACIENTE SIGNIFICA respeitar sua autonomia e dignidade. A possibilidade de escolher o profissional de sua preferência permite que o paciente tenha certo controle de sua jornada médica. Dar-lhe mais autonomia pode facilitar seu acesso aos sistemas e melhorar sua satisfação, principalmente para pessoas socialmente excluídas. A implementação da política de escolha pelos segurados também pode ser realizada de forma fácil e rápida em locais de atendimento primário, bastando adaptar as plataformas e os processos disponíveis para incluir essa possibilidade. A escolha é importante por várias razões. O paciente pode optar, por exemplo, por um médico adequado a suas questões culturais, o que pode aumentar seu bem-estar nas consultas, facilitar a interação e reduzir o medo de preconceito. Pesquisas sugerem que pacientes se sentem mais satisfeitos com o atendimento quando o médico tem identidade racial similar à sua. Uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington mostra que pacientes negros se sentem menos à vontade com médicos brancos. Assim, a escolha pode reduzir as principais barreiras psicológicas – medo, desconfiança e desconforto – relacionadas ao atendimento médico. O desenvolvimento de bancos de dados do consumidor e de um número crescente de aplicativos que promovem melhor sintonia entre médico e paciente mostra que, cada vez mais, o paciente prefere escolher o médico. Uma pesquisa recente da Deloitte mostrou que mais da metade dos respondentes asiáticos e negros estava disposta a se deslocar mais para consultar um médico mais compatível, fosse pela identidade, cultura ou experiência. Já existem nos Estados Unidos aplicativos que atendem a essa demanda. O app Hued, por exemplo, acessa o histórico dos pacientes e procura a melhor correspondência entre o usuário e o médico, segundo necessidades culturais, físicas e mentais. O Culture Care, por sua vez, estabelece um elo entre pacientes e médicas negras. O direito de escolher o médico cria um ambiente propício para um tratamento mais eficiente por dois motivos. Primeiro, o caminho para a conexão médico-paciente – e os benefícios que dela de-

Priorizar o atendimento ao paciente significa respeitar sua autonomia e dignidade. A possibilidade de escolher o profissional de sua preferência permite que o paciente tenha certo controle de sua jornada médica e pode melhorar sua satisfação, principalmente para pessoas socialmente excluídas

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corram, incluindo melhores resultados – é fortalecido quando se evita qualquer possível viés cultural. Segundo, desperta uma melhor resposta do paciente. O processo de cura dos seres humanos ocorre de três formas: resposta autônoma (os sistemas convocados pelo corpo para recuperar a saúde ou o equilíbrio), respostas específicas (efeitos do tratamento médico) e respostas de significado (efeitos da interação interpessoal dentro do contexto da cura). As respostas de significado geralmente são subestimadas, mas revelam o papel da cultura na cura. Estudos pioneiros do antropólogo Daniel Moerman defendem que essas crenças moldam os resultados do tratamento. Ele descobriu, por exemplo, que a convicção dos médicos sobre sua capacidade e a eficácia do tratamento afeta a resposta do paciente. Em seu livro Meaning, Medicine, and the “Placebo Effect” (Significado, medicina e o efeito placebo, sem tradução em português), publicado em 2002, ele observa: “Uma vez que essas convicções são, de alguma forma, transmitidas aos pacientes e no processo os convencem o poder do médico, então elas provavelmente (dentro do limite de nossa mortalidade) serão eficazes”. E se, inversamente, as expectativas do paciente moldarem o tratamento e a cura? Uma infinidade de reações decorrentes das expectativas iniciais do paciente sobre o médico – incluindo a escolha do profissional – pode vir a definir os resultados do tratamento. Esta possibilidade deverá estimular ainda mais a indústria de assistência de saúde a apoiar a decisão do paciente. Outro aspecto importante da escolha é a localização. As opções foram expandidas durante a pandemia de covid-19, com os serviços de atendimento virtual. A flexibilidade na oferta de atendimento – em consultórios, virtual, ou domiciliar – pode fazer crescer a taxa de escolha do médico. A telemedicina, por exemplo, permite que os pacientes consultem um médico culturalmente compatível. Elas ajudam os clientes a superar barreiras como distância, custo de transporte, dispensa do trabalho e obrigações com as crianças. Em 2021, em uma amostra de 525 pessoas não brancas em pesquisa da Deloitte nos Estados Unidos, mais da metade de hispânicos e praticamente a metade dos negros e asiáticos preferiram consultas virtuais para serem atendidas por um médico culturalmente compatível. A seguir, listo práticas que gestores e criadores de sistemas de assistência à saúde devem incorporar para aumentar a autonomia dos pacientes e eliminar qualquer barreira que os impeça de escolher o médico e o local da consulta. Evite impor um “match” de cima para baixo. | Ao tomar a iniciati-

va de conectar pacientes com médicos de mesma raça, ou outras identidades, as organizações acreditam que estão agindo com responsabilidade e apoiando a diversidade e a inclusão. No entanto, muitas vezes, essas iniciativas se baseiam em estereótipos e automaticamente excluem a autonomia do paciente. Estudos sobre a compatibilização de pacientes em contextos de saúde mental e comportamental não amparam uma correspondência entre médicos e pacientes que siga fórmulas baseadas na similaridade cultural. Pesquisas antropológicas mostram que alguns pacientes temem ser julgados negativamente por um médico com o mesmo histórico cultural – por exemplo, quando um médico com similaridades culturais lida com uma doença propondo um tratamento estigmatizado ou aceitável em sua cultura.

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Analise como as desigualdades se apresentam em diferentes ambientes clínicos. | Embora possa ser importante para os pacientes

escolher profissionais de saúde culturalmente similares, a qualidade de atendimento ainda pode ser prejudicada pelas formas de discriminação estrutural que afetam negativamente os médicos. Nos Estados Unidos, em comparação com pares brancos, médicos negros, em geral, trabalham mais isolados, têm menor probabilidade de serem indicados como especialistas e enfrentam mais dificuldades para internar seus pacientes em hospitais. Eles também são vítimas de racismo em avaliações por colegas, na promoção em hospitais, nos reembolsos pelos programas do governo (Medicaid e Medicare), em processos por prática irregular, na supervisão de planos de saúde privados e na obtenção de contratos de planos de saúde com atendimento gerenciado. Muitas vezes, por causa desse racismo, os pacientes enfrentam o dilema entre ter de escolher um profissional culturalmente adequado e um atendimento de alta qualidade. Organizações de saúde precisam coletar cuidadosamente dados e monitorar padrões que possam surgir na satisfação e experiência do médico, tomando as medidas necessárias para apoiar aqueles que sofrem essas discriminações. Supere as barreiras que dificultam o acesso à escolha do médico. | O acesso dos pacientes aos serviços e aplicativos que facilitam a escolha pode não estar disponível por vários motivos – desde a falta de acesso à internet até barreiras de linguagem, analfabetismo ou diferentes capacidades. Os obstáculos de mobilidade relacionados a determinantes sociais da saúde também dificultam a escolha do paciente. Para promover equidade, as organizações precisam entender como esses fatores afetam as opções de atendimento médico, incluir pontos de acesso virtual nas comunidades e disponibilizar serviços de transporte para facilitar a escolha do paciente.

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“Melhore as relações médico-paciente” RELACIONAMENTO É A ESSÊNCIA DO ATENDIMENTO.

De modo geral, o atendimento médico mira principalmente o diagnóstico, e não a experiência do paciente com a doença. Mas a cura é um processo biopsicossocial – não apenas biológico –, no qual a vivência e o apoio são determinantes para os resultados. Isso significa que a qualidade do relacionamento médico-paciente afeta o processo de cura. As pessoas criam suas próprias “narrativas” da doença, incluindo expectativas sobre as causas, diagnósticos e o curso do tratamento. Kleinman e Moerman argumentam que os médicos precisam extrair de seus pacientes informações detalhadas para evitar a dificuldade de comunicação cultural e fundamentar o tratamento em uma compreensão mútua. A comunicação, a gestão do atendimento, a adesão e a satisfação do paciente aumentam quando a compreensão da narrativa da doença se dá entre ele, a família e os médicos. A melhora do estado de saúde depende de como os profissionais discutem os planos de tratamento com os pacientes. Quando os médicos os encorajam a fazer perguntas e tomam decisões compartilhadas, a ansiedade diminui. As narrativas da doença podem ser incorporadas no atendimento médico para melhorar a experiência do paciente e os resul-

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tados pretendidos. A medicina baseada em narrativa (NBM, na sigla em inglês) é uma abordagem que merece ampliação. De acordo com George Zaharias, especialista em educação médica, a NBM “muda o foco do médico, que passa da necessidade de resolver o problema para a necessidade de entendê-lo”, o que gera uma relação médicopaciente mais forte e resultados clínicos mais promissores. Zaharias explica que os pacientes procuram não só um alívio para os sintomas, mas também “explicações pessoal e socialmente significativas e tratamento psicossocial para a doença” que a NBM pode incluir no tratamento clínico. Alguns estudos demonstram que a abordagem ajudou a melhorar o bem-estar, reduziu a dor causada pelo câncer, aliviou a artrite reumatoide, melhorou a função pulmonar de pessoas asmáticas e aumentou a resposta imunológica depois da vacinação contra a hepatite B. Várias ferramentas e estruturas ajudam os médicos a melhorar seu relacionamento com os pacientes quanto à narrativa. Por exemplo, a estrutura de Oito Perguntas proposta por Kleinman ajuda os médicos a obter informações detalhadas e discutir abertamente o que os pacientes pensam sobre o que os aflige. A “entrevista de formulação cultural” da Associação Americana de Psiquiatria, incluída no Manual de Estatística e Diagnóstico de Transtornos Mentais (DSM-5) para ajudar os médicos a entender o contexto cultural e social de seus pacientes pode ser adaptada a outras especialidades clínicas para facilitar a compreensão do ponto de vista do paciente. Nos Estados Unidos, bases de dados clínicos, como a EthnoMed e CultureVision, concentram informações sobre crenças e práticas de saúde de diferentes grupos culturais, que podem aflorar na discussão das narrativas da doença, e apresentam sugestões para um atendimento culturalmente adequado. Já a plataforma OurNotes permite que

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os profissionais de saúde registrem memorandos que os pacientes podem acessar. Para melhorar o relacionamento médico-paciente, as organizações de assistência médica precisam oferecer aos profissionais de saúde um ambiente acolhedor e os recursos necessários. À medida que a infraestrutura e a governança para desenvolver a equidade do setor melhoram, as organizações começam a perceber que é preci-

A cura é um processo biopsicossocial – não apenas biológico –, no qual a vivência e o apoio são determinantes para os resultados. Isso significa que a qualidade do relacionamento médico-paciente afeta o processo

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A cultura do cuidado é uma visão ideal que coloca o atendimento no centro da assistência de saúde. Os pacientes se sentem empoderados quando podem escolher, eles e os médicos se sentem satisfeitos e respeitados em suas interações, e os indicadores estão em sintonia com a experiência dos pacientes so aumentar o tempo das consultas e apoiar com mais empenho certos contextos dos pacientes. As organizações precisam explorar como as ferramentas mencionadas podem ajudar os médicos a melhorar a experiência da consulta. Se houver mais incentivo na forma de treinamento na NBM ou no melhor detalhamento da narrativa da doença, o conhecimento dos médicos que não dispõem desse tipo de capacitação na faculdade de medicina pode melhorar. Embora as narrativas da doença possam melhorar a comunicação entre médico e paciente, as disparidades no tratamento não são simplesmente uma questão de diferença cultural. É importante que as organizações monitorem como as disparidades se manifestam e procurem entender as barreiras ao atendimento de qualidade. Para se comprometer com o desenvolvimento de parcerias clínicas mutuamente benéficas e não paternalistas com diferentes comunidades, é preciso refletir criticamente, a fim de entender como a dinâmica do poder influencia cada etapa da jornada do paciente. Perguntas do tipo “quais diferenças de poder podem estar presentes nessa interação?” e “como devemos trabalhar para corrigir o rumo de relacionamentos de poder desiguais nesse caso?” podem ajudar as equipes a refletir e entender como o poder funciona – e como deveria funcionar de forma mais equitativa em suas instituições.

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“Integre a competência estrutural ao atendimento”

MBORA SEJA RARO ENCONTRAR PROFISSIONAIS de saúde preparados para entender os determinantes sociais das doenças, existe uma consciência crescente de que fatores sociais e estruturais influenciam na saúde e no acesso a ela. A competência estrutural – a capacidade dos profissionais de saúde de entender e resolver as disparidades da área – está se tornando cada vez mais importante na prática da medicina. Para lidar com a crise de confiança, a insatisfação e a disparidade dos indicadores do setor de assistência de saúde, é preciso olhar além das interações individuais com as estruturas institucionais e sociais. Qualquer preconceito racial, social ou econômico é um fator importante que afeta as disparidades e os indicadores de saúde. A Deloitte estima que os determinantes sociais de saúde – como renda, local de residência e qualidade do apoio social – determinam 80% dos seus produtos. Modelos de assistência de saúde de comunidades mostram o que significa competência estrutural no atendimento médico. A assistência de saúde inclui os serviços oferecidos por uma grande variedade de especialistas que formam parcerias dentro das comunidades para oferecer assistência médica focada nas pessoas e criam sistemas resilientes. Os profissionais de saúde da comunida-

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de (CHWs, na sigla em inglês) são pessoas dignas de confiança ou convidados respeitados que, por passarem a maior parte do tempo em meio a esses grupos, entendem melhor os contextos de saúde locais, as forças sociais que lá atuam e as disparidades sociais. Os modelos de assistência de saúde em comunidades também ajudam a resolver situações nas quais a localização física de clínicas e médicos limita o acesso do paciente ao atendimento médico. Dois exemplos inovadores ilustram como usar a competência estrutural para reduzir as disparidades de saúde. A organização sem fins lucrativos Partners in Health (PIH) foi a primeira a aplicar um modelo de saúde de comunidade que melhorou radicalmente a equidade dos indicadores em alguns dos ambientes mais estruturalmente restritos e carentes de recursos no mundo. A PIH trabalhou com mais de 13 mil CHWs em dez países. No fim da década de 1980, a instituição percebeu que no Haiti os pacientes com tuberculose não se recuperavam devido às barreiras estruturais da assistência médica causadas pela pobreza extrema. A organização também comparou os resultados associados ao atendimento médico gratuito com seu próprio modelo, também gratuito, mas acompanhado por uma ampla rede de apoio socioeconômico. Os resultados foram surpreendentes: enquanto somente 56% dos pacientes foram curados e 10% morreram no primeiro grupo, no segundo o índice de cura foi de 100%. Atendimento de alta qualidade associado a um robusto apoio social tornou-se a marca registrada da PIH na abordagem da assistência de saúde comunitária. Um modelo similar foi aplicado de forma pioneira pela Commonwealth Care Alliance (CCA), organização sem fins lucrativos que oferecia à comunidade planos de saúde com serviços pagos, ilustra como o atendimento integrado e o uso efetivo de CHWs pode ter um impacto significativo nas disparidades do setor. A base de beneficiários da CCA seria classificada pela indústria de planos de saúde como “difícil” de atender: em geral eram beneficiários do Medicare e do Medicaid, culturalmente diversificados, de baixa renda e com vários problemas complexos de saúde física, social e comportamental, entre os quais se incluem trauma e necessidades especiais. A CCA acreditava que investir na assistência médica e no apoio social que promovesse o bem-estar holístico e um alto padrão de atendimento para os pacientes acabaria reduzindo os atendimentos emergenciais de alto custo. Enquanto a maioria dos sistemas de saúde mira o tratamento dos doentes, a CCA adota uma abordagem mais abrangente capaz de prevenir doenças, ajudar a administrar males crônicos e evitar atendimentos de urgência. O modelo de assistência da organização consiste em melhorar a atenção primária, com equipes multidisciplinares coordenadas, planos individuais, assistência à saúde comportamental integrada e equipes de atendimento do-

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miciliar, hospitalar ou ambulatorial 24 horas, sete dias por semana. Em 2021, praticamente 60% dos beneficiários da CCA receberam ao menos um auxílio social, como transporte até internação para tratamentos não convencionais, acupuntura e massagem terapêutica. A CCA obteve reconhecimento em nível nacional pela qualidade do atendimento e os resultados surpreendentes. Um estudo recente mostrou que os beneficiários da CCA que receberam em casa refeições preparadas de acordo com prescrições médicas durante pelo menos seis meses tiveram uma redução significativa no número de consultas de emergência e na utilização de outros serviços altamente onerosos, como internações hospitalares. O estudo destaca que oferecer refeições melhora a saúde e reduz os custos médicos. Os inscritos no atendimento sênior da CCA mostraram uma redução de 66% no número de casos de enfermagem domiciliar e uma redução de 48% em internações hospitalares, em comparação com os pacientes atendidos pelo Medicare ou Medicaid, além de uma redução geral nas despesas de terapias intensivas. PIH e CCA são dois exemplos inovadores de organizações de serviços de saúde que atendem pacientes em seus contextos locais e não só oferecem um serviço de alta qualidade para populações menos favorecidas como também trabalham para melhorar a equidade da saúde. Para incorporar a competência estrutural no atendimento médico, as organizações devem implementar a Ferramenta de Avaliação da Vulnerabilidade Estrutural, questionário que ajuda os médicos a identificar que pacientes provavelmente se beneficiarão dos serviços multidisciplinares. Além disso, é recomendável que os gestores do setor adotem as quatro práticas a seguir para incorporar a competência estrutural a suas organizações. Divulgue as crenças e os valores a que se aspiram. | As empresas

de assistência de saúde precisam priorizar a criação de valores organizacionais concebidos para alavancar as melhores práticas de modelos de saúde de comunidades, maximizar o impacto por meio de parcerias e investir na experiência da equipe. Paul Farmer, cofundador do PIH, afirmava que todas as pessoas têm direito à saúde de qualidade com dignidade e respeito. Com a mesma ênfase, Christopher D. Palmieri, presidente e CEO da CCA, declarou no relatório anual de 2021 da entidade que acreditava em sua “abordagem inusitada” de atendimento médico para a comunidade. Para promover algo assim, os valores que a liderança defende devem ser incorporados ao treinamento e à prática das equipes. A CCA oferece, por exemplo, um teinamento inicial intenso sobre entrevistas motivacionais, atendimento traumatológico especializado e sensibilização cultural. Promova as melhores práticas em saúde da comunidade. | Os CHWs precisam ser membros profissionalizados de equipes médicas, devem fazer parte da estrutura da organização e receber apoio, orçamento financeiro e tempo que permita que prestem serviço comunitário, não apenas médico. Pense criativamente em parcerias que priorizam valores. | O

impacto das organizações citadas foi maximizado graças a parcerias fortes. Os principais valores do PIH incluem formação de capacidade e colaborações verdadeiramente participativas com stakeholders locais que, na verdade, são aqueles que acabam con-

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tribuindo com recursos e conhecimento para manter a saúde das comunidades, em vez de depender de ONGs externas para suprir suas necessidades. As parcerias da CCA permitiram que ela ampliasse o atendimento em quatro estados, preenchesse os nichos nos mercados estaduais de assistência de saúde e consolidasse seu modelo de atendimento integrado. Além disso, um estudo de 2022 realizado por pesquisadores do Mass General Brigham (MGB) – sistema de saúde integrado sem fins lucrativos nos EUA –, mostra como grandes centros médicos de universidades podem formar parcerias eficientes com ONGs de atendimento primário de saúde em comunidades, como a CCA. Aproveitando a boa gestão de tratamento intensivo da CCA, a MGB conseguiu reduzir as despesas de saúde para beneficiários de alto custo e alto risco da Medicaid. Invista na experiência e satisfação da equipe. | Incorporar a competência estrutural no atendimento médico pode tanto piorar como melhorar o burnout da equipe. Vários provedores de assistência médica já consideram como prática profissional obrigatória oferecer atendimento holístico e trabalhar para reduzir as disparidades de saúde sempre que possível. Se os profissionais da área tivessem a oportunidade de reduzir as vulnerabilidades de seus pacientes, provavelmente perceberiam a relevância de seu trabalho e se sentiriam mais satisfeitos. De acordo com o website de informações médicas Medscape, para os médicos de família americanos, contribuir para um mundo melhor é a parte mais compensadora do trabalho, depois de criar relacionamentos e sentir a gratidão dos pacientes.

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“Mais saúde para todos”

S EMPRESAS DE ASSISTÊNCIA DE SAÚDE mais preocupa-

das em entender a importância da cultura podem melhorar significativamente os sistemas de assistência de saúde para todos. A cultura do cuidado é uma visão ideal que coloca o atendimento no centro da assistência de saúde. Os pacientes se sentem empoderados quando podem escolher com quem e como se consultar, eles e os médicos se sentem satisfeitos e respeitados em suas interações clínicas, e os indicadores estão em sintonia com a experiência dos pacientes. Em resumo, cada uma das quatro alavancas da mudança trabalha em prol da equidade na saúde. Abordar os determinantes sociais, como fizeram o PIH e a CCA, pode não só contribuir para uma cultura do cuidado, mais também ajuda a curar a ferida social da dolorosa e injusta discriminação estrutural. Os meios para a mudança e as recomendações servem de plataforma para as organizações começarem ou ampliarem o debate sobre como aproveitar as dimensões culturais que já existem tanto na vida dos pacientes quanto nos sistemas de assistência de saúde. Os promotores da assistência médica também promovem uma cultura – e ela pode ser alterada para melhorar a saúde de todos. O

WHITNEY EASTON é antropóloga e pesquisadora-sênior da Artefact, empresa de

design voltado para o humano, que trabalha nas áreas de assistência de saúde, educação e tecnologia.

NOTAS

1 Katherine A. Mason et al., “How Do You Build a ‘Culture of Health’? A Critical Analysis of Challenges and Opportunities from Medical Anthropology”, Population Health Management, vol. 23, no. 6, 2020.

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COMO O DESENVOLVIMENTO IMOBILIÁRIO P ODE MELHORAR A SAÚDE URBANA Ao analisar a situação do setor de saúde, incorporadores podem criar projetos imobiliários que gerem um novo valor, o de promover o bem-estar da comunidade local POR ADELE HOUGHTON E MATTHEW KIEFER CR ISE S NA SAÚ DE PÚ BLIC A COMO a pandemia de covid-19, a epidemia de obesi-

dade e doenças relacionadas ao calor e exacerbadas pela mudança climática colocam em evidência as forças sociais, econômicas e políticas por trás da disparidade nos indicadores de saúde dentro de uma mesma comunidade. Os “determinantes sociais de saúde”1 podem causar diferenças de uma década ou mais na expectativa de vida dos moradores de bairros diferentes da mesma cidade. O desenho arquitetônico e a configuração do uso do solo têm peso nessas disparidades, uma vez que agem para expor mais ou menos as pessoas a riscos ambientais e influenciam seu acesso a atividade física e alimentação saudável.2

Ilustração produzida por inteligência artificial para representar projeto de empreendimento imobiliário que incorpora conceitos verdes I M A G E M D E T E N S O R S PA R K

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À luz dessas preocupações, os criadores de políticas e os que advogam pela saúde pública se empenham em descobrir como projetos imobiliários privados em larga escala podem ajudar a lidar com essas disparidades. Determinantes sociais de saúde desempenham um papel crescente no processo de aprovação de tais projetos. Grupos comunitários e aqueles que concedem subsídios esperam que os incorporadores demonstrem como um projeto vai beneficiar a vizinhança. Com frequência, essas conversas dizem respeito a garantias sociais, como criação de empregos e acesso a habitação, e a melhorias, como parques, locais para caminhadas e medidas de trânsito. Em paralelo, programas de uso de solo e de licença ambiental se tornam mais estritos, exigindo que os incorporadores se preocupem com emissões de gases de efeito estufa, resiliência climática e outros impactos no ecossistema. Ao mesmo tempo, iniciativas recentes da Securities and Exchange Commission (SEC), órgão que regula o mercado de ações nos Estados Unidos, para padronizar os relatórios de riscos climáticos levaram investidores, como bancos comerciais e fundos de investimento imobiliário, a incluir perguntas sobre emissões de gases de efeito estufa e risco de mudança climática em suas avaliações de projetos de incorporação. Os incorporadores têm se mostrado hábeis em avaliar como fatores fora de seu controle direto afetarão o retorno projetado para o investimento. Mas agora eles se encontram sob uma crescente pressão para estimar tanto os efeitos positivos quanto os negativos que seus projetos terão sobre a sociedade e o ambiente. Os enquadramentos ambientais, sociais e de governança, que conhecemos pela sigla ESG, em inglês, tornaram-se a metodologia predominante para investidores orientados para o impacto avaliarem investimentos.3 Mas a triagem ESG não é muito adequada para avaliar os efeitos positivos, sociais e ambientais de um projeto individual de incorporação imobiliária. Isso porque ela geralmente opta por medidas universais, e valores imobiliários se calcam nas características do lugar. Mesmo quando a abordagem ESG usa parâmetros da construção civil ou específicos do local, como classificações Leed (sigla em inglês para “liderança em energia e design ambiental”), sistema de classificação amplamente usado para construções verdes, ela não leva em conta as maneiras como um trecho de terra, ao ser incorporado, afeta seu entorno e é afetado por ele. Por fim, o enquadramento ESG lida separadamente com cada um de seus três fatores, quando na verdade eles se interligam e agem em sinergia nos projetos imobiliários. Avaliar esses impactos exige uma metodologia melhor. Propomos, a seguir, aplicar os princípios da “análise da situação de saúde”. Esse é um caminho superior porque possibilita uma abordagem sistemática para definir e medir os desafios da saúde pública e permite lidar com eles de um modo sensível ao contexto.

Quando aplicado à incorporação imobiliária comercial, pode reestruturar o processo de aprovação pública, vinculando o impacto social na saúde e no bem-estar da vizinhança de maneira evidente para os moradores e membros da comunidade. Essa abordagem também pode mudar conceitos de valor no mercado imobiliário, expandindo-os para além dos limites estritos de uma propriedade, de modo a abranger o bairro onde ela se insira, beneficiado por aspectos do seu projeto. Empregada em maior escala, a análise da situação de saúde pode redefinir o valor imobiliário de tal forma que os projetos mais lucrativos serão aqueles que proporcionem os maiores benefícios para a população e para a saúde do planeta.

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ENRAI Z AD O NO LUGA R

VALOR DE UM PROJETO DE incorporação imobiliária se liga irremediavelmente ao território. Dados os seus efeitos no ambiente, na economia e na qualidade de vida na vizinhança, a incorporação imobiliária encontra-se fortemente regulamentada por meio de revisões ambientais e de zoneamento. Lote e entorno têm uma relação de mão dupla; o contexto influencia o valor da propriedade para os investidores e usuários, assim como o projeto influencia o valor e a utilidade das propriedades e comunidades da vizinhança. Adequar um projeto novo ou a requalificação de um edifício preexistente para tirar o máximo dessa relação pode gerar valor para a equipe da incorporação, a comunidade e o governo local. Essa é uma verdade fundamental que tem sido ignorada pelos guias de melhores práticas, pelos códigos de construção verde e pelos mais modernos métodos ESG de triagem. Medidas universais, na maior parte dos casos, menosprezam questões ligadas ao contexto. Com isso, perde-se a oportunidade de fazer com que os projetos se adaptem às necessidades da vizinhança, conquistando a confiança da comunidade e aumentando o valor da propriedade imobiliária. A análise da situação de saúde é uma maneira melhor de fazer isso porque dedica atenção às circunstâncias de vida e características locais que possam afetar o bem-estar dos residentes. Em um projeto convencional, os representantes dos incorporadores poderiam, em uma reunião com a comunidade, enfatizar os esforços de sustentabilidade do projeto, como zerar as emissões líquidas de carbono do empreendimento. No entanto, se o projeto em questão estiver localizado em um bairro que registre altos índices de pessoas com asma, é improvável que os moradores associem o objetivo universal de reduzir as emissões de gases de efeito estufa com melhoras no seu dia a dia.

A análise da situação de saúde é uma maneira melhor de avaliar um projeto imobiliário porque dedica atenção às circunstâncias e características locais que afetam o bem-estar dos residentes

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A análise da situação de saúde mente uma pesquisa em três coligaria as elevadas taxas de asma munidades nos Estados Unidos eterminantes sociais de saúde, segundo a Organina vizinhança a efeitos das mu(Albany, Nova York; Buffalo, Nova zação Mundial da Saúde (OMS), são fatores não danças climáticas que podem deYork; e Waterford, Virgínia), a médicos que influenciam indicadores sanitários. Ainsencadear ou exacerbar ataques qual mostrou que o uso da anáda segundo a OMS, aspectos como empregabilidade e respiratórios, tais como dias de lise da situação de saúde nesses acesso a serviços públicos podem pesar mais contra ou forte presença de ozônio e eventermos era mais eficaz para equia favor da saúde do que o estilo de vida. tos de calor extremo. Essa conelibrar todas as prioridades de O Brasil é o nono país mais desigual do mundo, sexão levaria naturalmente a um grupos de interessados do que o gundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. debate sobre maneiras como o processo regular de aprovação Esse dado se reflete em indicadores como escolaridade, projeto poderia reduzir a exposipública de um projeto. Quando número de moradias e mesmo na expectativa de vida, ção dos residentes aos gatilhos da indagados se sentiam que suas voque, dentro de uma mesma cidade, pode apresentar asma, por exemplo com medidas zes tinham sido ouvidas durante uma variação de décadas. para melhorar o tráfego e dimio processo de engajamento da coÉ o que acontece de forma gritante em São Paulo, nuir congestionamentos. munidade e se suas perspectivas maior metrópole da América Latina, como mostra a O plantio estratégico de árestavam refletidas no projeto fiedição mais recente do Mapa da Desigualdade, divulgavores e arbustos, criando uma nal, os participantes responderam da pela Rede Nossa São Paulo em novembro. barreira para proteger o local de positivamente, com uma pontuafontes de poluição atmosférica, ção média de 4,65 num total de 5. pode preservar ainda mais os moUm membro da comunidade obanos é a idade média ao morrer no Itaim Bibi; ao lado do Jardim Paulisradores da poluição do ar relaservou: “Senti que a combinação ta, é o mais longevo, e ocupa a cionada ao trânsito. Mais plantas de todas as vozes foi ouvida”. 4 e sombra podem resfriar o ar em Os objetivos ESG também a posição em oferta de emprego formal torno da construção, e técnicas de têm mais a ganhar com a nossa resfriamento passivo, tais como metodologia. A construção verde anos é a idade média ao morrer em o isolamento térmico, superfícies e as recomendações de operação Anhanguera, o distrito onde se pintadas em cores leves e janedo empreendimento contemplam vive menos e que ocupa a las, em vez de vidros fixos, dimio fator ambiental (o E da sigla), nuem o risco de que as temperalevando em conta necessidades a posição em oferta de emprego formal, turas internas alcancem níveis sociais e de saúde da vizinhança atrás somente de Cidade perigosamente elevados durante (o S). Ao mesmo tempo, incita os Tiradentes interrupções de energia. Todas incorporadores a rever sua goveressas estratégias também ajudam nança (o G), colocando os moraa reduzir a pegada de carbono do dores no centro do projeto, em empreendimento – e isso pode ser mencionado tanto pelos incorum processo de engajamento deliberado da comunidade, cuja voz poradores quanto pela administração pública como um ponto exde fato se ouve na modelagem do projeto final. Por fim, a análise tra para a comunidade, um benefício adicional de um projeto cujo da situação de saúde permite escala. Utiliza dados específicos do objetivo central é melhorar a saúde e o bem-estar da vizinhança. bairro e outros de livre acesso vindos de fontes confiáveis para Para investidores e reguladores, a análise da situação de saúpriorizar evidências e estratégias que reduzem a exposição a conde pode ajudar a balizar e mensurar os objetivos ESG. Também dições nocivas à saúde e promovem resultados positivos para o torna essas métricas e suas interconexões visíveis ao recorrer a bem-estar. Os indicadores usados na análise podem ser aplicados dados ambientais, demográficos e de saúde de fontes como os de a sistemas de avaliação para medir o alcance de resultados positiagências sanitárias e de proteção ambiental a fim de mapear as vos referentes à mudança climática, saúde da população e equidacondições iniciais de clima, bem-estar e equidade na vizinhança de social. Os indicadores também dialogam com os painéis exisde um projeto imobiliário. tentes de ESG, políticas locais, guias de melhores práticas, como Ao usar conjuntos de dados de código aberto prontamente disLeed, e estruturas globais, como os Objetivos de Desenvolvimenponíveis e um método sistemático que gera recomendações espeto Sustentável da Organização das Nações Unidas. Isso faz com cíficas para uma vizinhança, a análise da situação de saúde amplia que eles possam ser expandidos da escala de um projeto específico a transparência e a equidade na avaliação pública dos projetos que até a do portfólio global de bens imóveis. o mercado imobiliário propõe, refletindo as características sociais, ambientais e de saúde únicas de cada vizinhança. Ao serem I NC O RP O RAÇÃO BASEADA NA C OMU NIDADE usados para conduzir debates sobre o projeto, esses dados fazem com que o engajamento da comunidade deixe de ser meramente egulamentações ambientais e grupos comunitários esmecânico e se torne uma oportunidade de adaptar o projeto, volperam cada vez mais que projetos imobiliários demonstando-o para o bem-estar e as aspirações dos moradores. trem de que modo podem beneficiar o contexto em que Coautora deste artigo, Adele Houghton conduziu recentepretendem se inserir. Questões climáticas e objetivos de equidade

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têm sido crescentemente incorporados a planos de zoneamento e a outros instrumentos governamentais, bem como às demandas dos ativistas urbanos. Por outro lado, financiadores do mercado imobiliário colocam os empreendimentos sob escrutínio para ver quanto eles se adaptam ao perfil e às regras ESG de seus investidores. Essa pressão pode fazer os processos de aprovação mais morosos e duros, causando estresse durante o pré-desenvolvimento do projeto para todos os participantes. A análise da situação de saúde ajuda a priorizar fatores ambientais e de bem-estar que podem dotar o projeto de mais impacto. Os incorporadores podem se valer disso para demonstrar como seu projeto contribui para indicadores-chave em planos municipais, sejam eles referentes a ações climáticas ou a questões de saúde pública, como obesidade e asma. Essa abordagem calcada nos parâmetros específicos da comunidade pode ajudar a construir confiança e uma visão compartilhada para o projeto. Tal dinâmica aumenta a probabilidade de que o processo de aprovação pública seja mais simples e direto, o que traz ganhos para todas as partes – incorporadores, que economizam recursos e melhoram sua a reputação; a comunidade, mais do que todos, porque tende a ter melhora na qualidade de vida; e governo e líderes comunitários, vistos como eficazes em constituírem o equilíbrio entre anseios dos moradores e projetos que contribuirão para a economia.

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E ST U D O D E CAS O D E B OSTO N

M EXEMPLO QUE ILUSTRA, na prática, como a análise da situação de saúde pode beneficiar os três diferentes grupos de interessados é o caso do Parcel P3, um lote de terra de 3,075 hectares, localizado em Roxbury, bairro de baixa renda a 4,5 quilômetros do centro de Boston, com composição étnica diversificada e historicamente sem muitos investimentos. A menos de 1,5 quilômetro dali fica a Área Médica e Acadêmica de Longwood, que concentra instituições ligadas à saúde, como a Escola de Medicina de Harvard, e que é um importante polo gerador de emprego. Roxbury também fica ao lado do terminal intermodal Ruggles, para o qual confluem linhas de ônibus, metrô e trens metropolitanos. O lugar tem ainda importância simbólica por ser a maior extensão de terra ainda de propriedade pública na cidade, desde a conturbada renovação urbana dos anos 1950 e 1960, quando autoridades deslocaram residentes marginalizados de seus bairros para a construção de grandes projetos de infraestrutura, edifícios administrativos e habitações para famílias de renda mais elevada. Por fim, o lote P3 também é importante porque suas dimensões são suficientes para que ele funcione como catalisador de oportunidades econômicas e benefícios sociais para o bairro. Em outubro de 2021, a Agência de Planejamento e Desenvolvimento de Boston (BPDA, na sigla em inglês) abriu uma concorrência para que incorporadores desenvolvessem um projeto comercial que pudesse trazer benefícios significativos para a comunidade junto dos esperados retornos financeiros. Dois grandes incorporadores apresentaram projetos semelhantes, cada um

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com aproximadamente 100 mil metros quadrados, nos quais distribuíram, em várias construções, centros de medicina, biologia e outras ciências e residências para famílias de renda média. A BPDA escolheu um incorporador em janeiro de 2023. Funcionários públicos e grupos comunitários pressionaram para que fosse demonstrado de que modo uma proposta de incorporação imobiliária beneficiaria os residentes e os negócios do bairro. A concorrência acabou reconhecendo que o estímulo ao desenvolvimento econômico resultaria no deslocamento dos moradores do bairro. Então pediu aos incorporadores que o projeto se voltasse a beneficiar os atuais residentes de Roxbury, em vez de ter como meta apenas atrair novos negócios e moradores para a região. Um dos autores deste texto e professor de arquitetura em Harvard, Matthew Kiefer, com a ajuda da coautora Adele Houghton, desafiou alunos de uma disciplina sobre incorporação imobiliária com impacto social a considerar como a análise da situação de saúde poderia oferecer uma abordagem mais sistemática para atingir aquele objetivo no lote P3 do que a prática atual. Uma análise da situação de saúde começa por mapear a localização, a gravidade e as causas de exposição ambientais no local proposto para a construção e em seu entorno. Em seguida, a análise examina se aquelas condições tendem a prejudicar de maneira desproporcional os moradores atuais e futuros residentes do projeto. No caso do P3, dados do censo revelam que a vizinhança mostra-se consideravelmente mais diversa que Boston como um todo e os Estados Unidos em geral: 25,2% de asiáticos, 20,4% de negros não hispânicos, 16,1% de hispânicos/latinos e 35,3% de brancos não hispânicos. Dados públicos sobre as ameaças ambientais no bairro mostram que ele é altamente vulnerável a ilhas de calor e inundações, porque boa parte da superfície do terreno é impermeável – ruas, estacionamentos e construções. Cerca de metade do lote ainda tem cobertura vegetal e, portanto, é permeável. Um novo empreendimento que ampliasse as superfícies impermeáveis poderia aumentar esses riscos. Além disso, a Tremont Street, uma rua importante de Roxbury, é lindeira ao P3. De 2015 a 2022, a cidade documentou 20 acidentes relacionados ao trânsito envolvendo pedestres e ciclistas ao longo daquele trecho da rua – muitos no meio do quarteirão do P3. Esse dado fornece ao projeto a oportunidade de criar na Tremont um acesso peatonal mais seguro ao terminal Ruggles. Dados do censo sobre as características de saúde na vizinhança imediata mostram uma alta prevalência de asma e problemas de saúde mental entre adultos, além de uma taxa de pobreza de 48%. Por outro lado, a saúde física geral é boa, o que pode refletir a baixa incidência demográfica de crianças e idosos, os quais, devido a razões fisiológicas e comportamentais, são potencialmente mais vulneráveis a riscos ambientais, como má qualidade do ar, inundações, calor extremo e cruzamentos perigosos. A avaliação desses dados ambientais e sociais relacionados à saúde deveria sugerir algumas prioridades a combater com o projeto: ferimentos e mortes associados ao calor, a inundações e à poluição do ar; acidentes envolvendo ciclistas e pedestres; e questões de saúde mental. Tais fatores da saúde, por sua vez,

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sugerem diversas estratégias baseadas em evidências para o terreno, o desenho da construção e as operações, que poderiam reduzir as exposições nocivas e promover a saúde geral. Projeto | Projetar estruturas e construções totalmente elétricas e reduzir o condicionamento de ar dessas construções atenderia a duas prioridades ambientais que despontaram na análise da situação de saúde – calor extremo e poluição do ar –, e ao mesmo tempo reduziria as emissões de gases de efeito estufa. Entre outras estratégias para reduzir a exposição ao calor extremo podem-se listar telhados brancos ou cobertos de vegetação, paredes e tetos com melhor isolamento, mais área de janelas, orientação e desenho espacial, bem como dispositivos externos (como toldos), visando ao sombreamento. Janelas, no lugar de vidros fixos, também são úteis para dois fatores identificados como prioritários na análise da situação de saúde – proteção contra o calor extremo e apoio à saúde mental. Elas ampliam o tempo de uso do edifício em caso de interrupção

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Considerando a renda mediana e as construções antigas do local, o projeto deveria contemplar um espaço que funcionasse como um ponto de reunião ou um centro de resfriamento durante interrupções de energia ou desastres naturais. Esse poderia, inclusive, ser um dos benefícios mais significativos do empreendimento para a comunidade. Implantação | Com relação à localização estratégica do lote P3, em frente ao terminal Ruggles, a forma como as construções estarão implantadas no terreno pode servir para responder a questões ambientais identificadas na análise da situação de saúde. Por exemplo, ciclovias e faixas de travessia interligadas à rede de caminhos arborizados poderiam reduzir o risco de acidentes. Tal abordagem, bem como implantar os prédios perto de áreas verdes de acesso público, contribuiria para a saúde mental, propiciando contato com a natureza de forma segura, apartada do tráfego. A ampliação de zonas verdes e permeáveis e de áreas de som-

FOTO DE BOSTON GLOBE VIA GETTY IMAGES

Roxbury é um bairro de baixa renda a 4,5 quilômetros do centro de Boston, com composição étnica diversificada e historicamente sem muitos investimentos; fica a menos de 1,5 quilômetro da Área Médica e Acadêmica de Longwood, que concentra instituições ligadas à saúde, como a Escola de Medicina de Harvard, e que é um importante polo gerador de emprego .

do fornecimento de energia5 e os efeitos restauradores da luz solar e das vistas da natureza. Áreas abertas, cobertas ou não, que possam abrigar atividades normalmente realizadas no interior do edifício aumentam a porcentagem de área útil do edifício sem aumentar a superfície construída. Com isso, ajudam o projeto a zerar suas emissões de carbono, além de contribuir para a saúde mental e o bem-estar dos ocupantes da construção e dos residentes do bairro ao ampliar o acesso à natureza.

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bra reduziria os riscos que inundações poderiam causar para o ambiente e para a saúde,6 assim como o efeito das ilhas de calor.7 Uma cobertura arbórea maior também contribuiria para todos esses aspectos. A ligação com os caminhos arborizados da região e a redução do número de vagas de estacionamento, encorajando os residentes a circular a pé, de bicicleta ou em transporte público, diminuiria o risco de acidentes e a exposição à poluição do ar relacionados ao tráfego na Tremont Street.8

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Microrrede comunitária de energia renovável | A análise da situação de saúde também apoiaria a inclusão de uma microrrede comunitária de energia renovável – um local pertencente a uma cooperativa, que dispusesse de equipamentos de produção adequados, como painéis solares ou turbinas eólicas, e de linhas de transmissão, transformadores e unidades de armazenamento de energia, que pudessem ser isolados da rede elétrica central e funcionar independentemente por algum tempo, durante uma longa interrupção no fornecimento de energia. A microrrede também poderia reduzir o impacto da conta de luz para os habitantes de baixa renda, podendo, de fato, se constituir como uma iniciativa de desenvolvimento econômico comunitário capaz de aumentar a prosperidade dos atuais residentes de Roxbury. Para estruturar o financialmento, o desenvolvimento e a operação desse equipamento, a comunidade poderia estabelecer parceria com a administração pública ou com projetos similares nas proximidades, como a microrrede localizada no Instituto de Tecnologia Wentworth. Além do mais, a microrrede beneficiaria os incorporadores, ao criar uma nova fonte de receita para o empreendimento, ao mesmo tempo que reduziria emissões de gases de efeito estufa. Custo-benefício | A análise da situação de saúde também pode ajudar a avaliar o custo-benefício de um projeto. Além de propor soluções para as principais questões de saúde ambiental, beneficiando moradores e incorporadores nesse processo, a abordagem permite, de forma notável, medir a maior parte dos impactos positivos de que o governo pode se servir para melhorar indicadores-chave em seu plano de ação climática ou de melhoria da saúde da comunidade e outros programas municipais existentes. Como em qualquer análise de custo-benefício, esses últimos aspectos são mais difíceis de quantificar em termos monetários. No entanto, podem ser estimados com base em técnicas de modelagem aceitas para orientar a tomada de decisões. Enquanto os custos provavelmente recaem sobre o incorporador, os benefícios fluem igualmente para outras partes. Isso ajuda o incorporador a defender o projeto junto aos outros interessados, contribuindo para o sucesso de ideias que à primeira vista, por si só, poderiam ser consideradas muito dispendiosas. Também permite que os responsáveis pelo empreendimento proponham medidas que respondem a necessidades que a vizinhança reconhece como suas, em vez de responder a uma miríade de pedidos de interessados e de agências de concessão de subsídios. É mais fácil que o projeto seja bem assimilado pelos interessados quando atende a necessidades e prioridades destes. A abordagem pode, assim, reduzir os riscos do projeto, melhorar seu desempenho financeiro e suas contribuições podem ser claramente transpostas para métricas ESG.

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AL I NH AND O OS I NTERESSADOS

mbora na teoria a análise da situação de saúde possa ajudar a alinhar os interesses dos três principais grupos envolvidos em um projeto de incorporação – a comunidade, os incorporadores e o governo –, na prática podem surgir conflitos e desconfianças. Portanto, por mais fundamentada que ela seja, a análise deve ser acompanhada de um processo incisivo e direto de engajamento comunitário, usando métodos participativos9 para garantir que todos os grupos percebam que sua voz foi ouvida e sua visão levada em conta no desenho final do projeto. As reações dos três grupos ao projeto apresentado pelos estudantes de Harvard foram esclarecedoras. Os interessados queriam entender principalmente como o projeto integraria espaços de laboratório (que provavelmente atrairiam a maior parte da população externa a Roxbury) e habitações a preço razoável, que acolhessem uma vasta gama de faixa de renda e trajetórias de vida. Eles acolheram as ideias dos alunos para facilitar o transporte público, ampliar o acesso à natureza e às atividades ao ar livre e tornar mais seguro o deslocamento para o terminal Ruggles pela Tremont Street. De forma similar, a pesquisa de Adele Houghton, coautora deste texto, mostrou que usar a análise da situação de saúde para estruturar um processo de engajamento comunitário aumentava o apoio dos participantes ao projeto. Em um processo participativo real, de início havia a preocupação, por parte de vários líderes comunitários, de que o projeto em questão lidasse com a poluição do ar associada a caminhões e trens nas proximidades. A análise, porém, demonstrou que a poluição fazia parte de um quadro mais amplo, que incluía calor extremo, inundações, necessidades de saúde mental, violência armada, obesidade, asma, além de determinantes sociais, como os altos índices de pobreza e o legado do racismo, que contribuíam para piorar indicadores de saúde. Em resposta a isso, os participantes concordaram em priorizar estratégias para proteger as pessoas das três exposições relacionadas à mudança climática (calor, inundações e poluição do ar). Os moradores também enfatizaram a necessidade de os incorporadores e grupos comunitários trabalharem em conjunto para levar serviços urbanos e organizações da sociedade civil a ocupar o térreo de uma construção bem importante no empreendimento. No fim do processo, a maioria dos participantes estava de acordo com as linhas gerais e declarou ter sentido que as perspectivas de seu grupo de interessados estavam refletidas na visão final do projeto (uma pontuação média de 4,44 em 5). Ainda mais notável foi a marcante mudança na atmosfera durante o processo. De início, muitos membros da comunidade expressaram preocupação

A atual abordagem do setor imobiliário não é capaz de alcançar seu impacto potencial máximo – seja pelas métricas financeiras, seja pelos padrões de ESG

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com gentrificação e deslocamento de moradores, céticos quanto às intenções dos incorporadores. Ao final, os três grupos haviam chegado a um consenso, e um líder comunitário perguntou aos incorporadores o que os moradores podiam fazer para se manifestar em prol do projeto.10

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D E SA F I OS D E I M PL E M E N TAÇÃO

ANÁLISE DA SITUAÇÃO DE SAÚDE TEM imenso potencial para a incorporação imobiliária. Mas, como qualquer nova empreitada interdisciplinar, pode haver desafios. As incorporadoras não têm a competência interna para realizar uma análise da situação de saúde. Embora outros aspectos do ramo já requeiram conhecimento especializado, como a eficiência em energia e a retenção de águas pluviais, a metodologia abordada neste artigo foi testada em apenas uns poucos projetos, de modo que não existem consultores em número representativo para aplicá-la. De maneira similar, é provável que os moradores dos locais afetados não estejam familiarizados com esse método, e pode faltar a funcionários da administração a competência em saúde pública para avaliar como incorporar essa abordagem a processos de avaliação. A boa notícia é que todas as partes querem um método melhor para isso. Investidores de impacto, incorporadores, arquitetos, consultores especializados em projetos verdes e organizações comunitárias estão cada vez mais conscientes de que a atual abordagem do setor imobiliário não é capaz de alcançar seu impacto potencial máximo – seja pelas métricas financeiras, seja pelos padrões de ESG. Desde 2020, Adele Houghton entrevistou mais de 50 incorporadores imobiliários, arquitetos e consultores nos Estados Unidos. Eles expressaram o desejo de ajustar seus projetos para responder às necessidades demonstradas pela vizinhança do entorno. Um segundo desafio é a quantidade e a dispersão dos dados secundários. Ao longo da última década, a informação disponível em livre acesso na escala dos bairros cresceu de tal forma que alguém que se disponha a executar uma análise da situação de saúde se vê lançado numa caça ao tesouro. O estudo de caso aqui apresentado mobilizou informação de 40 conjuntos de dados sobre o lote P3, disponíveis em13 websites. A análise da situação de saúde possibilita converter essa profusão de dados em uma expressão sucinta do que um empreendimento imobiliário pode fazer a fim de propiciar o maior benefício possível a todos os envolvidos. A recente emergência de ferramentas como o ChatGPT levanta a possibilidade de empregar inteligência artificial para automatizar o primeiro passo no processo de análise da situação de saúde – com isso tornando o plano descrito neste artigo acessível a qualquer um sob o impacto de um determinado projeto de incorporação, não importando seu grau de escolaridade. O uso ético e eficiente de grandes conjuntos de dados é um desafio que os inovadores sociais e os primeiros a adotar nosso método devem enfrentar ao longo do tempo, como aconterá em outros campos que se deparem com questões similares. A incorporação imobiliária pode parecer um ramo improvável para a mudança social positiva. Embora a conexão entre o ambiente físico e os resultados sociais seja cada vez mais clara, muitos

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membros de comunidades e seus porta-vozes temem mudanças indesejadas que possam vir de um empreendimento. Os incorporadores precisam equilibrar a necessidade de defender os benefícios de seus projetos e os riscos inerentes ao seu setor. Conceber um empreendimento exige um alto capital inicial e um horizonte de investimentos a longo prazo, que devem prometer uma elevada taxa de retorno para atrair aportes. O senso comum talvez sugira que acrescentar benefícios sociais ao rol de exigências poderia ser contraproducente. Nossa pesquisa mostra que não. Ansiamos pelo emprego mais generalizado da análise da situação de saúde, ao lado de avaliações de custo-benefício e de amplos processos participativos com as comunidades, a fim de que a incorporação imobiliária possa atuar em benefício de todos os envolvidos. O A D E LE HO U G HT O N é presidente da Biositu e professora na Escola T. H. Chan de Saúde Pública da Universidade Harvard. M AT T HE W KI E FE R é um dos diretores da Goulston & Storrs e professor na Escola

de Design da Universidade Harvard.

Os autores agradecem aos estudantes no SES 5383: Developing for Social Impact na Graduate School of Design em Harvard e aos representantes do governo e dos incorporadores do lote P3, cujas apresentações e contribuições para as discussões na sala de aula ajudaram a enriquecer os conceitos apresentados neste artigo. Um reconhecimento especial a Linda Kaboolian, da Escola T. H. Chan de Saúde Pública, por sua contribuição para as versões iniciais deste texto. NOTAS

Amy Schulz e Mary E. Northridge, “Social Determinants of Health: Implications for Environmental Health Promotion” [Determinantes sociais da saúde: implicações para a promoção da saúde ambiental], Health Education & Behavior, v. 31, n. 4, 2004; World Health Organization, A Conceptual Framework for Action on the Social Determinants of Health [Um enquadramento conceitual para a ação sobre os determinantes sociais da saúde], 2010. 2 Andrew L. Dannenberg, Howard Frumkin e Richard J Jackson (orgs.), Making Healthy Places: Designing and Building for Health, Well-Being, and Sustainability [Fazendo lugares saudáveis: projetando e construindo para a saúde, o bemestar e a sustentabilidade], Washington, DC: Island Press, 2011. 3 Elizabeth Pollman, “The Making and Meaning of ESG” [A criação e o significado de ESG], European Corporate Governance Institute, Working Paper Series in Law, paper n. 659/2022, out. 2022. 4 Adele Houghton, Priority Green for Community Benefit: A Framework for Tailoring Real Estate Entitlement Concessions to Neighborhood-Specific Priorities Around Climate, Health, and Equity [Prioridade verde para os benefícios à comunidade: uma estrutura para ajustar as concessões do direito à propriedade de imóveis às prioridades específicas da vizinhança em termos de clima, de saúde e de equidade], Harvard University ProQuest Dissertations Publishing, 2023. 5 Adele Houghton e Carlos Castillo-Salgado, “Associations between Green Building Design Strategies and Community Health Resilience to Extreme Heat Events: A Systematic Review of the Evidence” [Associações entre estratégias de projeto de construções verdes e a resiliência da saúde da comunidade a eventos de calor extremo: uma revisão sistemática da evidência], International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 16, n. 4, 2019. 6 Salman Anees Soz, Jolanta Kryspin-Watson e Zuzana Stanton-Geddes, The Role of Green Infrastructure Solutions in Urban Flood Risk Management [O papel das soluções de infraestrutura verde na administração do risco de inundações urbanas], World Bank Group, 2016. 7 George Luber e Michael McGeehin, “Climate Change and Extreme Heat Events” [Mudança climática e eventos de calor extremo], American Journal of Preventive Medicine, v. 35, n. 5, 2008. 8 Piers MacNaughton et al., “Impact of Bicycle Route Type on Exposure to Traffic-Related Air Pollution” [O impacto do tipo de via para bicicletas na exposição à poluição do ar relacionada ao trânsito], Science of the Total Environment, v. 490, 2014. 9 Meredith Minkler, “Using Participatory Action Research to Build Healthy Communities” [Usando a pesquisa sobre ação participativa para construir comunidades saudáveis], Public Health Reports, vol. 115, 2000. 10 Houghton, Priority Green [Prioridade verde]. 1

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ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS QUE BUSCAM MELHORAR AS COMUNIDADES ENFRENTAM O TRABALHO ÁRDUO DE CONSTRUIR CONFIANÇA. O SUCESSO REQUER PRIORIZAR AS PESSOAS COM QUEM VOCÊ TRABALHA E TER PACIÊNCIA

Confiança: modos de obter e manter

OS AMERICANOS TÊM MUITO MENOS confiança

POR SETH D. KAPLAN IL USTRAÇ Õ ES

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social do que costumavam ter, sugerem trabalhos acadêmicos e pesquisas de opinião. O público tem bem pouca fé em tudo: no governo federal, na religião organizada, na mídia, nas pessoas com simpatias políticas divergentes. “Nossas [do país] reservas de capital social – o próprio tecido de nossas conexões uns com os outros – despencaram, empobrecendo nossas vidas e comunidades”, conclui Robert Putnam, cientista político na Universidade Harvard, em seu livro Bowling Alone [Jogando boliche sozinho, 2000]. Entre as implicações práticas da baixa confiança, estão a dificuldade em obter apoio quando mais precisarem, mas também passos básicos, como conseguir e conservar um emprego, casar-se e ficar casado, manter a saúde física, empreender. Tais obstáculos se agravam entre os de menor escolaridade, os de menos recursos e entre não brancos. Segundo uma pesquisa feita em 2019 pelo Pew Research Center, apenas um quarto dos que ganham mais de US$ 75 mil dólares por ano, um quinto dos pós-graduados e 31% dos brancos são indivíduos de baixa confiança. Estes tendem a pensar que não se pode confiar nas outras pessoas, que cuidariam apenas de si mesmas, tentando tirar vantagem deles se puderem. Por sua vez, 45% dos que ganham menos de US$ 30 mil dólares por ano, 43% dos que só estudaram até o ensino médio, 44% dos negros e 46% dos hispânicos têm baixa confiança social.1

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Mas essa é somente uma parte da história. Vizinhanças marcadas pela baixa confiança são menos propensas a ter moradores atuando em colaboração por objetivos individuais e coletivos. Isso torna tudo mais difícil, desde conseguir alguém para cuidar das crianças em uma emergência até ter ruas seguras. Quando há baixa confiança social, todos os que moram no bairro ficam em desvantagem, e aumenta a chance de que uma organização vinda de fora seja, de início, recebida com desconfiança. Ainda que muitos fatores influenciem a confiança social geral, a riqueza da vida associativa mostra-se especialmente importante. Grupos de vigilância do bairro, associações residenciais e atividades semanais das crianças “geram uma rede de rotinas ‘banais’ que lubrificam a vida coletiva, embora raras vezes sejam planejadas como tais”, escreve o sociólogo Robert Sampson.2 Essa dinâmica é evidente na conclusão da pesquisa do Pew: “Alguns acreditam que seus bairros são um lugar-chave em que a confiança interpessoal pode ser reconstruída se as pessoas trabalharem juntas em projetos locais, o que por sua vez irradia confiança para outros setores da cultura”.3 Filantropos, organizações não lucrativas e instituições públicas raramente consideram a questão da confiança quando buscam abordar diversos problemas sociais. É raro que façam perguntas como “o que assegura, sustenta ou diminui a confiança em minha organização, equipe ou iniciativa? Que papel essa confiança tem no sucesso dos projetos? Que projetos podem ampliar o capital social e a confiança social geral em um bairro?”. Em vez disso, tendem a visualizar problemas e soluções através de uma lente material ou técnica. Diante de fracassos, tendem a atribuí-los ao grupo que escolheram como alvo, e não a sua abordagem. Quando as organizações têm pontos cegos relacionados à confiança, as comunidades onde agem tendem a se mostrar menos abertas a impulsos locais ou a dividir poder, por suspeitarem de tais organizações, gerando um efeito em cascata. Isso piora em áreas em deterioração, nas quais residentes que experimentaram exploração ou exclusão sentem uma desconfiança generalizada, sobretudo dos que vêm de fora. Organizações que pretendam superar essa barreira necessitam modificar sua abordagem. Para lidar com o problema, podemos analisar o que deu certo em bairros, cidades e regiões particulares. Organizações não lucrativas como a Life Remodeled e a Partners for Education, atuando respectivamente em Detroit e nos Apalaches, desenvolveram rotas eficazes para angariar e manter a confiança. Especificamente, comprovaram a importância de alavancar o talento local, dividir as atividades em etapas e se adaptar aos contextos

locais, fortalecendo-os, a fim de construir confiança nas áreas em que ela esteja em baixa. Seu empenho mostra que agir com paciência e de forma atenta, mostrando-se sensível ao panorama local, pode ser muito mais importante que qualquer meta material ou detalhe técnico.

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Pega no contrapé

ESDE 2011, a Life Remodeled (LR) promove

o trabalho de negros e brancos lado a lado para consertar casas, renovar escolas e limpar bairros em Detroit e nos arredores. Nos últimos 70 anos, a Motor City [como a cidade se tornou conhecida, por ter sido o polo da indústria automobilística] perdeu dois terços de sua população, desde seu ápice em 1950 até seu colapso, em 2013. Entre os muitos fatores que contribuíram para o declínio, estão, sem dúvida, a questão racial e influência que esta tem nos níveis de confiança, na natureza dos relacionamentos sociais e no acesso ao poder e a recursos. Elos rompidos entre os de dentro e os de fora, entre a população urbana e a suburbana e entre moradores brancos e negros moldaram por muito tempo a forma como a cidade e a região lidavam com o desinvestimento, a emigração, o abandono e a infestação de pragas. A ruptura talvez seja mais bem representada pelo Eight Mile Wall, um muro erguido em 1941 que separa, por quase oito quilômetros, uma vizinhança negra de um projeto habitacional branco. A LR desenvolveu um enquadramento altamente prático para superar divisões: reúne voluntários de um amplo leque de bairros e trajetórias de vida para reformar edificações e infraestrutura. “Se você tenta fazer duas pessoas que se encontram em polos opostos no tocante a raça, religião ou política sentarem a uma mesa, olharem nos olhos uma da outra, terem uma conversa e verem o que resulta disso, em nove de dez vezes essa conversa não vai ser muito proveitosa”, diz Chris Lambert, fundador e CEO da LR. “No entanto, se você convidar essas mesmas pessoas para trabalharem ombro a ombro em um projeto orientado para a ação, algo mágico acontece, e elas começam a desenvolver fundamentos de respeito uma em relação à outra.” 4 Depois de vários anos de atividades, a LR havia construído um bom relacionamento com lideranças locais em muitos bairros, em três eixos principais de atuação: renovar e reequipar ativos da vizinhança, como escolas, parques e equipamentos esportivos; embelezar seções da cidade por meio de mutirões de seis dias,

APESAR DE QUERER REUNIR AS PESSOAS, DERRUBAR BARREIRAS E CONSTRUIR UMA COMUNIDADE COLABORATIVA, A LR DE ALGUM MODO FRACASSOU EM ASSEGURAR A ESPÉCIE DE CONFIANÇA NECESSÁRIA PARA LANÇAR O PROJETO

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que mobilizavam milhares de voluntários; e consertar casas. A LR pensou cada atividade para construir e reforçar a comunidade, mediante a reunião de pessoas para resolver problemas. Então, em 2016, a LR estabeleceu uma parceria com o distrito escolar de Detroit para requalificar o prédio de uma antiga escola de ensino médio. A ideia era transformar o edifício em um polo comunitário que abrigaria um amplo leque de associações, como organizações sociais e pequenos negócios, que serviriam basicamente a uma vizinhança de negros pobres. O projeto, pelo menos para a LR, parecia algo com que os residentes ficariam animados e, quando Lambert informou os líderes da comunidade sobre o plano, eles pareceram apoiá-lo. A LR arrendou o prédio, enorme e sólido, por 50 anos, pagando apenas US$ 1 por ano; nenhuma outra organização ou indivíduo teve oportunidade de fazer uma oferta. No entanto, a LR foi pega no contrapé quando, com o contrato feito, anunciou suas intenções à comunidade. Seguiu-se uma saraivada de críticas: alguns exigiam que o contrato fosse anulado, enquanto outros ameaçavam processar o distrito. A comunidade mostrou uma ira palpável em dois encontros comunitários. Muitos indagaram por que um branco vindo de fora, e não um membro da comunidade negra, tinha conseguido um acordo mais que generoso, e se acaso isso era um sinal de que a gentrificação ia empurrar para longe os moradores que lutavam para sobreviver. Ainda que a LR tivesse trabalhado com sucesso junto a comunidades por toda Detroit e tivesse construído muitos relacionamentos com lideranças locais, o ato de adquirir imóveis – em especial daquele modo – era visto como uma ameaça, bem diferente de melhorar residências. Por mais que Lambert se visse como um bom comunicador e um líder versátil, que havia aprendido o significado e o alcance da contextualização em viagens, na África e à frente da LR, a reação indicou que ele não estava entendendo algo importante sobre como os residentes viam o mundo – e a ele próprio. Uma profunda desconfiança em relação ao governo, a gente de fora e aos brancos persiste entre muitas pessoas em Detroit. “Mais de 80% da população é de afro-americanos; no entanto quase toda decisão que balize de maneira significativa o futuro da cidade é tomada por um pequeno grupo de [suburbanos] brancos”, observa o planejador urbano e escritor Alan Mallach.5 Dwan Dandridge, vice-presidente da LR na ocasião e hoje à frente do Black Leaders Detroit, conhece essa dinâmica mais do que bem: “Nós, de Detroit, não somos muito confiantes [...]. A história nos ensinou a não sermos”.6 O impulso inicial de Lambert foi responder explicando os benefícios que o projeto traria.7 Dandridge, porém, aconselhou-o a só ouvir e aprender. “Não é razoável pedir aos negros que confiem em você, dada a história, que é muito mais longa e relevante para eles que seus cinco anos de bons préstimos.” Simpático aos objetivos do projeto e confiando em Lambert, mas com plena clareza sobre a origem das preocupações dos moradores, Dandridge atuou como mediador. Antes de avaliar o projeto, os residentes queriam acreditar que os relacionamentos viriam primeiro. Dandridge encorajou Lambert a aceitar questionamentos e críticas, em silêncio, pedindo desculpas quando necessário, absorvendo a ira e aprendendo a ler o contexto social. Lambert foi humilde o suficiente para ter consciência de que tinha

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muito a aprender com o processo e as pessoas. Ex-pastor, ele era motivado por sua fé a ser vulnerável e cheio de amor incondicional, e estava aberto a realizar as mudanças necessárias para permitir que o relacionamento avançasse em bases mais equitativas. Essa postura permitiu que os moradores locais fossem seus professores. A LR adaptou sua abordagem para assegurar que a vizinhança tivesse a copropriedade do projeto. “Com isso ganhei mais um exemplo de como minha vida necessita de remodelagem”, diz Lambert. “E boa parte dessa remodelagem requer a demolição de falsas crenças e expectativas e perspectivas erradas.”

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Cinco etapas da construção da confiança

LR APRENDEU muito ao desenvolver o centro comunitário. A entidade concebeu uma abordagem em cinco etapas para angariar e manter a confiança, criando alicerces para novas organizações em um local particular e transformando os relacionamentos na vizinhança. Em uma área na qual os residentes nem sempre confiavam em suas motivações, a LR catalisou o desenvolvimento de novas instituições e normas e ajudou a promover uma comunidade mais orientada para a cooperação e a ação coletiva. Esses esforços, combinados, aumentaram a confiança na organização e na vizinhança como um todo.

1. A LR visita muitas vezes o bairro, demonstrando disposição para aprender e ser vulnerável. Isso significa dar ênfa-

se a ouvir o que as pessoas têm a dizer, em especial pequenos grupos. A organização não promove seus planos; em vez disso, compartilha ideias quando indagada e evita o dispêndio de energia de grandes reuniões, nas quais as pessoas tendem a discursar de maneira dogmática ou autoritária e as vozes mais estridentes (algumas vezes de fora da área) podem dominar, pressionando os demais a se opor à mudança. 2. A organização identifica indivíduos com fortes redes em cada parte da vizinhança e gradualmente lhes oferece influência – e propriedade – sobre a iniciativa, dando-lhes confiança

para convidar outras pessoas e se juntar ao esforço comum. Ao abraçar as ideias deles e demonstrar de forma transparente suas próprias intenções, com linguagem respeitosa, a LR mostra aos residentes que eles estão sendo tratados com dignidade, e não como vítimas. “Ninguém gosta de ser visto como um alvo de caridade”, diz Lambert. “E, de fato, o talento se distribui em todas as populações, ainda que a oportunidade não.” 3. Com uma série de iniciativas de menor escala, a LR começa a construir confiança na comunidade, e os residentes têm ex-

periências em primeira mão com a entidade. Isso significa tocar um projeto de embelezamento do bairro e o trabalho de reparo de residências antes de fazer algo mais substancial. No caso do centro comunitário, a LR não agiu assim, realizando em vez disso projetos menores simultâneos ao projeto grande. O relacionamento pouco desenvolvido com a vizinhança contribuiu para a controvérsia. 4. À medida que a confiança se desenvolve, a LR constrói uma equipe basicamente de funcionários que moram na área

imediata ou perto o suficiente para conhecer bem o lugar e as

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pessoas, de modo a assegurar que a organização esteja apoiada em valores e normas locais. Moradores influentes e organizações se unem em grupos de consultoria que são ouvidos regularmente, com poder para orientar e estender o alcance da instituição, sustentar redes de confiança e solicitar a cooperação da comunidade. Combinados, esses fatores permitem à organização formar uma base forte o suficiente para uma estrutura ambiciosa como o centro comunitário. 5. A LR encoraja extensões e subprodutos, para que mais organizações e instituições trabalhem de maneira similar, ali-

mentando um ciclo virtuoso de mudança. Isso amplia a escala do esforço inicial e garante que a densidade das instituições sociais aumente. Essa estratégia inclui ter pessoas que sirvam de modelo e fonte de autoridade à frente dos esforços por melhorias, de modo que possam ter uma influência maior sobre a cultura do bairro. Em termos gerais, a LR busca não apenas construir confiança, mas também conquistá-la. Não dá para dizer para alguém confiar em você, só dá para mostrar que você é digno de confiança. Isso demora. “Não podíamos pedir que acreditassem em nós”, diz Lambert. “Não funcionaria, sobretudo naquele contexto. Em vez disso, pedimos às pessoas que cobrassem responsabilidade nossa para com aquilo que nos propusemos a fazer. Estávamos confiantes de que poderíamos cumprir o prometido.” Embora sempre tenha buscado ouvir os residentes para garantir que sua ação mirasse a demanda, essa prática ficou mais intensa a partir da desavença pública. “A comunidade conhece suas próprias necessidades melhor que qualquer pessoa de fora, mas não necessariamente tem os recursos e as relações”, observa Dandridge. “Mas a compreensão é um recurso em si [...]. Os de fora – entre eles, os filantropos – podem ter dinheiro, mas só isso não é suficiente sem a compreensão que a comunidade tem.”

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Frutos das associações

LR RECONHECE OS MORADORES como os verdadeiros heróis. Eles têm a capacidade de dizer o que acontece em seu bairro e devem ser parceiros na hora de fazê-lo avançar. O grupo informal com que Lambert trabalhou para enfrentar vários obstáculos acabou se tornando um corpo formal de 14 consultores para o centro comunitário e a LR. Entre eles, estavam alguns que antes eram contra a iniciativa, como Andre McCullough, residente com longa trajetória em desenvolvimento comunitário. “Consegui tudo que busquei para ajudar minha comunidade ao longo de 30, 40, 50 anos”, diz ele. “A Life Remodeled está fazendo isso frutificar. Estamos nos ajudando. Então, tudo bem.” Além disso, um conselho consultor para a juventude, composto por estudantes, reúne-se mensalmente para debater os desejos e expectativas das escolas e dos residentes, cobrar ações da organização e informar aos alunos e à vizinhança sobre novas oportunidades que vão surgindo. A LR busca ainda, de outros modos, impulsionar a confiança, a colaboração da comunidade e o capital social. Suas várias iniciativas e corpos de consultores fortalecem a influência de líderes

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escolares e da comunidade ao difundir seus perfis por toda a área. Seu foco em serviços promove o ideal de devolver à comunidade e de melhorar a vizinhança. Além disso, a organização promove eventos comunitários gratuitos e doação de recursos, reforçando elos com os residentes. Também participam os parceiros e inquilinos do centro, onde há, entre outros, acesso gratuito a itens como fraldas, um centro de saúde, grupo de apoio a doentes de câncer, aulas para jovens oferecidas por outras organizações locais – tudo em um só lugar. A LR também estabelece relações pessoais com os residentes, em festas e eventos da comunidade e indo de porta em porta. Entre os arrendatários que recrutam, buscam incluir investidores dispostos a se comprometer com uma colaboração a longo prazo com outras organizações na construção e renovação da vizinhança; parcerias públicas fortalecem os recursos da comunidade e os laços sociais fora da área. Nada disso é fácil, em especial diante da rotatividade significativa, que torna necessários acordos ano após ano com moradores recém-chegados. Colocar “as pessoas acima dos projetos”, como enfatiza a LR, consome bastante tempo e envolve muito investimento em relacionamentos. É bem mais complexo que reformar um prédio ou fazer a limpeza de um bairro e, com frequência, exige comprometer a eficiência operacional a curto prazo. A LR investiu US$ 5 milhões no centro comunitário, batizado Durfee Innovation Society (DIS) – nome emprestado da antiga escola por escolha do conselho estudantil. O centro está plenamente ocupado. São 39 organizações não lucrativas e empresas sociais dedicadas a serviços à comunidade, projetos de busca de emprego e treinamento da mão de obra e programas para a juventude. Cerca de 70% das iniciativas são conduzidas por negros, que não tinham a menor presença comercial na vizinhança. A DIS emprega 230 pessoas em tempo integral e outras 200, a maioria das proximidades, em meio período. Assim se constroem conexões para além do bairro, antes inexistentes. Ao se tornarem membros do centro comunitário, essas pessoas também se interessam pela renovação da vizinhança. “O que mais me animou foi ver a colaboração entre os donos de negócios para ajudar crianças, adultos e idosos da comunidade imediata”, diz Teresa Singleton, proprietária da BouTiki, uma loja de roupas femininas localizada na DIS. “Não sentia que estava sozinha em uma ilha.” Ainda que dinâmicas mais amplas venham dando ímpeto à gradativa recuperação de Detroit, o impacto da DIS é palpável e mostra os efeitos catalisadores de ampliar escala e conectar esforços em uma localidade particular. O objetivo, diz Terence Willis, membro do conselho consultivo da LR, “não é apenas investir em uma construção, mas regenerar uma vizinhança, dando exemplo para que outros na mesma área – ou em outra – possam aprender, em um processo de autopropagação da renovação”. Em Dexter-Linwood – o bairro onde o centro está localizado –, o crime diminuiu; cresceu o número de alunos que, após a escola, têm acesso a mentorias, aulas de desenvolvimento de habilidades e programas de liderança; e as propriedades estão se valorizando, conforme a área gradativamente se torna melhor para morar. Desde 2021, a LR fez melhorias em 1.810 quarteirões, revestiu 2.062 casas e investiu US$ 38 milhões (parte deles em

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dinheiro vivo) em ativos comunitários, em toda Detroit. A prosperidade ampliada brotou dos laços comunitários e da confiança social que a LR ajudou a construir.

Adaptando-se aos Apalaches GEOGRAFIA E A DEMOGRAFIA do leste do

Kentucky são em tudo diversas daquelas do leste de Michigan, onde fica Detroit; a importância de parcerias confiáveis, porém, é a mesma. Na vasta Appalachia – a região socioeconômica dos montes Apalaches, que se estende do sul do estado de Nova York ao nordeste do Mississippi –, os de fora, mesmo que venham de perto, atraem suspeita. Um condado ou mesmo uma parte de um condado pode ser bem diferente de outra. Por causa desse hiperlocalismo, qualquer organização que trabalhe na área tem de adaptar sua abordagem para cada comunidade.

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A Partners for Education (PFE) dá o exemplo de como forjar lideranças locais e se adaptar ao local. Fundada em 1995 por Dreama Gentry, ainda à frente da entidade, a PFE combina estratégias para amplificar seu impacto nas crianças da região e no contexto social. Nativa da Appalachia e formada no Berea College [que, apesar de privada, é a única universidade totalmente gratuita dos Estados Unidos], Gentry, como a maioria das pessoas com maior escolaridade na região, teve de ir embora para completar seus estudos e arranjar emprego. Foi para a Faculdade de Direito da Universidade de Kentucky e tornou-se uma advogada praticante em Bowling Green. No entanto, também como a maior parte de seus conterrâneos, sempre manteve fortes laços locais e sonhava retornar, se tivesse uma oportunidade boa o bastante. Foi o Berea College que deu essa chance a Gentry. Suas conexões com a escola e a região, seu pensamento estratégico, seu carisma e sua coragem de se arriscar fizeram dela um nome adequado para ser a diretora de programas especiais da instituição. Seu presidente, Larry Shinn, deu-lhe autonomia, mentoria, confiança e encorajamento. Essa confiança permitiu a Gentry construir um programa-piloto em Rockcastle, condado vizinho situado em Kentucky. Usando as habilidades adquiridas em sua formação, Gentry buscou ideias e pesquisas novas, especializando-se aos poucos nas diferentes maneiras como educadores propunham melhorar escolas e estudantes país afora. Sob sua supervisão, o programa-piloto tornou-se a PFE. A PFE nasceu do esforço para identificar estudantes do ensino médio da Appalachia em situação de desvantagem ou subvalorizados, que desejavam cursar uma faculdade mas tinham poucas probabilidades de fazê-lo. A iniciativa rapidamente se ampliou. Um documento interno define seu objetivo como “assegurar que o talento pouco aproveitado da juventude da região seja adequadamente reconhecido, desafiado e canalizado”. A ideia passou a ser elevar o nível de educação de toda a região, e não apenas ajudar o Berea College a ampliar o número de potenciais alunos qualificados.8 Hoje, a PFE coordena esforços para lidar com o colapso social precipitado pela evasão de investidores, líderes e modelos, somado a desemprego, pobreza, vício em drogas, desespero e disfunções familiares que afligem os jovens da área e os impedem de alcançar seu pleno potencial.9 A organização se expandiu e reúne 420 pessoas, com uma operação de US$ 43 milhões, que cobre 31 dos 54 condados apalachianos do Kentucky.

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A PFE alavanca escolas, que não raro são a única organização social em tecidos sociais frágeis, prestando serviços a 50 mil jovens. Seu modelo de comunidade escolar veio da Harlem Children’s Zone (HCZ), que melhorou a educação em um bairro tradicionalmente negro da cidade de Nova York, por meio de uma abordagem holística, tocando todas as influências comunitárias na vida de uma criança. A PFE criou uma versão dele para a Appalachia. O fio condutor abrangente, baseado no local, do-berço-à-profissão, e o amplo leque de intervenções sociais, educacionais e econômicas que a HCZ desenvolveu para apoiar seus jovens, as famílias deles e a comunidade mais ampla tornaram-se um modelo nacional – mas que só podia ser transferido para a Appalachia se fosse traduzido para responder às necessidades locais. Uma dessas necessidades era mostrar os benefícios de uma educação universitária a pais que não a tiveram. “Fui a primeira em minha família a fazer faculdade”, diz Gentry. “O grau universitário abriu portas para mim que meus pais nunca poderiam imaginar. Meu trabalho – minha vocação – consiste em abrir essas portas a todos os estudantes apalachianos.”10 Ela deparou-se com duas barreiras de confiança: a preocupação de que uma educação universitária não respeitaria os valores dos pais e o receio de que indivíduos formados abandonassem suas cidadezinhas e jamais retornassem.11 A PFE lida com essas preocupações levando os estudantes e suas famílias para visitar escolas, elevando expectativas e mostrando como os estudantes podem ajudar suas comunidades com as habilidades que adquirem. Os resultados da PFE enfatizam suas realizações e a perspectiva de um trabalho ainda maior naquela que é uma das quatro áreas mais pobres do país.12 Nos condados onde a PFE instalou seu programa universal, intitulado Gear Up – uma iniciativa de seis anos para acesso à faculdade –, os índices de graduação no ensino médio subiram de 74% para 94%. Nos condados atendidos pelo Promise Neighborhoods, iniciativa antipobreza do Departamento de Educação dos Estados Unidos, a PFE ampliou os resultados de autonomia no jardim de infância de 16% para 36%, a proficiência em matemática de 27% para 40%, e a proficiência em inglês de 35% para 50% ao longo de cinco anos (2012-2017). Nos oito condados cobertos pelas Promise Zones, outra iniciativa antipobreza, mas do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos, os níveis de proficiência em matemática e leitura aumentaram, superando a média do estado. E, com ajuda da PFE, a Leslie County High School, que reunia simultaneamente vários desses programas, além de di-

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versas intervenções adicionais, ascendeu da 224a posição (entre 230) no estado em 2010 para a 16a em quatro anos, elevando o índice de graduação de 68% para 97%.

Ancoragem e empoderamento SUCESSO DA PFE VEM DE ELA RESPONDER

diretamente aos desafios sociais da região por meio de uma ampla variedade de iniciativas que visam impulsionar cada camada do contexto social: família, bairro, comunidade e escola. Muitos estudantes têm traumas, passam fome, vivem sem eletricidade e às vezes nem têm onde dormir. Seus lares se desintegraram ou se tornaram violentos. “Ouvi de muitos diretores que mais da metade dos alunos de seus estabelecimentos está sendo criada por pessoas que não são seus pais”,13 diz Gentry. Faltam às comunidades coesão e liderança – e dinheiro – para lidar com seus desafios básicos. E as escolas – em particular as do ensino médio, que têm muito mais estudantes e exigem uma preparação mais rigorosa para a faculdade – simplesmente se mostram incapazes de atender às necessidades dos jovens, em especial diante de seus próprios desafios no tocante a financiamento e pessoal. Gentry logo compreendeu como os relacionamentos e a confiança são decisivos para qualquer iniciativa social, sobretudo em uma região tão voltada para as relações. Com o tempo, a PFE adotou a estratégia de ancorar suas equipes nas comunidades, um pré-requisito para ganhar confiança. Buscando talentos locais, sempre que pode, a organização contrata pessoas da área em que opera. Esses indivíduos têm conhecimento direto de pessoas, problemas e meios de trabalhar que gente de fora não possui e, portanto, muito mais probabilidades de saber como adaptar a iniciativa, definir suas prioridades e garantir que seja implementada conforme planejado. Tendo, de modo geral, menos escolaridade e conhecimento técnico, de início essas pessoas precisam de mais treinamento e tempo para se ajustar ao trabalho. A PFE alavanca a AmeriCorps, uma iniciativa federal para encorajar adultos a trabalhar por rendimentos modestos em organizações públicas ou não lucrativas por até três anos, a fim de descobrir e aprimorar talentos locais inexplorados. Os participantes são inseridos diretamente nas escolas, executando funções fundamentais, como mentoria de estudantes, e coordenando diferentes serviços públicos, da escola e da PFE. Eles também são en-

CONTRATAR E ANCORAR A EQUIPE NO SEIO DAS COMUNIDADES É ESSENCIAL PARA DESENVOLVER O TIPO DE PERSPECTIVA E DE ABORDAGEM DE DENTRO PARA FORA QUE VAI CONSTRUIR CONFIANÇA E REFLETIR AS NECESSIDADES LOCAIS

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corajados a desenvolver suas próprias habilidades, por exemplo, completando sua formação online. Muitos acabam contratados pelas escolas. O programa reduz o desemprego, extraordinariamente elevado em partes dessa área, e fortalece a cultura de serviços comunitários. No total, 80% do pessoal trabalha em escritórios, escolas e bairros locais. A PFE dispõe hoje em dia de oito escritórios em sua região-alvo. Ao priorizar a construção da confiança e os relacionamentos de longo prazo com todos, a PFE tem acesso à informação antecipada e à alta credibilidade necessárias para identificar fatores de risco, como mudanças na aparência da criança, na situação familiar ou em seu desempenho escolar. Isso permite prevenir problemas, em vez de apenas responder a eles, como faz a maioria das organizações não lucrativas. Essa intimidade também ajuda a identificar oportunidades que outros podem não perceber, no âmbito do condado, da escola ou dos estudantes. A PFE também descentraliza a tomada de decisões, empoderando a equipe e os parceiros locais para garantir que os membros das comunidades conduzam o trabalho, determinando as melhores estratégias para atender a padrões em comum; aprendendo habilidades tais como facilitação, análise de dados e construção de recursos; e construindo a capacidade coletiva para lidar com desafios em outras áreas. Por exemplo, os superintendentes têm autonomia significativa para decidir como o dinheiro da PFE é gasto em seus distritos. Essa atitude também torna mais provável que as escolhas reflitam o consenso da comunidade, facilitando sua recepção e implementação. De maneira similar, embora a PFE realize suas próprias coletas de informação e análises, ela as compartilha com os tomadores de decisões locais – sejam eles funcionários, professores, líderes escolares ou funcionários públicos. Isso fomenta o aperfeiçoamento contínuo, tornando claro como pequenas mudanças podem ter impacto nos resultados. Também auxilia as escolas a priorizarem dados, usando-os tanto quanto possível. A PFE se volta para resultados, mas tem consciência de que o mesmo objetivo, buscado em diferentes locais, pode requerer abordagens muito diferentes. Por exemplo, enquanto em um condado a causa dos baixos níveis de autonomia no jardim de infância se deveu à falta de capacitação dos cuidadores, em outro, resultou de equipamentos inadequados. A PFE também usa uma abordagem de duplo foco para ajudar as comunidades a acumular suas próprias forças enquanto estão implementando os objetivos da organização. Programas com a primeira infância fortalecem as famílias. Programas de mentorado dão apoio tanto a estudantes quanto a cuidadores. Iniciativas educacionais destinam-se igualmente a fortalecer as habilidades da força de trabalho. Construir a capacidade local para além dos estudantes não só fomenta um apoio mais forte às necessidades destes últimos como também ajuda comunidades que devem inevitavelmente encarar o risco de “êxodo de cérebros”. “Jamais pensei que eu poderia ser uma liderança, fazer diferença”, diz Cailin McDonald, uma estudante de ensino médio no condado de Knox. “Mas, vendo as diferentes coisas que pude fazer na minha própria comunidade, o modo [como a PFE] permitiu meu envolvimento [...] foi muito benéfico para a comunidade e para meu crescimento pessoal.”

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A PFE constatou que o trabalho por meio de parcerias é mais sustentável ao longo do tempo. Financiamentos podem secar, mas os relacionamentos que as parcerias criam são como sementes, podendo voltar para o solo e servir a região da PFE. Assim, ela estimula organizações parceiras e escolas a compartilhar conhecimento entre si, a buscar novas oportunidades e fontes de financiamento e a participar de treinamentos. A PFE vê o desenvolvimento de outras organizações na área como um aprofundamento de sua missão. Em alguns casos, os próprios parceiros aprendem novas habilidades, de tal modo que o financiamento deixa de ser necessário para manter os programas. A PFE tem a expectativa de que muitos membros de suas equipes migrem para organizações parceiras no âmbito das comunidades. Ainda que isso gere custos a curto prazo para a organização, que investe em treinar esses profissionais, é um meio de fortalecer as instituições locais, fornecendo-lhes novas habilidades, perspectivas e lideranças. Esses quadros auxiliam em especial as escolas parceiras, que não raro sofrem com a escassez de professores, conselheiros e administradores de qualidade. Além disso, eles são porta-vozes dentro da escola local e do governo em favor da programação da PFE, ancorada nas melhores práticas baseadas em evidências. Desse modo, a PFE gradativamente fortalece a comunidade, aumentando com isso a capacidade de aprofundar sua própria missão.

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Faça as perguntas certas

CONSTRUIR CONFIANÇA NUNCA É FÁCIL. Fazê-lo de um modo que ajude uma organização avançar, ancore grande número de pessoas em um trabalho em rede estimulante para relacionamentos e instituições e capaz de elevar expectativas e normas em determinado local – ampliando o capital social e a eficácia coletiva no processo – é bem raro. Ao enfrentar com êxito esses desafios, a LR e a PFE mostram o que poderia ser possível em outros locais. Mais especificamente, as duas organizações nos orientam a melhorar as perguntas que nos fazemos sobre trabalhos voltados para um local determinado. Pergunte “quem?”. | Em primeiro lugar, contratar e ancorar

a equipe no seio das comunidades é essencial para desenvolver o tipo de perspectiva e de abordagem de dentro para fora que vai construir confiança e refletir as necessidades locais.

Isso é uma parte clara da estratégia da LR e da PFE. Ambas se baseiam em um alvo geográfico, priorizando contratar pessoas da comunidade ou familiarizadas com ela. (No caso da PFE, todo o seu pessoal é da Appalachia.) O “quem?” não se limita à contratação. As duas organizações dão poder a equipes e líderes locais para tomar decisões críticas. A PFE delega a tomada de decisões a pessoas no território, onde é provável serem mais dependentes do conhecimento local e de relacionamentos preexistentes. Por sua vez, a LR empodera seus corpos de consultores e seus funcionários oriundos dos lugares onde opera. Em ambos os casos, as organizações tomam decisões consultando o tempo todo seu pessoal, funcionários, parceiros e

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líderes sociais locais, criando uma teia de responsabilidades que não se vê quando as decisões são tomadas longe do campo ou baseadas só em conhecimento técnico. Como resultado de todos esses esforços, as organizações se expõem mais a cobranças de seus parceiros e dos cidadãos, algo difícil de acontecer quando uma organização se volta só para objetivos materiais e depende de apoio externo para operar. Pergunte “quando”. | Em segundo lugar, devemos reconhecer quão lento e gradual pode ser o processo de conquistar confiança. A LR descobriu que a sequência em etapas era impor-

tante e que era melhor começar em pequena escala em uma nova área antes de tentar lançar um projeto maior. Por tentativa e erro, a LR desenvolveu um meio de trabalhar com os residentes, com uma sequência de atividades que fincava raízes na vizinhança e assegurava a confiança dos moradores. De modo similar, a PFE aprendeu que era essencial crescer de forma gradual e primeiro experimentar com modelos, construir relacionamentos e habilidades e conquistar a confiança dos membros da comunidade. Em seguida, pergunte “o quê?” e “onde?”. | O sucesso dos esforços com frequência depende de lidar com barreiras iniciais no contexto. Qualquer ação que seja parte de uma iniciativa

ou complementar a ela – e que aumente a confiança e o capital social na comunidade – provavelmente fará prosperar, no devido tempo, os objetivos perseguidos. A LR não se limitou a oferecer serviços, mas procurou ligar os residentes uns aos outros, de um modo que fortalecesse os laços sociais e promovesse os interesses deles. De forma similar, a PFE buscou executar programas e reforçar seus funcionários, seus parceiros e as instituições locais (por exemplo, aceitando que seus empregados se tornassem parceiros) de maneira que contribuíssem para os condados onde trabalhava. Por fim, cada esforço deve ser adaptado ao contexto local.

Em Detroit, a LR estabeleceu um papel decisivo para os grupos locais de consultoria, capacitando-os a influenciar projetos maiores, tais como a Durfee Innovation Society. No Kentucky, a PFE customiza os programas para cada condado ou distrito escolar. Por mais que ampliar a escala seja importante, moldar o modelo para cada vizinhança ou área mostra-se fundamental para um sucesso duradouro. Trata-se de reconhecer a individualidade dos líderes locais e seus talentos, a história única de uma comunidade e a necessidade de encontrar caminhos que sejam determinados e percorridos juntos – e devagar.

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Além do material

ENERALIZANDO COM BASE NOS DOIS estudos de caso, nós do setor social devemos avançar para além de um foco míope nas necessidades materiais e nos resultados tangíveis. Iniciativas projetadas para superar desafios ou ampliar perspectivas para qualquer grupo ou vizinhança precisam de início responder a algumas perguntas fundamentais acerca de relacionamentos. Por exemplo, existe confiança suficiente para lançar uma nova iniciativa? Se não houver, quais passos precisam ser dados para assegurá-la? Existe alguma coisa sobre

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como uma organização atua que resulte no desenvolvimento de confiança por parte de sua audiência-alvo desafiadora? Em termos mais amplos, como as relações sociais locais e a confiança que as impulsiona podem ser fortalecidas de modo a construir uma base mais forte para melhorar os resultados? Como podem esses laços se tornarem melhores redes de segurança e mecanismos para a mudança? Como ligações fortes e construtivas com organizações externas e partes da sociedade, que se mostram tão importantes, podem ser melhoradas? Deslocar o foco do material para o social é decisivo em muitas iniciativas, sobretudo em estados, sociedades e vizinhanças frágeis. Quando a confiança social geral é baixa entre os residentes e estes não têm facilidade para se associar em redes de trabalho ou agir de maneira coletiva, quando estão isolados demais da sociedade para se conectar a oportunidades, eles diminuem suas expectativas para com o local onde vivem – e para com seu próprio papel nele. Esse pessimismo pode ter um efeito cascata em outros residentes e nas instituições que os unem e os moldam. Organizações como a LR e a PFE mostraram como mudar essa dinâmica pelo incentivo ao talento local, pelo sequenciamento de atividades e programas e por meio da adaptação e do fortalecimento de contextos locais. Outras organizações que busquem melhorar os resultados de indivíduos e comunidades deveriam considerar uma mescla similar de estratégias. O S E T H D . KA PLA N é professor na Paul H. Nitze School of Advanced International

Studies (Sais) da Universidade Johns Hopkins. Seu livro Fragile Neighborhoods: Repairing American Society, One Zip Code at a Time [Vizinhanças frágeis: consertando a sociedade americana, um CEP por vez] foi lançado em outubro pela Little, Brown Spark.

O autor agradece a Anne Snyder por lhe apresentar a Life Remodeled.

N O TA S

Lee Rainie, Scott Keeter e Andrew Perrin, “Trust and Distrust in America” [Confiança e desconfiança na América], Pew Research Center, 22 jul. 2019. 2 Robert Sampson, Great American City: Chicago and the Enduring Neighborhood Effect [Grande cidade americana: Chicago e o duradouro efeito de vizinhança], Chicago: University of Chicago Press, 2012. 3 Rainie, Keeter e Perrin, “Trust and Distrust in America” [Confiança e desconfiança na América]. 4 Anne Snyder, “Race, Relationships, and Repentance” [Raça, relacionamentos e arrependimento], Breaking Ground, 31 jul. 2020. 5 Alan Mallach, The Divided City: Poverty and Prosperity in Urban America [A cidade dividida: pobreza e prosperidade na América urbana], Washington, DC: Island Press, 2018. 6 Anne Snyder, “Detroit Neighborhoods Remodel for Life” [Os bairros de Detroit se remodelam para a vida inteira], BitterSweet Monthly, jan. 2019. 7 Snyder, “Race, Relationships, and Repentance” [Raça, relacionamentos e arrependimento]. 8 Dreama Gentry, J. Hunter Morgan e Teri Thompson, “Conditions for Growth: Colleges as Anchor Institutions in Rural Communities” [Condições para o crescimento: faculdades como instituições de ancoragem em comunidades rurais], documento interno não publicado, 2019. 9 Dreama Gentry, “How Colleges Can Anchor Rural Schools and Communities” [Como as faculdades podem ancorar escolas e comunidades rurais], Accessibility, Compliance & Equity, mar./abr. 2020. 10 Dreama Gentry, “The Radical Nature of Educational Equity” [A natureza radical da equidade educacional], apresentação TEDxCorbin, 9 mar. 2019. 11 Sara Weissman, “Bridging a Growing Divide” [Lançando pontes sobre uma separação crescente], Inside Higher Ed, 3 out. 2022. 12 As outras três são reservas de americanos nativos, partes do Sul rural e comunidades na fronteira com o México. 13 Dreama Gentry, “The Radical Nature of Educational Equity” [A natureza radical da equidade educacional]. 1

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P O N T O D E V I S TA Insights das linhas de frente

Encontre sua missão climática O desafio não se limita aos que lidam com o tema; todos têm de achar seu papel POR MATT DAMON E AMY BELL

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s ameaças crescentes da mudança climática desafiam o trabalho de todas as organizações, inclusive daquelas cujas missões parecem não ter relação com questões climáticas. À medida que os impactos causados por elas se acumulam, todos teremos que encontrar formas de nos unirmos em uma luta comum. Muitas organizações podem se ver abaladas por essa dinâmica, achando que sua própria missão está tendo sua importância reduzida ou que estão competindo por recursos com ativistas ligados a questões climáticas. Porém, mais cedo ou mais tarde, todas passarão pelo processo de aprendizagem para encontrar um caminho em busca da ação climática, já que o que está em jogo causa impactos duradouros nos sistemas nos quais todos nós atuamos. Na WaterEquity nós passamos por esse processo e, graças às lições que aprendemos com isso, hoje podemos aconselhar outras organizações a encontrar formas de definir e incorporar, de maneira autêntica, sua própria missão climática. ILUSTRAÇÕES DE ERIC NYQUIST

AÇÃO CLIMÁTICA PREMENTE

A WaterEquity é uma das primeiras gestoras de ativos a levar financiamentos viáveis às pessoas que fazem parte da base da pirâmide econômica a fim de que elas possam investir em sua própria rede de saneamento e água potável. Atualmente, uma em cada quatro pessoas – 2,2 bilhões – em todo o

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mundo não tem acesso à água potável, e duas em cada cinco – 3,5 bilhões – não têm saneamento seguro. A falta de investimento é a principal barreira ao acesso à infraestrutura necessária para fornecê-los. Tendo como base nosso trabalho na Water.org – organização internacional sem fins lucrativos que ajuda a viabilizar o acesso a água potável e saneamento para os que vivem na pobreza –, lançamos, em 2017, a WaterEquity, para fomentar investimentos privados no setor em mercados emergentes. Seu modelo é simples, mas poderoso: oferecemos capital de terceiros para instituições financeiras a fim de ampliar suas carteiras de microcrédito. Isso possibilita que milhões de consumidores de baixa renda implementem soluções para os problemas hídricos e de saneamento em suas casas, como instalar encanamento ou um banheiro. A mudança climática tem sido uma das muitas preocupações que acompanham nosso rápido crescimento. As pessoas podem não ter água potável ou saneamento devido a secas, inundações, em virtude da pobreza ou de infraestrutura deficiente. Mas a necessidade de se adaptar aos efeitos da mudança climática cresce ano após

ano entre aqueles que contraem microempréstimos conosco. Porque o modelo da WaterEquity foi elaborado de modo a colocar todo o poder de mudança nas mãos dessas famílias, suas preocupações são também, e inevitavelmente, nossas. A mudança climática interage com todos os demais padrões de vulnerabilidade, atingindo principalmente, e com força, as pessoas a quem servimos por meio da filantropia e do investimento de impacto. Será que o oposto também é verdade – ou seja, que nossos esforços ajudam as pessoas a enfrentar esses impactos? Sempre acreditamos que sim, ainda que tenhamos enfrentado períodos de muita incerteza. Uma ação que promove desenvolvimento, mesmo nas comunidades mais necessitadas, frequentemente promove, também, emissões de carbono. Em 2019, a Water.org pediu para que especialistas em questões climáticas do Pacific Institute se aprofundassem nas implicações da mudança climática no tocante às tecnologias e ao financiamento hídricos, principalmente para populações de baixa renda ou marginalizadas. O estudo resultante mapeou de que maneira os sistemas de abastecimento de água e saneamento contribuem para a mudança climática – e como isso os afeta – e de que forma melhorar a eficiência hídrica e energética, com medidas acessíveis e resilientes à mudança climática, beneficia a todos. A Water.org encomendou, então, um metaestudo das evidências internas e externas – que contou com pesquisas feitas junto a credores e beneficiários de microcrédito – a respeito das mudanças climáticas que eles já vinham observando. Entre os credores, dois terços mencionaram a redução das chuvas, e quase o mesmo número de entrevistados falou sobre enchentes. Por sua vez, um terço dos beneficiários de empréstimos para abastecimento de água, bem como 18% dos que contraí-

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ram empréstimos para questões ligadas ao saneamento, afirmou ter levado em conta os impactos causados pelas mudanças climáticas em suas vidas na hora de decidir o que reformar. O metaestudo descobriu que investimentos financiados por microcrédito geralmente aumentam a resiliência dos serviços às mudanças climáticas. Por exemplo, uma família que antes coletava água em um lago ou em um riacho aberto impuro conseguiu ter encanamento ou um poço fechado com um reservatório. Em resumo, as pessoas sabiam o que estavam fazendo e tínhamos todos os motivos para deixá-las escolher a melhor maneira para usar o capital obtido graças ao financiamento por meio da WaterEquity. Nossa ação ao facilitar o acesso universal à água potável e ao saneamento básico, é uma ação climática premente. Isso é algo de que temos convicção. Ao longo da jornada, outro problema surgiu: na melhor das hipóteses, instalações domésticas de água e esgoto têm o mesmo nível dos serviços públicos aos quais se ligam e que, no Sul Global, muitas

COMPROMETER-SE COM O CLIMA

Envolver-se com ações climáticas mostrou-

se natural para a WaterEquity; era apenas questão de tempo, dada a conexão entre clima e água. Ainda assim, foram necessárias algumas escolhas conscientes para passarmos de adjacentes ao clima para comprometidos com ele. A seguir apresentamos algumas das lições que aprendemos. Não tema participar. Para cada ação, existem inúmeras lacunas a preencher | É fácil imaginar que haja uma enorme agenda voltada para o que precisa ser feito – e tomara que a COP28 possa mobilizar disposição e dinheiro suficientes. No entanto, mesmo os principais financiadores de questões climáticas são novos nesse ambiente e ninguém tem um plano de ação abrangente. Organizações sem envolvimento direto com o clima podem atuar de muitas maneiras, em especial no que diz respeito a desafios locais de adaptação. Quanto à luta global, mitigação e adaptação podem até ocorrer sem que nos envolvamos, mas não de modo aceitável: muitos serão deixados de lado de-

der o clima também a partir de seu ponto de vista. Uma solução ideal em um determinado lugar pode não ser tão boa em outro, e os motivos para isso são provavelmente óbvios para os que vivem ali. Caso esteja trabalhando com os altos níveis do sistema – como é o caso da WaterEquity atualmente, ao atuar com os serviços públicos –, preste atenção à sua experiência. Não busque encaixar o que você já faz em um discurso climático | Algumas organizações se contentam em rebatizar as coisas que fazem como ação climática. Já não é possível aceitar isso, se é que um dia foi. No caso da WaterEquity, primeiro perguntamos se o que fazemos é verdadeiramente parte da solução – por sorte descobrimos boas evidências de que estamos do lado certo; depois, buscamos formas de ir além, tais como resolver vazamentos em encanamentos públicos. Hoje continuamos a coletar informações para descobrir o que mais podemos fazer, seguindo o princípio de que não podemos gerir o que não avaliamos. Mantenha uma mentalidade colaborativa e catalise o impacto pela ação coletiva |

Não encaixe o que você já faz no discurso climático. Algumas organizações se contentam em rebatizar as coisas que fazem como ação climática. Já não é possível aceitar isso, se é que um dia foi vezes têm baixa resiliência climática e promovem grandes emissões. A energia usada para transportar e tratar água representa 1,8% de todas as emissões de carbono. O saneamento é responsável por 4,7% das emissões de metano, que variam de acordo com o tratamento dado ao esgoto. Muitos desses serviços públicos também não têm capital para realizar melhorias. O investimento climático pouco fez por essa área e, embora financiamentos de infraestrutura comercial nos setores de energia e transporte estejam crescendo, apenas 1,9% desse montante é destinado à água potável e ao saneamento. Por isso, além de ampliar os financiamentos para famílias, a WaterEquity desenvolveu uma nova estratégia voltada para a resiliência hídrica e climática, passando a avaliar financiamentos de sistemas hídricos e de saneamento que produzam pouca emissão de carbono e sejam mais capazes de proteger seus clientes das mudanças climáticas.

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vido a essas lacunas. Sabemos disso porque é algo que já está ocorrendo. Consulte os especialistas | Embora o movimento da WaterEquity em direção ao financiamento de ações climáticas tenha parecido orgânico, os pontos de inflexão surgiram de conversas e de colaborações adotadas nos últimos anos. Não subestime o potencial dos diálogos com pessoas profundamente envolvidas em pesquisas sobre o clima. Eles são oportunidades para aprendermos com seu admirável comprometimento para com as evidências e de colaborarmos com a próxima etapa da ação coletiva. Se tiver dúvidas a respeito de como seu trabalho se encaixa, procure respostas junto a outras organizações com experiência e evidências sobre a questão climática – elas estão ávidas por compartilhá-las. Consulte os outros especialistas. | Acreditamos que soluções que dão certo tendem a surgir nas comunidades na base da pirâmide econômica. Por isso, busque enten-

A ação climática está crescendo rapidamente, mas não tanto quanto suas consequências. Organizações que têm essa agenda como central ainda são minoria em meio à multidão das que têm outras causas – e estas não são, nem jamais foram, periféricas: o trabalho que realizam é ou parte da solução ou parte do problema. Como toda inovação social, a solução não pertence a entidade alguma. As ações de diferentes parceiros se entretecem para gerar mudanças significativas. Ao nos desafiarmos a pensar assim, temos de ser criativos, agir com propósito e respeitar as evidências. Essa é a recompensa por iniciar e sustentar conversas sobre grandes problemas – incluído aí o maior de nosso tempo. O MATT DAMON é ator, escritor e roteirista e cofundador da WaterEquity e da Water.org. AMY BELL integra o conselho da WaterEquity e é

CEO da Cook’s Nook, produtora e distribuidora de refeições frescas, nutritivas e culturalmente relevantes no combate à insegurança alimentar, à desigualdade e a doenças crônicas.

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O caminho da despolarização Disciplina em ascensão, a comunicação de interesse público oferece soluções para um mundo amplamente dividido POR ANGELA BRADBERY E JANE JOHNSTON

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s manchetes nos Estados Unidos relatam uma polarização política implacável. Vejamos o caso do controle de armas, por exemplo. Tiroteios em massa tornaram-se comuns demais e são acompanhados por reportagens que indicam que os esforços para a realização de reformas estão fadados ao fracasso. “À medida que seguem os tiroteios em massa, Washington volta a enfrentar o impasse sobre a questão das armas”, lamenta a manchete de 24 de janeiro de 2023 do New York Times, depois de dois tiroteios na Califórnia. A verdade, porém, é mais complexa do que sugerem as manchetes. Embora o movimento pelo uso seguro de armas tenha sofrido reveses sérios, também viu conquistas. A cada nova pesquisa, fica claro que a grande maioria dos americanos deseja tirar as armas das mãos de pessoas perigosas, e, em alguns estados, legisladores dos dois principais partidos do país já se posicionaram. Em 2018, após um tiroteio que matou 17 em uma escola na Flórida, 26 dos 50 estados americanos e mais o Distrito de Colúmbia, onde fica Washington, aprovaram leis pelo uso seguro de armas, 12 delas encabeçadas por republicanos. No mesmo ano, aprovou-se em Delaware uma lei que permite apreensão de armas de pessoas avaliadas como perigosas por profissionais de saúde mental. O Congresso americano, fortemente dividido, aprovou, em junho de 2022, reformas modestas sobre o uso seguro de armas, com mais de duas dúzias de republicanos votando a seu favor. “Durante anos, o lobby por armas espalhou o mito de que enfrentávamos uma escolha binária: armas para todos ou armas para ninguém. Isso não é verdade”, afirma a organização Gun Owners for Safety, coalizão criada pela ex-congressista Gabby Giffords, que sobreviveu a

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uma tentativa de assassinato em 2011. “Patriotas de todos os tipos podem concordar que a Segunda Emenda (que garante a legítima defesa) anda lado a lado com medidas de senso comum, tais como checagem plena de antecedentes. Nossa missão é reunir aliados improváveis para que defendam ideais de segurança e responsabilidade.”

Como pesquisadoras da comunicação de interesse público, entendemos a sabedoria que há em uma abordagem que privilegie pontos comuns em vez de diferenças. Vivemos em polos opostos do planeta e temos definições divergentes sobre o tema, mas compartilhamos inúmeros princípios comuns que nos parecem essenciais para lidar com o perigo, muitas vezes enraizado, da polarização política e social. TRÊS PONTOS ESSENCIAIS

Área acadêmica emergente, a comunicação de interesse público busca usar o diálogo para enfrentar problemas sociais complexos. Na Universidade da Flórida, onde Angela leciona, a área é definida como o uso de comunicações estratégicas baseadas em pesquisas com o intuito de mobilizar pessoas para promover mudanças sociais efetivas e positivas – normalmente visando um fim determinado. Na Universidade de Queensland, onde Jane é professora, o termo significa priorizar processos democráticos (como consultas e escutas) e fomentar um debate público fundamentado. Logo, está tanto ligado ao processo quanto ao resultado ou à solução. Apesar de tal divergência, compar-

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tilhamos três compromissos. Primeiro, defendemos o afastamento de pensamentos binários. Antagonismos rígidos entre bem e mal ou certo e errado não se aplicam ao nosso mundo social e político. Indivíduos são complexos e não se encaixam nas caixas nas quais os colocamos, mas em um espectro de pensamento ora progressista, ora conservador, segundo o assunto. George Lakoff, renomado linguista cognitivo e analista de discursos políticos, chama isso de “biconceitualismo”. O ponto de vista depende da situação e do problema. Outros veem esse afastamento do binarismo como evidência do progresso social. Estudioso do futuro, Bob Johansen denomina essa maneira de conceber o mundo “pensamento de espectro pleno”. Como, cada vez mais, desempenhamos diferentes papéis na sociedade e nos valemos de múltiplas identidades ao longo de nossas vidas, o binarismo torna-se contraproducente. Somos obrigados a ir além e ver as coisas com suas nuances. Essa abordagem fluida em relação à vida moderna aceita que as diferenças não são tão gritantes quanto talvez parecessem ser no passado. Em segundo lugar, promovemos a busca por pontos comuns. Pessoas que talvez discordem a respeito de certos assuntos podem encontrar valores que compartilham e que sejam capazes de fazê-los chegar a um acordo. Na esteira de uma terrível série de tiroteios em massa nos Estados Unidos, reportagens destacaram o fato de a maior parte dos portadores de armas ser a favor de determinadas medidas para seu uso seguro. Mensagens em prol das reformas se concentram na segurança como valor compartilhado, e aumentou a demanda para que armas sejam tratadas como carros – equipamentos potencialmente letais sujeitos a regulação que diminua seus riscos. Na Austrália, uma guinada popular em direção a valores de liberdade individual, igualdade e inclusão fez com que algumas questões de justiça social, como casamento entre pessoas do mesmo sexo e morte voluntária assistida (VAD, na sigla em inglês), fossem legalizadas nos últimos anos. O casamento entre pessoas do mesmo sexo foi aprovado por voto popular em 2017, e muitas pessoas viram a mudança

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como uma vitória simbólica da questão da igualdade de gênero como um todo. Do mesmo modo, a VAD foi legalizada no estado de Victoria em 2019 e hoje é válida em todos os demais. Essas mudanças não são exclusividade da Austrália e demonstram como os valores públicos podem mudar, muitas vezes depois de anos, até décadas, de debates públicos. A despolarização acontece quando a maioria dos membros de uma sociedade aceita que, mesmo se as pessoas não concordarem a respeito de um assunto, elas possuem entendimentos comuns acerca dos valores que o sustentam. Democracias reconhecem os direitos fundamentais dos cidadãos a decidir com quem se casar e como morrer. Em terceiro lugar, defendemos a escuta ativa aos argumentos do outro. Deve-se ver as coisas sob a ótica alheia – só assim é possível superar as diferenças. O conceito de “escutar ativamente” foi cunhado pela primeira vez pelos psicólogos americanos Carl Rogers e Richard Farson, em 1957. Essa abordagem é usada em situações que vão de uma terapia de casal à construção

lidar com diferentes conflitos. O centro oferece um workshop, “Como superar a polarização tóxica”, a fim de incentivar as pessoas a buscar, de modo independente, diminuir suas tendências polarizadoras. O curso é centrado em uma série de exercícios que visam superar hábitos sociais discordantes, estabelecer integridade e tolerância e diminuir tensões. Outras organizações também surgiram nos Estados Unidos. A One Small Step, por exemplo, reúne pessoas de crenças políticas distintas para diálogos de 50 minutos. A ideia segue a teoria do contato, segundo a qual a interação entre dois grupos pode reduzir o preconceito e o conflito. Por meio do diálogo, os participantes podem fugir dos estereótipos e descobrir as humanidades comuns existentes entre si. Do mesmo modo, a Braver Angels e a Unify America reúnem pessoas com perspectivas políticas diferentes para que descubram pontos em comum. Estudos para lidar com a hesitação em relação à vacinação entre auxiliares de enfermagem em casas de repouso duran-

histórica a favor da igualdade matrimonial. Entre as formas de comunicação utilizadas para avaliar a opinião pública e provocar respostas estava a hashtag #HomeToVote, que fez milhares de expatriados irlandeses voltarem para votar. Os esforços liderados pela união dos cidadãos refletiram a mudança da opinião pública, que estava politicamente dividida, algo que foi possível graças às conversas com movimentos de base, da esfera mais baixa à mais alta, em vez da adoção da polarização imposta. DEIXE O CELULAR DE LADO

Sabemos que todas as sociedades sofrem,

em graus variados, com a divisão política. No entanto, pesquisas mostram que, muitas vezes, nossa convicção sobre o “outro” é imprecisa, como também é o que pensamos que as pessoas do lado de lá acham de nós. Se deixarmos de lado o celular e nos afastarmos da tela do computador para conversarmos diretamente, descobriremos que temos muito mais em comum do que supúnhamos.

Pesquisas mostram que nossa convicção sobre o “outro lado” é imprecisa, como também é o que pensamos que os de lá acham de nós. Se conversarmos, descobriremos que temos muito mais em comum da paz entre nações. Isso pode ser ensinado desde cedo. O Centro de Informações Sobre Recursos Educacionais dos Estados Unidos (Eric, na sigla em inglês) lista a escuta ativa como uma das maneiras de resolução de conflitos em escolas, aliada a outras habilidades comunicativas como formulação de perguntas, reestruturação, construção de relacionamento (rapport), uso eficaz da linguagem, redução de emoções negativas e comunicação não verbal. Há uma onda de indivíduos e organizações utilizando técnicas de escuta ativa para ajudar a solucionar conflitos e superar cisões. O Centro Internacional de Cooperação e Resolução de Conflitos Morton Deutsch, da Universidade Columbia, lista dezenas de organizações, grupos e pessoas que trabalham para superar cisões políticas, econômicas e sociais onde elas existem, tendo como ponto principal o desenvolvimento de conhecimento para

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te a pandemia da covid-19 revelaram que escutar ativamente e reconhecer a legitimidade de suas preocupações era fundamental. Os pesquisadores sugeriram conversas individuais com auxiliares de enfermagem e “a construção de uma relação de confiança baseada na escuta de seus receios”. A necessidade de ser ouvido, em vez de criticado, também vem favorecendo a participação civil e a democracia direta nas tomadas de decisões. Cidadãos comuns, incluindo os mais afetados por problemas, cada vez mais exigem oportunidades de se expressar. Em 2013, a convenção constitucional da Irlanda promoveu discussões sobre um referendo no país a respeito da questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A convenção contou com 66 membros da sociedade que trabalharam ao lado dos congressistas e que, em 2015, obteve uma vitória

Fomentar diálogos mais amplos, contudo, não é suficiente para garantir harmonia, e é aí que a comunicação de interesse público pode ajudar. Não é uma panaceia, pois são muitos os fatores que contribuem para nossa cisão; mas, se adotarmos as bases da comunicação de interesse público – pensar de maneira não binária, encontrar valores comuns e escutar ativamente o ponto de vista dos demais, em especial aqueles que não fazem parte do nosso grupo –, podemos começar a despolarizar os cismas políticos e a construir pontes sociais. O ANGELA BRADBERY é professora de comunicação

de interesse público na Faculdade de Jornalismo e Comunicações da Universidade da Flórida. JANE JOHNSTON é professora de comunicação estratégica na Universidade de Queensland, tendo escrito extensivamente sobre comunicação de interesse público. Ela é coautora da Public Interest Communications, publicação de acesso livre.

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Mudando o jogo Uma colaboração entre a Nike e o Tucker Center nos ensinou como manter garotas no esporte e tirar proveito de parcerias POR CAITLIN MORRIS E NICOLE M. LAVOI

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ara as crianças, brincar é algo inato e necessário; contudo, apenas uma em cada cinco pratica atividade física suficiente para crescer e se desenvolver bem. A pandemia de covid-19 limitou ainda mais o acesso das crianças a atividades físicas e esportes, agravando um problema que traz sérias implicações ao desenvolvimento, à saúde e ao bem-estar geral das crianças. Ele é ainda mais premente no caso das meninas, principalmente as de comunidades carentes e marginalizadas. Em comparação com meninos, cada vez menos elas praticam esportes, e a Organização Mundial da Saúde estima que mais de 75% das garotas de 11 a 17 anos não fazem a quantidade recomendada de atividades físicas. Estudos mostram que elas se envolvem com esporte mais tarde, desistem das atividades mais cedo e com mais frequência do que os meninos. Para resolver esse problema, a Nike firmou uma parceria com o Centro de Pesquisa com Garotas e Mulheres Envolvidas com Esporte (Tucker Center) da Universidade de Minnesota. Após três anos de trabalho conjunto, criamos a Coaching HER, uma ferramenta gratuita, online, baseada em dados e global, a fim de instruir treinadores sobre como dar apoio a meninas nos esportes. Pioneira no setor, a ferramenta pode ser usada por qualquer treinador de qualquer esporte e em qualquer nível. Usando dados obtidos junto a treinadores e meninas em todo o mundo, a Coaching HER se volta para elas, levando em conta a questão de gênero e o fato de que as garotas experimentam o mundo de maneira diferente, enfrentam obstáculos extras e são tratadas de forma distinta dos garotos apenas por serem meninas. Essa experiência de trabalho conjunto nos ensinou muito sobre o potencial e os desafios de parcerias intersetoriais para abordar problemas sociais. Uma cocriação

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bem-sucedida depende da reunião de grupos diversos e complementares de especialistas, líderes do setor e comunidades locais, bem como da capacidade de tirar proveito dos pontos fortes de todos. No processo de desenvolvimento da Coaching HER, identificamos cinco estratégias para o sucesso de nossa parceria e que podem servir como base para outras organizações em busca de colaborações similares. Primeiro, descubra o problema e identifique seu principal ponto crítico | Os padrões de participação das meninas em atividades físicas e esportes suscitaram diversas questões que consideramos prementes. Por que elas não são tão ativas? Quais são os fatores sistêmicos que levam a maiores taxas de desistência de meninas? Como essas questões podem ser resolvidas?

TRABALHO EM CONJUNTO

Para responder a essas perguntas, nos aprofundamos no problema. Em 2018, o Tucker Center produziu um relatório, “Developing Physically Active Girls: An Evidence-based Multidisciplinary Approach” (Criando meninas fisicamente ativas: uma abordagem baseada em dados multidisciplinares), que apresentou diversos fatores socioecológicos que afetam a relação e o envolvimento de meninas dos 11 aos 17 anos. A pesquisa analisou barreiras sistêmicas que vão desde crenças sociais a interações interpessoais, incluindo o relacionamento com treinadores, colegas e pais. Uma tendência se mostrou clara: treinadores são a primeira e mais evidente influência. Ter pessoas da mesma identidade como exemplo é extremamente importante; porém menos de 24% dos treinadores

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jovens nos Estados Unidos identificam-se como mulheres. Para ajudar as meninas, é preciso que os treinadores criem ambientes acolhedores, compreensivos e seguros, principalmente quando elas atingem a puberdade. No entanto, infelizmente, muitos treinadores não têm preparo ou confiança para lidar com questões, como estereótipos e identidades de gênero e formas de apoiar necessidades singulares das meninas durante a prática de esportes. Em segundo lugar, defina objetivos conjuntos claros | Desde o início, nosso objetivo principal era promover mudança sistêmica em prol de mulheres e meninas nos esportes, e sabíamos que, sozinhos, não atingiríamos nossas metas. Para determinar como preparar melhor os treinadores para que dessem apoio às meninas nos esportes, estabelecemos três objetivos para nortear nossa parceria. Primeiro, o trabalho se basearia em pesquisa, tiraríamos proveito das contribuições e dos pontos fortes organizacionais, e firmaríamos parcerias com organizações que estivessem igualmente empenhadas em causar impacto. Em segundo lugar, desenvolveríamos ferramentas baseadas em dados para treinadores e meninas com o intuito de ajudar a diminuir esterótipos de gênero e criar um ambiente positivo para elas nos esportes. Por fim, colocaríamos as ferramentas nas mãos de treinadores ao redor do mundo para mudar o ambiente não apenas para as meninas, mas também para eles mesmos. Terceiro: impulsione as forças de ambos os lados | Uma parceria de sucesso entre a universidade e a indústria pode assegurar um processo de desenvolvimento rigoroso capaz de tirar proveito dos pontos fortes de todos os envolvidos. Os universitários oferecem perspectivas multidisciplinares e únicas sobre a indústria, além de acesso a uma rede de professores, líderes e pesquisadores das ciências sociais. Já as corporações podem oferecer recursos adicionais, experiência na criação de produtos e soluções para os clientes, influência de marca, além de um profundo conhecimento do mercado. A cocriação e uma cultura de aprendizagem mútua são a espinha dorsal da Coaching HER. O compromisso global da Nike de fazer com que mais meninas participem dos esportes e permaneçam ativas vai ao encontro da atual pesquisa que o

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Tucker Center faz para promover mudanças significativas no campo esportivo para garotas e mulheres. Essa parceria única contou com estudos sobre treinamento, desenvolvimento infantil, psicologia, gênero e sociologia do esporte, bem como com a experiência da Nike com treinadores por todo o mundo para testar, aprender, criar e distribuir manuais de preparação inovadores, que dão aos treinadores instrumentos para lidar com meninas de maneira eficaz, incluindo módulos que abordam a importância dos esportes para elas e as atitudes que os treinadores podem adotar para prepará-las para o sucesso na área. Líderes de impacto social em diversos setores devem avaliar suas próprias parcerias para assegurar que estão colaborando com organizações que complementam seus pontos fortes. Em quarto lugar, atenção às diferenças geográficas | Ao longo de três anos, recebemos insights de treinadores e meninas em todo o mundo. Muitas vezes, iniciativas desse tamanho fracassam devido a supo-

tão, a equipe elaborou módulos de aprendizagem que combatessem pressupostos tendenciosos sobre treinar meninas. Ouvimos de treinadores da Índia que as meninas acham que não podem jogar futebol por acreditarem que os meninos são sempre muito mais fortes. No México, os técnicos nos disseram que a cultura local reforça o machismo. Todos os módulos da Coaching HER contam com esses insights diretos e internacionais, a fim de que os treinadores possam escutar as vozes de seus pares e das meninas. Ademais, os workshops pelo mundo revelaram que os treinadores muitas vezes dizem coisas que não consideram ponderamentos baseados nos gêneros, nas dinâmicas de poder e nas circunstâncias socioculturais. Os módulos da Coaching HER são conscientes da questão de gênero para que possam atender às necessidades específicas das meninas durante a prática esportiva. Em quinto lugar, use dados e insights para vencer pressupostos | Através dos workshops, descobrimos insights que negavam suposi-

interativa e envolvente capaz de oferecer orientação sobre pressupostos de gênero, bem como técnicas de fácil aplicação para treinadores de meninas. UM JOGO DE LONGO ALCANCE

Embora a Coaching HER esteja disponível há apenas alguns meses, os resultados dos testes foram encorajadores e pretendemos manter nosso modelo de desenvolvimento colaborativo com vistas a promover mudanças institucionais. Usuários também nos deram feedbacks animadores. “Pratiquei luta romana com meninos durante todo o ensino médio e me tornei treinadora bem na época em que a Carolina do Norte autorizou uma categoria feminina para o esporte”, conta uma treinadora de 20 anos que faz uso da Coaching HER. “Estou buscando descontruir métodos ou expressões que utilizo no treinamento; como cresci com treinadores e colegas do sexo masculino, às vezes, me pego adotando estereótipos de gênero que eram muito presentes quando eu estava no ensino médio.”

Os feedbacks dos treinadores indicaram que as meninas eram comparadas, julgadas e avaliadas com base nos padrões dos atletas meninos, sendo descritas pelos treinadores como “diferentes deles” e, assim, vistas como inadequadas sições que podem fazer com que esse tipo de insight seja ignorado. A Coaching HER inclui as perspectivas de meninas ao redor do mundo a fim de que os treinadores possam ver o esporte através dos olhos das atletas que treinam. Em março de 2021, o Tucker Center promoveu 21 workshops com meninas e treinadores em seis países diferentes –França, Japão, Índia, México, Reino Unido e Estados Unidos. Os dados foram coletados separadamente entre eles e elas, para garantir que seu feedback fosse sincero e refletisse sua experiência pessoal. Perguntou-se aos treinadores o que pensavam sobre as meninas, como as viam, avaliavam e treinavam. Por outro lado, garotas de diferentes origens foram indagadas sobre suas percepções acerca de seus treinadores e sobre as experiências que haviam tido com eles. Todo o programa da Coaching HER se baseou nesses dados. Os pesquisadores do Tucker Center analisaram os resultados dos questionários e das entrevistas e, en-

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ções nossas. Por exemplo, firmamos essa parceria acreditando que os treinadores precisavam de instrução e ideias sobre como treinar meninas; a realidade, porém, mostrou-se mais variada e complexa. Os feedbacks dos treinadores indicaram que, normalmente, as meninas eram comparadas, julgadas e avaliadas com base nos padrões físicos e nas normas sociais e psicológicas dos meninos, sendo descritas pelos treinadores como “diferentes deles” – e, assim, vistas como inadequadas – no que diz respeito a confiança, agressividade, competitividade, voz e habilidades físicas. Com base nesses dados, concluímos que nosso impacto maior viria se conseguíssemos dar aos treinadores uma ferramenta que os ajudassem a avaliar, reorientar e alterar padrões preexistentes quanto à capacidade atlética, os quais, muitas vezes, são inconsciente e involuntariamente influenciados pelo gênero. Nossas descobertas ajudaram a aprimorar a Coaching HER para que se tornasse uma ferramenta

Mudanças levam tempo. Dar vida à Coaching HER levou três anos, e é preciso uma mistura de paciência e otimismo para promover a mudança geracional que almejamos. A forma como estabelecemos parcerias para incentivar o uso da ferramenta e a adoção institucional dessas normas será tão importante quanto nossa colaboração inicial para desenvolvê-la. Acreditamos que, por meio do poder da cooperação verdadeira, as organizações podem criar soluções e mudanças duradouras. O CAITLIN MORRIS é ex-vice-presidente de impacto

social e comunitário da Nike. Nessa função, ela comandou o desenvolvimento e a execução de ações internacionais, nacionais e regionais com o intuito de fazer com que as crianças se tornassem mais ativas e de reverter a epidemia da inatividade física.

NICOLE M. LAVOI é diretora do Centro Tucker e

membro do corpo docente da Faculdade de Cinesiologia da Universidade de Minnesota. Sua pesquisa aborda as barreiras vividas por atletas e treinadoras identificadas com o gênero feminino e a representação na imprensa das mulheres envolvidas com esportes.

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PESQUISA Destaques de revistas acadêmicas

ADVOCACY

O ativismo no futebol americano POR DANIELA BLEI Historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Suas produções podem ser encontradas em daniela-blei.com/writing. X: @tothelastpage

ILUSTRAÇÕES DE DAVID PLUNKERT

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ouco antes de entrar para o doutorado, Alexandra Rheinhardt estudou a atividade relacionadas a movimentos e questões sociais nas redes. Ela mirou em especial as respostas de fãs ao movimento “Take a Knee” (ajoelhe-se), iniciado em 2016, durante a disputa da Liga Nacional de Futebol Americano (NFL, na sigla em inglês). Naquele ano, Colin Kaepernick e outro colega do San Francisco 49ers se ajoelharam durante o hino nacional para protestar contra as mortes por policiais de pessoas negras desarmadas e contra a desigualdade racial na sociedade americana. O gesto ganhou adeptos na NFL, e Rheinhardt, Forrest Briscoe e Aparna Joshi, professores de gestão e organização da Faculdade de Administração Sneal, da Universidade Penn State, decidiram realizar um estudo quantitativo abrangente sobre os protestos. Rheinhardt, hoje professora de gestão e empreendedorismo da Faculdade de Administração da Universidade de Connecticut, publicou mais um artigo com Briscoe e Joshi no qual testam, de for-

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ma teórica e prática, a noção do movimento como “ativismo de plataforma” – quando funcionários utilizam a organização como meio para disseminar uma mensagem para stakeholders externos, no caso, fãs do esporte e o público em geral. O objetivo dos pesquisadores era responder a duas questões importantes:

dados sobre quando e quais jogadores “se ajoelhavam”, os autores identificaram diversas variáveis, desde a posição, experiência, salário e raça dos jogadores até dados sobre as equipes, como os donos e gestores dos clubes, a cidade, fãs e a disparidade salarial. A pesquisa revelou não só a existência do ativismo de plataforma, mas também

primeiro, se o movimento era um fenômeno novo associado aos protestos de trabalhadores e ao ativismo; segundo, quem participava do movimento e em que condições a probabilidade de participação era maior. Além de coletar uma grande quantidade de

como as pessoas encaram as oportunidades para as ações de protesto. “Quanto maior a oportunidade, mais atraente, porque há um público maior e mais receptivo”, segundo Briscoe. “E a chance de participação cresce quando você acredita que não será punido

severamente pela organização, mesmo que ela não aceite seu comportamento.” Considerando diferentes aspectos, conseguiram analisar as regressões (relações entre variáveis) em diferentes níveis. A análise permitiu identificar quais variáveis previam melhor a probabilidade de participação no protesto. Quase todos os jogadores envolvidos no movimento eram negros. A probabilidade de protesto era maior entre jogadores menos experientes de equipes mais “igualitárias” ou nas quais a disparidade salarial era menor. A pesquisa mostrou que esse fator favorecia uma cultura de equipe mais inclusiva e uma menor probabilidade de punição para os jogadores. Outros fatores para maior participação eram uma postura ideológica mais liberal da cidade ou do dono do time. Também pesou a grande visibilidade das mortes pela polícia, que coincidiram com um pico temporário de protestos. Segundo Briscoe, “na tentativa de prever a participação nos protestos, encontramos vários indicadores que seriam válidos para o ativismo dos empregados de qualquer organização – funcionários do Google que defendiam a igualdade de gênero, por exemplo. De acordo com nossa teoria, os resultados se aplicavam a todos”. Ao montar uma tabela para comparar o ativismo de plataforma com outras formas de protesto, os pesquisadores descobriram como as variáveis

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ligadas a uma organização e a seu público podiam fazer dessa organização um dispositivo ou veículo mais atraente para expressar o ativismo nos casos em que o alvo não é a organização em si, mas seus stakeholders. Os autores também destacam as tecnologias digitais, que aumentam a capacidade de os atores atingirem toda a organização e de utilizarem canais que nem a organização nem o empregador controlam muito bem. “As organizações desempenham um papel cada vez maior na sociedade”, observa Abhinav Gupta, professor de gestão da Faculdade de Administração Foster, da Universidade de Washington. “Os funcionários que procuram promover mudanças progressivas estão tentando alavancar o peso simbólico da organização que os emprega. A pesquisa mostra que funcionários ativistas consideram algumas organizações plataformas particularmente atraentes, a depender de sua acessibilidade, abertura e da receptividade ideológica de seus stakeholders.” O Alexandra Rheinhardt, Forrest Briscoe e Aparna Joshi, “Organization-as-Platform Activism: Theory and Evidence from the National Football League ‘Take a Knee’ Movement”, Administrative Science Quarterly, vol. 68, no 2, 2023.

FILANTROPIA E FINANCIAMENTO

A diferença entre querer e precisar POR DANIELA BLEI

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á mais de uma década, desde que Vanessa Patrick, professora de marketing da Universidade

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de Houston, publicou um artigo emblemático sobre a forma como as pessoas rejeitam solicitações de financiamentos, pesquisadores estudam os efeitos da estruturação semântica, ou como variações sutis de linguagem podem ter conotações diferentes que levam a respostas distintas. Um novo artigo – publicado por Lei Su, professora de marketing da Universidade da Cidade de Hong Kong; Jaideep Sengupta, professor de marketing e gestão da Faculdade de Negócios da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong; Yiwei Li, professor de marketing e negócios internacionais na Universidade Lingnan, Hong Kong; e Fangyuan Chen, professora de gestão e marketing da Universidade de Macau – investiga a linguagem utilizada para obter crowdfunding ou financiamento colaborativo. A principal questão era: o resultado das doações de financiadores coletivos depende do tipo de linguagem utilizada pelos solicitantes? Em um estudo baseado em dez anos de dados das plataformas de financiamento coletivo GoFundMe e Kickstarter, que incluem mais de 200 mil campanhas, os pesquisadores analisaram dois tipos comuns: “Quero sua ajuda” e “Preciso de sua ajuda”. Os pedidos normalmente são apresentados em uma dessas duas formas: solicitações de doações que dependem do altruísmo dos doadores ou apelos baseados em recompensas que prometem um presente ou vantagem em troca do apoio financeiro. A GoFundMe é uma plataforma que solicita doações, enquanto a Kickstarter oferece recompensas por elas.

A hipótese dos pesquisadores era de que cada estrutura linguística levaria a diferentes resultados. Para a GoFundMe, “preciso de sua ajuda” resultava em mais doações; para a Kickstarter, “quero sua ajuda” era melhor. “Precisar” e “querer” continham estímulos que mudavam a percepção do doador. Ao analisar detalhadamente essas percepções, os pesquisadores descobriram quais mensagens funcionavam melhor – e para quem. Sengupta comenta que a frase “preciso de sua ajuda” sinalizava maior dependência. “Com isso, havia a percepção de que o solicitante da doação estava mais vulnerável e mais desesperado. Essa leitura tornava seu pedido mais eficaz no contexto das solicitações pautadas pela doação. Nesse caso, a única razão para doar é o desejo de ajudar.” Em comparação, a frase “quero sua ajuda” sinalizava o oposto. “As percepções de confiança e competência que o apelo criava levavam os doadores a responder mais favoravelmente a pedidos que estivessem formulados como um ‘desejo’.” Por exemplo, uma chef que pretende abrir um restaurante e faz uma campanha dizendo “quero sua ajuda e, em troca, você terá direito a cinco refeições grátis” parece relativamente independente. Isso leva os doadores a acreditarem na sua competência e, portanto, na perspectiva de sucesso, com a vantagem de ganhar cinco refeições grátis no local. “Para organizações que utilizam crowdfunding, a mensagem é simples, mas muito importante”, observa JoAndrea Hoegg, professora

de marketing da Universidade da Colúmbia Britânica. “Analise cuidadosamente a linguagem que for utilizar nos pedidos. Como essas organizações estão solicitando ajuda financeira, parece lógico que digam aos financiadores que ‘precisam de ajuda’. No entanto, se a solicitação envolve recompensas, sinalizar que a organização ‘precisa’ de ajuda financeira pode ser um tiro no pé.” Durante a pesquisa foram realizados testes com alunos que criavam suas próprias solicitações segundo quatro pré-requisitos: “precisar”, “querer”, recompensa e doação. Para medir quanto os alunos estavam dispostos a contribuir para uma série de documentários sobre a natureza da Antártica, um aplicativo de aconselhamento de carreira e um evento cultural e esportivo em Hong Kong, os pesquisadores se centraram na dependência como mecanismo para moldar as percepções. Os cinco estudos juntos forneceram claras evidências de que as comunicações de dependência, vulnerabilidade, confiança e competência resultaram em quantias diferentes de financiamento. “Nós não só percebemos que muitos financiadores coletivos estavam no caminho errado, mas também fomos além da recompensa e da doação”, comenta Sengupta. “Vimos que quando os financiadores começam a pensar em empresas com fins lucrativos versus ONGs, se observava o mesmo efeito. Uma empresa que visa lucros induz o financiador a pensar em termos de ‘o que eu ganho com isso?’, então ‘quero’ funciona melhor. Mas quando se trata de organiza-

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ções sem fins lucrativos, os possíveis doadores pensam ‘Como posso ajudar?’, e ‘preciso’ funciona melhor.” O Lei Su, Jaideep Sengupta, Yiwei Li e Fangyuan Chen, “‘Want’ versus ‘Need’: How Linguistic Framing Influences Responses to Crowdfunding Appeals”, Journal of Consumer Research;ucad033, https://doi.org/10.1093/jcr/ucad033.

EDUCAÇÃO

As escolas e o lugar social dos jovens POR CHANA R. SCHOENBERGER Jornalista, escreve sobre negócios, finanças e pesquisas acadêmicas. Mora em Nova York e pode ser encontrada no X como @cschoenberger

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s escolas são os lugares mais importantes para crianças aprenderem a se comportar socialmente e a entender seu meio. Um artigo publicado recentemente por Peter Francis Harvey, aluno de pós-doutorado da Inequality in America Initiative (Iniciativa Desigualdade na América) da Universidade Harvard, analisa como duas escolas – uma particular (Truman), que atende crianças de classe média alta, e outra pública (Brighton), que recebe alunos das classes mais pobres – transmitem a seus alunos a noção de como sua condição social se encaixa no mundo e como será seu futuro. Harvey optou por uma abordagem etnográfica e, para isso, passou três anos observando alunos do ensino fundamental nas duas escolas. Ele entrevistou separadamente 101 dos estudantes das duas escolas, seus pais e professores, para obter informações sobre como as instituições incutem em seus alunos uma ideia de situação

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social – ou seja, “o que se ensina para as crianças sobre sua posição e orientação no mundo”. O autor descobriu que nenhuma das duas escolas encoraja os alunos a entender a sua posição na sociedade de acordo com as ideias tradicionais de mérito acadêmico. Em vez disso, “as crianças nas escolas de classe média alta aprendem a se enxergar como se fossem ‘especiais’ devido às suas qualidades intrínsecas, enquanto nas escolas de classes mais pobres as crianças aprendem que devem se enxergar como condicionalmente boas se elas se comportarem segundo regras externas”, escreve Harvey. Na Truman, os alunos transpuseram para seu comportamento em classe a ideia de que eram únicos e que isso era inerente a eles. “Era costumeiro que os professores respondessem à pergunta de um

aluno, e depois alunos que não estavam prestando atenção fazerem a mesma pergunta novamente (às vezes, repetidas vezes)”, escreve Harvey. “A crença em sua própria singularidade parecia sufocar a possibilidade de reconhecerem ou se interessarem pela contribuição dos outros.” Já os alunos da Brighton eram estimulados a se enxergarem como membros de uma coletividade. Os professores classificavam aqueles que não se conformam com as regras como “maus”. “As tentativas dos alunos de se diferenciarem dos outros além dos limites estabelecidos eram publicamente rotuladas pelos professores como ‘inapropriadas’, por ameaçarem o engajamento coletivo.” Shows de talentos podem ilustrar uma outra forma de expor a condição social. Na Truman, uma apresentação durava quatro horas com a

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presença de dezenas de crianças no palco, incluindo alguns claramente iniciantes nas habilidades exibidas. Harvey explica que “era como se ensinassem aos alunos: ‘Vocês merecem os aplausos que recebem’, mesmo estando pouco preparados”. Já as expectativas dos atores da Brighton eram bem diferentes. “Eles se preparavam, ficavam ansiosos. Para eles, alguma coisa estava em jogo. Não se esperava que eles atraíssem a atenção do público automaticamente.” Esses detalhes assumem uma dimensão importante dentro de um contexto de mudanças maiores na forma como as pessoas são julgadas e selecionadas nos Estados Unidos. De acordo com Harvey, “mudanças sociais, incluindo uma ênfase crescente na identidade, tanto em instituições educacionais como nos processos de avaliação de funcionários, criam perspectivas de mudanças similares na socialização infantil”. Essa forma de transmitir valores deverá continuar nas escolas? O que elas ensinarão às crianças sobre sua posição no mundo? Na Truman, Harvey descobriu uma corrente contrária subliminar: a existência de aulas de identidade de raça e o vocabulário marcado pela noção de identidade da elite americana. Essas aulas davam aos alunos uma noção de por que eles eram especiais. “Essas crianças se tornam fluentes no vocabulário da identidade e da desigualdade para poderem se enquadrar nessa linguagem”, aponta Harvey. Michela Musto, professora assistente de sociologia da Universidade Brown, observa que o enfoque etnográfico fez desse artigo uma referência,

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porque pesquisadores normalmente estudam alunos jovens entrevistando adultos – familiares, responsáveis, pessoas próximas – ou analisando seus registros acadêmicos. “Não sabemos quase nada sobre como as próprias crianças estão produzindo, reproduzindo, ou enfrentando a desigualdade nas salas de aula do ensino fundamental”, observa Musto. “O artigo de Harvey preenche essa lacuna e ilustra de forma enfática como as interações diárias nas salas de aula dessa etapa educacional ajudam a moldar as diferentes formas como as crianças e adolescentes pensam sobre si.” O Peter Francis Harvey, “‘Everyone Thinks They’re Special’: How Schools Teach Children Their Social Station”, American Sociological Review, vol. 88, n. 3, 2023.

DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos em alta POR CHANA R. SCHOENBERGER

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s movimentos que criticam os direitos humanos afirmam que eles refletem os interesses neoliberais de países desenvolvidos e de como suas ONGs abordam a questão no Sul Global. Em outras partes do mundo, prevalece esse pensamento, grupos oprimidos superaram o vocabulário dos direitos humanos, preferindo adotar outra linguagem – a da justiça social, por exemplo –, a fim de descrever sua própria experiência e sua resistência à dominação. Em um artigo recente, Geoff Dancy, professor associado de ciências políticas da

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“Este é um caso clássico de pessoas do Norte Global que continuam a criticar o Sul Global sem perguntar ou pesquisar evidências” Universidade de Toronto, e Christopher J. Fariss, professor assistente de ciência política na Universidade de Michigan, analisam essa crítica. Para tanto, usaram dados do Google Trends, de buscas sobre “direitos humanos” e termos correlatos, em inglês, espanhol, português, francês e árabe. Os autores afirmam que “o artigo contrapõe debates de alto nível sobre se direitos humanos continuarão a ser relevantes e se o discurso ainda animará modelos de resistência contra-hegemônicos. A resposta que obtivemos para essas duas perguntas é ‘sim’”. Os resultados corroboram a hipótese de que as pessoas do mundo todo, em vários países e circunstâncias, mas principalmente no Sul Global, continuam a considerar a linguagem dos direitos humanos útil. A crítica aos direitos humanos como uma imposição do Ocidente ao resto do mundo muitas vezes provém das elites de países desenvolvidos. Segundo Dancy, “este é um caso clássico de pessoas do Norte Global que continuam a criticar o Sul Global sem perguntar ou pesquisar evidências”. O artigo analisa dois modelos de interpretação dos direitos humanos. Segundo os autores, “o modelo de cima para baixo prega que, em nível nacional, o interesse em direitos humanos pode ser atribuído principalmente a fatores externos, como investimento estrangeiro direto, campanhas de ONGs transnacionais,

ou legislação internacional, enquanto o modelo de baixo para cima destaca a importância de fatores internos, como crescimento econômico e repressão contínua”. O modelo de baixo para cima explica melhor os padrões de busca pelo termo “direitos humanos”. “Não só o interesse pelo tema é mais concentrado no Sul Global como também seu discurso repercute mais onde as pessoas enfrentam violência regular do Estado”, afirmam os autores. Fariss e Dancy se conheceram quando eram alunos de graduação na Universidade do Norte do Texas e começaram a trabalhar juntos após o doutorado. A pergunta que orienta o estudo surgiu em 2018. Dancy havia lido o livro Todo mundo mente (publicado no Brasil pela Alta Books, 2018), que analisa como a pesquisa no Google pode esclarecer tendências na população (Dancy diz que costuma buscar ideias fora do campo da ciência política para evitar ficar preso no “pensamento único”). No artigo, os autores destacam que poucos pesquisadores de ciências políticas usam esse manancial de dados do Google, que é geralmente mais utilizado nas áreas de saúde pública, economia e estudos de mídias. Quando Dancy teve a ideia de utilizar os dados do Google para responder a perguntas sobre a repercussão dos direitos humanos, Fariss mostrou-se cético, mas, assim que começaram a trabalhar, ele

logo percebeu como os dados seriam úteis, como lembra. “Percebemos que havia informações valiosas e inexploradas que poderíamos aproveitar, diversos tipos de dados interessantes relacionados a comunidades”, comenta Fariss. Para Dancy, a pesquisa é importante por mostrar que insistir num esforço para resolver questões sociais é frutífero. “Mas a comunidade de doadores mostra uma forte tendência de estar sempre mudando para novidades mais atraentes”, observa Dancy. Em vez de abandonar a linguagem dos direitos humanos, ONGs e ativistas agora percebem que o tema ainda é importante para as pessoas que ele está tentando ajudar. César Rodríguez Garavito, professor de clínica jurídica e presidente do Centro de Direitos Humanos e Justiça Global da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, destaca que “afirmações peremptórias sobre o ‘fim dos tempos dos direitos humanos’ dominam os debates sobre o tema no meio acadêmico, apoiando-se em evidências empíricas muito fracas e na visão limitada do Norte Global sobre a questão”. Para ele, “a rigorosa pesquisa relatada no artigo de Dancy e Fariss afasta essa visão, demonstra que os direitos humanos continuam relevantes e abre novas fronteiras para a pesquisa”. O Geoff Dancy e Christopher J. Fariss, “The Global Resonance of Human Rights: What Google Trends Can Tell Us”, American Political Science Review, vol. 117, n. 4, 2023.

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LIVROS

Lançamentos no Brasil e no mundo

O complexo futuro do nosso presente

Obra coletiva, Inquietações de um Brasil contemporâneo indaga sobre peso do país em planeta em transformação P O R S E R G I O FA U S T O

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nquietações de um Brasil contemporâneo: Desafios das eras climática, digital-tecnológica e biológica, livro produzido pelo Instituto Arapyaú, pretende ampliar o horizonte do debate nacional, ainda preso às questões de curto prazo da gestão da economia e da política. A intenção é clara no próprio título, que aponta para transformações que estão alterando o presente (e o futuro) da totalidade do planeta e exigem respostas cientificamente sólidas, socialmente justas e politicamente complexas. O desafio não é corriqueiro. Como escreve no prefácio a cientista política Mônica Sodré, citando letra de Renato Russo: “O futuro já não é mais como era antigamente”. Não faz muito tempo, imaginávamos que o futuro seria o prolongamento do progresso observável desde a primeira Revolução Industrial. Continuaríamos a progredir, ao infinito, graças ao domínio e ao uso crescentes de recursos naturais por meio de tecnologias desenvolvidas e programadas pelos seres humanos. A despeito de suas imensas diferenças, as principais escolas de pensamento da modernidade, do liberalismo ao socialismo, passando pela social-democracia, compartilhavam essa premissa. A descoberta dos limites físicos, químicos e biológicos ao crescimento econômico, a mudança climática e a criação de “máquinas inteligentes”, capazes de se autoprogramar, lançaram o mundo em uma era de grandes transformações cujo alcance desafia a nossa capacidade de compreensão e

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resposta. O próprio pensamento de matriz ecológica, que há mais de 50 anos colocou em xeque a ideia moderna de progresso, está obrigado a se reinventar para ser socialmente justo e politicamente viável. Em meio a tanta incerteza, uma coisa é certa: para o bem ou para o mal, nenhum país, empresa, organização social ou indivíduo deixará de ser afetado por essas transformações, e muito antes do que imaginávamos. Daí a inquietação mencionada no título: encontraremos respostas à altura, em tempo hábil? E o Brasil, em particular, saberá aproveitar as oportunidades e minimizar os riscos que as transformações planetárias acarretam para um país que tanto pode oferecer soluções para as crises climática e de extinção da biodiversidade como agravá-las? O livro não pretende dar respostas taxativas para essas perguntas. Mas avança na indicação de linhas de ação pública e privada e, não menos importante, insiste na necessidade urgente de superar modos de pensar e atuar, presentes no governo e na sociedade, que impedem a indispensável e difícil formação de alianças políticas, suprapartidárias, intersetoriais e interdisciplinares à altura dos desafios contemporâneos. A maneira pela qual foi concebido e ela-

Inquietações de um Brasil contemporâneo: Desafios das eras climática, digital-tecnológica e biológica FRANCISCO GAETANI, IZABELLA TEIXEIRA, MARCELLO BRITO, ROBERTO S. WAACK E SAMELA SATERÉ MAWÉ 176 págs., R$ 67,90

borado é exemplar a esse respeito. Revela o propósito de reunir pessoas capazes de integrar diferentes áreas do conhecimento teórico e prático para pensar sobre desafios que exigem pensamento interdisciplinar e articulação política, com maiúsculas em ambas as palavras. Trata-se de uma obra coletiva, resultante de um ano de discussões entre cinco pessoas selecionadas pelo programa de fellows do Arapyaú: uma bióloga e servidora pública que já foi ministra do meio ambiente, Izabella Teixeira; um gestor público com mais de 30 anos de experiência em posições de destaque no governo federal, Francisco Gaetani; um empresário do agro moderno, reconhecida liderança do setor, Marcelo Britto; um biólogo e administrador de empresas que já vestiu chapéus diversos na área ambiental, como empresário e ativista, Roberto Waack; e uma jovem liderança indígena, Samela Sateré Mawé. Nenhum dos autores assina individualmente os artigos que compõem o livro. O livro parte da premissa de que é possível superar o estado atual de polarização política e “atender a um desejo de nação comum e aglutinadora”, que extrai a sua força da sua diversidade. A mensagem se dirige principalmente a quem tem maior responsabilidade nas decisões de ampla e duradoura repercussão para o país. É um alerta para a urgência de o Brasil pensar e deliberar sobre como responder às transformações globais que nos colocam diante de um novo conjunto de riscos e oportunidades. Os autores destacam a necessidade de agir para mudar ideias e mentalidades arraigadas que bloqueiam a possibilidade de construir uma visão e uma agenda comuns para o país e modos de atuação que dificultam novas formas de cooperação público-privada que, sem prejuízo do papel central do Estado, mobilize recursos materiais, humanos, científicos, presentes na sociedade civil (empresas, universidades, centros de pesquisa, organizações não governamentais).

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LIVROS

Stanford Social Innovation Review Brasil / Dezembro 2023

FOTO DE ALEXANDROS MICHAILIDIS

Membros de uma delegação de indígenas brasileiros participam de marcha pelo clima em Bruxelas; protesto antecedeu a realização da COP 27, sediada no Egito em 2022

O desafio de mudar mentalidades arraigadas é imenso, principalmente quando se trata de alterar modos de produção e consumo que não apenas estruturaram as sociedades mais desenvolvidas do planeta, como também servem de modelo para aquelas que aspiram a chegar lá. Estamos falando de mudanças estruturais, associadas a um conjunto de valores. Têm razão os autores quando afirmam ser necessária uma nova ética da relação entre os seres humanos e a natureza, em que os primeiros já não podem ter direitos ilimitados sobre a segunda. Os povos indígenas têm o que nos ensinar a esse respeito. Conhecimentos tradicionais devem ser integrados ao conhecimento científico em soluções que possam ganhar escala. Além de guardiães do meio ambiente florestal, os povos indígenas podem e devem ter maior protagonismo em um novo modelo de desenvolvimento. Em termos mais concretos e específicos, o parágrafo anterior nos remete à relação entre a produção de alimentos e o meio ambiente. Nessa interseção, o Brasil é um ator global, seja como parte da solução, seja como parte do problema. Os autores enfrentam essa questão com clareza e pragmatismo. Sabem que há interesses protecionistas em meio às pressões ambientais. Porém não tapam o sol com a peneira: elas estão se generali-

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zando não por obra de lobbies, mas por uma preocupação cada vez mais estendida nos eleitorados das grandes democracias, assim como nas elites governamentais de países autoritários como a China, com a destruição do meio ambiente. O agravamento da crise climática e a pandemia da covid não deixam mais dúvida, a menos para o mais lunático dos negacionistas, sobre os riscos que a humanidade está correndo se continuar a desrespeitar os limites do planeta. O agro brasileiro é, em sua maior parte, moderno, mas não pode se deitar em berço esplêndido, muito menos se fazer de avestruz. A urgência em encontrar e desenvolver novos modelos de relação entre seres humanos e natureza, entre economia e meio ambiente cria uma janela de oportunidade para o Brasil dar um salto em seu desenvolvimento, com sustentabilidade ambiental e inclusão social, e se afirmar como um dos países importantes em um mundo que, com tensões em alta, passa por uma mudança de época na balança global de poder. A singular capacidade brasileira de prover alimentos, soluções baseadas na natureza e bens comuns indispensáveis ao planeta, por contar com a mais competitiva agricultura tropical, a maior floresta úmida, a mais rica biodiversidade da Terra e uma matriz energética comparativamen-

te limpa, é uma vantagem competitiva e, ao mesmo tempo, um fator de poder na nova geopolítica do mundo. A mensagem política do livro é a de que o Brasil dispõe do que o mundo precisa e tem cacife para se sentar à mesa dos grandes países, com legitimidade para falar em nome de interesses mais amplos do mundo, em geral, e do Sul Global, em particular. A afirmação vem junto com o alerta de que essa janela de oportunidade não permanecerá aberta indefinidamente. O mundo tem pressa, e o Brasil deve atuar com urgência para responder aos tempos do mundo, em nome dos seus próprios interesses nacionais. A percepção sobre a singularidade do Brasil e o contexto internacional é o leitmotiv dos autores. Para eles e elas, a compressão das possibilidades dessa conjuntura histórica é a chave para a criação de uma visão sobre o futuro do país, a ser ao mesmo tempo delineada no imaginário nacional e traduzida em políticas de Estado que ultrapassem os ciclos eleitorais e os mandatos de governos. O livro avança em ambas as direções e, por isso, oferece uma contribuição importante e oportuna. O SERGIO FAUSTO, sociólogo, é diretor-executivo da

Fundação FHC, codiretor do projeto Plataforma Democrática e membro do conselho de sócios do Cebrap.

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VITRINE

Outros títulos que ajudam a refletir sobre o campo

Abraçando a Complexidade Rumo a uma compreensão compartilhada que visa financiar uma mudança de sistemas

Adaptação local:

Parceiros:

“Desafios sistêmicos exigem soluções sistêmicas, mas as principais práticas de financiamento hoje são inadequadas para apoiá-las.” Esse diagnóstico está logo no começo de Abraçando a complexidade, que acaba de sair no Brasil, e resume a dificuldade que a publicação quer enfrentar. Trata-se da versão em português de um relatório de 2020, resultante de uma força-tarefa de financiadores, intermediários e líderes do setor social – a saber, Ashoka, McKinsey, as iniciativas Catalyst 2030, Co-Impact e Echoing Green, as fundações Schwab and Skoll e a SystemIQ. O objetivo do grupo era provocar a comunidade de apoio ao terceiro setor para que se oriente cada vez mais à transformação na raiz dos problemas, em vez de financiar soluções pontuais e limitadas para questões emergenciais. Disponibilizado no Brasil por iniciativa do Movimento Bem Maior (MBM), um dos mantenedores institucionais da SSIR Brasil, o estudo não só argumenta em favor da mudança dos sistemas como também estabelece cinco princípios para que aqueles que a perseguem saibam como conduzi-la. A ideia da entidade, ao traduzir a publicação, era fortalecer uma discussão construtiva sobre como aprimorar o financiamento e o apoio a iniciativas transformadoras no Brasil. Para Richard Sippli, diretor de operações e relações institucionais do MBM, o próprio ecossistema filantrópico e o terceiro setor são sistemas relevantes, nos quais a mudança já está ocorrendo. “Nossa abordagem [no MBM] envolve uma análise conjunta do engajamento dos nossos associados, esforços de advocacy, pesquisas, disseminação e qualificação de narrativas, fomento a redes e investimento no desenvolvimento institucional de organizações. Essa análise multifacetada nos permite compreender a amplitude da transformação sistêmica em andamento”, diz Sippli. (Disponível em PDF gratuitamente em movimentobemmaior.org.br)

Zero pobreza, zero desemprego, zero emissões líquidas de carbono. Os anseios ambiciosos parecem uma utopia digna da canção Imagine, de John Lennon. Quem os formula, porém, não é um um sonhador pacifista, mas um Nobel da Paz, o economista bengali Muhammad Yunus. Reconhecido com o prêmio em 2006, o criador do microcrédito e idealizador do conceito de negócio social resume sua crítica ao “capitalismo quebrado” em seu novo livro, Um mundo de três zeros, que tem como coautor o escritor e editor Karl Weber, seu parceiro em publicações anteriores. Ele expõe também, é claro, sua proposta para consertá-lo. Esta se ancora justamente em seus experimentos econômicos, que sustentam sua convicção de que um outro sistema, voltado para o altruísmo, é possível. O livro é dedicado “aos jovens que construirão uma nova civilização” – a juventude é um dos “megapoderes para transformar o mundo” descritos na obra. No Brasil, o livro sai em uma realização conjunta entre a Yunus Negócios Sociais, a articuladora de negócios de impacto Somos Um e a editora Voo. Cada exemplar vendido gera uma contribuição em prol da transformação por meio da leitura, dentro do projeto Um por Um da editora. No caso do livro de Yunus, uma porcentagem da venda vai para a promoção de atividades pedagógicas e encontros literários com adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa. (Voo, 2023, 286 págs., R$ 77)

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último olhar

FOTO: RENATO STOCKLER

Imagens que inspiram

Envolver para desenvolver

O Brasil tem mais de 1 milhão de brasileiros residentes em quilombos, 30% % deles na Bahia, segundo dados do IBGE. É lá, na região do Recôncavo Baiano, que a Rede Cidadania Quilombola atua para desenvolver ações em defesa dessa população descendente de ex-escravizados. Chefiada por Jucilene Jovelino e Ananias Viana, que aparecem na foto acima, a iniciativa foi criada em 2002 e promove atividades como mariscagem, apicultura, extrativismo, cultivo de ervas medicinais e turismo comunitário para impactar a vida de mais de 10 mil pessoas integrantes do Centro de Educação e Cultura Vale do Iguape (Cecvi). Neste ano, a rede foi finalista do Prêmio Empreendedor Social, promovido pelo jornal Folha de S.Paulo e Fundação Schwab. Concorrendo na categoria Soluções que Inspiram, a dupla pôde mostrar, na 19a edição do prêmio, seu trabalho pela democratização de acesso à terra e por autonomia e fortalecimento da população quilombola. Saiba mais em redecidadaniaquilombola.cecvi.org.br

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Veja vídeo sobre a iniciativa no canal da TV Folha

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VOLUME 2, NÚMERO 6 EDIÇÃO TRIMESTRAL DEZEMBRO 2023

Incorporação a serviço da saúde urbana Por uma cultura do cuidado Confiança: modos de obter e manter

Mike Kubzansky, CEO da Omidyar Network, propõe

Uma nova visão para o mundo high-tech

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