Stanford Social Innovation Review Brasil #1

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EM BUSCA SOCIALEMPREENDEDORISMODOINCLUSIVO

RESPEITAR OS DIREITOS DE POVOS INDÍGENAS É MELHOR PARA OS NEGÓCIOS Por

VOLUME 1 l NÚMERO 1 EDIÇÃO SETEMBROTRIMESTRAL2022 Inclusão Tecnológica para Comunidades Excluídas

POR LINDA JAKOB SADEH E SMADAR NEHAB

CIRCULAR

Por Edgard Barki, Marcus Y. Salusse, José F. de Campos, Thomaz N. Rocha e Ute Stephan ESTRATÉGIAS ECONOMIA Por Nancy M. P. Bocken e Thijs H. J. GeradtsMoira Birss e Kate Finn

PARA ADOTAR UM MODELO DE

Além disso, somos mantenedores da República.org, instituto dedicado ao reconhecimento e promoção de excelência no serviço público brasileiro. Aguardamos suas ideias e colaborações: samambaia@samambaia.org https://samambaia.org/

Na área econômica, trabalhamos com três instituições — Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV; Centro de Estudos da Metrópole (CEM) e Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (MADE/USP) — em estudos sobre o sistema tributário brasileiro, e propostas que promovam progressividade e crescimento econômico.

A Samambaia Filantropias investe em liberdade de expressão e crescimento econômico. Em defesa da liberdade de expressão no Brasil, apoiamos o Mobile (Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística), e o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), que monitora as diversas manifestações do autoritarismo e da repressão às liberdades acadêmicas.

Levar operações de tecnologia de ponta para comunidades excluídas impulsiona a participação em massa, estimula o avanço econômico de seus membros e, ao mesmo tempo, desafia as regras aceitas a respeito de diversidade, equidade e inclusão.

POR EDGARD BARKI, MARCUS ALEXANDRE YSHIKAWA SALUSSE, JOSÉ

Em Busca do Empreendedorismo Social Inclusivo

POR MOIRA BIRSS E KATE FINN

Respeitar os Direitos de Povos Indígenas é Melhor para os Negócios

GUILHERME F. DE CAMPOS, THOMAZ NOVAIS ROCHA E UTE STEPHAN

CAPA Ilustração de Claire Merchlinsky

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POR LINDA JAKOB SADEH E SMADAR NEHAB

Para mudar esse cenário, é preciso repensar o apoio às iniciativas sociais desse estrato populacional na construção de suas próprias soluções.

Na base da pirâmide, o ambiente empreendedor hostil reflete as imensas desigualdades brasileiras.

As corporações podem alcançar melhor desempenho ambiental e financeiro desenvolvendo e implementando estratégias de modelo de negócios circulares.

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Inclusão Tecnológica para Comunidades Excluídas

As empresas precisam considerar os direitos e territórios dos povos indígenas para poder gerenciar adequadamente seus negócios e os riscos climáticos. Estratégias para Adotar um Modelo de Economia Circular

POR NANCY M. P. BOCKEN E THIJS H. J. GERADTS

POR PAUL HOCKENOS 18 ESTUDO DE CASO Preservar o Propósito Social em Meio a uma Pandemia Mundial O Pixza nasceu como veículo de inclu são social para adultos sem moradia. Sua evolução mostra como seu propósi to ajudou a remodelar o modelo de ne gócios para ampliar impacto.

POR GREGORY C. UNRUH E FERNANDA ARREOLA A conectividade pode aumentar a expectativa de vida em 50%. Pessoas mais velhas com um forte senso de pertencimento à comunidade são mais propensas a ter boa saúde.

2 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 SEÇÕESSUMÁRIO 4 CARTA AO LEITOR Oportunidade Tecnológica para Todos 5 EDITORIAL BRASIL Caixa de Ressonância SSIR ONLINE Inovação Social e Equidade “Para quem e para quê serve a ciência?” 6 O QUE HÁ DE NOVO Recuperando Plásticos Abandonados /A Arte no Deserto /Democratização do Empreendedorismo Social /A Reinvenção da Imprensa Negra HISTÓRIAS DO CAMPO 11 Acessibilidade nos Esportes de Aventura A organização sem fins lucrativos indiana Fundação Aventuras sem Barreiras programa excursões para deficientes físicos. POR PRITI SALIAN 13 Rede de Cooperativas contra o Crime A Libera Terra reivindica terras roubadas pela Máfia italiana para criar oportunidades econômicas para comunidades locais. POR AGOSTINO PETRONI 15 Uma Revolução na Energia Comunitária Um consórcio que promove a geração de energias renováveis de propriedade coletiva.

— UM SENTIDO DE PERTENCIMENTO, PÁG. 59 , PONTO DE VISTA 57 Mobilização Cívica em Tempos de Ameaças Existenciais A sociedade civil brasileira trabalhou em conjunto para assegurar renda básica para os pobres. Seu sucesso ilustra como organi zações devem juntar forças para garantir di reitos e exigir mudanças sociais.

POR RISA WILKERSON 61 Criando ColaborativosRelacionamentos Frequentemente, colaboradores em poten cial se concentram no “por quê” em vez de no “como”. Ofereço uma abordagem em três frentes para superar barreiras à interação. POR ADAM SETH LEVINE 63 PESQUISA Viés de Elegibilidade contra Candidatas do Sexo HierarquiaFeminino/Diversidade,eDesempenho / Elites, Cidadãos e Organizações Internacionais / A Discriminação Encontra a Meritocracia LIVROS 67 Um Novo Modelo de Capitalismo Impacto, de Sir Ronald Cohen SAMIR HAMRA E GRAZIELLA COMINI 69 Inovações que Podem Funcionar para o Problema da Moradia Ten Global Cities, de Linda Gibbs, Jay Bainbridge, Muzzy Rosenblatt e Tamiru Mammo POR GARY PAINTER 72 ÚLTIMO OLHAR A Vida em Jogo 7 19 61 63

POR

POR ALESSANDRA OROFINO, MANOELA MIKLOS E MIGUEL LAGO 59 Um Sentido de Pertencimento A saúde pública requer um esforço mais in tencional na construção da conexão social.

Chairman da Cyrela Eugênio Mattar Chairman da Localiza Bueno CEO da DASA Chairman da

Jayme da

Pedro

Vidigal Filantropa independente

Rubens Menin

Porto Seguro Luciano Huck Apresentador de TV Christian Klotz Sócio representante da Brasil Capital CONHEÇA QUEM JÁ FAZ PARTE DO MOVIMENTO

movimentobemmaior.org.br

Bia

Garfinkel Acionista controlador

Elie Horn

MRV

Todos ssir.com.br Publicação trimestral Volume 1 I número 1 I Setembro 2022

Paola Perez-Aleman, McGill University Josh Cohen, Stanford University Alnoor Ebrahim, Harvard University Marshall Ganz, Harvard University Chip Heath, Stanford University Andrew Hoffman, University of Michigan Dean Karlan, Yale University Anita McGahan, University of Toronto Lynn Meskell, Stanford University Len Ortolano, Stanford University Francie Ostrower, University of Texas Anne Claire Pache, ESSEC Business School Woody Powell, Stanford University Rob Reich, Stanford University A Stanford Social Innovation Review (SSIR) é publicada pelo Stanford Center on Philanthropy and Civil Society da Stanford University.

Endereço: CIVI-CO | Negócios de Impacto Social R. Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 - Pinheiros, São Paulo - SP, 05415-030 Quer falar com a SSIR Brasil? Redação: contato@ssir.com.br Projetos especiais, publicidade, eventos: marketing@ssir.com.br Diretrizes de submissão de artigos: https://ssir.com.br/diretrizes-de-submissao

Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review

4 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 CARTA AO LEITOR

Aindústria tecnológica é um dos principais propulsores do crescimento global e oferece uma grande varie dade de postos com altos salários e as melhores oportunidades de ascensão profissional. No entanto, não é de hoje que pessoas de comunidades menos favorecidas estão sendo excluídas desse promissor mercado de trabalho. E isso ocorre nos Estados Unidos, França, Vietnã e BrasilUma das principais razões que impedem que a riqueza gerada por essa indústria seja equitativamente compar tilhada é que o sistema educacional não prepara os jovens de comunidades car entes para atividades técnicas. Mas não é só isso. Muitas vezes, esses jovens não têm referências sobre como desenvolver uma carreira técnica bem-sucedida. Em geral, as empresas de tecnolo gia não recrutam pessoas que vivem ou estudam nas escolas dessas comuni dades. E, com frequência, os empregos disponíveis estão em locais muito distan tes, o que dificulta o deslocamento para o trabalho.Mesmo quando superam esses obstácu los e são admitidas em uma empresa de tecnologia, essas pessoas não conseguem progredir na carreira ou até manter o emprego devido a manifestações sutis ou, às vezes, ostensivas de preconceito racial, social e de gênero no local de trabalho. As consequências dessas formas de exclusão são claras. No vale do Silício, onde morei mais de 45 anos, pessoas negras, latinas, nativas de ilhas do Pacif ico e indígenas formam somente uma pequena fração da força de trabalho em tecnologia. A grande maioria dos fun cionários dessas empresas é branca ou de origem asiática.

Todos os direitos reservados.

Não precisa ser assim. Mas, para que a indústria tecnológica seja uma fonte de riqueza para toda a sociedade, é preciso que as empresas, o setor tecnológico, o governo e as organizações da sociedade civil adotem uma nova abordagem intrin secamente inclusiva. A matéria de capa desta edição de Stanford Social Innovation Review, “Inclusão Tecnológica em Comu nidades Excluídas”, sugere ideias para implementar a mudança. Os autores do artigo, Linda Jakob Sadeh e Smadar Nehab, são de Israel, onde uma colaboração entre organizações de toda a sociedade, incluindo comu nidades judaicas e palestinas, rompeu barreiras para criar uma indústria mais inclusiva. Em 2008, antes do início desses movimentos, havia somente 350 engen heiros árabes empregados na indústria de alta tecnologia israelense. Em 2020, 12 anos depois, o número aumentou para 8.500.Achave desse sucesso foi levar a indústria de tecnologia para a comunidade árabe israelense, e não exigir que ela fosse até a indústria tecnológica. Os aspectos envolvidos nesse modelo são vários, desde criar empresas e abrir escritórios nas comunidades árabes até convencer famil iares e líderes comunitários de que jov ens árabes podem ser bem-sucedidos ao seguir uma carreira tecnológica. A indústria tech precisa fazer mais para criar prosperidade e empregos para toda a sociedade. Não há dúvida de que ela dispõe dos recursos financeiros necessários para assumir esse desafio e de que encontrará parceiros capazes entre as organizações da sociedade civil e do gov erno. A questão é: eles estão dispostos a fazer isso? — Eric Nee, editor-chefe Stanford Social Innovation Review

Conselho Consultivo Acadêmico

TecnológicaOportunidadepara

Diretora-geral Carolina carolina@ssir.com.brMartinez Editora-chefe Ana Claudia ana.ferrari@ssir.com.brFerrari Colaboraram nessa edição: Arte Estúdio Monearte Tradução Aracy Mendes da Costa, Camilo Adorno, Frank de Oliveira Revisão Maria Stella Vali, Paulo Felipe Mendroni Agência de Comunicação: ZR Marketing Programador Web: Daniel Miranda Conselho Editorial Daniela Pinheiro Eliane MarcosGuilhermeGracielaTrindadeSelaimenCoelhoPauloLucca Silveira Mantenedores Institucionais Fundação José Luiz Egydio Setúbal MovimentoHumanitas360Bem Maior Samambaia Filantropias

Publisher Michael Voss Editor-Chefe Eric Nee Editora acadêmica Johanna Mair Editores David V. Johnson, Bryan Maygers, Marcie Bianco, Aaron Bady, Wheeler-BrideBarbara Editora edições Jenifer Morgan globais

@SSIRbrasil EDITORIAL BRASIL—AnaClaudiaFerrari,

5Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022

SELEÇÃO DE CONTEÚDOS DA SSIR.COM.BR Doação de dados ARTIGO | O Iminente Conflito Sobre Como Disponibilizamos Nossos Dados Ações coletivas baseadas em dados são uma prática cada vez mais comum em áreas como pesquisas médicas, ciência, arte e cultura, defesa do consumidor e em outros domínios. Muitas pessoas deliberadamente contribuem com dados digitais para causas em que acreditam, da mesma forma que, há tempos, doam tempo e dinheiro. No entanto, quando se trata de fornecer dados, a dis cussão está apenas come çando, e as decisões que tomarmos terão importân cia para todos nós. Para Lucy Bernholz e Brigitte Pawliw-Fry, temos diante de nós dois modelos a seguir para tratamento de dados: um dirigido por empresas e outro determinado por ações de ativistas. O ven cedor definirá quanto con trole teremos sobre nossas informações digitais. definição do conceito a questão da equidade. “Para quem e para quê serve a ciência?”

Caixa Ressonânciade

ARTIGO | Quando a Ciência é… Comunitária Fruto dos movimentos da ciên cia aberta e dados abertos, que surgiram para aproveitar as for ças democratizantes da inter net, a ciência desenvolvida pela comunidade é uma proposta que reúne cientistas, líderes comunitários e membros da sociedade civil com o intuito de fazer ciência de forma mais democrática, com mentalidade cívica, igualitária e baseada na justiça. A autora Louise Lief diz que talvez esta seja a resposta necessária para convencer o público cético que sempre per gunta: “Para quem e para quê serve a ciência?”.

Inovação Social e ARTIGOEquidade |

TWINSPROJECTILUSTRAÇÃO

Na caixa de ressonância que queremos ser, esta primeira edição traz um texto revelador sobre o perfil dos empreendedores sociais da periferia no Brasil. Escrito por um grupo liderado por Edgard Barki, da Fundação Getulio Vargas, o artigo mostra os reflexos da desigualdade socioeconômica nos negócios de impacto e aponta caminhos para que o empreendedor da periferia tenha mais prota gonismo e desenvolva soluções socialmente inovadoras. Este é só o começo. Depois da plataforma lançada em fevereiro, a SSIR Brasil inaugura agora as edições trimestrais digitais da revista e conteúdos em outros formatos, nos quais vamos contextualizar os temas com especialistas brasileiros. Você pode participar dessa iniciativa de várias formas, porque afinal contribuir para a mudança do mundo é um projeto coletivo. Colabore com um texto (não deixe de ver as diretrizes de submissão de artigos), faça sugestões, siga nosso trabalho. Nosso propósito é ter uma plataforma em que uma rede criativa com ideias originais, projetos inovadores e soluções replicáveis ajudem a inspirar cada vez mais gente. E a criar um país mais próximo do que desejamos.

Priorizar a Equidade no Impacto Coletivo Em 2011, publicamos “Impacto Coletivo”, que se tornaria o artigo mais lido e influente da Stanford Social Innova tion Review. A abordagem encontrou adeptos em todo o mundo, com milhares de ini ciativas buscando soluções para problemas sociais diversos na América Latina, Ásia e Europa. Onze anos depois, os arquite tos originais da proposta e pessoas envolvidas no campo viram que era hora de revisar a abordagem. Para isso, seis autores (incluindo os coautores do artigo original) se reuni ram e escreveram “Priorizar a Equidade no Impacto Cole tivo’’, colocando no cerne da Adécada de 1990 ainda não havia acabado e a formação de líderes com foco nos crescentes desafios sociais e ambientais globais já estava na agenda da Stanford Graduate School of Business. A escola de negócios da Stanford University foi a pri meira nos Estados Unidos a criar um centro dedicado a preparar e engajar estudantes na busca de transformações socioambientais. Ali nasceu, em 2003, a Stanford Social Innovation Review (SSIR). Ao longo de seus quase 20 anos, a SSIR tornou-se referência mundial no campo da inovação social. Sempre com o propósito claro de construir pontes entre a comunidade acadêmica e os ato res do campo, informando e inspirando pessoas e organizações dedicadas à transformação social, o projeto, que começou com a edição trimestral da revista, logo se desdobrou em plataforma di gital, conferências, webinars, edições especiais, vídeos, podcasts e se tornou um repositório essencial de abordagens e ideias novas baseadas em pesquisa e na prática. A partir de 2017, a SSIR ganhou novos idiomas, cores e olhares com as edições globais. O Brasil é o sexto país a entrar para esse grupo. Como em todas as publicações internacionais, além dos textos de excelência traduzidos, a SSIR Brasil terá conteúdos originais discu tindo os desafios locais e as soluções criadas a partir de culturas e contextos únicos. É assim que respostas inovadoras para problemas cada vez mais complexos terão eco em cada país e na edição em inglês.

Editora-chefe Carolina Martinez, Diretora-geral Stanford Social Innovation Review Brasil

TONTOTONCORTESIAFOTO: RecuperandoAMBIENTE Plásticos PORAbandonadosSENTASCARBOROUGH

! Catadora da TONTOTON, Sorn Srey Mom, coleta plásticos órfãos para trans formá-los em cimento em Sihanoukville, Camboja.

Ekshtein compartilhou essa ideia com a ONG Zero Plastic Ocean (ZPO), que estabeleceu padrões internacionais para os plásticos comercialmente reci cláveis despejados nos oceanos (ocean bound plastic, ou OBP, na sigla em inglês). A ZPO criou novos padrões para plásticos órfãos que foram incorporados no processo de certificação. No início de 2021, a TON TOTON tornou-se a primeira empresa do mundo certificada pelo protocolo de OBP neutro da ZPO. O processo de certifi cação inclui uma terceira enti dade independente, a Control Union. Depois de garantir que os padrões de neutralidade dos plásticos foram atingidos, a Control Union emite um cer tificado que é registrado publi camente pela ZPO. Para cada tonelada de plástico descartado que é coletada e processada é emitido um crédito. Daí o nome da missão “ton to ton” (ou “tonelada por tonelada”). “O sistema de créditos de plástico da TONTOTON representa uma solução para as empresas assumirem a res ponsabilidade por todos os resí duos plásticos produzidos — e não apenas pelos recicláveis de maior valor comercial. Ao adquirir esses créditos elas con tribuem para reduzir a enorme poluição descartada no solo e impedem que chegue aos ocea nos”, comenta Ekshtein. No início, o próprio Eksh tein financiou a TONTOTON, mas logo buscou investimen tos externos para manter a empresa sustentável. O pri meiro veio em 2021, quando a ClimeCo, uma corretora global de commodities ambientais com sede nos Estados Unidos fez uma compra antecipada de 600 toneladas de créditos de plástico para vendê -los assim que fossem certificados.“Nósnão queríamos que eles esperassem um mês ou até um ano para poder vender os créditos”, explica Chris Parker, diretor de pro gramas de plástico da ClimeCo. “Eles estavam fazendo um trabalho que ninguém mais que ria Comfazer.”essa injeção de capital a TONTO TON não só obteve os recursos financeiros, mas também ganhou confiança para operar em outros locais no Vietnã e no Camboja naquele ano. litoral do Vietnã é um hotspot de poluição por plásticos. Com um mapa hidrográfico formado por 13 rios e um sistema de gerenciamento de resíduos desorganizado, os plásticos descartados acabam sendo incinerados em aterros sani tários ou, quando chove, sendo arrastados pela água, e despe jados no mar da China. A maior parte dos resíduos plásticos descartados não é reciclada, explica o empre endedor e defensor ambien tal Barak Ekshtein, dono de uma empresa de reciclagem de sacos plásticos, a Bkbags. Isso porque ou falta tecnologia ou a convicção de que o esforço vale a pena. “Perto de cada gar rafa plástica reciclável há uma sacola plástica, uma embala gem de alimentos ou outros plásticos não recicláveis que deixam de ser coletados por não terem valor comercial”, observa.Em2019, Ekshtein parti cipou da conferência Plástico Oceânico Transformado em Oportunidade na Economia Circular, onde descobriu que o composto pode ser usado como alternativa ao carvão na pro dução de cimento. Ele também soube que, muitas vezes, os programas do governo não ofe recem opções sustentáveis de financiamentos para incentivar as empresas de reciclagem. Desses insights nasceu a

TONTOTON, uma empresa que visa impedir que os plásti cos cheguem ao oceano e que oferece às companhias uma solução sustentável para redu zir as pegadas da poluição plástica. Fundada em 2020, a TONTOTON adotou um modelo de negócios que con siste em remunerar os cata dores informais pelo serviço de coleta e transporte de resí duos plásticos “sem valor” ou “órfãos”, como são conhecidos os plásticos não recicláveis, e depois pagar às empresas pri vadas para transformá-los em energia alternativa. Para compensar os cus tos iniciais, Ekshtein adaptou a ideia de cré ditos de carbono para créditos de plástico, o que permitiu que as empresas se envol vessem no esforço de coleta por meio de um processo de certifi cação. Para cada cré dito adquirido, uma tonelada de resíduo plástico — que de outra forma não seria reciclado — é conver tida em plásticos.proveitamentocoletas,tosdaaduçãoalternativocombustívelparaaprodecimento.Ereceitaprovenientecompradecrédifinanciafuturaslimpezaereados

6 ABORDAGENS RECENTES PARA TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS O QUE HÁ DE NOVO Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022

SENTA SCARBOROUGH é produtora indicada ao Emmy, jornalista premiada, estrategista de comunicações e roteirista.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 7

Quem diz isso é Yomi Ayeni, artista visual e funda dor da organização sem fins lucrativos We Are From Dust (WAFD, na sigla em inglês) ou Viemos do Pó. Por acreditar no poder trans formador da arte, Yomi foi esti mulado a encontrar uma forma de ressignificar o trabalho artís tico do Burning Man, o festival anual de arte que atrai todos os anos milhares de pessoas ao deserto de Black Rock no estado americano de Nevada, e a criar a Black Rock City, uma área enorme cheia de instala ções artísticas. Frequentador assíduo do festival, Ayeni foi também voluntário do evento com sua equipe de mídia por mais de duas décadas. O festival acontece em local remoto e os ingressos custam entre centenas e milhares de dólares. Ele viu essa dificuldade de acesso como uma oportunidade de benefi ciar tanto os artistas quanto o público que não pode compare cer ao festival. A WAFD foi criada em 2015 para colocar obras de arte ins piradoras em espaços públicos e disponibilizá-las para todos. A universalidade da missão social da organização sem fins lucra tivos se reflete em seu nome, que remete à ideia de que todos os seres humanos são feitos da mesma substância mais sim ples: o pó.

Antes da criação da WAFD, no final do festival que durava uma semana, as obras de arte expostas em Burning Man eram queimadas ou armazenadas. “Você não faz ideia do que sig nifica ver todo esse material ser colocado dentro de contêine res e ter de guardá-lo em algum lugar”, observa Ayeni. Agora, com a WAFD, no final do festi val o acervo ganha vida ao ser exposto em exibições públi cas com o objetivo de mudar a forma como as pessoas veem a arte e que importância ela tem em suas “Estamosvidas.transformando os espaços públicos em parques com esculturas”, diz Candace Locklear, membro da WAFD. “Pessoas que provavelmente nunca irão a Burning Man, prin cipalmente crianças, agora pode rão apreciar essas obras de arte.” No momento, a WAFD está organizando instalações públi cas pelo mundo. Duas nos Esta dos Unidos (na Califórnia e em Utah) e outra na Inglaterra. A instalação na Califórnia, em Point San Pablo Harbor — duas grandes esculturas em aço de gatos que ronronam quando você os acaricia —, criada por Paige Tashner, ganha ilumina ção à noite. Segundo Tashner, “os dois gatos (Purr Pods) fazem parte de um projeto mais amplo da WAFD de permitir que as pessoas interajam com a arte em espaços públicos”. A WAFD também organiza excur sões para que o público possa conhecer sua missão, o local, a arte e os artistas. Além de Purr Pods, outra instalação é Bee or Not to Bee (Abelha ou não Abelha, em tradução literal, mas também uma alusão ao Ser ou Não Ser), criada por Robert e Lisa Fergu son para o festival de 2019. “O objetivo do projeto é des tacar a importância das abe lhas”, explica Lisa Ferguson. “Esta é uma abelha imensa, com mais de 4,2 metros de comprimento por 2,6 metros de altura. Impressionante, mas inofensiva. Ela pode ser tocada e examinada. Ela não pica.”

O compromisso da TONTO TON se estendeu também aos seus funcionários, que recebe ram treinamento, equipamento pessoal de proteção e planos de saúde. Os catadores, cerca de 50 no Vietnã e 250 no Camboja, ganham de US$ 5 a US$ 25 por dia para coletar e limpar plásti cos abandonados, como sacolas, roupas e Desdesapatos.marçode 2021, mais de 450 toneladas de resíduo plástico não reciclável foram coletadas nos dois países. As chuvas sazonais e a Covid-19 atrasaram a coleta, mas a TON TOTON conseguiu que as pri meiras 600 toneladas fossem certificadas no início de 2022. A ClimeCo já comprou anteci padamente outras 1.750 tone ladas. Hoje, quatro fábricas de cimento parceiras trabalham no reaproveitamento de resí duos plásticos. A TONTOTON lançou no Camboja a campanha de conscientização “praias sem plástico” em parceria com o Programa de Desenvolvi mento das Nações Unidas, com ONGs locais e o governo local. O plano é criar um programa educacional sobre recicla gem em 15 escolas, que poderá alcançar 10 mil alunos até o final de 2023. Neste momento, o programa já deve ter cons truído mais quatro centros de operação, com a meta de cole tar 3.000 toneladas de plástico órfão. A expectativa de Eksh tein é contribuir para a dimi nuição da pobreza, criar mais comunidades sustentáveis, melhorar a vida marinha e aju dar as empresas a se respon sabilizarem por sua poluição plástica. n

LOCKLEARCANDACEDECORTESIAFOTO:

! Os artistas Lisa Ferguson e Robert Ferguson posam ao lado de sua escultura Bee or Not to Bee, instalada em Point San Pablo Harbor, na Califórnia.

KRISTI EATON é escritora freelance em Tulsa e cobre cidades, áreas rurais e orga nizações sem fins lucrativos dos Estados Unidos.

ARTE E CULTURA A Arte no PORDesertoKRISTIEATON Aarte pode mudar a vida das pessoas.”

8 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 O QUE HÁ DE NOVO

! Alunos de MBA da Bard College apre sentam um projeto criado com o RebelBase no curso de empreendedoris mo. A banca avalia com o software RebelBase.

que seria necessário para criar um kit de ferramentas completo que ajudasse qualquer pessoa interessada em resolver problemas sociais a encontrar uma solução? Foi essa pergunta que deu origem à RebelBase, uma plataforma que cria um projeto de empreendedorismo social seguindo um caminho nãoAlejandroconvencional.Crawford e Tuba Erbil lançaram o projeto em 2020. Crawford é CEO e vem da área da educação enquanto a COO Erbil é engenheira quí mica. “Nós criamos a RebelBase porque o empreendedorismo social não é uma ferramenta sofisticada que você aprende no segundo ano de programas de MBA; ao contrário, é simples mente uma oportunidade de executar, e dispor da estrutura e da rede necessária para apoiá -lo”, observa Crawford. Um conjunto de módulos chamado construtores do pro jeto ajuda os usuários do pro grama — conhecidos como “rebeldes” — a ter ideias, des cobrir soluções, criar e testar protótipos, gerir finanças, lançar produtos, obter feedback e atrair investidores. Para Crawford é um sistema de aprendizagem experimental em que você orga niza os módulos segundo uma ordem baseada em dados ou em sequências e recebe críticas construtivas de outros membros da comunidade RebelBase.

BOYLEKATIEDECORTESIAFOTO:

S ocial POR RUKSANA HUSSAIN

“Passamos muito tempo estudando o problema. Logo no início perguntamos o que está desordenado e o que não fun ciona. Os rebeldes seguem um roteiro do sistema, identificando pontos nevrálgicos e depois criam cenários competitivos”, explica Eliza Edge, diretora de conteúdo e comunicação. Essa abordagem guiada e gra dual conquistou uma rede global de usuários incluindo a SPINte ams, um projeto de treinamento de empreendedores, a Parceria Comunitária RiseBoro, de Nova York, e a Rede da Open Society University, uma aliança global de instituições educacionais. As organizações se inscre vem para disponibilizar a pla taforma para seus membros. A versão gratuita dá acesso a cinco construtores de projeto e pode ser usada por qualquer pessoa mesmo que não tenha vínculo

O esforço para criar essa organização sem fins lucrati vos surgiu quando o apoio e o financiamento para a arte pública começou a diminuir. A WAFD paga aos artistas até US$ 10 mil pelo empréstimos das obras para as instalações públicas. Ela utiliza captadores de recursos e também aceita doações de apoiadores e visitan tes. De acordo com Locklear, cerca de US$ 250 mil foram arrecadados desde a fundação. A maior parte dos recursos vai para o pagamento de hono rários dos artistas e custeio da instalação. A WAFD conta com a comunidade de Burning Man — atualmente uma equipe de cinco voluntários — para garantir que todos os fundos captados sejam entregues dire tamente aos artistas. A pandemia de Covid-19 não desviou a organização de sua missão ou impediu que o público apreciasse suas insta lações. Ao contrário, a WAFD está trabalhando ativamente para mudar e ampliar seus pro dutos. Locklear observa que a equipe está apoiando a fotógrafa documentarista Erin Douglas no Projeto Black Burner, que mos tra imagens e histórias de parti cipantes de Burning Man, para uma instalação pública. “Vamos ajudar suas obras de arte a (...) encontrar um bom lar. Isso faz parte da missão da WAFD”, explica Locklear. A WAFD também pretende buscar novos locais para mon tar suas instalações públicas e a ideia é continuar expandindo as atividades em outras cidades nos Estados Unidos e no exte rior com o intuito de valorizar a arte como um bem público. n com as organizações inscritas. As licenças vão de US$ 9.500 a até US$ 48.000 por ano — dependendo do número de usuá rios e de itens adicionais. “Qualquer tipo de projeto — ambiental, de gênero, edu cacional — pode ser colocado na RebelBase. Não importa se você é um expert em empre endedorismo ou um iniciante, ela o instrui da mesma forma”, observa Dalia Najjar, instrutora do programa de empreendedo rismo social na FAl-Quds Bard College Palestine. Najjar traba lhou na plataforma nos últimos dois anos como usuária, profes sora e instrutora. “A RebelBase está aberta a empreendedores do mundo todo. Você pode apre sentar investidores e financia dores a esta plataforma quando seu projeto estiver pronto, ou permitir acesso aos membros da equipe para uma função especí fica e criar uma equipe”, acres centaUmaNajjar.dashistórias de sucesso da RebelBase é do aluno Ahmad Hijawi da Al-Quds Bard, que criou a CleanPalCo — um pro jeto voltado para o problema da

DemocratizaçãoEDUCAÇÃO do Empreendedorismo

DIREITOS HUMANOS

A PORNegradaReinvençãoImprensaLIKAMKYANZAIRE

RUKSANA HUSSAIN é escritora freelance em Los Angeles. LIKAM KYANZAIRE é escritora e se dedica a trabalho comunitário em Montreal. desaparecer, dados recentes do centro de pesquisa americano Pew Research mostram que há um aumento na preferência do público por fontes de notí cias online, incluindo as mídias sociais, que são usadas por mais de 66% dos adultos para se informar.Noentanto, o jornalismo negro está perdendo terreno na transição digital. Mais que qualquer outro grupo racial dos Estados Unidos, os negros são os que mais optam por se informar fontes tradicionais, como esta ções de TV e jornais locais. Tatum entrou em contato com negros donos de outras empresas de mídia para buscar uma forma de garantir que a imprensa negra pudesse sobrevi ver e crescer diante desse novo quadro. Em 2020, 10 importan tes publicações negras — New York Amsterdam News, Atlanta Voice, Houston Defender, Washin gton Informer, Dallas Weekly, St. Louis American, Michigan Chro nicle, Afro, Seattle Medium e Sacramento Observer — se uni ram para lançar o Fundo para a Imprensa Negra, um programa que apoia financeiramente veí culos operados por e de proprie dade de negros. O Fundo é administrado em parceria com a Local Media Foundation (LMF, na sigla em inglês), o fundo filantrópico da organização sem fins lucrativos Local Media Association que ajuda empresas de mídia a man ter sua estabilidade financeira nesse cenário de mudanças rápi das. O fundo permitiu a criação colaborativa da Word In Black (ou Palavra Negra), a primeira redação coletiva do país que divulga notícias por, para e sobre

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poluição e falta de materiais de construção na Palestina, aprovei tando pneus usados, resíduos de rochas e água para fabricar pro dutos como tijolos, telhas, e piso de borracha. O projeto recebeu o prêmio de Melhor Empresa de Aluno de 2021 na competição regional árabe INJAZ (a palavra significa “realização” em árabe) e foi indicado para competir em nível global, atraindo investido res e o capital inicial para criar a empresa.“Asaplicações da RebelBase vão muito além da educação tra dicional. Sua abordagem colabo rativa e iterativa permite que ela seja usada em todos os projetos de aprendizagem”, explica Bar clay Palmer, investidor e usuário. A empresa também está atraindo pequenos investidores institucionais e doadores. O pro duto mínimo viável foi constru ído usando capital de suor, ou seja, de conhecimento e trabalho direto. Para lançar a RebelBase, Crawford contou com um inves timento de US$ 50 mil de um parente que colaborou com ele em publicações educacionais e força de trabalho. Outros desen volvimentos do software foram financiados por dívida conversí vel de investidores como Palmer, capital de suor formalizado por meio de plano de opção de ações e por receitas iniciais. Dentro de seus futuros pla nos de crescimento, a Rebel Base apresentou recentemente uma proposta milionária desenvolvida por um grupo de trabalho de empreendedo rismo social a pedido da Open Society University Network em colaboração com membros da Talloires Network of Enga ged Universities, uma aliança

epois do assassinato de George Floyd em 2020, Elinor Tatum, editora-chefe do New York Amsterdam News, o jornal negro mais antigo da cidade de Nova York, percebeu que era necessário adotar uma nova abordagem jornalística para a cobertura da violência e da discriminação generalizada sofrida pela comunidade negra. Tatum, terceira geração de jor nalistas da família, queria que o jornalismo local produzido por negros fosse capaz de investigar injustiças sociais com mais rigor do que são investigadas pela imprensa tradicional. Em uma época em que as redações começam a a comunidade negra. A plata forma online de mesmo nome é administrada editorialmente pelos 10 editores do coletivo. “Ainda há mais de 230 jor nais cujos donos são negros no país”, observa o jornalista Nick Charles, ex-diretor-geral da Word In Black, e “o que a maio ria precisa é de uma transição suave e eficiente para os produ tos Conteúdodigitais”. local é o método para essa transição. Isso é possí vel apoiando financeiramente o jornalismo local e depois publi cando-o na plataforma Word In Black. Editorialmente, a cola boração determina quais são os assuntos de interesse para a comunidade negra naquele momento. O fundo fornece recursos para os editores negros locais inserirem essas notícias nas edições de suas localidades. Além disso, os editores da Word In Black reúnem histórias sobre temas específicos e depois criam um nova usando uma estrutura nacional para alinhar as várias perspectivas locais das publica ções dos Mantidomembros.pordoações filan trópicas e individuais, o fundo tem por meta captar US$ 25 milhões até 2023. No início de 2022, sete meses depois do iní cio da campanha para levantar recursos no final de agosto de 2021, haviam sido arrecadados US$ 750 mil, incluindo doações da Chan Zuckerberg Initiative e da Walton Family Foundation. Uma doação de US$ 300 mil do Google cobriu os custos opera cionais da plataforma. O Google se comprome teu a aumentar a diversidade racial do setor de tecnologia. “É importante que a empresa de universidades europeias de ponta. A meta é atender mais de 1.500 organizações em cinco anos.“Boa parte da educação é fortemente de cima para baixo, e isso confunde um pouco, por que no mundo dos negócios, dos investimentos e do empreende dorismo há diferentes formas de abordagem”, observa Palmer, que se refere à RebelBase como uma opção Para Leigos da era digital. “O diferencial é que ela é orientada pela colaboração, espí rito de equipe e não assusta. A RebelBase é uma espécie de cul tura, não apenas um amontoado de instruções.” n

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10 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 O QUE HÁ DE NOVO continue a apoiar a imprensa contando histórias de grupos sub-representados”, comenta Chrissy Towle, chefe de parce ria de notícias da Google.

O fundo contratou recente mente a jornalista Liz Dwyer para supervisionar a plata forma — um dos seis membros em tempo integral do quadro de funcionários que devem ser efetivados até 2023. Segundo Dwyer, as três metas para a pla taforma são “criar uma infra estrutura que nos permita ser supereficientes, apoiar ainda mais o trabalho de nossos edi tores, e melhorar nossa capaci dade de nos envolvermos com a comunidade Word In Black”; contratar o staff ; e “garantir que o conteúdo que criamos man tenha a tradição de excelência e responsabilidade da comuni dade que a imprensa negra teve desde o início”. O futuro da plataforma depende de nossa capacidade de atrair os jovens pelas mídias sociais. Dwyer acredita que é oportuno acompanhar tanto as gerações de jovens negros que nasceram digitais como as pessoas mais velhas que utili zam praticamente só a mídia tradicional.“Àsvezes, as pessoas pen sam que ao abraçar as mídias sociais estão abandonando as gerações mais velhas, mas para mim isso é uma situação ‘sim, e’, porque os jovens negros não estão desconectados de seus familiares mais idosos ou de seus antepassados”, explica Dwyer. “A imprensa negra tem essa vantagem porque nossas famílias são intergeracionais. Na hora do jantar, todos se reú nem e conversam sobre o que está acontecendo na comuni dade e se conectam uns com os outros.”Aoadotar uma abordagem do jornalismo negro baseada na comunidade e no convívio das gerações, o fundo espera conec tar as comunidades negras e manter o legado do jornalismo negro. n

A organização sem fins lucrativos Fundação Aventuras sem Barreiras programa excursões para deficientes físicos. SALIAN

BARREIRASSEMAVENTURASFUNDAÇÃOFOTO:DACORTESIA

Tony Kurian passou toda a juven tude quase sem praticar espor tes ao ar livre. Por ter deficiên cia visual, não tinha permissão para brincar com os colegas nos intervalos das aulas e não acompanhava os amigos nas trilhas porque achava que podia atrasá-los.

Em 2015, Kurian conheceu Divyanshu Ganatra, fundador da organização sem fins lucrativos Fundação Aventuras sem Barreiras (ABBF, na sigla em inglês). Criada em 2014 em Pune, na Índia, a ABBF oferece opções acessíveis e inclusivas de esportes de aventura para todas as pessoas com e sem deficiência. Ganatra, que também tem deficiência vi sual, encorajou-o a correr a maratona orga nizada pela ABBF. “Eu sempre pensei que o corpo de pessoas com deficiência física como eu fosse fraco, por isso jamais me vi fazendo esportes e turismo de aventura”, revela Ku rian, que hoje faz doutorado no Instituto Indiano de Tecnologia de Bombaim. Mas sua experiência com a ABBF mudou totalmente essa percepção. Já fez sua primeira corrida de cinco quilômetros, guiado por um com panheiro sem deficiência, e hoje pratica ma ratonas, escalada e ciclismo tandem. A ABBF introduziu os esportes de aven tura na vida de Kurian e de mais de 10 mil pessoas com deficiência (PCD), e esse nú mero continua aumentando. As atividades — mergulho, ciclismo individual ou tandem, alpinismo, escalada em rochas, caminhada, maratonas, rocódromo, rapel e parapente — são organizadas para atender a todos. Como a primeira organização sem fins lucrativos na Índia a organizar esportes de aventura orientados para PCDs, a ABBF já promoveu mais de 150 eventos em 15 cidades do país, ajudando a criar um clima de compreensão e empatia entre pessoas com e sem deficiência.

POR PRITI

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 11 PERFIS DE PROJETOS HISTÓRIASINOVADORES

Tradicionalmente, as agências de espor tes de aventura na Índia relutam em aceitar PCDs e não estão preparadas para atender esse público, o que acaba levando à exclu são e rejeição. “Você tem deficiência visual, então não podemos ajudá-lo”, foi o que Kurian ouviu certa vez de um instrutor de parapente. Rahul Ramugade, cadeirante que joga críquete e é paranadador de nível na cional, foi impedido de praticar mergulho subaquático. “Se você se machucar, seremos questionados por ter permitido que uma PCD mergulhasse”, lhe disse um instrutor. Em um mundo que duvida da capacidade de pessoas com deficiência, a ABBF reconhece seu potencial e lhes oferece oportunidades. O censo mais recente da Índia, de 2011, revelou que existem no país 26,8 milhões de pessoas com alguma deficiência. No mundo todo, são mais de um bilhão. Ideias precon cebidas de que PCDs não viajam, não se in teressam por esportes de aventura, ou não têm recursos financeiros deixaram essa co munidade sem opções para viagens, esportes de aventura e turismo. Permitir que possam viajar e participar de atividades físicas não é apenas uma res ponsabilidade social — é um nicho de negó cios. Um estudo de 2017 do provedor global de viagem Amadeus mostrou que eliminar as barreiras de acessibilidade pode aumentar em até 34% os gastos de viagens de pessoas com deficiência. Compartilhando estereótipos Ganatra identificou esse segmento como uma oportunidade a ser explorada. Aficio nado por esportes, parou de fazer trilhas, andar de bicicleta e praticar montanhismo aos 19 anos, logo depois de perder a visão devido a um glaucoma. As agências de es porte de aventura se recusavam a aceitá-lo e foram sete anos até Ganatra encontrar um instrutor que concordou em treiná-lo a voar sozinho em um parapente. Em abril de 2014, ele atraiu a atenção da imprensa ao se tornar o primeiro piloto cego da Índia a fazer um voo solo. Diante de tanta vibração, imaginou que o impacto seria muito maior se mais pessoas com deficiência também pudessemGanatraparticipar.acreditaque os esportes de aven tura na natureza são um meio eficiente de integrar cada vez mais a comunidade de Acessibilidade nos Esportes de Aventura

DO CAMPO

! Divyanshu Ganatra, fundador da ABBF, ajuda os participantes du rante uma atividade para construir balsas em Pune, Índia, em 2017.

12 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022

Ganatra fundou a ABBF baseado na ideia de que as pessoas aprendem muito mais umas sobre as outras em uma hora de convívio que em um ano de conversas. Ao lado do amigo Harish Raichandani, Ga natra concluiu que as atitudes sociais são decisivas para as pessoas com deficiência serem tratadas com o mesmo respeito que as outras, e que a mentalidade precisa mudar para abrir caminho para o progresso social.

Além de servir como um espaço para a prática de esportes de aventura, o centro oferecerá cursos profissionalizantes gra tuitos para melhorar a empregabilidade de pessoas com deficiência.

Ganatra estava tão convencido disso que fundou a organização usando somente suas economias pessoais, e Raichandani, con sultor de desenvolvimento organizacional e atualmente consultor da ABBF, bancou o salário do primeiro funcionário. Cada expedição começa com um estágio de planejamento, no qual os membros da equipe da ABBF fazem o reconhecimento completo do roteiro programado para iden tificar as dificuldades do terreno, do clima e da viagem e levantar todas as facilidades de socorro médico ao longo do percurso no caso de uma emergência. Depois, discutem as medidas de segurança e determinam o número máximo de participantes antes de abrir as inscrições. Assim que se inscrevem, os interessados são convidados a participar de uma sessão de orientação sobre acessibi lidade e segurança e de encontros para que possam se familiarizar. Nesses encontros, as sessões práticas, são formadas duplas com uma pessoa com deficiência e outra sem para que possam interagir e descobrir maneiras de trabalhar juntas durante a expedição. Uma pessoa cega, por exemplo, sentada em uma bicicleta tan dem na garupa de um condutor com visão plena deve discutir com o companheiro como manter o centro de gravidade equilibrado, ou como manobrar em uma curva mais fechada. Já maratonistas cegos podem experimentar se preferem segurar a mão ou o cotovelo de seu guia, ou usar um cordão prendendo seus pulsos e manter as mãos livres.

PRITI SALIAN faz reportagens sobre direitos humanos, desenvolvimento, justiça social e cultura na Índia, Alemanha e Uganda. Ela foi Embaixadora de Mídia da Fundação Robert Bosch em 2019. Atualmente é membro do Instituto Reuters para o Estudo de Jornalismo.

PCDs na sociedade e dar a ela maior visibili dade. Ao aceitar todo tipo de pessoa, a ABBF contribui para aumentar a conscientização sobre as habilidades de quem tem alguma deficiência. “Quando estereótipos sobre qual quer tipo de deficiência são desmistificados, as pessoas percebem que PCDs também são PhDs, cursam MBAs, são talentosas e podem ser contratadas para ocupar qualquer cargo.”

A ABBF fornece os equipamentos neces sários para diferentes tipos de necessidade, como acessórios adaptáveis para escalada em parede ou em encostas rochosas, bicicletas tandem ou solo para amputados, equipamen tos de mergulho projetados para tetraplégicos e cadeiras de rodas adaptadas para qualquer tipo de terreno para montanhismo. Cada expedição termina com uma sessão de reflexão — um elemento decisivo para a missão da ABBF de “introduzir a inclusão por meio da diversão” — em que os participantes falam sobre suas experiências. Muitos deles afirmam que se conscientizaram de sua igno rância em relação às comunidades de PCDs e muitos saem da experiência convencidos de que podem adotar práticas inclusivas em seu ambiente de trabalho. A ABBF também realiza sessões abertas ao público depois de eventos com duração de um dia, como maratonas, para criar vi sibilidade e conscientizar a sociedade sobre a deficiência.AABBFcobra uma taxa que varia con forme a atividade. Se um participante não tiver condições de pagá-la, a ABBF a subsidia ou cobre o valor total. Desde 2017, as maiores despesas da or ganização — principalmente com os equi pamentos adaptados e a equipe médica de apoio — são financiadas pelas empresas do setor financeiro Bajaj Finserv Ltd., HSBC Bank e pela empresa de consultoria empre sarialAlgunsCapco.participantes se tornaram seus principais financiadores. O filantropo Sudhir Shenoy não só financiou e levantou fundos para a ABBF, mas também liderou os esforços para oferecer cestas básicas e vacinas para Covid-19 para o estado de Maharashtra. Ao trabalhar com a ABBF, Shenoy sentiu que “há muito mais a fazer que apenas oferecer doações” e se empenhou entusiasticamente a colocar PCDs em contato com oportuni dades de emprego. No entanto, apesar desse apoio financeiro, a captação de recursos continua sendo o maior desafio da ABBF, porque os potenciais benfeitores não consideram os esportes de aventura na natureza importantes para pes soas com deficiência e ainda é muito forte o preconceito de que não podem participar desses esportes. Ganatra é muito questio nado pelos potenciais doadores que são cé ticos quanto à missão da ABBF e perguntam, por exemplo: “Por que eles precisam escalar um paredão ou uma montanha? Qual a ne cessidade de um cadeirante mergulhar com cilindro? Eles não podem continuar sentados com segurança em suas casas? O dinheiro investido não poderia ser usado em sua edu cação ou formação técnica?". Abrindo espaço Em 2017, Ganatra decidiu construir o pri meiro centro de desenvolvimento e acesso a esportes de aventura da Índia. Em uma área de 1,4 hectare em Dhanep, um vilarejo a 60 quilômetros de Pune, o projeto avança conforme permitem as doações que a ABBF recebe. O centro abrigará os principais espor tes de aventura da ABBF, e a cobrança dos participantes garantirá a sustentabilidade financeira das operações.

Por causa da pandemia, todos os esportes de aventura foram suspensos por quase dois anos. Nesse período, a ABBF forneceu cestas básicas e vacinação para PCDs. As ativida des serão retomadas no próximo semestre com a primeira fase do centro de esportes. A ABBF espera que esse espaço seja um polo irradiador onde as empresas se envol vam com pessoas com diferentes tipos de deficiência. “Essa experiência no centro deverá motivá-las a promover culturas de inclusão”, avalia Ganatra. “Todos serão beneficiados quando essas empresas, es pontaneamente, começarem a tomar medi das para incluir deficientes físicos em sua força de trabalho e também criar produtos para eles.” n

Criando cooperativas A Placido Rizzotto foi saudada pelo país todo com grande entusiasmo. No entanto, havia muito trabalho pela frente. Os 15 associados escolhidos pelo Consórcio para o Desenvolvimento e Legalidade, a prefeitura de Palermo e a Libera não foram suficientemente treinados pelo governo para administrar os 157 hectares de terras confiscadas. Algumas delas, localizadas em Corleone, em Palermo, na Sicília — o reduto da Cosa Nostra — per tenciam a Totò Riina, um dos mais violentos chefes da Máfia de todos os tempos. De acordo com Gianluca Faraone, um dos 15 associados, eles tiveram de aprender a colher, podar e vender seus produtos para tornar a terra lucrativa, e administravam a cooperativa por tentativa e erro.

Nas terras antes controladas pela Máfia em San Cipirello, agora a Placido Rizzotto planta vinhedos. $

A Libera Terra reivindica terras roubadas pela Máfia italiana para criar oportunidades econômicas para comunidades locais.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 13 HISTÓRIAS DO CAMPO

POR AGOSTINO PETRONI

Francesco Paolo Citarda, atual presi dente da Placido Rizzotto, reconhece que a cooperativa passou por dificuldades es pecíficas, como, por exemplo, a resistência

SALVATORIGIORGIOFOTO:DACORTESIA AMáfia dominou o sul da Itália desde a unificação do país em 1861, quando o Reino da Sarde nha, ao norte, anexou os demais estados. A fraca atuação da recém-formada monarquia no sul, no entanto, permitiu que o crime organizado prosperasse Foi somente na década de 1980 que sur giu o movimento anticrime para reagir à vio lência generalizada da Máfia. Pio La Torre, sindicalista e político siciliano, acreditava que, para acabar com o poder da organiza ção, que entre 1978 e 1983 foi responsável por mais de mil assassinatos no país, o go verno italiano deveria confiscar seu dinheiro e propriedades. A Máfia se tornou tão po derosa principalmente porque criou desde empresas de construção até propriedades rurais que empregavam habitantes locais em troca de lealdade, enredando-os pelo clientelismo. Para o político, se sua pre sença física, financeira e territorial fosse abalada, seu poder sobre a população tam bémEmenfraqueceria.1982,LaTorre foi assassinado pela Cosa Nostra , a Máfia siciliana, depois de ter submetido ao Parlamento uma lei para combater o crime organizado. A resposta do Parlamento foi a aprovação da primeira lei — Rognoni-La Torre — que classificava os crimes atribuídos à Máfia como crimes de traição e exigia a apreensão dos bens da organização.Noentanto, as propriedades apreendi das continuaram abandonadas nas mãos de um Estado extremamente burocrático que se mostrou incapaz de administrá -las. Já as empresas, que nos tempos da Máfia eram prósperos empreendimentos que empregavam comunidades inteiras, se transformaram em negócios negligencia dos confiscados pelo governo — em alguns casos, continuaram a ser operados (“extra oficialmente”) pela Máfia. “Para realmente enfraquecer os chefões, tanto econômica como simbolicamente, era necessário, pelos frutos de seus negócios sujos, contar com o apoio da comunidade (...) para que a sociedade como um todo se beneficiasse diretamente das restituições”, diz Don Pio Luigi Ciotti, padre de 75 anos, que vive em Turim, na Itália. Em 1995, Ciotti fundou a Libera, uma rede de associações e cooperativas sociais sem fins lucrativos cujo objetivo era deslegitimar e desempoderar a organização criminosa. No mesmo ano, a Libera reuniu quase um milhão de assinaturas em apoio a uma lei que confiscava os bens da Máfia e os realocava em comunidades impactadas na forma de bens públicos como escolas e ser viços sociais. Um ano depois, com aprovação da Lei 109/96, mais de 2.000 projetos estão sendo executados em terras confiscadas, sendo que 200 são cooperativas. Uma delas é a Cooperativa Siciliana Pla cido Rizzotto, que, com o apoio da Libera, cultivou terras restituídas somente com culturas orgânicas. Fundada em 2001, a cooperativa emprega mulheres, migrantes e adolescentes vulneráveis que podem ter se envolvido no crime organizado e pro cura oferecer-lhes um futuro melhor. Em 2008, a Placido Rizzotto se uniu a outras oito cooperativas para vender seus pro dutos — desde massas até vinhos — em toda a Itália, sob a marca Libera Terra (Terras“DesdeLivres).então, muitos jovens encontra ram um emprego limpo e real, que respeita seus direitos fundamentais”, observa Ciotti. Ele acredita ter havido uma revolução cul tural nessas terras. “O bem comum venceu o egoísmo criminoso, e a coragem e a de terminação dos jovens eliminaram décadas de silêncio e resignação.

Rede de Cooperativas contra o Crime

Na última década, as operações foram estruturadas em uma única cooperativa e a produção de alimentos e vendas foi con solidada. Essa forma de organização ajudou a manter os negócios funcionando durante o impacto econômico devastador da pande mia da Covid-19. Graças à sua plataforma de vendas online e um portfólio diversificado de produtos, a venda de alimentos cresceu cerca de 3% tanto em 2020 como em 2021. No futuro, Fiore planeja investir todo o lucro da Libera Terra na terra, em infraes trutura física e digital, e na contratação de mão de obra. Também será necessário esta belecer um fundo de solidariedade para aju dar os cooperados a enfrentar os efeitos das mudanças climáticas na agricultura. Ainda há muito trabalho a ser feito. De acordo como a Agência Nacional para Bens Confiscados, existem cerca de 5.000 pro priedades confiscadas da Máfia em toda a Itália que ainda não foram redistribuídas. Ciotti espera que sejam logo reivindicadas por suas respectivas comunidades. “O poder restaurador de projetos como o Libera Terra é enorme”, avalia Ciotti. “Vale a pena investir neles.” n

As cooperativas da Libera Terra também lutaram muito para entrar no mercado de alimentos. Nos primeiros anos os produtos eram comprados somente por pessoas que eram contra a Máfia. A qualidade dos pro dutos e, finalmente, as vendas melhoraram depois de uma exaustiva pesquisa e desen volvimento do produto e da criação da marca LiberaComoTerra.nas terras confiscadas havia vi nhedos, os associados começaram a produ zir vinho. Em 2009, com financiamento do governo, criaram uma vinícola em San Ci pirello, na região de Alto Belice Corleonese, chamada Centopassi (ou Cem passos). A Placido Rizzotto agora é competitiva na produção de vinhos, uma situação intrigante em que a qualidade — e não a causa social — impulsiona as vendas na Itália. Atualmente a Centopassi produz 11 tipos de vinho e vende cerca de 500 mil garrafas por ano. Entre 2001 e 2014, a Libera Terra ampliou o número de cooperativas de um para nove — por toda a Sicília, Calábria, Campania e Puglia — num total de aproxi madamente 1.400 hectares de todas as ter ras confiscadas e empregando mais de 170 pessoas. Em 2008, as cooperativas fundaram a Libera Terra Mediterraneo, um consórcio sem fins lucrativos cujos lucros são reinves tidos nos meios de produção para uso mais eficiente do solo e para vender seus produtos com uma só marca. Atualmente, a marca Li bera Terra vende cerca de 90 produtos e seu faturamento conjunto é de US$ 7,69 milhões.

Adversidade e reação A Libera Terra empregou centenas de pessoas com deficiência, ofereceu-lhes salários justos e ensinou-lhes habilidades para que pudessem progredir profissionalmente. De acordo com Valentina Fiore, vice-presidente da Placido Rizzotto, essa foi uma história de sucesso. No entanto, não foi assim tão fácil, prin cipalmente no início. De acordo com Ciotti, a Máfia obstruiu o trabalho da Libera Terra porque sabia que essa iniciativa a privaria de seus bens e poder. A violência e a intimidação assumiram várias formas: os mafiosos impe diam a transferência de ativos, queimando oliveiras e campos de trigo — e intimidavam os associados que cultivavam a terra. A Máfia ameaçava as pessoas que deposi tavam suas colheitas de trigo na cooperativa. “Em julho de 2002, durante a primeira co lheita, não se conseguia encontrar uma única colheitadeira em todo o interior de Corleone”, observa Ciotti. No final, a polícia interveio e apreendeu um trator de uma empresa local para que a cooperativa pudesse utilizá-lo. Apesar dessas ameaças, os associados e voluntários não foram intimidados. “Durante anos”, observa Ciotti, “houve incêndios e boi cotes de todo tipo. Mas sempre respondemos às ameaças fortalecendo nossa cooperativa, graças ao encorajamento, estima, afeição e à ajuda efetiva de muitas pessoas.”

AGOSTINO PETRONI é jornalista, autor de livros e, em 2021, repórter associado da Pulitzer. Ele vive na Itália e seus trabalhos foram publicados na The Atlantic, National Geographic e BBC, entre outras mídias.

14 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 dos residentes leais à Máfia, por ser a pri meira do gênero. “A comunidade local se mostrava muito cética em relação ao nosso trabalho com os bens confiscados e em relação ao sistema de cooperativas em geral”, lembra Citarda.

Segundo Barbieri, o retorno financeiro da Coop com a venda dos produtos foi irrisó rio, mas o ganho ocorreu na “credibilidade diante de nossos clientes, já que estávamos apoiando uma causa importante. As pessoas compravam os produtos porque também acreditavam no projeto”. Em 2005 o apoio de outras cooperativas e empresas privadas à Placido Rizzotto era tão grande que eles formaram a Cooperare com a Libera Terra. Essa associação reu niu todo o apoio técnico e conhecimento que estava sendo compartilhado para dis ponibilizá-lo também para outras futuras cooperativas sociais. Atualmente, cerca de 70 parceiros fornecem expertise às nove cooperativas sociais reunidas sob a marca Libera Terra e as apoiam financeiramente como membros financiadores. Rita Ghedini, presidente da Cooperare com a Libera Terra, observa que os mem bros de sua associação resolveram participar do projeto para assumir uma posição firme contra a Máfia. “O que era uma atitude defensiva tornou-se um gerador de novas riquezas, não só econômicas, mas também transformadoras”, diz. “A experiência da Libera Terra é emblemática em nosso país porque ela mudou o crime organizado.”

Entretanto, apoios importantes vieram. Uma rede de cooperativas da região da Emi lia-Romagna, no norte da Itália, a Unipol, ajudou nas políticas de seguros. A corpora ção de agricultores orgânicos Alce Nero, na distribuição de produtos. E outras entidades ofereceram suporte financeiro, técnico e ad ministrativo. Com esse apoio, a Libera Terra tornou-se competitiva e autossuficiente. Em 2003, Carlo Barbieri, diretor comer cial dos supermercados Coop, começou a distribuir os produtos da Placido Rizzotto — como molho de tomate, lentilhas e mas sas — para lojas de toda a Itália, vendendo quase meio milhão de euros de produtos naquele primeiro ano. “Logo percebi que eles mereciam apoio porque foi uma das iniciativas de combate à Máfia nos territórios onde ela havia surgido”, observa Barbieri. “Parecia um ótimo exemplo de mudanças positivas para essas regiões.”

Um grupo de visitantes caminha em direção a uma turbina no parque eólico de UistWind, na ilha escocesa de North Uist. !

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 15 HISTÓRIAS DO CAMPO

O Consórcio de ONGs Local Energy Scotland promove a geração de energias renováveis de propriedade coletiva.

POR PAUL HOCKENOS com o setor privado em seu esforço nacional de conservação. Fundado em 2013, o Con sórcio Local Energy Scotland (LES) gerencia o Programa Comunidade e Energia Renová vel (CARES, na sigla em inglês), um plano de US$ 6,5 milhões que fornece subsídios e empréstimos de cerca de US$ 200 mil para comunidades que desenvolvem projetos de energia limpa. O LES é formado por cinco organizações sem fins lucrativos dedicadas ao clima e energia: a Energy Saving Trust, a Changeworks, a Scarf, a The Energy Agency e a The Wise Group. Facilitador do projeto Além de financiamento e empréstimos, o LES oferece serviços de consultoria em energia renovável para comunidades, empresas e outras organizações. Ferramentas online gratuitas, incluindo guias de boas práticas, que auxiliam as comu nidades na organização e execução de projetos de energia locais, também estãoProjetosdisponíveis.desistemas de energia renovável são notoriamente caros. Devido à sua complexidade, não é fácil implantá-los, principalmente em áreas rurais ou locais distantes onde vivem populações mais pobres. Para colocar em funcionamento uma única turbina eólica, a comunidade deve en frentar um longo processo que inclui uma série de análises, acordos legais e requisitos técnicos, além de um capi tal de investimento significativo para cobrir os custos iniciais. O LES funciona como uma ponte intersetorial. “Como organização do terceiro setor, o LES dialoga com ou tros grupos do setor envolvidos em

A North Uist precisava exatamente dessa assistência. Sua população está diminuindo e, há décadas, sua indústria pesqueira está em declínio. Em 2009, os líderes comunitá rios de North Uist decidiram aproveitar seu recurso natural mais abundante — o vento — para salvar sua economia. Mas não havia ninguém com experiência no complexo sis tema de geração de energia.

Chris Morris, diretor do LES, enfatiza que o sucesso do consórcio como facilitador se deve, em grande parte, à expertise profis sional de seus colaboradores. “A maior parte dos funcionários está vinculada a instituições filantrópicas locais, o que significa que podem aproveitar a oportunidade de trabalhar de forma colaborativa com colegas para apoiar grupos comunitários”, explica Morris. “Nossa estrutura ajuda colegas da organização anfi triã que trabalham com empresas, cadeia de suprimentos e famílias. E nosso staff acom panha todo o processo.”

SCOTLANDENERGYLOCALFOTO:DACORTESIA

Na rochosa costa oeste da ilha escocesa de North Uist, no ar quipélago das Hébridas Exte riores, elevam-se duas turbinas eólicas de 85 metros de altura que giram continuamente impelidas pelo vento que sopra do oceano Atlântico Norte. Essa pequena usina eólica, chamada Uis tWind, é um dos 570 projetos de energia renovável de propriedade comunitária na Escócia. Outros exemplos incluem parques solares, usinas hidrelétricas, instalações de bioenergia e energia de marés. Os projetos da Escócia são diferentes dos da Europa porque seus proprietários são entidades filantrópicas que procuram ajudar os municípios locais a financiar iniciativas de desenvolvimento. Líder mundial em energia renovável, a Escócia viu sua produção superar 97% da de manda bruta de eletricidade do país em 2020, sendo que pouco menos de 10% são produzi dos por cooperativas de energia limpa, como a UistWind e outras unidades de geração de propriedade comunitária. O governo estimula programas de ener gia local e economia circular porque eles aumentam a produção de energia renovável, reduzem a carga da matriz energética nacio nal, criam empregos e geram lucros. Muitas coletividades participam da campanha Co munidades de Carbono Zero, que incentiva os moradores a zerar suas emissões até 2040. A energia comunitária é tida como essencial para a implantação de energias renováveis e para responder à crescente pressão pela eficiência energética. A meta é dobrar sua produção de renováveis até 2030. Esse esforço concentrado começou em 2011, quando o governo procurou aumentar o envolvimento da comunidade e colaborar projetos de energia limpa”, explica Bill Slee, especialista em desenvolvimento rural. “O LES está mais próximo das comunidades que dos órgãos do setor público, geralmente burocráticos e indiferentes.”

Uma Revolução na Energia Comunitária

16 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022

As comunidades não dispunham de re cursos nem podiam assumir a dívida para construir um parque dessa natureza. O LES as aconselhou a criar instituições fi lantrópicas legais financiadas pelo CARES e a solicitar empréstimos para financiar os investimentos na usina eólica. O empre endedor concordou com a ideia que tinha o apoio das comunidades. Os dividendos começaram a fluir em 2016 e subsidiaram um projeto local de arquivamento histórico, a restauração de trilhas locais e um centro patrimonial de incentivo ao turismo — uma nova filosofia de viagens que combina aven tura, ecoturismo e aspectos culturais de um turismo fascinante. Para manter o grande entusiasmo por energias renováveis, o governo escocês deter minou como meta que metade dos projetos de energia renovável autorizados recente mente incluam o compartilhamento com co munidades locais. Alguns empreendimentos de propriedade compartilhada revertem ao município até 25% do faturamento do projeto.

PAUL HOCKENOS é escritor e atualmente escreve sobre energia renovável na Europa. Ele vive em Berlim.

Slee e outros especialistas lamentam a redução expressiva no número de pro jetos de energia comunitária desde que o programa de apoio do Reino Unido foi encerrado em 2019 — resultado da vitória do Partido Conservador naquele ano. “Al gumas comunidades recebem muito pouco ou nada dos proprietários”, comenta Rona Mac Kay, chefe de operações e governança da CES, que trabalha exclusivamente com as comunidades.Oencerramento do programa dificultou muito o desenvolvimento de novos progra mas comunitários de energia renovável. No entanto, a energia renovável é apenas um elemento na redução dos custos de energia. Atualmente o LES orienta as comunidades, empresas e indivíduos e os aconselha em questões sobre eficiência energética, ar mazenamento de eletricidade e serviços de aquecimento de baixo carbono. Em termos de medidas a serem tomadas para atingir as metas de efetivamente zerar as emissões na Escócia com sistemas locais de produção de energia, conservar energia não é menos importante que gerar energia limpa. n

Propriedade compartilhada Atualmente empresas maiores, de proprie dade privada, que as comunidades adquirem e com elas lucram indiretamente, também estão sendo beneficiadas. Em 2014, por exemplo, o LES ajudou na liberação de in vestimentos para as comunidades de Tarbert e Tighnabruaich, na costa oeste, perto de Glasgow — a Sròndoire Community Wind Farm, um projeto de três turbinas proposto por um investidor privado, e a Allt Dearg Wind Farmers.

Em 2010, a Energia Comunitária da Escócia (CES, na sigla em inglês), que ad ministrava os fundos do CARES antes do consórcio, recomendou que a North Uist Development Company (NUDC) fosse criada como uma instituição filantrópica e a ajudou a obter do CARES um empréstimo inicial de US$ 200 mil para os estudos de viabili dade. Os consultores identificaram um local montanhoso e despovoado na costa oeste, chamado Criongrabhal, como sendo ideal para a instalação de duas turbinas de médio porte, a um custo total de US$ 4,6 milhões. Em 2013, o LES ajudou a North Uist a obter uma autorização local de construção e uma licença para introduzir a eletricidade produzida na matriz energética nacional. Mas logo surgiu um obstáculo: o Ministério da Defesa do Reino Unido fez uma objeção devido à proximidade das turbinas das faixas de radar e a autorização foi negada. Nos cinco anos seguintes, a NUDC e Murdo Murray, diretor de desenvolvimento do LES, lutaram contra o poderoso ministério britânico. Por fim um acordo estipulou que as turbinas se riam desligadas quando o ministério julgasse necessário, mas que isso não se repetisse com tanta frequência a ponto de inviabilizar o projeto financeiramente. Em 2018, finalmente saiu a permissão para instalar as turbinas. No entanto, havia mais um obstáculo a transpor: levantar o capital para o investimento. A experiência de Murray e o empréstimo de US$ 60 mil pelo CARES após a autorização foram su ficientes apenas para obter documentação necessária para garantir os empréstimos de bancosMudançasescoceses.noprograma de apoio à energia renovável — o governo britânico suspendeu todos os financiamentos — inviabilizaram o capital de investimento necessário para dar continuidade ao projeto. Murray ajudou a comunidade a levantar mais US$ 616 mil por meio de uma oferta de ações comunitárias — um tipo de fundo de investimento local que as comunidades na Escócia costumam utilizar para gerar o capital necessário ao in vestimento em iniciativas de energia limpa. A construção foi iniciada no segundo trimestre de 2019, e em setembro daquele ano os ro tores começaram a girar. Em 2019, a UistWind e outros projetos de energia limpa de iniciativa local renderam um total de US$ 27 milhões em benefícios para a comunidade. Em North Uist, um superávit de energia de aproximadamente US$ 140 mil serão arrecadados pelos cofres públicos anu almente nas próximas duas décadas. Esses fundos servirão para impulsionar peque nos negócios e construir casas populares. A NUDC investe em programas de transporte de baixo carbono, espaços verdes, assistência a famílias com pouca disponibilidade de ener gia, edifícios comunitários com emissão zero e projetos de armazenamento de energia. A NUDC também estima que, com as turbinas, 1.275 toneladas de dióxido de car bono produzidas anualmente pela queima de combustíveis fósseis sejam suprimidas. Em bora somente 3% de toda a energia renovável da Escócia seja produzida por essas usinas, o país ultrapassou de longe sua meta de 0,5 gigawatt de capacidade de geração de energia local em 2020 e duplicou esse valor em 2021. Na Escócia, a preservação do clima nunca foi prioridade dos projetos comunitários de energia. “Inicialmente, não estávamos pre ocupados em salvar o planeta, mas em sal var nossas próprias comunidades”, observa Calum Macdonald, gestor do Point e San dwick Trust. Mas, em termos de desenvolvi mento comunitário e preservação climática, “não é uma questão de ‘ou um ou outro’”, ele observa. “Plantar florestas e abrir trilhas para caminhada atende aos dois, e ainda promove a saúde pública.”

Com a missão de promover, informar e inspirar o campo da inovação social, buscando, cultivando e disseminando o que há de melhor em pesquisa e conhecimento baseado na prática, a plataforma une uma gama de tópicos, incluindo direitos humanos, investimento de impacto, sustentabilidade, educação, saúde, ambiente, energia, desenvolvimento econômico, entre outros. publicação referência mundial em inovação social, agora no Brasil

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@ssir_br @ssirbrasilAcesse o site ssir.com.br lusão n a munidades luída nclusão Tecnológica para Comunidades Excluídas or Edga d Ba M cus Salusse José F ampo ephan hijs Stanford Social Innovation Review Brasil é uma publicação da RFM Editores sob licença da Stanford Social Innovation Review.

Mantenedores institucionais

O empreendimento social mexicano Pixza nasceu como veículo de inclusão social para adultos sem moradia por meio de uma pizzaria. Sua evolução mostra o papel que seu propósito desempenhou na administração durante a crise e na remodelagem de seu modelo de negócio para ampliar impacto.

Mundial

UM OLHAR PROFUNDO PARA O INTERIOR DE UMA ORGANIZAÇÃO Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022

Nascido em uma família de classe média na Cidade do México, Souza se mudou para os Estados Unidos quando tinha dois anos e voltou ao México aos nove, mais ou menos na época em que seu pai fundou o Mexitlán, parque temático educacional localizado em Tijuana e dedicado à cultura e à história do país. Essa vivência des pertou seu interesse pelo empreendedorismo e pelo empoderamento que pode provocar.

Social em Meio a uma Pandemia

m 2015, Alejandro Souza criou o empreendimento social Pixza com dois propósitos. O primeiro era mon tar uma pizzaria moderna e socialmente responsável que oferecesse pizzas feitas apenas com ingredientes mexicanos — e que se tornou o assunto na Cidade do México. O segundo era construir uma organização que possibilitasse a jovens sem moradia trabalhar na pizzaria e, ao mesmo tempo, receber trei namento e serviços valiosos para sua reinserção social. Souza enfrentou muitos desafios não apenas para criar a Pixza mas para fazê-la prosperar. “Uma montanha-russa empreendedora”, é como ele descreve a experiência. O que o fez manter seu esforço foi o comprometimento com os jovens marginalizados da capital mexicana, algo que se tornou o coração da marca. “O público adorou a Pixza”, conta Souza. “Ali era possível inte ragir com os Agentes de Mudança, que é como chamamos nossos funcionários. Enquanto eles falavam de suas vidas, as pessoas viviam aquela história de empoderamento. Era um lugar especial.”

No início de 2018, a Pixza estava caminhando para ampliar ope rações e dobrar seu impacto social graças a novos fundos de inves timento. Então, em março de 2020, a pandemia de Covid-19 atingiu o México e as vendas caíram mais de 90%. “Nós basicamente não vendíamos”, explica Souza. Quando a cidade entrou em quarentena, a maior parte dos restau rantes no país promoveu demissões em massa. Souza, porém, sabia que não podia abandonar seus Agentes de Mudança. “A Pixza sempre priorizou e se orientou por sua missão.” Mas seria possível manter esse comprometimento durante uma pandemia sem precedentes?

Ao longo dos meses subsequentes, por meio da inovação social sustentada, a organização adequou seu modelo de negócio não apenas para manter seus compromissos com jovens mexicanos socialmente abandonados, mas também para ampliá-los em um futuro pós-pandemia. Sua história ressalta o poder do propósito para fortificar um empreendimento social mesmo nas crises mais desafiadoras. Uma ideia no bar “Sempre fui um empreendedor social”, afirma Souza, 35 anos. “Bus car modelos que promovam mudanças de maneira sustentável é uma paixão que me acompanha.”

O Dicionário de Inglês de Oxford define “empoderamento” como “o processo de se tornar mais forte e mais confiante, principalmente no controle da própria vida ou na reivindicação dos próprios direi tos”. Souza acredita que o empreendedorismo social é mais atraente do que instituições de caridade tradicionais ou filantropia, porque empodera em vez de criar dependência. “Imagine que você vê alguém precisando de uma camiseta e

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Por Gregory C. Unruh e Fernanda Arreola

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você dá a sua”, explica Souza. “Você se sente bem, assim como a pessoa que recebe a camiseta. Imagine então que você recebe uma camiseta de outra pessoa. E assim por diante. O pro blema é que, no fim, alguém ficou sem camiseta. Portanto, ainda que se sinta satisfeito, você não solucionou o problema.”

Agentes de Mudança da Pixza, como Ángel, na foto acima, são jovens antes em situação de rua e que agora trabalham na empresa. n

Em 2005, Souza ingressou na graduação do Babson College, em Wellesley, Massachusetts, voltada para o empreendedorismo, e se tornou um dos estudantes pioneiros a unir negócios e propósito social. Depois de se formar, quatro anos mais tarde, participou de uma série de projetos de desenvolvimento social ao redor do mundo, incluindo países como Ruanda, Uganda, Butão e Brasil. Essa expe riência permitiu que testemunhasse iniciativas de desenvolvimento internacional na prática e interagisse com ministérios de desen volvimento nacional, bem como com agências multilaterais como o Banco Mundial, as Nações Unidas e o Banco de Desenvolvimento Interamericano. Esses aprendizados internacionais e interseto riais o conduziram de volta aos estudos, e ele fez mestrado em relações públicas e internacionais na Columbia University, em Nova York. O trabalho de um dos cursos de pós-graduação acabou sendo determinante. O professor pediu aos alunos que encontrassem alguém na cidade que tivesse uma história extraordinária, seguissem essa pessoa e elaborassem um relato depois. Foi assim que Souza conheceu “Joe”, um sem-teto que, na casa dos 50 anos, havia passado a maior parte de sua vida nas ruas. Souza o acompanhou ao longo de quatro meses, aprendendo em primeira mão a respeito da crise da falta de moradia em Nova York e no país como um todo. Sentiu-se então motivado a ajudar adultos na mesma situação por meio de um negó cio social, um desejo que, mais tarde, realizaria com a Porpizzaria.voltadessa mesma época, Souza encon trou, por acaso, um amigo mexicano em um bar de Nova York. A conversa entre os dois, como era de se esperar, passou a ser sobre um dos eternos assuntos entre mexicanos que moram no exterior: comida mexicana. Souza, que amava as pizzarias nova-iorquinas com seus pedaços enormes, começou a se perguntar por que não havia pizzas mexicanas. Daí em diante a conversa rumou para a criação de um restaurante que servisse pizzas mexicanas feitas com ingredientes e sabores tradicionais. Tendo em mente, àquela altura, o tempo que havia passado com Joe e seu constante compromisso com o empo deramento, suas ideias acabaram casando o projeto de uma pizzaria com o desejo de ajudar pessoas que não têm moradia. Ao término da conversa, um pensamento se cristalizou, recorda-se Souza. “Vou abrir uma pizzaria e vou contratar exclusivamente adultos em situação de rua”, disse ao amigo. Em 2015, depois de concluir os estudos e voltar para a Cidade do México, Souza sentia-se pronto para levar seus planos a sério. Juntou suas economias e abriu seu restaurante de empoderamento social, e resolveu chamá-lo de Pixza, uma brinca deira remetendo à forma como muitos mexicanos pronunciam “pizza” (“pic-sa”). Seu modelo de negócio integraria um empreendimento gerador de lucros a um programa de apoio social destinado a pro mover oportunidades de reintegração social para populações sem moradia da Cidade do México. Um projeto social em uma pizzaria Desde o início, a Pixza queria gerar impacto social e ambiental positivo tanto com seus produtos quanto com seus processos. No tocante ao produto, vendia pizzas feitas de modo inovador com ingredientes mexicanos tradicionais orgânicos e cultivados local mente. Com massa feita de milho azul, um grão nativo e cultural

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“Rota da Mudança é o processo que os Agentes de Mudança vivenciam durante seu período na Pixza”, conta Natalia Pedroza, uma das gerentes do negócio. “Começa com o aprendizado de hábitos novos e de disciplina para manter um emprego estável. Depois, tra balhando o desenvolvimento profissional e pessoal para que possam se aprimorar e, por fim, tornarem-se independentes e capazes de melhorar gradativamente sua quali dade de vida e alcançar uma certa estabilidade.”

As pizzas, no entanto, independentemente de suas inovações, eram apenas um veículo para promover o propósito social da Pixza. Souza havia integrado o impacto social diretamente ao negócio ao contratar exclusivamente jovens que viviam nos abrigos da Cidade do México. Cerca de vinte mil jovens eram considerados “socialmente abandonados” na capital, levando vidas isoladas e perigosas, em abri gos ou nas ruas. Embora existissem programas públicos de ajuda, a maior parte deles lidava apenas com alguns aspectos do problema, tais como tratamento de saúde ou abrigos temporários. A aborda gem da Pixza, mais abrangente, convidava os jovens a se juntar a seu programa de Rota da Mudança, por meio do qual os participantes seriam conduzidos por um processo de empoderamento com digni dade, mirando, ao final, a conquista de um emprego e a autonomia.

GREGORY C. UNRUH é professor de Liderança em Valores na George Mason University e diretor acadêmico do progra ma de educação executiva para Diretor de Sustentabilidade (Chief Sustainability Officer). Atua também como editor con vidado de sustentabilidade na MIT Sloan Management Review. FERNANDA ARREOLA é reitora da Faculty & Research no ISC Paris. Também é profes sora de estratégia, inovação e empreen dedorismo, além de realizar pesquisas em serviço de inovação, governança e empreendedorismo social. Alejandro Souza, fundador da Pixza, casou a ideia de pizza gourmet com o compromisso social de ajudar sem-tetos. !

Como não sabia como fazer pizza, muito menos se era possível usar milho azul, no início da empreitada Souza entrou em contato com Chayito, a ex-cozinheira de sua avó, uma mulher que havia morado com sua família por anos e que, àquela altura, residia em Cuautla, cidade a duas horas de carro, ao sul da capital. Depois de passar catorze horas imerso na cozinha com ela, tendo aulas de culi nária, Souza achou que havia entendido como incluir ingredientes e sabores mexicanos tradicionais em suas pizzas.

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Ao completar o programa de doze meses, os participantes recebem uma oferta de emprego for mal na Pixza e tornam-se, oficialmente, Agentes de Mudança. No entanto, o objetivo principal do projeto não é fazer com que fiquem indefinida mente na empresa. Em vez disso, como explica o cofundador do projeto Raymundo von Bertrab, o propósito é “garantir que as pessoas em condição de abandono social cheguem ao projeto e depois saiam para uma oportunidade melhor, alcançando sua inclusão social sustentável”. A Pixza usou o modelo do “compre um, dê outro” para recrutar Agentes de Mudança, enquanto incluía os clientes em sua missão. A cada cinco pedaços de pizza comprados nos restauran tes, uma pessoa que mora nas ruas ganhava um pedaço de pizza. Quem comprava o quinto pedaço era convidado a escrever uma mensagem pessoal para o eventual destinatário. Esse pedaço gratuito seria o contato inicial do desabrigado com a Pixza, um primeiro passo importante para estabelecer não apenas confiança no programa de empoderamento, mas também despertar interesse por ele. Por meio de uma série de etapas — incluindo acesso a banho, roupas novas, corte de cabelo, avaliação médica e curso de habilidades básicas “para a vida” — os participantes do Rota de Mudança retomavam, gradualmente, o controle de suas vidas. “É um programa desenvolvido individualmente para ajudar as pessoas em diferentes esferas de suas vidas segundo seu momento e suas necessidades, incluindo áreas como trabalho, educação, auto estima, finanças, independência etc.”, segundo Regina Medina Mora, outra gerente de projeto. Ao concluir o programa, os participantes recebem uma oferta formal para trabalhar na Pixza como geren tes, após terem ocupado previamente cargos mais básicos como caixa ou garçom. A Pixza tornou-se um sucesso entre os amantes da gastrono mia na Cidade do México. Muitas vezes formavam-se filas na rua com pessoas esperando pacientemente seu pedaço de pizza. O Restaurant Guru, site internacional de avaliação de restaurantes, colocou a Pixza como o oitavo melhor restaurante mexicano, entre os 17.149 da Cidade do México. Tanto a pizza quanto o propósito atraíam o público. “A Pixza é um dos poucos restauran tes com uma causa no México, que busca atuar como plataforma para o empo

mente importante para o México, as pizzas incorporaram também gafanhoto, tamales, pimenta poblano, linguiça, queijo de Oaxaca, carne de porco desfiada e até mole, um molho apurado feito com uma série de especiarias, entre outros ingredientes.

deramento social”, escreveu um cliente no site. “Além de oferecer um cardápio de pizzas deliciosas com sabores muito mexicanos, seus estabelecimentos têm o propósito de começar um movimento inclusivo, empregando apenas pessoas que se encaixem no perfil de abandono social.” Na esteira do sucesso de seu lançamento, Souza agiu rápido e inaugurou outros dois endereços. Com uma equipe completa de sete gerentes e três operações de sucesso, estava pronto para aumentar seu impacto de maneira considerável. Contudo, enquanto a Pixza criava valor para muitos de seus stakeholders, uma crise iminente ameaçava a sustentabilidade de seu negócio e de sua missão.

O modelo de negócio da Pixza havia lidado, de maneira inteligente, com dois desafios comuns enfrentados por inovadores sociais: sus tentar e ampliar o impacto. Para isso, incorporou os beneficiários de seus objetivos — jovens em situação de rua — diretamente a seus negócios. Como empregados, eles eram parte indispensável das operações, garantindo que o impacto seria sustentado à medida que os restaurantes fossem bem-sucedidos. Ademais, o impacto aumentaria com a abertura de novas unidades e o crescimento da rede de restaurantes. “O modelo é elaborado desse modo porque se ganhamos dinheiro automaticamente geramos mais impacto”, relata Souza. “Para ven der mais pizzas eu tenho de contratar outra pessoa para fazer essas pizzas e, desde que continuemos a contratar exclusivamente jovens adultos sem moradia, o impacto acompanha as vendas. Não há como fugir do impacto.”

A crise sanitária e econômica causada pela pandemia colocou os stakeholders-alvo da empresa em sua situação mais vulnerável. Esse comprometimento com o propósito poderia ter interrompido o caminho pelo qual o setor de restaurantes optara para se man ter, mas impulsionou o esforço intenso da Pixza para se preservar e continuar em atividade ao longo da crise.

“Durante a pandemia, o que me levou a fazer tudo o que era possível para que a Pixza sobrevivesse foi o fato de saber que havia pessoas cujas vidas praticamente dependiam do restaurante”, explica Pedroza. “Nossos Agentes de Mudança estavam dando tudo o que podiam para seguir em frente, então tínhamos de ter a mesma força para manter a Pixza viva.”

A capacidade de criar impacto em um modelo de negócio dife rencia empreendimentos sociais de sucesso das corporações mais tradicionais que adotam iniciativas de impacto social. Para muitas delas, os esforços de sustentabilidade são criados para compensar os custos sociais e ambientais decorrentes das principais atividades da empresa. Embora as iniciativas de negócios dotados de Responsabi lidade Social Corporativa (RSC) possam criar valor social e ambien tal, elas não estão diretamente integradas ao negócio e, por isso, o impacto provocado pode ser tímido. De fato, as empresas subsidiam, através da RSC, a criação de valor social. Se a liderança muda, se as condições do mercado pioram, ou se surge uma variedade de outros desafios corporativos, as empresas tendem a cortar os subsídios sociais, porque esses não fazem parte de seu modelo de negócio.

“A Pixza é um empreendimento 100% social, não uma empresa com responsabilidade social”, conta Luis Alonso Castellanos, diretor da Verne Ventures e professor de empreendedorismo no Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Monterrey. “Isso significa que sua sustentabilidade econômica e seu impacto social dependem fundamentalmente de seu modelo de negócio.”

Monetizar propósito para preservar um negócio O compromisso da Pixza com seus Agentes de Mudança os priorizava como ponto focal do empreendimento. No entanto, os funcionários não eram as únicas partes interessadas a ver valor no propósito no projeto. Muitos outros sentiram-se atraídos pelo negócio e por sua missão, incluindo clientes e investidores. A liderança da Pixza buscou se valer desses apoiadores como uma tábua de salvação que pudesse mantê-los vivos durante a pandemia. A Pixza serve pizza com ingredientes mexicanos autênticos, tais como farinha de milho azul, queijo de Oaxaca, gafanhotos e carne de porco marinada. n

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Propósito sustentável na pandemia

A Covid-19 testou o cerne do modelo de negócio da Pixza. À medida que a Cidade do México entrava em quarentena, no início da pandemia, proprietários de restaurantes responderam à dramá tica queda nas receitas com demissões, medida mais fácil para cor tar despesas. A Pixza enfrentou os mesmos desafios de seus pares no setor, mas dispensar empregados violaria seu propósito social. “Durante três meses enfrentamos um fluxo de caixa nega tivo”, conta Souza. “Assim, nossa primeira e mais importante decisão foi não demitir ninguém. É nesse momento que a missão entra em jogo porque, embora você a repita todos os dias, passar por uma pandemia é um teste. É quando você deve decidir se vai honrá-la ou não.”

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Fomentar impacto social e ambiental positivo pode criar valo res tangíveis e intangíveis. O primeiro, claro, é o mais fácil de ser administrado, uma vez que pode ser quantificado e inventariado. Receitas e bens, tais como equipamento para o restaurante, podem ser calculados, assim como o crescente número de jovens que havia deixado as ruas e se tornado autossuficiente. Mas o impacto social também pode criar valor intangível, algo que tende a ser menos compreendido pelos líderes empresariais. Embora o financiamento corporativo defina valor intangível como bens não físicos, tais como patrimônio ou reconhecimento de marca, onde esse valor é armazenado? O valor intangível reside principal mente nas mentes dos stakeholders. Existe nas percepções que as pessoas têm, tanto positivas quanto negativas, de uma empresa e de seus produtos. A capacidade de mobilizar e monetizar esse valor intangível é importante para o sucesso contínuo de muitos negócios. Como esse valor intangível se torna um valor de negócio tangível? No caso de uma marca, isso ocorre quando uma percepção positiva do cliente sobre uma empresa e seus produtos o leva a comprar. Porém, há outras formas que podem ser usadas pelas empresas para converter valor intangível em valor tangível. A Pixza, por exemplo, cria benefícios tangíveis para seus Agentes de Mudança na forma de treinamento, apoio psicológico e habilida des para uma carreira de sucesso para além do emprego na pizzaria. Porém, Agentes de Mudança também desenvolvem uma percepção intan gível sobre a Pixza que vai além dos benefícios tangíveis que recebem.

Embora possam ser diretamente mensurados, alguns desses valo res intangíveis se materializam para a Pixza na forma de lealdade profissional, algo que pode ser visto de maneira tangível nas esta tísticas de emprego. “A rotatividade é significativamente menor, e isso significa que é muito mais barato contratar jovens, apesar de eles possuírem um perfil bem mais desafiador”, explica Souza. “E isso se deve ao que fazemos: a Pixza é um lugar de empoderamento para nossos Agen tes de UmaMudança.”dasmaiores despesas no setor de restaurantes e hospitali dade se dá com contratação, treinamento e retenção dos emprega dos. No México, a média de rotatividade no setor de restaurantes fica em torno de 138%, o que faz com que as vagas precisem ser preenchidas inúmeras vezes todo ano. Na Pixza é de apenas 70%, o que significa que os funcionários têm duas vezes mais chances de permanecer no emprego e serem mais leais ao projeto do que a média geral. Isso é impressionante para o setor — ainda mais se levarmos em conta os desafios que os Agentes de Mudança da Pixza enfrentam. Mediante seu compromisso de permanecer com a cadeia, eles reafirmam o valor que a Pixza criou para eles. Souza e seus colegas encontraram outros caminhos para mobilizar valor intangível através de formas que ajudassem a Pixza durante a pandemia. Uma oportunidade surgiu no início da crise numa con versa com os gerentes da empresa sobre o que fazer. “No início da pandemia nós dissemos para nossos gerentes: ‘Escu tem, a situação é esta. Não estamos pedindo a vocês que façam algo que não querem fazer, mas dando condições para que nos ajudem se quiserem’. E foi incrível. Muitos deles responderam: ‘Não pague meu salário até que seja possível’. Muitos cortaram seus salários pela metade, e foi uma coisa totalmente voluntária. Por isso foi bonito”, recorda-seEnquantoSouza.osgerentes abriam mão de seus salários tangíveis, con tinuavam a receber os benefícios intangíveis provenientes do fato de apoiarem a missão — e com ela contribuir — da Pixza quando a empresa mais necessitava. O gerente Edgar Garcia Roble explica as concessões em termos de propósito organizacional: “Acredito que a Pixza nasceu para mostrar ao mundo que nem tudo está perdido na humanidade e no nosso sistema, e que há milhares de maneiras sustentáveis de nos ajudarmos”. Psicólogos se referem a esse tipo de valor intangível como compensação psíquica, que é a percepção e o sentimento positivos que as pessoas obtêm ao contribuir com missões nas quais acreditam. Apesar do apoio moral e certo alívio financeiro com as concessões dos gerentes, a Pixza precisava de mais ajuda. Souza então entrou em contato com outro grupo de stakeholders que estava tirando valor intangível da missão da Pixza: os clientes — que, enquanto escreviam ótimas avaliações sobre as pizzas da empresa, também valorizavam o propósito social da Pixza. “Hoje tive a oportunidade de visitar a Pixza”, escreveu um deles no Restaurant Guru . “Que admiração tenho pelo projeto social deles! A comida deliciosa e o Agente de Mudança que nos atendeu são incríveis. Que ética profissional e que INCRÍVEL atenção para com o cliente! Espero voltar mais vezes. Meus parabéns; e, uma vez mais,ParaOBRIGADO!”daraosclientes a chance de demonstrar esse apoio decla rado, a Pixza criou uma plataforma digital online que permitia às Após concluírem o programa da Pixza, os Agentes de Mudança, como Tokio, abaixo, recebem ofertas de empregos de gerentes. !

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pessoas oferecerem diversos tipos de apoio financeiro. Os clientes podiam comprar cupons para financiar Agen tes de Mudança individualmente ou comprar com antecedência pizzas, que seriam retiradas após o abrandamento da pandemia. Canecas, bonés e camisetas com a marca também foram criados e colocados à venda.. “Fomos a primeira empresa no México a mobilizar as pessoas a ajudar da forma como podiam”, explica Souza. “Criamos uma plata forma digital por meio da qual as pessoas que amavam a marca e a missão podiam nos apoiar. Basicamente, era um plano de monetiza ção com uma plataforma que nos deu uma sobrevida de três meses.”

Segundo esse plano, a Pixza se manteria envolvida na identificação e no treinamento dos Agentes de Mudança, enquanto o franqueado se concentraria nas operações do dia a dia. “Já temos talentos dedi cados a isso, preparando a empresa para que possamos começar a licenciar as primeiras franquias até o fim de 2022”, conta Souza. A outra alteração importante para garantir a ampliação contínua do impacto foi a entrada no varejo. “Nós percebemos que as únicas verdadeiras linhas de negócio que cresceriam seriam as do varejo”, explica Souza. “É basicamente colocar nossas pizzas congeladas nas casas do maior número de pessoas possível, levando os produ tos para grandes varejistas parceiras, como o Walmart. E estamos reformulando nossas operações para que possamos vender mais piz zas e tenhamos de contratar mais jovens para fazer essas pizzas.”

Embora a ampliação do impacto estivesse incorporada ao modelo de negócio original, esse crescimento era meramente adicional: a inclusão de um novo restaurante à rede criava mais uma equipe de Agentes de Mudança. Ainda que esse fosse um bom modelo, era a melhor maneira de medir impacto? Essa abordagem se concentrava no valor tangível ao investir em novas lojas físicas. Contudo, a Pixza conseguiria encontrar uma maneira de multiplicar seu impacto ou aumentá-lo até em nível exponencial? Uma possibilidade era transformar o modelo em franquia. Souza não precisava depender apenas da Pixza para financiar as novas localidades tangíveis; em vez disso, podia expandir o impacto mediante o know-how intangível da Pixza — seu propósito como propriedade intelectual patenteada — compartilhando-o com os outros. “Há muitas pessoas que se mostram bastante interessadas em levar a Pixza para suas cidades e vamos ajudá-las a fazer isso”, explica o empreendedor. “Vamos começar a franquear o modelo. É um modelo híbrido em que nós basicamente controlamos quem pode fazer parte do negócio, mas eles o administram por conta própria.”

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Um produto que exemplifica o valor do propósito da Pixza é um livro escrito para contar os bastidores das histórias dos Agentes de Mudança enquanto eles deixavam a vida nas ruas e se mudavam para apartamentos onde tinham um sustento estável. O livro foi escrito por gerentes da Pixza com base em entrevistas com par ticipantes do Mudança de Rota, documentando suas histórias ao longo do tempo. Como tantos restaurantes fechados durante o período de qua rentena, a Pixza entrou em contato novamente com os clientes para desenvolver um sistema de distribuição de pizzas. Começou a produzir pizzas congeladas embaladas individualmente e convi dou os clientes a comprá-las a granel a preço de atacado e então revendê-las em seus bairros, a amigos e familiares. “Mobilizamos uma comunidade de fãs e apoiadores, não em busca de caridade, mas para que se tornassem parte da nossa engrenagem de negócio [ou faturamento]”, explica Souza. A distribuição das pizzas da Pixza se expandiu para dez estados e treze cidades diferentes no México. Ainda que a sobrevida de três meses representasse uma melho ria enorme, não seria suficiente para manter a empresa durante a reestruturação necessária para proteger o negócio dos efeitos da pandemia. Por isso, a Pixza, uma vez mais, buscou tirar proveito do valor intangível de sua missão e de seu propósito ao ir atrás de investidores. Embora poucos estivessem dispostos a arriscar seus fundos durante a pandemia, principalmente no setor de restaurantes, a Pixza não estava oferecendo apenas retornos financeiros. Como diz Souza, estávamos “vendendo a missão de maneira enfática por que é isso que fazemos, assim como ser bastante sincero e honesto e afirmar: ‘Você vai nos ajudar; seu dinheiro não vai nos ajudar a crescer, mas você vai nos ajudar a sobreviver’ ”.

Os gerentes e os proprietários da Pixza ficaram eufóricos. “Ima gine conseguir dois novos investidores em meio a uma pandemia e quando estamos basicamente lhes dizendo: ‘Não sabemos se vai dar certo”, relata Souza.

Também levamos em consideração o impacto social, todas as pes soas que começam e concluem o programa. Temos certeza de que há muitos talentos nas ruas, e nos sentimos impelidos a ajudar e a oferecer oportunidades para essas pessoas. Estamos confiantes de que a Pixza lhes dará essas oportunidades”.

O discurso deu certo. Investidores mostraram-se dispostos a financiar a sobrevivência da Pixza, bem como sua missão. Dois inves tidores, Aldo Andrés Saucedo Gómez e sua esposa, Arabelia Ivette Barrios Leal, salientaram a importância do valor social da Pixza em sua decisão: “Não podemos realmente mensurar nosso Retorno sobre o Investimento (ROI na sigla em inglês) apenas em valor econômico.

A cada cinco fatias compradas pelos clientes, a Pixza dá uma fatia grátis uma pessoa em situação de rua que pode ser beneficiada pelo programa. n

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Alterações e propósito Graças à monetização, a Pixza criou uma sobrevida suficientemente longa que lhe permitiu repensar seu modelo de negócio. Com o tempo adicional, fez várias alterações importantes. Primeiro, afas tou-se do modelo de negócio baseado em ter novas lojas, não apenas para se manter resiliente na pandemia, mas também para expandir.

Com esse novo conceito em funcionamento, a Pixza conseguiu separar modelo do impacto social da pizzaria e usá-lo para expan dir-se ainda mais, imaginando que possa ser distribuído em qual quer lugar do planeta. “Se uma empresa quer aprender a ser uma instituição de empoderamento e inclusiva, ela pode receber as ferra mentas hoje e começar a fazer isso”, explica Souza. O novo modelo saiu do estágio de demonstração quando uma cadeia de restaurantes de médio porte no México se inscreveu para preencher, no próximo ano, centenas de novas vagas com os Agentes de Mudança.

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A Pixza também está tirando proveito de sua missão e propósito social para buscar as parcerias necessárias para ampliar a distribuição. Em 2021, a empresa entrou em contato com organizações orientadas por propósitos, tais como a Ikea, uma vez que, como afirma Souza, “elas são extremamente alicerçadas em missões e focadas em valo res”. As primeiras negociações iniciaram-se com grandes empresas distribuidoras alimentícias, incluindo Adama, Hadasa Gourmet e Mora Market — empresas dotadas de comprometimentos sociais similares e adeptas de práticas sustentáveis e de equidade. À altura da produção deste artigo, todos esses projetos estavam ainda em seus estágios iniciais, mas a equipe mostrava-se otimista quanto à sua viabilidade e ao valor que seu impacto causaria.

Souza não é o único a demonstrar otimismo. “Estamos confian tes de que muitas empresas vão aderir à iniciativa e buscar agregar valor replicando nosso modelo de negócio, principalmente agora que investimentos ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês) passaram a ser uma tendência tão importante”, explica Gómez e Leal, casal de investidores da Pixza. “Temos certeza de que a empresa vai continuar crescendo em todas as diferentes unidades pois tem a melhor equipe e os melhores parceiros comerciais, que são os pilares do seu sucesso.”

Felizmente, essa iniciativa também está alinhada a uma tendência emergente no setor de treinamento, que está migrando para a oferta de programas online. A pandemia havia forçado muitas empresas a levar seus processos corporativos para o ambiente virtual, algo do qual a Pixza podia tirar proveito criando programas de treinamento digitalizados. Souza anteviu uma plataforma de RH com duas inter faces diferentes: uma voltada para que os empregadores obtivessem certificação de empresa inclusiva; e outra que permitiria que os Agentes de Mudança recrutados começassem seu treinamento com antecedência, ainda enquanto estavam em abrigos.

A Pixza demonstra o poder que um propósito convincente pode ter quando é claramente compreendido e alavancado por um empre endedor. Seu futuro vai ser ampliar seu propósito para além de suas próprias operações, algo no qual os novos acionistas da empresa estão apostando. n

Um futuro pós-pandemia Ao se concentrar em seu propósito e em sua missão, a Pixza deixou para trás um modelo de pizzaria para estabelecer inúmeras novas linhas de negócio que prometiam protegê-lo da pandemia e ampliar exponencialmente seu impacto. Contudo, a Covid-19 e suas conse quências não acabaram. “Ainda estamos no meio desta jornada infernal”, afirma Souza. “Se sobrevivermos será porque somos resilientes e muito criativos — e, principalmente, porque mantivemos nossa missão em primeiro lugar. Realizamos todas essas alterações para seguir com nossa missão. Por ora, estamos felizes com a situação em que estamos, e acreditamos que vamos conseguir.”

Essas alterações abriram novos caminhos comerciais para que a Pixza diversificasse e ampliasse seu impacto. Contudo, como afirma Souza, “percebemos que possuíamos outro produto”. A equipe come çou a ver que o valor do empreendimento estava não apenas em seu modelo de negócio do restaurante, mas também no conhecimento acumulado que a empresa havia desenvolvido tirando jovens em situação de risco das ruas e lhes oferecendo uma oportunidade de reinserção pelo emprego. Se essa experiência pudesse ser ressigni ficada, seria possível usá-lo para criar uma linha de negócio total mente nova baseada no programa de Mudança de Rota. “Vimos que não eram apenas nossas pizzas que estavam no cerne do valor social que a Pixza estava criando, mas, também, nossa metodologia de empoderamento”, conta Souza. “Era propriedade intelectual.” Isso não apenas ajudaria o propósito social à prova de pandemia da Pixza, mas também seria uma maneira poderosa de tirar proveito de seu conhecimento acumulado em prol do impacto social.

“Nossos futuros empregados podem acessar nossa plataforma e realizar todo o treinamento online, enquanto se encontram em seus abrigos, o que lhes permitirá impulsionar seu programa de empoderamento”, explica Souza. “Quando concluem o programa, eles estão qualificados para serem contratados. Assim, torna-se uma plataforma de emprego que culmina na possibilidade de encontrar uma oferta de trabalho.”

A iniciativa estava em harmonia com tendências sociais emer gentes que estão deixando as corporações mais abertas ao modelo da Pixza. Em resposta a uma onda de movimentos sociais antidis criminação — incluindo Me Too e Black Lives Matter — as empresas mostram-se mais sensíveis a assuntos como diversidade, equidade e inclusão, passando a buscar formas de alinhar suas operações às expectativas da sociedade. Várias delas, não apenas do setor de restaurantes, manifestaram publicamente planos de tornarem-se organizações inclusivas. Contudo, a maior parte não sabe como desenvolver uma cultura inclusiva capaz de empoderar comunidades marginalizadas e contribuir para mudança social. Felizmente, eram essas mesmas competências que a Pixza vinha desenvolvendo ao longo dos últimos quatro anos. “A Pixza havia validado que a inclu são é boa para o negócio e que dá certo”, diz Souza. O projeto de Souza transformou a ideia em um programa de certificação organizacional que oferece às empresas o conhecimento necessário para contratar, treinar e ajudar os Agentes de Mudança de uma maneira comprovadamente eficaz. A certificação daria acesso às ferramentas da Pixza que sustentam o bem-estar multidimensional do empregado. As empresas podem usar as avaliações e orientações para contratar funcionários em situações sociais desfavoráveis e fornecer o apoio necessário para ajudá-los a alcançar a autonomia. “Vamos lhes oferecer exatamente a mesma metodologia que usamos para nos tornar um lugar de inclusão social, dando aos empresários uma certificação de instituição de empoderamento”, afirma Souza. “Depois de certificados, eles podem, então, começar a contratar direta mente daquela mesma plataforma.” Ao compartilhar sua metodologia, a Pixza estava usando sua experiência para gerar mais oportunidades de emprego para Agentes de Mudança fora do setor de pizzarias — algo que, se der certo, pode aumentar consideravelmente seu impacto.

Saiba mais ssir.com.br/biblioteca-essencial Conheça os fundamentaisartigospara líderes da transformação social publicados na Stanford Social Innovation Review ao longo dos anos. EssencialBiblioteca Design Thinking para a Inovação Social Por Tim Brown e Jocelyn Wyatt Impacto Coletivo Por John Kania e Mark Kramer O desafio de romper o círculo Por Ann Goggins Gregory A Ciência do que Desperta a empatia Por Ann Christiano & Annie Neimand Hora de pensar em Modelos de financiamento Por William Landes Foster, Peter Kim e Barbara Christiansen Da conscientização à ação Por Ann Christiano & Annie Neimand A inovação não é o Santo Graal Por Christian Seelos e Johanna Mair Redescobrindo a Inovação Social Por James A. Phills Jr., Kriss Deiglmeier e Dale T. Miller Empreendedorismo Social: Uma Questão de Definição Por Roger L. Martin e Sally Osberg O despertar da Liderança de Sistema Por Peter Senge, Hal Hamilton e John Kania

Levar operações de tecnologia de ponta para o coração geográfico de comunidades excluídas impulsiona a participação em massa, estimula o avanço econômico de seus membros e, ao mesmo tempo, desafia as regras aceitas a respeito de diversidade, equidade e inclusão.

Inclusão Tecnológica para ExcluídasComunidades

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Por Linda Jakob Sadeh e Smadar Nehab Ilustração: Claire Merchlinsky excessivo policiamento enfrentados pelos membros das comuni dades excluídas, potenciais candidatos e candidatas a empregos que envolvem alta tecnologia podem sentir-se desencorajados a se aventurar para fins profissionais ou mesmo para participar de entre vistas. Com isso, a segregação mantém-se em um círculo vicioso interno no qual as condições sociais perpetuam a distância entre membros das comunidades excluídas e da sociedade dominante, mesmo quando empresas não discriminam ativamente. Esses desafios sociais representam barreiras que ultrapassam os óbvios obstáculos profissionais. Por conta deles, apenas algumas pessoas excepcionais das comunidades excluídas optam por traba lhar em profissões tecnológicas ou estudar para exercê-las. Quando o fazem, em geral sentem-se isoladas social e culturalmente. Às vezes, o abismo é tamanho que a própria existência de profissões tecnológicas ou a relevância que podem ter para essas comunidades é desconhecida. Não surpreende que, dotadas de poucos — quando algum — exemplos de sucesso profissional, essas pessoas tenham dificuldade de imaginar que podem se integrar a tais ocupações. Abordagens comuns para promover diversidade, equidade e inclusão no ambiente de trabalho incluem levar membros da comunidade excluída para os locais onde o setor já se encon tra. Cientes de que não se chega a tal integração sem esforços por parte de empregadores, as empresas arcam com o ônus de fazer suas equipes mais “diversificadas” e “inclusivas”. Podem nomear diretores de diversidade e inclusão, mudar suas políticas para garantir oportunidades igualitárias de trabalho, assegurar que seus quadros passem por treinamentos de diversidade para A

Devido a essa interação limitada, à violência institucional e ao

li,1 engenheiro de ciências da computação, vinha de uma família palestina muçulmana de Israel que morava distante do centro geográfico e econômico do país. Ali se formou em uma instituição acadêmica de prestígio e foi contratado por uma empresa respeitável de software em Tel Aviv — uma exceção em um setor no qual ape nas uma pequena porcentagem dos profissionais de tecnologia é árabe. A empresa não tinha nenhum outro empregado muçulmano ou palestino. No escritório, sua cultura e identidade nacional eram desconhecidas, e ele sentia-se sozinho nos feriados religiosos, sem falar nas celebrações nacionais carregadas de conotações. Ademais, o trabalho exigia dele passar quatro horas por dia na estrada, uma vez que alugar um apartamento em Tel Aviv era virtualmente impossível. Ali ficou menos de um ano na empresa. A história de Ali não é incomum, e retrata a ausência de comu nidades excluídas nos setores econômicos em expansão ao redor do mundo, especialmente no de tecnologia. Essa sub-representação é apenas um dos componentes da segregação e da alienação que essas comunidades enfrentam. Quando cercada por vizinhos segre gados geograficamente, a sociedade dominante os vê, na melhor das hipóteses, como destinos para “turismo exótico”, e, na pior, como regiões proibidas devido ao medo do crime ou de outras ameaças. A interação entre pessoas desses dois mundos apartados, quando ocorre, gira em torno dos serviços prestados pelos membros da sociedade excluída, que atuam como garçons, faxineiros, pedreiros, ou fazendo atividades braçais e outros serviços menores.

A Tsofen apoiava-se em dois pilares: sua estrutura conjunta palestino-judaica e seu propósito de ajudar a levar operações de alta tecnologia para as localidades próximas à população palestina em Israel. O primeiro pilar era fundamental para os fundadores: nenhuma mudança radical poderia ser feita a menos que os membros da comunidade palestina estivessem envolvidos de maneira direta e igualitária. Devido ao desequilíbrio de poder entre judeus e pales tinos, também ficou claro que os parceiros judeus precisavam se valer de suas posições privilegiadas e participar da iniciativa. A par ceria entre palestinos e judeus segue sendo essencial para a Tsofen.

Mais desafiador, o segundo pilar exigia convencer empresas a realizar novas operações em centros populacionais palestinos. Pro fissionais do setor manifestaram sua relutância em fazê-lo alegando que “os árabes não fazem parte desta indústria”. Essa afirmação era parcialmente verdadeira. Embora, naquele momento, milhares de palestinos israelenses tivessem diploma universitário em exa tas, apenas algumas centenas de formados atuavam em profissões de alta tecnologia. A maioria acabava trabalhando como professor ou no ramo varejista, de construção, ou em profissões que nada LINDA JAKOB SADEH é pesquisadora do Harry S. Truman Research Institute for the Advancement of Peace na Hebrew University of Jerusalem e consultora organizacional. Ela estuda e desenvolve estratégias de organização para combater desigualdades econômicas e políticas e resolver conflitos nacionais. SMADAR NEHAB é uma experiente executiva da indústria de alta tecnologia, tendo comandado organizações de pesquisa e desenvolvimento em Israel e na Califórnia. É fundadora da Tsofen, organização sem fins lucrativos que busca integrar plenamente a comunidade árabe em Israel à indústria de alta tecnologia israelense. Ela também faz parte do conselho da Siraj Technologies Ltd., e faz uso da alta tecnologia para promover mudanças sociais de diferentes maneiras.

Em 2007, Smadar Nehab, coautora deste artigo, encontrava-se em uma situação singular. Israelense de origem judaica, experiente engenheira de computação, além de ativista dona de laços profundos com a comunidade palestina em Israel, ela reconhecia a extrema desigualdade de emprego enfrentada por palestinos formados em STEM (a sigla em inglês para ciências, tecnologia, engenharia e matemática), bem como as oportunidades perdidas pela indústria, sem mencionar o insucesso do mercado e do setor. Àquela altura, a indústria de tecnologia israelense já sofria com a falta de engenhei ros, uma necessidade que culminaria, em 2019,3 em uma escassez de mão de obra de 18.500 trabalhadores, cerca de 6% da força de trabalho do setor. Em sua antiga startup, onde era vice-presidente de engenharia, Nehab havia encontrado dificuldades para contra tar engenheiros qualificados, e quando o conselho solicitou que procurasse no exterior, ela se perguntou se deveria se dar ao tra balho, uma vez que Israel já tinha tantos talentos palestinos com ensino superior subempregados. Ela convenceu Yossi Coten, amigo e especialista em gestão de logística, a se juntar a ela. Enquanto isso, Sami Saadi, israelense de origem palestina e morador do norte do país, tinha a esperança de criar um polo tec nológico para ajudar a desenvolver uma economia sustentável na região da Galileia, altamente povoada por árabes. Nehab e Coten se associaram a Saadi e, no início de 2008, o trio fundou a Tso fen — uma organização não governamental (ONG) cuja missão é conectar cidadãos palestinos de Israel com o setor de tecnologia.

28 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 evitar preconceitos implícitos, instituir programas de mentoria e forças-tarefa voltadas para a diversidade e outras coisas mais. Contudo, tais iniciativas fracassam repetidamente. Mesmo quando os esforços das empresas são sinceros, a pessoa em busca de um emprego já enfrenta obstáculos para entrar no mundo corporativo da tecnologia, quanto mais para sobreviver nesse ambiente por um período significativo. Ademais, as iniciativas mais bem inten cionadas de integrar membros de comunidades excluídas também enfrentam uma verdade inconveniente: poucos candidatos para as vagas e nem todos são qualificados. As empresas, muitas vezes, oferecem treinamentos práticos para lidar com o problema da diversidade no mundo da alta tecnologia, e, reconhecendo as desvantagens que os membros de comunida des excluídas enfrentam, tentam igualar as condições referentes a expertises e habilidades. Porém, tais treinamentos não conseguem ter participação maciça das comunidades excluídas ou atraí-las para profissões tecnológicas. Para além do conhecimento profissional e da experiência prática com tecnologia que esses treinamentos oferecem, as principais barreiras sociais, étnicas e econômicas permanecem, muitas vezes, sem solução. Desse modo, surge uma situação paradoxal: por um lado, deter minadas comunidades são excluídas do mundo da alta tecnologia e da mobilidade social que ele proporciona. Por outro, mesmo quando empresas querem contratar nessas comunidades e imple mentar medidas de diversidade e inclusão que deveriam tornar isso possível, a rede de candidatos qualificados e interessados segue, em geral, limitada. Faltam estímulos para os membros das comu nidades excluídas continuarem a estudar ou participarem de trei namentos para essas profissões e assim ingressar nos setores em crescimento econômico, em especial no da tecnologia de ponta. O modelo de Inclusão Tecnológica apresentado neste artigo busca desvendar esse paradoxo, analisando as barreiras sociais e econômicas que impedem as comunidades excluídas de fazer parte do setor tecnológico. O modelo sugere que esse setor pode ser uma força motriz para a inclusão caso olhemos de outra maneira para o paradigma da inclusão, levando a indústria até a comunidade excluída e cultivando um ambiente solidário tanto para candidatos quanto para empresas em potencial.

O foco da Inclusão Tecnológica em alta tecnologia decorre não apenas da exclusão que testemunhamos na indústria mas, também, do grande potencial que oferece: mobilidade social e econômica independentemente da origem; emprego em regiões variadas e, portanto, nas adjacências das comunidades excluídas; e uma nova fonte de funcionários e funcionárias, principalmente em economias voltadas para a tecnologia. A existência de um centro tecnológico bem-sucedido em uma região ou cidade excluída que emprega tanto membros da comunidade local quanto profissionais de fora pode reajustar as relações de poder, rompendo os estereótipos e impulsionando mudanças sociais. Nosso modelo tem origem em uma das sociedades mais pola rizadas do mundo e em sua excludente indústria tecnológica. Em 2008, cidadãos palestinos em Israel compreendiam 21% da popu lação local, mas representavam menos de 0,5% dos profissionais empregados na indústria de alta tecnologia, principal fonte de cres cimento econômico do país.2 Esses números não abrangem toda a amplitude de desafios que os cidadãos palestinos de Israel enfren tam para se integrar à sociedade judaico-israelense: palestinos e judeus vivem, em sua maioria, em cidades e bairros separados, a educação estatal é segregada etnicamente, e ainda existem barrei ras linguísticas e discriminação em diversos setores.

que apenas um curso foi oferecido durante o primeiro ano. Porém, o sucesso dos participantes do curso inaugural na hora de se colocar profissionalmente teve um impacto enorme, e o segundo ano contou com dois cursos; em meados de 2021, a Tsofen comemorou o lança mento de seu quinquagésimo curso, com mais de mil participantes.

O modelo de Inclusão Tecnológica desata esse paradoxo graças a três princípios fun damentais. Em primeiro lugar, busca levar a alta tecnologia para a comunidade excluída, em vez de apenas trazer indivíduos dessas comunidades a ela, desafiando, assim, os métodos de diversidade, equidade e inclusão existentes. Depois, compromete-se a realizar uma parceria integral e genuína entre membros das comunidades dominantes e das comunidades exclu ídas. Nenhuma mudança radical pode ser empregada sem a repre sentação da comunidade excluída — uma regra que é muitas vezes ignorada. Em terceiro lugar, trabalha para promover mudança sistê mica por meio de um agente da sociedade civil — uma ONG — que impulsione o modelo todo: acionar a comunidade local (incluindo candidatos voltados para o mundo da tecnologia e investidores dessas comunidades), empresas de tecnologia e o governo. A ONG pode ajudar a mapear, selecionar e treinar potenciais candidatos; fomentar a confiança dentro da comunidade; encorajar empresas a estabelecer operações em áreas onde se encontram as comuni dades excluídas; e obter apoio do governo. tinham a ver com suas qualificações. Assim, devido às opções de emprego escassas disponíveis para eles após a graduação, pou quíssimos palestinos decidiam estudar áreas ligadas à tecnologia.

A realidade de uma empresa de tecnologia com um quadro de funcionários majoritariamente de origem árabe em uma cidade também árabe desafiou a noção de que os palestinos não tinham lugar nessa indústria.

Ao longo dos últimos 14 anos, a participação palestina na indústria de tecnologia israelense cresceu muito mais do que os fundadores da Tsofen poderiam sonhar. Em 2008, a indústria de tecnologia de Israel empregava apenas 350 engenheiros árabes. Em 2020, esse número havia saltado para 8.500. A Gail, em 2008, era a única empresa a ter atividades em uma cidade palestina em Israel. Em 2020, havia mais de 40, incluindo empresas internacio nais como Broadcom, Amdocs e Microsoft.

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Além dos números, a realidade de uma empresa de tecnologia com um quadro de funcionários majoritariamente de origem árabe em uma cidade árabe desafiou a noção de que os palestinos não tinham lugar nessa indústria. Também acabou com o paradigma de que os palestinos deveriam se deslocar para trabalhar em regi ões judaicas, e não o contrário. O modelo Embora nosso modelo de Inclusão Tecnológica tenha sido criado a partir da análise do caso da Tsofen, ele tem uma aplicação mais abrangente, como demonstramos em outras situações que envolvem empreendedorismo social e comunidades excluídas. O modelo tem por alvo o paradoxo que identificamos: embora as empresas dos mercados dominantes queiram diversificar sua força de trabalho, elas não estão ao alcance dos candidatos das comunidades excluídas, ao passo que jovens talentos, devido a barreiras sociológicas e eco nômicas, não buscam profissões na indústria em questão. Por conseguinte, essa indústria, que oferece uma potencial porta de entrada para a mobilidade social e econômica, per manece fechada para essas comunidades.

No final de 2007, enquanto a Tsofen estava se preparando para dar início às suas atividades, a empresa Gail Software se estabele ceu em Nazaré, a maior cidade palestina em Israel. A empresa foi fundada por figuras proeminentes do mundo do capital de risco de Israel e de comunidades de alta tecnologia que compartilhavam a visão da Tsofen de encabeçar a integração de árabes israelenses ao ramo da alta tecnologia, ao mesmo tempo que atendiam à enorme demanda por engenheiros de software no país. A Gail passou a ser a prova viva da viabilidade de uma iniciativa tecnológica de sucesso em um centro populacional árabe. Para atrair mais empresas para a Gail e convencê-las do busi ness case, a Tsofen trabalhou para assegurar subsídios financeiros do governo de Israel. Além disso, apoiou as empresas durante o recrutamento, atuando como operadora de formação e contrata ção. Essas estratégias tornaram a abertura de uma operação na Galileia atraente para as empresas. Enquanto isso, as coisas começaram a mudar dentro da socie dade palestina em Israel. A simples existência da Gail Software teve um enorme impacto na hora de jovens palestinos escolherem a carreira que gostariam de seguir. Ao se mostrar visível por meio da empresa local, estabelecendo um ambiente de trabalho em que não eram minoria, e criando o primeiro grupo de exemplos com quem os jovens palestinos podiam se identificar, a Galil ajudou a convencer os recém-formados de que a tecnologia de ponta era viável para eles. Contudo, foram necessários esforços adicionais por parte da Tsofen para conquistar a confiança de membros importantes da comunidade palestina da região — pais, formado res de opinião e líderes empresariais locais. Para dar legitimidade e envolver a comunidade local, a Tsofen realizou eventos que conectavam a indústria tecnológica e a comunidade, incluindo encontros, hackathons e conferências tecnológicas e empresariais voltadas para o público árabe. Além disso, lançou cursos de trei namento (conhecidos hoje como boot camps) para complementar a formação acadêmica dos universitários com conhecimento prático. O impressionante grupo de candidatos que participou do primeiro curso incluía pessoas entre 20 e 30 anos que durante muito tempo sonharam em se juntar ao setor, mas que, em vez disso, trabalha vam como soldadores, lojistas ou PC administrators. Àquela altura, encontrar candidatos mostrou-se uma tarefa complicada, uma vez

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A Siraj Technologies Ltd., fundada por Khader Al-Sheikh e Giora Yaron, é um ótimo exemplo de empresa de tecnologia criada no coração de uma comunidade. Em meados de 2016, Al-Sheikh, empresário da comunidade beduína de Israel, conheceu Yaron, um dos fundadores da indústria de alta tecnologia no país. Os dois con cordaram com a necessidade de conectar a comunidade beduína ao próspero setor tecnológico israelense. Naquele momento, quando a integração da sociedade palestina em Israel já estava, em geral, em processo acelerado, os beduínos do sul ainda não haviam se beneficiado de tal prosperidade. Sua situação social e econômica era pior e eles tinham menos jovens formados no ensino médio ou em cursos universitários voltados para STEM. Al-Sheikh e Yaron decidiram fundar uma empresa de alta tecnologia que empregasse, primordialmente, engenheiros beduínos com o objetivo de solucio nar tanto a escassez de talentos do setor tecnológico no país quanto o baixo número de beduínos que participavam dele. Antes de mais nada, montaram um conselho de diretores pequeno, porém eficiente, que contava com executivos judeus e beduínos altamente experientes e ligados ao mundo da tecnologia de ponta, bem como com membros da comunidade beduína donos de excelente desempenho acadêmico.

Frequentemente, eles não sabem o que é a indústria de alta tecnologia, são incapazes de nomear empresas, e não conhecem ninguém que trabalhe nessa área.

Montar uma operação tecnológica dentro de uma comunidade excluída deve ter como base três alicerces da mesma importância, mas não necessariamente compatíveis: valor comercial, valor social e pro fissionalismo tecnológico. A escolha de um foco tecnológico deve começar com a identificação clara de uma demanda de mercado grande o bastante, fundamentada pelo mapeamento cria tivo das necessidades de emprego e potencial empregabilidade, conduzida pelos empreende dores digitais que estabeleceram a operação ou pela ONG. A demanda mais óbvia geralmente recai sobre serviços de software que nem sem pre exigem formação superior, tais como controle de qualidade (QA, quality assurance, em inglês) e apoio ao cliente. Ao mesmo tempo, o foco tecnológico também deve mostrar as oportunidades que as profissões de alta tecnologia oferecem para a comunidade excluída, tais como empregos melhores e mobilidade econômica. Portanto, é preferível concentrar-se em operações que exijam recursos técnicos de desenvolvimento de software. Por fim, as considerações comerciais e sociais podem, a longo prazo, não entrar em conflito, uma vez que iniciar o envolvimento de uma comunidade excluída no mundo da alta tecnologia com serviços de software de baixo nível tende, mais tarde, a provocar o envolvimento em trabalhos mais profissionais e lucrativos. Contudo, é importante levar as duas considerações em conta. O modelo não deve ser confundido com a abordagem fami liar de terceirização internacional que procura mão de obra mais barata em regiões distantes. No modelo de Inclusão Tecnológica, os funcionários vivem dentro dos mesmos sistemas econômicos e têm um sistema de remuneração igual ao dos que fazem parte da sociedade dominante. O motivo para posicionar os locais de traba lho nas áreas da comunidade excluída não é tirar proveito de salá rios mais baixos, mas impulsionar o setor dentro da comunidade.

A partir desses três fundamentos, o modelo de Inclusão Tec nológica emprega quatro componentes práticos: abertura de escri tórios de tecnologia de ponta no coração da comunidade excluída; capacitação dessa comunidade por meio da oferta de formação prática dos candidatos; aumento da conscientização e da confiança da comunidade local em relação às oportunidades e às vantagens que as profissões de tecnologia trazem para os jovens; e constru ção de apoio governamental para subsídios e desenvolvimento da infraestrutura necessária. Esses componentes devem ser buscados simultaneamente para que seus impactos sejam otimizados. Olhe mos para cada um deles.

Componente 1: Implementar uma operação de alta tecnologia no coração de uma comunidade excluída | Estabelecer uma iniciativa em uma comunidade excluída contando com a contratação de seus membros demonstra o potencial de empregabilidade do setor de tecnologia tanto para a comunidade como para a indústria, e, consequentemente, para o governo e outros potenciais investidores. Esse é o ponto arquime diano do modelo, bem como seu componente mais inovador, e serve como ponto de partida para a participação plena da comunidade excluída no setor como um todo.

Em 2017, com apenas quatro engenheiros, lançaram a Siraj Tech nologies Ltd., uma startup voltada para a Internet das Coisas (IoT, em inglês). A escolha foi deliberada. Primeiro, um grupo pequeno, embora extremamente talentoso, de dentro da comunidade se can didatou. Uma equipe daquele tamanho não seria atraente para fins de terceirização de baixo nível, como QA, mas era adequado para o desenvolvimento tecnológico, que pode ter início apenas com pou cos bons engenheiros. Depois, o trabalho de desenvolvimento de alto nível implica salários mais altos, o que torna a profissão mais atraente para os candidatos e mais prestigiosa para a comunidade em geral. Em terceiro lugar, uma empresa de produtos em uma área de ponta como IoT obtém uma fatia maior do mercado, além de maior exposição pública dentro da comunidade em geral e junto ao governo. Por fim, a Internet das Coisas é um setor em rápida expansão e que requer serviços complementares que possibilitem a inclusão de muitos empregados auxiliares. Os fundadores decidiram abrir a Siraj em um local próximo à

As empresas pioneiras nesse modelo muito provavelmente se associarão a líderes de negócio que acreditam no valor social e econômico da integração da comunidade carente. Como o estabe lecimento de uma operação tecnológica nova é sempre complicado, ainda mais em uma área de tecnologia atípica como a região da comunidade excluída, esses empreendedores também devem ser profissionais com experiência no ramo da tecnologia.

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comunidade beduína do sul de Israel. Eles escolheram Beersheba — a maior cidade do deserto de Negev —, que contava com um polo de alta tecnologia recém-criado. A cidade é familiar para a comunidade beduína e lar de muitos de seus membros. A Siraj enfrentou muitas dificuldades para atrair clientes. Em geral, startups passam por isso, mas era um obstáculo maior para a Siraj porque a empresa contava com uma nova fonte de talentos. Os fundadores souberam tirar proveito do aspecto social ao se aproxi marem de empresários com sensibilidade social. Aqui, sua perspicácia se mostrou valiosa: sem uma rede inicial de contatos profissionais, o envolvimento dos primeiros clientes teria sido impossível.

Para os membros do grupo dominante, as habilidades compor tamentais (soft skills) são, em geral, adquiridas por meio de ativi dades extracurriculares ou participação em círculos sociais fora da escola ou do trabalho, tais como clubes e eventos para jovens adultos, bem como associações. Contudo, são precisamente esses círculos que muitas vezes estão fechados para os membros da comunidade excluída. O componente de capacitação da Inclusão Tecnológica enfrenta esse desafio, complementando a educação formal ou universitária com o know-how prático e social necessário para o setor. Essa expe riência é implementada graças a boot camps liderados pelas empre sas que definem o conhecimento profissional de que precisam, as metodologias que utilizam e as características que valorizam. O boot camp é organizado para simular o trabalho em equipe usando a metodologia da empresa para desenvolver um projeto experimen tal relacionado ao seu produto e tecnologia. Idealmente, a empresa irá, mais tarde, entrevistar aqueles que se formaram no curso e contratar alguns deles. Porém, ainda que ninguém seja contra tado, os participantes adquirem uma experiência prática valiosa ao longo do treinamento que os ajudará a obter um desempenho melhor em entrevistas e a falar sobre tecnologia e situações reais de programação em futuros processos seletivos. Essa experiência também os auxiliará a se aclimatar mais rapidamente a seu novo ambiente de trabalho, caso sejam contratados.

A Inclusão Tecnológica salienta que para promover o envolvi mento em massa nas profissões de alta tecnologia, o conhecimento e o apoio da comunidade são fundamentais. Para fazer com que os

Componente 3: Criar um ecossistema e convencer a comunidade local da importân cia das profissões tecnológicas | Pode-se pensar que a comunidade local seria a primeira a aderir às novas oportunidades de emprego pro movidas pelo setor de alta tecnologia, bem como apoiá-las; porém, nem sempre é esse o caso. Quando conversamos com membros da comunidade excluída, é comum dizerem que a alta tecnologia “não é para nós, mas para eles”. Essas declarações refletem a distância entre esses falantes e sociedade dominante, bem como sua descrença de que os membros da comunidade iriam atrás de tais oportunidades.

Componente 2: Desenvolver capacitação por meio de treinamento prático | Candida tos com qualificação acadêmica e conhecedores do modus operandi da indústria são um pré-requisito para o início de uma indústria. Em programação, por exemplo, a velocidade do desenvolvimento é muitas vezes mais importante do que sua sofisticação; soluções tomadas em equipe e abordagens baseadas em tentativa e erro são preferíveis; e na solução de problemas do dia a dia, os programa dores optam por discuti-los em vez de dar uma resposta definitiva.

À medida que a Siraj Technologies crescia, a escassez de candida tos beduínos começou a retardar o progresso. Assim, um ano após seu lançamento, a empresa fundou a ONG Siraj, que oferece apoio essencial para a Siraj Technologies, incluindo serviços de seleção, treinamento e contratação elaborados de acordo com as necessi dades e tecnologias específicas da empresa. Com a ajuda da ONG, candidatos são treinados para trabalhar com as tecnologias espe cíficas usadas pela empresa. A ONG também prepara estudantes universitários para a indústria por meio de programas de mentoria. Atualmente, a relevância da Siraj é evidente. Cinco anos depois de sua fundação, o número de engenheiros empregados na Siraj Technologies aumentou para 24, quase metade do total de beduí nos trabalhando em alta tecnologia em Israel. A Siraj apresentou à comunidade uma oportunidade concreta de emprego que até então não existia, e que tinha os beduínos como modelos. Para aumen tar o sucesso da Siraj, a ONG realiza eventos comunitários, tais como encontros, hackathons, visitas escolares etc. O envolvimento direto com os engenheiros da Siraj, que poderiam facilmente ser primos ou irmãos dos participantes, tem um impacto que nenhum anúncio ou iniciativa de relações públicas teria. Um encontro universitário para estudantes beduínos ocorrido em 2020 ilustra como uma operação de alta tecnologia na região, e para o benefício da comunidade excluída, pode ser atraente. Dois líderes do setor tecnológico, um da Siraj e um da sede da Apple em Israel, foram as atrações principais do evento. No fim, o público cercou o membro da Siraj para lhe perguntar sobre oportunidades na empresa. Embora a Apple, para muitas pessoas, seja símbolo de sucesso, sua atração para o público jovem beduíno mostrou-se limitada. A Siraj representa um caminho realista e acolhedor, um ponto importante nos primeiros passos coletivos rumo à inclusão no mundo da tecnologia de ponta.

Os boot camps podem, às vezes, ser comparados a treinamen tos realizados já no local de trabalho (OTJ, on-the-job training, em inglês), uma prática usada por empresas que desejam trocar de tecnologia e que precisam fazer com que seus funcionários se atualizem. O modelo de Inclusão Tecnológica indica que estagiá rios devem não apenas ganhar experiência com a tecnologia nova mas, também, passar a ter uma ideia das normas profissionais da indústria. Por exemplo: em vez de serem testados por meio de pro vas, os funcionários recebem um feedback sobre seu desempenho e os resultados obtidos diária ou periodicamente. No verdadeiro ambiente profissional de alta tecnologia, o erro de uma pessoa pode significar o fracasso de todo um projeto. Quem trabalha com tecnologia deve aprender a lidar com essa pressão, algo que boot camps e OJT proporcionam na prática. Uma ONG fundada com esses objetivos pode ajudar a mapear, selecionar e treinar candidatos em potencial. Ademais, pode envol ver empresas de tecnologia ao convidar seus especialistas a minis trar aulas e workshops, ou a identificar as necessidades específicas das empresas e adaptar os treinamentos a elas.

Membros da comunidade excluída também não têm familiaridade nem conhecimento de profissões tecnológicas, empresas e modelos importantes. Com frequência não sabem o que é a indústria de alta tecnologia, são incapazes de nomear empresas, e desconhecem pessoas dentro ou fora da comunidade que trabalham nessa área.

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A atividade contínua da MolenGeek abarca diversas funções sob um mesmo guarda-chuva: empreendedores da comunidade são convidados a utilizar o coworking e desfrutar de serviços de escritório de alta tecnologia aos quais não teriam acesso de outra forma; programas de treinamento de curta e longa duração ocor rem ali; e eventos dinâmicos de tecnologia têm como público-alvo não apenas os usuários da MolenGeek, mas também (e de maneira significativa) toda a comunidade do bairro. O coworking, os treinamentos e os eventos de tecnologia locais aumentam também a conscientização da comunidade acerca das oportunidades oferecidas pelos profissionais da indústria de tecno logia. Os moradores veem evidências físicas do coworking em seu próprio bairro; as notícias da participação de jovens e empresários locais se espalham; e jovens da região, líderes empresariais e qual quer pessoa que se interessar têm a chance de aprender sobre alta tecnologia nos encontros organizados ali.

Comparativamente, serviços de contratação e consultoria elevam a capacidade de receita da população final em 2%, ao passo que, com treinamentos vocacionais, o aumento é de 6,7%.5

A MolenGeek, organização sem fins lucrativos localizada em Molenbeek, Bruxelas, e que busca tornar a indústria de tecnologia acessível a todos, mostra como é possível criar um ecossistema tec nológico nas comunidades excluídas. Molenbeek é um dos bairros mais pobres da região de Bruxelas. Sua população é predominante mente composta por imigrantes africanos de terceira ou segunda geração, e 40% de seus moradores não têm emprego.

Obter o apoio do governo envolve desenvolver uma crença na viabilidade do programa, algo que é mais bem feito estudando-se o sucesso do trabalho de empresas pioneiras (componente 1). O governo deve ser informado e participar das atividades de cons cientização (componente 2), nas quais seus representantes podem ainda se familiarizar com o grande potencial oferecido pelo esforço de inclusão. Essas duas ações ampliam as chances de o governo subsidiar programas de treinamento e contratação (componente 3) e fornecer subsídios para os gastos empregatícios das empresas.

jovens escolham esse setor como carreira, a nova profissão deve ser vista pela comunidade como bem-remunerada, prestigiosa e estável. Isso só é possível ao incluir a nova geração em diferentes etapas da escolha de uma carreira profissional, bem como seus pais e paren tes, além de líderes comunitários, inclusive líderes de negócios. Para tanto, a ONG pode organizar eventos em diferentes cír culos comunitários, todos envolvendo interação direta, social e tecnológica com a indústria. Para os alunos do ensino médio, pes soas que possam ser vistas como exemplos são essenciais para o aumento da conscientização em relação às profissões tecnológicas. Além do papel desempenhado pelas empresas pioneiras na atuação local (do primeiro componente do modelo), hackathons e workshops liderados por profissionais da indústria que podem ser tidos como exemplos são mais convincentes do que qualquer outro treinamento educacional. Outra prática eficaz é levar os estudantes para visitar empresas de alta tecnologia e para se encontrar com funcionários locais, o que ajuda os jovens a se imaginar no setor.

Eventos sociais voltados para oportunidades tecnológicas ou profissionais apresentam aos alunos e recém-formados as empresas e tecnologias existentes, tirando proveito das pessoas de dentro da comunidade consideradas exemplos e conectando candidatos em potencial com líderes do setor. Além de adquirir uma ideia mais pro funda a respeito da área de tecnologia e de se sentirem inspirados pelas histórias de sucesso de pessoas da sua região, os participantes vivenciam uma espécie de “descoberta” e de convicção ao intera girem pela primeira vez com figuras proeminentes da indústria. Engajar líderes comunitários é importante devido à influência que eles exercem na opinião pública. Esse engajamento pode se dar por meio de encontros individuais, convidando-os para think tanks nos quais se relacionem com figuras influentes do mundo da tecnologia, ou para dar palestras e participar de comitês governa mentais importantes. A aceitação dos pais é outro passo essencial antes da adoção maciça das novas profissões tecnológicas. Em comunidades exclu ídas, a geração dos pais encontra-se, em geral, menos suscetível a mudanças econômicas e tecnológicas. Ao mesmo tempo, os pais em comunidades minoritárias ou de imigrantes desempenham um papel mais dominante no futuro profissional de seus filhos. Desse modo, comunicar-se com os pais dentro da comunidade é fundamental, embora possa ser mais desafiador, e esse diálogo deve basear-se em evidências iniciais e na aceitação das outras partes envolvidas. Em geral, esse passo acontece depois do investimento da liderança local, após as empresas pioneiras já estarem trabalhando no local.

O governo tem interesse direto em incentivar a participação em massa da comunidade excluída. O esforço é uma causa social justa que ainda traz consigo benefícios econômicos, corrigindo uma enorme falha do mercado: a escassez cada vez maior de empregados da indústria de tecnologia e a existência de um grande número de cidadãos desempregados. A alternativa da terceirização para o exterior não gera a reserva de talento local que atende ao interesse do país. Os governos, em geral, subsidiam serviços de treinamento e contratação, mas raramente apoiam os primeiros estágios do emprego. Um artigo do Center for International Development da Harvard University, ainda inédito, que avalia uma ampla gama de políticas trabalhistas ativas, mostra que apenas 10% das políticas públicas incluem subsídios salariais. 4 Todavia, o artigo mostra que subsídios salariais são a intervenção governamental mais eficaz para o aumento do acesso a novos empregos e a melhores salários — além do apoio que concedem às empresas, também aumentam as receitas dos empregados recém-integrados em cerca de 11%.

Componente 4: Recrutar o governo | Por fim, o modelo de Inclusão Tecno lógica também exige conquistar o apoio do governo para fazer com que a inclusão na indústria de tecnologia seja sustentável social e economicamente. O envolvimento ativo do governo, principalmente financiando os primeiros esforços de integração, é fundamental para incentivar as empresas de tecnologia a adotar as medidas extras necessárias para a contratação de empregados inexperien tes vindos da comunidade excluída. Contratar engenheiros pouco experientes acarreta custos e riscos: gastos com o período — não produtivo — de aprendizado e o risco de perder uma parcela dos candidatos. Esses custos são ainda maiores quando existe separa ção, ou mesmo hostilidade, entre as sociedades excluídas e domi nantes. Como a filantropia não subsidia, em geral, custos e riscos extras de empresas privadas, o único órgão não empresarial que pode absorver tais subsídios é o governo.

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Impulsionar a participação maciça das comunidades excluídas nas indústrias de tecnologia é algo que não pode ser alcançado sem a implementação de todos os quatro componentes. Embora outros modelos geralmente concebam etapas do trabalho ou inúmeros com ponentes independentes atuando em sinergia, o modelo de Inclusão Tecnológica requer uma abordagem holística. Colocar um ou alguns dos elementos em prática pode produzir sucesso limitado, mas não a transformação em larga escala que o modelo foi elaborado para criar.

5 A eficácia dos subsídios salariais está recebendo cada vez mais reconhecimento. Um tweet de 21 de setembro de 2021 da OECD Social, por exemplo, anunciou que um terço dos países da OCDE introduziu ou aumentou os subsídios de contratação para ajudar as empresas a recrutar mais jovens.

Empreendedores sociais e empresariais podem tentar implemen tar todos os componentes do modelo de Inclusão Tecnológica do zero. Outra opção é avaliar os esforços locais existentes, identifi cando aqueles componentes que já estão sendo implementados e aqueles que estão faltando e preencher as lacunas para aumentar e otimizar os processos existentes. Pré-requisitos para o sucesso | Para que a Inclusão Tecnológica gere mudança social significativa, várias condições devem prevalecer. Em primeiro lugar, é preciso que haja uma escassez expressiva de empregados no setor de tecnologia. Esse é o ponto central do modelo, que se resume a identificar e abordar as necessidades e os valores do negócio. Depois, o percentual de estudantes formados no ensino médio em ciências exatas ou tecnológicas na comunidade excluída deve ser considerável. Para o ponto de partida do projeto, deve haver ao menos um pequeno grupo de recém-formados em cursos superio res em áreas de STEM que estejam subempregados — são eles que vão se candidatar para trabalhar nas empresas pioneiras. O caso da Tsofen é um ótimo exemplo no qual o alto índice de subemprego dos recém-formados se casava com a enorme necessidade do setor por talentos. Contudo, quando indústrias locais de tecnologia não enfrentam grandes barreiras educacionais, essa condição deixa de ser Felizmente,importante. as indústrias de tecnologia não são homogêneas quanto às demandas por talento e serão ainda menos à medida que a tecnologia e a automação se acelerarem. O setor emprega muitas pessoas que desempenham funções menos qualificadas e que não exigem educação superior, mas que, ainda assim, são mais bem remuneradas do que a média dos membros da comunidade excluída. Isso inclui cargos de controle de qualidade e de suporte técnico, bem como os que envolvem o desenvolvimento de moni toramento de conteúdo para internet. As instituições financeiras demandam uma grande quantidade de funcionários para manter seus sistemas automatizados. Em meio à automação de setores tradicionais, gerir um chão de fábrica tornou-se um trabalho espe cializado que prescinde de curso superior. Em alguns contextos, portanto, o modelo de Inclusão Tecnológica pode funcionar muito bem quando as indústrias locais de tecnologia não enfrentam gran des barreiras educacionais. Em terceiro lugar, o modelo de Inclusão Tecnológica tem bons resultados em comunidades excluídas concentradas em uma região. A proximidade das pessoas de comunidades excluídas aumenta o impacto das ferramentas de conscientização, seja junto aos jovens da comunidade, aos estudantes universitários ou formados, bem como do ensino médio, ou a seus pais e à comu nidade em geral. Além disso, a ONG escolhida deve ter no cerne pessoas com credenciais tecnológicas e comerciais para atingir empresas de TI por meio de uma rede de contatos pessoais e profissio nais, como resultado da confiança criada para conseguir o envolvimento das empresas. Ter membros que dominem assuntos tecnológicos e comerciais também permite que as adaptações necessárias em suas atividades de formação e contratação sejam feitas. O modelo de Inclusão Tecnológica é ins trumental para envolver a comunidade excluída no setor de alta tecnologia. Uma vez expandida a inclusão, nem todos os compo nentes do modelo mantêm-se igualmente necessários. Por exem plo, obstáculos enfrentados pelos candidatos para fazer parte de empresas tradicionais fora de sua região diminuem. Avançar de maneira fluida para as próximas fases da integração exige uma massa crítica de funcionários do setor de tecnologia da comuni dade e ao menos uma pequena parcela de empresas de tecnologia que atuem dentro da comunidade. Esses dois fatores continuarão a aumentar a confiança da comunidade no potencial da alta tecno logia e a sustentar mudanças nos padrões e no foco da educação.

3 Autoridade de Inovação de Israel e Start-Up Nation Central, High-Tech Human Capital Report 2019 4 Eduardo Levy Yeyati, Martín Montané e Luca Sartorio, “What Works for Active Labor Market Policies?” Center for International Development at Harvard Univer sity, Faculty Working Paper No. 358, 2019.

A Inclusão Tecnológica não é capaz de transformar a sociedade por conta própria. Problemas de desigualdade e exclusão exigem soluções sistêmicas que vão além desse modelo. No entanto, em áreas onde as indústrias de tecnologia são prósperas, o modelo de Inclusão Tecnológica permite que mais pessoas compartilhem da riqueza promovida por essas indústrias. Além disso, oferece uma forma de combater a crescente lacuna entre a pobreza paralisante das comunidades excluídas e a riqueza assombrosa produzida pela tecnologia. n Notas 1 Todos os nomes dos participantes neste artigo são fictícios para proteger suas identidades. 2 Escritório Central de Estatísticas de Israel, “Estimativa do Setor de TIC para 2015”, 7 de setembro de 2016.

Felizmente, as indústrias de tecnologia não são homogêneas quanto às demandas por talento e serão ainda menos à medida que a tecnologia e a automação se acelerarem.

Por Edgard Barki, Marcus Alexandre Yshikawa Salusse, José Guilherme F. de Campos, Thomaz Novais Rocha e Ute Stephan O ação. Ocorrem em todos os setores, em grande parte nas fronteiras entre eles, sejam públicos, sem fins lucrativos e privados.3

Embora as vantagens dos negócios de impacto pareçam ser bem compreendidas, sabemos muito pouco de quão inclusivo é o empreendedorismo social da BdP e o que de fato significa ser empreendedor social da periferia. São raros os exemplos de negócios de impacto bem-sucedidos e com escala criados por essa população, e o campo do empreendedorismo social, por buscar trazer soluções para os desequilíbrios sociais, poderia promover maior igualdade de opor-

Os negócios de impacto surgiram como alternativa às limitações do Estado em resolver problemas sociais e ambientais e para melhorar a sociedade como um todo por meio de inovações sociais. Benéficas para a sociedade, as inovações sociais aumentam sua capacidade de Em Busca SocialEmpreendedorismodoInclusivo

34 Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e, assim como outras economias emergentes, ainda convive com altos níveis de pobreza e inúmeros problemas sociais. Nas sociedades caracterizadas pela desigualdade, as instituições, em geral, são insuficientes para prover aos estratos da população mais carentes suporte adequado às suas necessidades e à sua efetiva participação nos mercados formais. Deficiências no sistema educacional, déficit habitacional quantitativo e qualitativo, escassez de serviços de saneamento e baixo acesso a serviços de saúde são exemplos desses vazios institucionais. Todos eles causam graves problemas sociais e econômicos para a população da base da pirâmide (BdP). Definida por alguns autores como pessoas que vivem com menos de US$ 2 por dia,1 a BdP se diferencia da extrema pobreza, cuja métrica é renda per capita diária inferior a US$ 1. Segundo alguns estudos mais recentes, dentre os quais este, as pessoas que compõem a base da pirâmide contam com menos de US$ 8 por dia2 para viver. Outras abordagens definem esse estrato populacional como multidimensional, incluindo indicadores além da baixa renda.

A criação de negócios de impacto por parte de empreendedores sociais tornou-se tendência mundial. Ao mesmo tempo que visam o impacto social positivo, essas organizações híbridas utilizam mecanismos de mercado para se tornar autossustentáveis financeiramente. Apesar de a ideia não ser nova, os negócios de impacto ganham visibilidade na esteira de abordagens como Sistema B, capitalismo consciente, valor compartilhado e os princípios de ESG (ambiental, social e governança). Os negócios de impacto têm como objetivo principal gerar valor social. Isso se traduz na criação de benefícios (maior acesso à educação ou à saúde, por exemplo) ou na diminuição de custos (caso de tecnologias mais eficientes) para a sociedade4 de forma a reduzir as vulnerabilidades, aumentar as oportunidades na BdP e/ou minimizar os custos de transação e assimetria de informação.

UTE STEPHAN é professora de Empreende dorismo da King’s Business School da King’s College London, professora da Transcampus, Technische Universität Dresden (Psicolo gia), membro da Associação Internacional de Psicologia Aplicada (IAAP), editora da Entrepreneurship Theory and Practice e edi tora-consultora do Journal of International Business Studies. Como especialista em Psicologia do Empreendedorismo, investiga o potencial dos indivíduos e das sociedades para prosperar por meio do empreende dorismo.

THOMAZ NOVAIS ROCHA é doutorando em Ad ministração de Empresas pela FGV/EAESP e mestre em Administração de Empresas pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Pesqui sador do FGVcenn e do Centro de Estudos em Competitividade Internacional (FGVcei) da FGV EAESP. Seus interesses de pesquisa estão relacionados à transformação digital e ao empreendedorismo social.

tunidades. No entanto, não é isso que observamos. Muitos são os desafios pessoais e estruturais enfrentados pelos empreendedores sociais da BdP para se consolidar no mercado. Também por isso, é extremamente relevante repensar os mecanismos de apoio a esses empreendedores para que o modelo tradicional capitalista não seja replicado em um campo que pretende, justamente, romper o para digma vigente da desigualdade. Em 2020 e 2021, uma pesquisa que fizemos com 101 empreen dedores sociais no Brasil nos permitiu identificar como o campo de empreendedorismo social brasileiro reflete as desigualdades sociais do país. Os empreendedores sociais da periferia diferem de maneira significativa daqueles de classes sociais mais altas, principalmente no acesso tanto ao capital financeiro, quanto ao social, ao psicológico e ao humano.5 Em vez de criar uma mudança estrutural de baixo para cima, tal contexto limita a capacidade de inovação social prove niente da BdP e reforça as desigualdades socioeconômicas vigentes. Realizada em parceria com a Fundação Arymax e com o Seforis (programa multidisciplinar financiado pela Comissão Europeia que investiga o potencial do empreendedorismo social na Europa e no mundo), nossa pesquisa revela que a estrutura desigual da sociedade brasileira se reproduz no campo do empreendedorismo social por meio de dois mecanismos. O primeiro está relacionado à capacidade percebida de gerar inovação social significativamente maior entre empreendedores das classes sociais mais abastadas. O segundo, nas incontáveis dificuldades da BdP em criar, desenvolver e escalar os negócios, o que limita seu potencial de inovar ou gerar impacto social mais relevante ou estrutural. A riqueza na base da pirâmide Em 2002, Prahalad e Hart6 publicaram artigo seminal em que afir mavam haver, na BdP, um enorme mercado capaz de fazer as gran des empresas não só lucrar, mas também, ao mesmo tempo, oferecer acesso a produtos e serviços básicos – em resumo, a proposta seria vantajosa para todos. Graças a essa ideia, e orientadas a desenvolver inovações destinadas à BdP, multinacionais como Nestlé, Coca-Cola e Unilever criaram unidades de negócio no Brasil e em outros países emergentes. Mais de duas décadas depois, muitas grandes empresas e novos empreendimentos continuam, com sucesso, criando produ tos e estratégias direcionados a esse público. Ao longo dos últimos anos vem mudando a perspectiva da BdP: já não se trata de criar produtos e serviços e oferecê-los a essa popula ção (BdP 1.0), mas de cocriar modelos de negócio em parceria com ela (BdP 2.0). Mais recentemente, evoluiu para a atuação integrada e sistêmica visando o desenvolvimento sustentável para erradicar a pobreza (BdP 3.0). Sem esquecer a ação das grandes companhias, a atividade empreendedora passou a ser vista também com potencial de reduzir a pobreza na BdP.7 Apesar dessa evolução, a literatura atual ainda foca, predomi nantemente, na concepção da BdP como consumidora (1.0), em vez de repensar a atuação dos negócios da perspectiva 2.0 ou 3.0. Além disso, há ceticismo em relação ao caráter promissor da BdP, tanto do ponto de vista empresarial, quanto do bem-estar social e erradicação da pobreza.8 O que se observa é que, apesar de diver sas iniciativas no campo empresarial para combater a miséria, a desigualdade social aumentou nos últimos anos, e países como o Brasil ainda convivem com uma série de problemas sociais, entre os quais falta de acesso a serviços adequados de habitação, saúde, saneamento, mobilidade e educação.

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Nosso argumento é que a literatura e as próprias empresas bus caram a riqueza na base da pirâmide e não a riqueza da base da pirâmide. A busca foi pelo “ouro” existente no mercado da BdP, tal qual a busca de riquezas empreendida pelos colonizadores que exploraram tantos territórios. As visões 2.0 e 3.0, com seus propó sitos inclusivos, raramente são aplicadas. Diante disso, a “riqueza na base da pirâmide” se limita à estratégia de lançar produtos e servi ços com potencial lucrativo em vez de desenvolver renda, talentos ou ambições da BdP.

A promessa do empreendedorismo social Nas duas últimas décadas, ganhou força a ideia de que o empreen dedorismo social poderia ser um caminho para resolver problemas sociais. Utilizando mecanismos de mercado, muitos empreendedores sociais seguiram o exemplo de Muhammad Yunus e do Grameen Bank para criar empresas cujo objetivo principal é enfrentar ques tões sociais ou ambientais. No mundo todo, vemos a proliferação de um ecossistema de investidores de impacto, aceleradoras, orga nizações de apoio e empreendedores sociais que se empenham em promover o empreendedorismo social e criar negócios de impacto, impulsionados pela possibilidade de gerar valor compartilhado para que tanto a empresa como a sociedade saiam ganhando.9

No entanto, da perspectiva global percebemos que a maior parte dos empreendedores sociais ainda são provenientes de países desen volvidos ou de classes sociais mais altas dos países emergentes. São pessoas que, inconformadas com as mazelas sociais e ambientais e com a incapacidade ou negligência das instituições e do Estado, bus cam alternativas e soluções para resolver esses problemas. Esse propósito que move tantos empreendedores influencia não apenas o campo do empreendedorismo social, mas também organi publicações nacionais e internacionais sobre temas relacionados à sustentabilidade, ne gócios sustentáveis e empreendedorismo.

EDGARD BARKI é professor de Empreende dorismo da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV EAESP). Coordenador do Centro de Empre endedorismo e Novos Negócios (FGVcenn). Conselheiro de organizações do terceiro setor e de negócios de impacto. Seus temas de interesse são empreendedorismo social e base da pirâmide. Co-organizador dos livros Negócios de impacto socioambiental no Brasil, Negócios com Impacto Social no Brasil e Varejo para a Baixa Renda. Coautor do livro Varejo no Brasil MARCUS ALEXANDRE YSHIKAWA SALUSSE é professor e coordenador dos cursos de Edu cação Executiva no Insper. Mestre e doutor em Administração de Empresas pela FGV/ EAESP, seus interesses de pesquisa estão relacionados a empreendedorismo, empre endedorismo social, inovação e estratégia empresarial.

JOSÉ GUILHERME F. DE CAMPOS é professor da ESEG – Faculdade do Grupo Etapa – e pesquisador do FGVcenn. Doutor em Admi nistração pela FEA-USP, Campos escreve em

Capital financeiro l A satisfação e a felicidade dos empreendedores aumentam com esse capital. Conforme mostram diversas pesquisas, nas sociedades caracterizadas por elevados níveis de pobreza, por exemplo, a poupança está relacionada ao bem-estar dos empreen dedores. No entanto, uma vez satisfeitas as necessidades básicas, o rendimento adicional não se traduz necessariamente em mais feli cidade. A angústia financeira é um importante fator de stress e tem impacto negativo no bem-estar dos empreendedores.12

As empresas buscaram a riqueza na base da pirâmide e não a riqueza da base da pirâmide.

Miraram o “ouro” existente no mercado da base da pirâmide, tal qual colonizadores explorando novos territórios no passado.

Dada a relevância do capital financeiro tanto para os negócios como para os próprios empreendedores sociais da BdP, é crucial desenvolver mecanismos financeiros que lhes forneçam apoio para que possam criar e desenvolver seus negócios.

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Além dos recursos financeiros, outros meios materiais são escas sos. Porém, quando disponíveis, seus efeitos no bem-estar dos empreendedores desse estrato são mais significativos do que no dos indivíduos de rendimentos mais elevados. Alguns estudos apontam que o sucesso financeiro dos empreendedores da BdP tem forte relação com o seu bem-estar.13 Isso porque muitos enfrentam más condições de subsistência, dependendo diretamente da renda gerada para sustentar a si e à família.

Um ambiente empreendedor hostil A interferência do contexto ambiental não é o único desafio na jor nada dos empreendedores sociais. Questões individuais, como falta de acesso a diferentes recursos, têm de ser igualmente enfrentadas. Do ponto de vista macroambiental, o papel de um sistema de apoio e regulação que incentive o empreendedorismo social e fomente o cres cimento dos negócios é evidente. Da perspectiva individual, o processo empreendedor começa com determinado conjunto de recursos que permita a emergência de objetivos e aspirações ao longo do tempo.10

sofre de forma acentuada a dificuldade de acesso a quatro tipos de capital: financeiro, humano, psicológico e social. Vejamos esses capitais, um por um.

Os empreendedores da BdP têm capital financeiro muito inferior e, conforme revelamos em nossa pesquisa, seu capital inicial é 37 vezes menor do que o das classes abastadas. E embora o volume de vendas dos negócios de impacto da BdP fosse 21 vezes inferior ao dos empreendedores de mais alta renda, entre os empreendedores da BdP, em média, não houve prejuízos no ano anterior à pesquisa. Já entre os mais abastados, as perdas foram, em média, superiores a R$ 280 mil (USD 56 mil). Isso mostra a dificuldade dos empreendedores da BdP não só de acessar capital financeiro para a criação dos negócios, mas de manter qualquer nível de endividamento capaz de suportar crescimentos de longo prazo. É uma barreira central para que os empreendedores da BdP possam escalar e impactar mais pessoas. Capital humano l Está relacionado ao conhecimento, formal e informal, adquirido ao longo da vida do empreendedor. Trata-se de atitudes e habilidades que permitem aos indivíduos usar suas com petências e se tornar mais produtivos e eficientes. O capital humano está associado positivamente à criatividade e geração de valor. zações alinhadas com movimentos e iniciativas, como o Sistema B ou o Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU). Há inclusive casos da atuação do próprio Estado e das instituições nesse âmbito, como os social impact bonds, os títulos de impacto social, e a criação de incentivos fiscais ao investimento social. Essa tendên cia tem implicação direta na sociedade e, como resultado, milhões de famílias em situação de vulnerabilidade já foram beneficiadas nos últimos anos. Ainda assim, o modo como a BdP e o empreendedorismo social são vistos, mesmo que a partir de um olhar bem-intencionado, guarda similaridades com a mentalidade colonial: a população abastada é que resolve os problemas dos menos favorecidos sem necessariamente envolver ou incluir essa população na solução de seus próprios desa fios. Importante destacar que, apesar de ser uma prática honrosa de capita lismo consciente com impacto positivo na sociedade, as abordagens existentes de apoio aos empreendedores sociais da BdP mantêm a centralização do poder e das inovações. Tal cenário – que, em vez de atenuar, pode reforçar as desi gualdades socioeconômicas existentes – tampouco estimula a população da BdP a ser protagonista das inovações sociais, pois de certa forma impede que ela desenvolva seus conhecimentos e competências necessárias para escalar os benefícios gerados pelos negócios de impacto social por meio dos indivíduos da própria BdP. Dessa forma, torna-se essencial identifi car os obstáculos ao desenvolvimento dos empreendedores sociais da BdP e os mecanismos para suplantá-los.

Ao longo de sua jornada, empreendedores sociais na BdP enfren tam muitos entraves que mantêm a desigualdade social no país, conforme mostra a pesquisa que desenvolvemos. Nosso principal argumento, apoiado em evidências, é de que a base da pirâmide

Na base da pirâmide, o ambiente empreendedor hostil contribui negativamente tanto para a intenção de empreender como para o sucesso empreendedor. A criação, desenvolvimento, escala e sobre vivência dos negócios são prejudicados por questões de acesso à internet de qualidade e dificuldades logísticas e de acesso a merca dos. Essas limitações do contexto ambiental são intensificadas pela ausência de incentivos públicos, por uma visão pouco empreende dora do Estado e pelo fato de que negócios com propósito de gerar impacto social perseguindo outros objetivos além do econômico tendem a aumentar as chances de insucesso.11

No caso da BdP há uma grande defasagem na educação formal dos empreendedores, cuja escolaridade costuma ser de qualidade inferior. Além disso, conceitos e conhecimentos de gestão de negócios são menos acessíveis. Na amostra de nossa pesquisa, cerca de 30% dos empreendedores da BdP não cursaram o ensino superior. Entre os empreendedores de mais alta renda, esse número cai para 5%.

O conhecimento formal produzido em outros contextos não pode ser simplesmente transplantado acriticamente para uma atuação na BdP. No entanto, o acesso a tal conhecimento poderia ajudar os empreendedores a melhor gerenciar seus negócios e contribuir positivamente para uma eventual ressignificação e adaptação a esse contexto. Trata-se de viabilizar o acesso para expandir horizontes e capacitar os empreendedores sociais a criarem seu próprio conhe cimento a partir de comunidades de prática e aprendizagem social situada (de acordo com a experiência do seu próprio grupo social).14

Empreendedores sociais na BdP enfrentam muitos entraves que mantêm a desigualdade social no país, e sofrem, de forma acentuada, a dificuldade de acesso aos capitais financeiro, humano, social e psicológico.

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Essa dificuldade de acesso a outras redes limita o estabelecimento de parcerias com mais organizações e a obtenção de recursos essen ciais para o desenvolvimento dos negócios dos empreendedores da BdP. É exatamente nesse sentido a conclusão da nossa pesquisa: em média, os empreendedores de classes sociais mais altas realizaram 36% mais de parcerias com outras organizações do que os da BdP. Os quatro tipos de capital – financeiro, humano, psicológico e social – podem ser analisados de modo individual, mas se influenciam mutua mente e formam um conjunto. Em geral os empreendedores da BdP sofrem com a ausência deles. Como reflexo dessas diferenças, é altamente variável a escala do impacto social gerado pelos empre endedores: na BdP, é 19 vezes menor do que nas classes mais altas, nas quais os negócios de impacto podem se desenvol ver mesmo com prejuízo e ainda assim criar impacto social. Na BdP, ao con trário, os negócios precisam gerar lucro para continuar operando. Isso mostra a capacidade dos empreendedores de classes mais altas de obter crédito e, portanto, não depender totalmente do sucesso do negócio para sobre viver. Em contrapartida, os empreendedores da BdP não podem se dar ao luxo de ter prejuízo, pois não raro lhes faltam fontes de renda, reservas financeiras ou outras possibilidades de captação de recursos. Com menos acesso ao capital, sem poder cometer erros de ges tão nos negócios, e enfrentando inúmeros obstáculos estruturais, os empreendedores da BdP estão também muito menos dispostos a correr riscos para inovar. Essa postura os leva a buscar projetos de baixo risco, uma vez que a necessidade de manter o negócio funcio nando para garantir a subsistência é maior que o estímulo de inovar. Nesse cenário de vulnerabilidade, a possibilidade de criar inovação social é extremamente difícil para os empreendedores da BdP.

Uma organização brasileira que objetiva fomentar o empreen dedorismo social da BdP graças à sua visão integradora e empenho em facilitar o acesso a diferentes tipos de capital é a Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia (Anip). Originada em 2018 pela coalizão entre a Artemisia (primeira aceleradora de negócios de impacto no Brasil), o Centro de Empreendedorismo e Novos Negó cios (FGVcenn) e A Banca (organização social proveniente do Jardim Ângela, um dos bairros mais violentos do mundo nos anos 1990), a Anip atua na formação de empreendedores e capacitação de gestão.

Com esse descompasso na formação desde a educação básica, as lacunas no conhecimento afetam não apenas o empreendedor social da BdP, mas também seus próprios colaboradores. Muitas vezes lhes faltam também conhecimentos de gestão e outras competências necessárias para desenvolver seus negócios.

Capital psicológico l Refere-se ao estado de desenvolvimento psi cológico positivo do indivíduo e é caracterizado por confiança para assumir tarefas desafiadoras, otimismo perante o sucesso atual e futuro da organização, perseverança rumo aos próprios objetivos, redirecionamento dos caminhos para atingi-los quando necessário e, por fim, pela resiliência.15 Como o capital psicológico apresenta características pessoais que influenciam positivamente o bem-es tar, ele é importante desde o início de todo negócio para identificar oportunidades e promover inovações. Esse conjunto de qualidades é influenciado por uma diminuição do bem-estar e da satisfação na gestão dos seus negócios. No caso dos empreendedores da BdP, o capital psicológico sofre com menor nível de satisfação percebido. Em nossa pesquisa, 76% dos empreen dedores de classes sociais mais altas se consideram satisfeitos com o seu trabalho. Na base da pirâmide, são 44%. Capital social l Está associado às redes de relacionamento que podem ser acessadas ou mobilizadas por meio de laços pessoais. Duas formas são frequentemente identificadas: laços fortes em grupos pequenos e homogêneos, e laços fracos em grupos maiores e heterogêneos, ou seja, em pessoas com as quais os empreendedores têm menos contato cotidiano ou menos conexão. Indivíduos e empreendedo res com poucos laços com pessoas de maior poder econômico têm menos acesso à informação e menos recursos oriundos de outras redes, e tais meios podem ser importantes para o sucesso do seu esforço empreendedor.16 Nos mercados da BdP, os empreendedores em geral usam o capital social para preencher vazios institucionais a fim de acessar recursos emocionais, humanos ou financeiros dos mais diversos tipos. De fato, estudos anteriores comprovam o argumento de que as redes sociais são mais importantes para os empreendedores nas economias emergentes do que nas desenvolvidas.17 No entanto, no âmbito das comunidades os laços tendem a se desenvolver entre as pessoas que partilham características semelhantes, e assim, no caso da BdP, com níveis igualmente baixos de recursos.18

Porém, apesar de seus esforços em prol da diversidade, na maioria

Apesar de todos os desafios, os empreendedores sociais da BdP têm algumas vantagens comparativas em sua atuação no campo social. Dentre elas, destacamos três: vivência própria dos proble mas enfrentados, conhecimento local e pleno acesso à população a serEnquantobeneficiada.osempreendedores sociais de camadas mais afluentes buscam entender os problemas da óptica externa, de estrangeiro, os empreendedores sociais da BdP vivenciam cotidianamente as adversidades que buscam resolver. Além de dar maior legitimidade a suas ações, essa vivência prática faz com que a missão, o propó sito, o engajamento com a causa e o senso de urgência se tornem centrais nos negócios.

Comcompreendidos.amaioriada

No entanto, mudanças estruturais sistêmicas só serão possíveis a partir de soluções que sejam cocriadas colaborativamente de baixo para cima, com holístico e profundo conhecimento das questões sociais.20 Os empreendedores sociais da BdP, em geral, replicam os modelos existentes, enquanto seus correlatos das classes mais abas tadas podem se dar ao luxo de assumir riscos e, com isso, impactar milhões de pessoas. A BdP ainda é vista como cliente, beneficiária ou produtora, raramente como protagonista. Situação semelhante ocorre com algumas grandes empresas também engajadas na supe ração dos principais desafios sociais e ambientais contemporâneos; elas adotam seja a lógica de ESG, seja o valor compartilhado ou o capitalismo consciente, para citar conceitos largamente utilizados.

A experiência própria também permite conhecer praticamente tudo que ultrapassa os dados que as pesquisas de mercado con seguem identificar. Sem contar o uso apropriado da linguagem na interação com o público e o conhecimento profundo de onde estão gargalos e pontos de atrito que impedem as inovações sociais de ser Porimplementadas.fim,umdos maiores desafios de trabalhar com a BdP é o last mile. Ou seja, como acessar os mercados e chegar até a ponta de forma eficiente. Os empreendedores sociais da BdP já estão em suas próprias comunidades e, dessa forma, seu acesso aos que devem ser beneficiados é um trunfo. Neste contexto de diferenças abissais, percebemos alguns ele mentos propulsores para esses empreendedores; no entanto, essa comunidade precisa do apoio de sistemas estruturantes a fim de diminuir o desequilíbrio de oportunidades existentes atualmente. Novos papéis do ecossistema de impacto Perceber a BdP como criadora de novas soluções pode ser considerado uma abordagem ingênua ou idealista. As dificuldades enfrentadas por seus empreendedores e identificadas por nossa pesquisa pedem estratégias de sobrevivência em vez de inovações radicais. Contudo, a sociedade e os responsáveis pelas principais organizações do ecos sistema de impacto precisam reconhecer a desigualdade existente na atual dinâmica social. O empreendedorismo social pode ser parte da solução, mas aparentemente apenas replica a estrutura vigente. Para que isso mude, as organizações do ecossistema de impacto devem repensar seus papéis e atuar efetivamente para capacitar e apoiar empreendedores da BdP na superação de seus reveses. É inegável o impacto do empreendedorismo social por meio de uma atuação direta buscando criar um equilíbrio na sociedade.19

É uma nova perspectiva, em que a BdP não é nem consumidora, nem beneficiária, nem produtora, mas protagonista de novas soluções, pois se apropria do próprio destino. Eles tornam-se criadores da BdP.

Daempreendedores.mesmaforma,

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Além disso, disponibiliza-lhes capital financeiro tanto via emprésti mos quanto via capital semente, facilita-lhes o acesso a mercados e redes de troca e aumento de autoconfiança e lhes provê momentos agradáveis e de bem-estar com rodas de conversa e cafés virtuais. Ao longo de quatro anos, a Anip beneficiou diretamente 105 negócios de impacto da BdP. No total, investiu na periferia mais de R$ 750 mil em capital semente e engajou de alguma forma mais de 200 atores do ecossistema de negócios de impacto. Os fóruns, as rodas de conversas e ações nas redes sociais da Anip mobilizaram e inspiraram mais de 6.300 pessoas. A organização trabalha inten samente o tema empreendedorismo social da BdP a fim de mostrar seu potencial de inovação disruptiva; já articulou uma série de atores da sociedade civil e do setor privado para promover mudanças que venham da própria BdP. Nesse sentido, o papel da A Banca como protagonista e principal gestora da Anip é essencial para manter a cultura, o modo de pensar e a lógica da BdP. Marcadores étnicos e impactos de crises Além de todos os desafios enfrentados pelos empreendedores da BdP para desenvolver inovações sociais, a estrutura e a dinâmica do empreendedorismo social revelam aspectos étnicos relacionados à situação de vulnerabilidade diante de crises que devem ser mais bem população negra, no Brasil a distinção racial é bastante eloquente. Enquanto os negros representam 75% dos mais pobres, os brancos são 70% entre os mais ricos. Essa diferença é espelhada, e até aumentada, no empreendedorismo social: 87,5% dos empreendedores sociais da BdP da nossa amostra se declara ram negros; nas classes mais abastadas, declararam-se brancos 91% dos as diferenças socioeconômicas têm consequên cias importantes na forma como os empreendedores da BdP conse guem enfrentar as crises. Enquanto a Covid-19, em média, não teve impacto nas vendas realizadas pelos empreendedores sociais das classes altas, os empreendedores da BdP venderam 27% a menos, e metade de suas empresas ficaram ameaçadas de fechar as portas por causa da pandemia. Na BdP, portanto, a resiliência às crises é muito menor. Isso indica que os empreendedores sociais da BdP não só saem em desvantagem ao iniciar seus negócios, mas também são mais vulneráveis a crises, o que aumenta ainda mais o fosso entre as duasDessarealidades.forma, a desigualdade socioeconômica se perpetua, pois quem busca soluções para as questões sociais que atingem a base da pirâmide são os mais abastados. Aos empreendedores da periferia, por sua vez, resta a perspectiva de replicar modelos de sucesso já consagrados – e pouco espaço para inovar. Se quisermos criar condições em favor de mudanças socioeco nômicas estruturais, precisaremos quebrar os muros (in)visíveis da sociedade e conceber novas oportunidades de igualdade para a BdP na construção das suas próprias soluções. Isso pode ser disruptivo no desenvolvimento não só de novos produtos e serviços, mas também de novos modelos empresariais e na inovação social de real impacto.

16 Granovetter, M. (1983). The strength of weak ties: A network Theory revisited. Sociological theory, 201-33.

das vezes tais empresas conduzem iniciativas individualizadas e sem a visão de mudança sistêmica. Os governos, por sua vez, que seriam capazes de atuar de forma integradora, não preenchem as lacunas sociais existentes em países como o Brasil.

Uma maior cooperação na forma de articulação entre diferentes atores é essencial: grandes empresas, ONGs, organizações de apoio, empreendedores e o Estado. Nosso entendimento é que essa arti culação criaria alternativas para fomentar os negócios de impacto na BdP: apoio holístico, por exemplo, a fim de garantir uma boa estrutura para o desenvolvimento sustentável dos negócios nessa camada. Tal perspectiva está alinhada com o próprio conceito de ecossistema, cujos componentes gerariam de forma harmônica melhores condições de sobrevivência para todos. Outro aspecto importante é o apoio ao desenvolvimento de ini ciativas que fortaleçam a criação de parcerias entre atores da pró pria BdP. Talvez seja proveitosa a criação de um ecossistema em que a centralidade de organização, definição de objetivos e estraté gias estejam nas mãos dos atores da BdP atuando em determinada região ou congregando pessoas e empreendedores que partilham desafios e soluções comuns. A centralidade da questão geográfica é essencial quando se trata de desenvolver colaborações, parcerias e suporte em um ecossistema empreendedor. Definições seminais do conceito21 ressaltam a con cepção de ecossistema como um conjunto de atores interconectados em uma escala geográfica local. As dinâmicas geográficas próprias de cada região são relevantes. De fato, a consolidação de um ecossistema de impacto social forte e vibrante depende mais da interação orgânica e frequente entre atores engajados na construção de significados compartilhados e busca de estruturas e recursos necessários ao desenvolvimento de negócios de impacto do que da criação de um ecossistema de cima para baixo.22 Essa atuação conjunta do Estado e atores institucionais diversos para fomentar o empreendedorismo da BdP deve estruturar ações que percebam o empreendedor social de maneira integrada, ofere cendo-lhe suporte institucional para os vazios institucionais, bem como meios que lhe permitam amplo acesso aos capitais financeiro, humano, psicológico e social. A Anip é um exemplo de organização que consegue articular diferentes atores em prol de mudanças sis têmicas e demonstrar que há espaço para vários outros modelos similares que respeitem a amplifiquem a voz da BdP. Apesar da vivência local, do conhecimento e da facilidade de acesso aos mercados, o empreendedorismo social da BdP ainda é prejudicado tanto por fatores ambientais como pela falta de acesso a capitais. Esse cenário replica a estrutura de desigualdade dos paí ses emergentes. Acreditamos que o desenvolvimento de mecanis mos estruturais com visão colaborativa e holística pode promover o equilíbrio do campo social e desenvolver seu potencial de criar mudanças profundas na sociedade. n Notas

1 Prahalad, C. K. (2005). The Fortune at the bottom of the pyramid. Wharton School Publishing. Upper Saddle River, NJ.

5 Barki, E.; Campos, J.G.; Lenz, A.; Kimmitt, J.; Stephan, U.; Naigeborin, V. (2020). Support for social entrepreneurs from disadvantaged areas navigating crisis: Insights from Brazil. Journal of Business Venturing Insights 14 (2020) e00205. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.jbvi.2020.e00205>.

6 Prahalad, C. K.; Hart, S. L. (2002). The fortune at the bottom of the pyramid. Strategy and Business, 54-54.

2 Cañeque, F. C.; Hart; S. L. (Eds.). (2017). Base of the pyramid 3.0: Sustainable development through innovation and entrepreneurship. Routledge.

7 Kimmitt, J., Muñoz, P.; Newbery, R. (2020). Poverty and the varieties of entrepreneurship in the pursuit of prosperity. Journal of Business Venturing, 35(4), 105939. 8 Dembek, K.; Sivasubramaniam, N.; Chmielewski, D. A. (2020). A systematic review of the bottom/base of the pyramid literature: Cumulative evidence and future directions. Journal of Business Ethics, 165(3), 365-82.

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9 Kramer, M. R.; Pfitzer, M. W. (2016). The ecosystem of shared value. Harvard Business Review, 94(10), 80-89.

10 Sarasvathy, S. D. (2001). What makes entrepreneurs entrepreneurial? Available at SSRN 909038. 11 Muñoz, P.; Cacciotti, G.; Cohen, B. (2018). The double-edged sword of purposedriven behavior in sustainable venturing. Journal of Business Venturing, 33(2), 149-78.

14 Lave, J.; Wenger, E. (1991). Situated learning: Legitimate peripheral participation Cambridge University Press.

15 Luthans, F.; Avolio, B. J.; Avey, J. B.; Norman, S. M. (2007). Positive psychological capital: Measurement and relationship with performance and satisfaction. Personnel Psychology, 60, 541-72.

17 Danis, W. M.; De Clercq, D.; Petricevic, O. (2011). Are social networks more important for new business activity in emerging than developed economies? An empirical extension. International Business Review, 20(4), 394-408.

22 Thompson, T. A.; Purdy, J. M.; Ventresca, M. J. (2018). How entrepreneurial ecosystems take form: Evidence from social impact initiatives in Seattle. Strategic Entrepreneurship Journal, 12(1), 96-116.

21 Cohen, B. (2006). Sustainable valley entrepreneurial ecosystems. Business Strategy and the Environment, 15(1), 1–14. doi:10.1002/bse.428

3 Murray, R.; Caulier-Grice, J.; Mulgan, G. (2010). The open book of social innovation (vol. 24). London. 4 Phills, J. A.; Deiglmeier, K.; Miller, D. T. (2008). Rediscovering social innovation. Stanford Social Innovation Review, 6(4), 34-43.

13 Rahman, S. A.; Amran, A.; Ahmad, N. H.; Khadijeh Taghizadeh, S. (2019). The contrasting role of government and NGO support towards the entrepreneurs at base of pyramid and effect on subjective wellbeing. Journal of Small Business & Entrepreneurship, 31(4), 269-95.

18 Shepherd, D. A.; Parida, V.; Wincent, J. (2020). Entrepreneurship and poverty alleviation: the importance of health and children’s education for slum entrepreneurs. Entrepreneurship Theory and Practice, 1042258719900774.

20 Stephan, U.; Patterson, M.; Kelly, C.; Mair, J. (2016). Organizations driving positive social change: A review and an integrative framework of change processes. Journal of Management, 42(5), 1250-81.

Como mudar essa realidade Novos mecanismos financeiros desenvolvidos sob medida para os empreendedores da BdP são necessários para ajudá-los a mitigar os riscos financeiros associados ao desenvolvimento de inovações. Tais mecanismos devem ser alinhados com programas de apoio e forma ção de gestores a fim de facilitar a idealização de novas soluções (produtos e serviços) não convencionais (mas sintonizadas com a sua realidade social) para lidar com os problemas sociais. Além de enfrentar as questões financeiras, organizacionais e estruturais, é fundamental orquestrar iniciativas de apoio psicológico no intuito de auxiliar os empreendedores da BdP a lidar com os desafios ine rentes a essa jornada e com outros desafios pessoais e comunitários associados a viver em contexto de recursos limitados.

19 Martin, R. L.; Osberg, S. (2007). Social entrepreneurship: The case for definition. Stanford Social Innovation Review

12 Stephan, U. (2018). Entrepreneurs’ mental health and well-being: A review and research agenda. Academy of Management Perspectives, 32(3), 290-322.

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Respeitar os Direitos de Povos

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Indígenas é Melhor para os Negócios Por Moira Birss e Kate Finn

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Centenas de indígenas se reuniram em Brasília, para protestar contra os planos do governo de liberar suas terras para uso comercial. %

medida que os efeitos das mudanças climáticas se agravam e aumentam as preocupações sobre a neces sidade de proteger o meio ambiente e a biodiversidade, os órgãos reguladores do sistema financeiro ficam mais atentos ao modo como as empresas informam os investidores e a sociedade sobre os riscos climáticos de seus projetos. A Securities and Exchange Commission (Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos, ou SEC, na sigla em inglês) iniciou em março deste ano um processo para propor um projeto de lei exigindo que as empresas divulguem os riscos financeiros relacionados aos impac tos das mudanças do clima. Do outro lado do mundo, a Comissão Europeia desenvolve uma taxonomia de produtos financeiros para encorajar investimentos mais sustentáveis. Um fator crucial que as empresas e investidores muitas vezes ignoram ao avaliar os riscos climáticos são os direitos de povos indí genas e comunidades tradicionais. Estudos atestam que quando esses direitos — principalmente os direitos à terra — são respeitados, a preservação da biodiversidade e a estabilidade climática são mais efetivas. O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2019, sobre mudanças climáticas e uso da terra, por exemplo, mostrou que práticas agrícolas que incorporam o conhecimento indígena e local são mais eficazes no combate ao desmatamento e à perda da biodiversidade. E um estudo publicado em 2020 no periódico Frontiers in Ecology and Environment revelou que terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas ou de sua propriedade são as mais bem preservadas e com maior biodi versidade no planeta. Florestas nativas e ecossistemas com grande biodiversidade são extremamente importantes para a mitigação das mudanças climáticas porque, sem sua capacidade de sequestrar carbono e regular a temperatura, o mundo não conseguirá atingir as metas do Acordo Climático de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais. No entanto, quando os povos indígenas tentam defender seus direitos à terra, muitas vezes são ameaçados, atacados e até mortos. De acordo com dados apresentados pela organização não governa mental (ONG) Global Witness, entre 2012 e 2020, mais de 1.540 defensores e ambientalistas foram assassinados ao tentar proteger As empresas precisam considerar os direitos e territórios dos povos indígenas para poder gerenciar adequadamente seus negócios e os riscos climáticos. Além de aumentar a degradação ambiental, violações nessas áreas resultam em atrasos, processos judiciais e perdas financeiras. À Foto de Isis Medeiros/Amazon Watch

Conexão com a terra Povos indígenas e comunidades tradicionais guardam uma rela ção de profundo respeito ao ambiente, têm maneiras únicas de se relacionar com a terra e com as pessoas, e vivem de acordo com critérios muitas vezes não compreendidos, não valorizados ou desrespeitados por pessoas de fora. Para eles, a terra não é simplesmente um bem ou um meio de produção. Suas histórias e identidades estão enraizadas em seus territórios por memórias, tradições e práticas religiosas e cultu rais. O Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas (UNPFII) explica que as “relações profundas dos povos indígenas com suas terras — um elemento fundamental para sua sobrevivência espiritual, religiosa, cultural e física — muitas vezes entram em conflito com os interesses (corporativos e governamen tais)” quando se trata de obter lucros e explorar recursos naturais. A exploração de petróleo, a mineração, o agronegócio e pro jetos de construção de grande envergadura podem ameaçar a sobrevivência dos povos indígenas. De acordo com o UNPFII, “o impacto dessas atividades inclui danos ambientais às terras tra dicionais, além de perda da cultura, do conhecimento tradicional e dos meios de subsistência”. Os prejuízos causados pela destruição ambiental e pelas mudan ças climáticas afetam não só os meios de subsistência dessas popu lações, mas também sua relação com a terra, e sua capacidade de manter sua identidade e seus costumes. Os povos indígenas diferem muito entre si. Muitos de seus territórios são geridos coletivamente, com complexas redes de relacionamentos, direitos de uso e estruturas variadas de tomada de decisão. Há grupos, principalmente os povos da floresta, que não vivem como agri cultores presos a um pequeno pedaço de terra, mas baseiam seus sistemas de cultivo num sistema rotativo de plantio que se estende por grandes áreas. Os caçadores-coletores, por exemplo, passam muito tempo na floresta, em acampamentos e assentamentos, às vezes localizados a vários dias de viagem de suas comunidades, onde caçam, pescam e coletam plantas medicinais e materiais como argila — elementos essenciais para seu estilo de vida. Em regiões remotas da Amazônia, da Papua Ocidental e das Ilhas Andaman, alguns povos indígenas continuam a viver em isolamento voluntário. Qualquer tentativa de estabelecer contato ou operar em seu território viola os direitos dessas comunidades à autodeterminação, pode forçá-los a se deslocar ou impor-lhes sérios riscos à saúde devido à exposição a doenças transmissí veis. Mesmo um simples vírus de gripe pode dizimar populações

Como defensoras atuando na interseção entre direitos indíge nas, direitos humanos, proteção ambiental e responsabilidade dos investidores, acreditamos que as empresas devem adotar medidas mais robustas quando se trata de direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais e suas terras. As normas legais interna cionais que garantem esses direitos já estão consagradas. Casos que analisamos no mundo todo — alguns de nosso próprio tra balho com organizações sem fins lucrativos de direitos humanos e climáticos, e outros realizados por colegas — demonstram que ignorar esses direitos implica atrasos, processos judiciais e per das financeiras para as empresas e seus investidores. Para evitar que isso ocorra, empresas devem adotar políticas corporativas e instituições reguladoras precisam formular regras concretas exi gindo a divulgação de participação em atividades que afetam os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais. Sugeri mos que todas as partes trabalhem com critérios bem específicos ao considerar esses direitos em relação à operação do negócio em si, aos riscos climáticos, e aos padrões ambientais, sociais e de governança corporativa (ESG, na sigla em inglês).

44 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 suas terras. O relatório de análise global de 2021 da Front Line Defenders, organização que atua na defesa dos direitos humanos, constatou que 211 líderes que defendiam o meio ambiente e os direitos de povos indígenas foram assassinados em 2020 — 26 deles eram indígenas. Desde 2017, a ONG documentou o assassi nato de 420 lideranças que lutavam pelos direitos de povos indí genas. A impunidade para esses ataques é a regra, não a exceção.

Mesmo diante da visão empresarial estreita de maximizar lucros e proteger investidores, a incapacidade de respeitar os direi tos indígenas expõe companhias e investidores a riscos judiciais, políticos, operacionais e reputacionais variados, como atrasos no projeto e até seu cancelamento completo, resultando em signifi cativas perdas financeiras. No entanto, as empresas diretamente implicadas na violação dos direitos à terra raramente informam seus investidores sobre os riscos a que estão sujeitos ao operar nas proximidades ou dentro de terras de povos indígenas e de comu nidades tradicionais. Essa má conduta pode afetar as finanças das empresas e ainda acelerar a degradação ambiental, as mudanças climáticas e as violações de direitos humanos. Reconhecendo a importância de respeitar os direitos de povos indígenas, alguns bancos, corretoras e gestoras de ativos instituí ram políticas para identificar, avaliar, evitar e mitigar esses riscos. Em 1999, o Fundo de Investimento Social Calvert foi pioneiro no setor ao adotar formalmente critérios independentes — baseado em instrumentos internacionais — para proteger os direitos de povos indígenas, tornando-se assim uma das primeiras empresas a utilizar um quadro de critérios pautado em direitos para selecionar investimentos. Seu exemplo foi seguido em 2003 pela gestora de ativos Trillium, que instituiu parâmetros seletivos que examina vam as políticas e ações das empresas para saber se elas “haviam apresentado algum padrão de comportamento desrespeitoso ou de exploração” em relação aos povos indígenas. Em março de 2021, a BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, reafirmou sua convicção de que as empresas devem “obter (e manter) um con sentimento livre, prévio e informado (CLPI) dos povos indígenas para as decisões empresariais que afetem seus direitos”. As ins tituições reguladoras de valores mobiliários também começam a reconhecer a importância desse tipo de informação. Atualmente, a Comissão Europeia está discutindo o Non-Financial Reporting Directive [Regulamento para Relatórios Não Financeiros, ou NFRD, na sigla em inglês], no intuito de criar mais transparência na forma como as empresas gerenciam desafios sociais e ambientais.

KATE FINN é diretora executiva da First Peoples Worldwide, onde orienta a orga nização a trabalhar a partir de uma base de valores indígenas para chegar a um futuro sustentável para todos.

MOIRA BIRSS é diretora de clima e finanças da Amazon Watch, onde trabalha para que o setor financeiro se responsabilize por sua contribuição às violações de direitos indígenas, desmatamento da Amazônia e mudanças climáticas.

Todas essas normas internacionais criaram uma estrutura de boas práticas para os povos indígenas exercerem seus direitos de autodeterminação via consentimento livre, prévio e informado. De acordo com esses princípios, o consentimento deve ser dado livremente por pessoas que conheçam perfeitamente as poten ciais consequências do empreendimento antes de tomar qualquer decisão e de acordo com seus próprios processos decisórios. Ou seja, os povos indígenas não podem ser coagidos ou manipula dos a tomar decisões. Suas deliberações devem ser feitas em seu tempo, suas próprias normas e/ou leis tradicionais. Eles precisam entender e participar das tomadas de decisão, podem dar ou negar seu consentimento durante os estágios de planejamento e esse consentimento deve continuar durante as fases de concepção e implementação do projeto. Além disso, devem ter acesso a espe cialistas jurídicos e técnicos, e ser informados em sua própria inteiras, como aconteceu com metade dos Nahua, na Amazônia peruana, que foram mortos pela doença nos meses posteriores ao contato com madeireiros em 1984.

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Autodeterminação é lei A relação especial dos povos indígenas e das comunidades tradi cionais com suas terras motivou o surgimento de uma série de normas jurídicas internacionais para protegê-la. As empresas e os investidores precisam estar cientes dessas leis e normas para mitigar vários riscos.

A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos de Povos Indígenas (UNDRIP, na sigla em inglês), a Declaração Americana Sobre os Direitos de Povos Indígenas, a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais (OIT 169) e a jurisprudência de órgãos como a Corte Inte ramericana de Direitos Humanos (CIDH) estabeleceram que, se as atividades de empresas ou de projetos comerciais impactarem os povos indígenas, elas não poderão prosseguir sem o consenti mento livre, prévio e informado desses povos, e caso violem seus direitos, deverão ser sumariamente interrompidas. Aprovada em 2007, a UNDRIP fornece uma lista de direitos que “constituem as condições mínimas de sobrevivência, digni dade e bem-estar de povos nativos do mundo”. Como todas as pessoas, os povos indígenas também têm seus direitos garantidos pelos instrumentos internacionais de direitos humanos, incluindo a Carta das Nações Unidas e o Tratado da Declaração Univer sal dos Direitos Humanos. No entanto, a UNDRIP de 2007 foi dedicada especificamente aos povos indígenas. Na época em que foi aprovada, 144 Estados-membros das Nações Unidas votaram a favor e somente 4 — Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia — foram contra. Em 2016, os quatro países reverteram suasUmposições.dosdireitos fundamentais definidos na UNDRIP é o da autodeterminação. O Mecanismo de Peritos da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (EMRIP, na sigla em inglês), um pro grama composto por sete especialistas que assessoram o Conselho de Direitos Humanos sobre os Direitos de Povos Indígenas, expli cita que todos os direitos estão vinculados à autodeterminação: “As culturas de povos indígenas incluem manifestações tangíveis e intangíveis de seus modos de vida, visões de mundo, conquistas e criatividade e devem ser consideradas como uma expressão de É importante salvaguardar o direito de autodeterminação dos povos indígenas quando as corporações entram em acordo ou começam a desenvolver projetos que envolvem suas terras, territórios e recursos naturais.

sua autodeterminação e de suas relações espirituais e físicas com suas terras, seus territórios e seus recursos naturais”.

A autodeterminação engloba necessariamente o direito dos povos indígenas de tomar decisões e ter direitos iguais de participação em projetos que os afetem. O artigo 26 da UNDRIP declara que “povos indígenas têm direito às terras, aos territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido”, e têm o direito de “possuir, utili zar, desenvolver e controlar as terras, territórios e recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido”. Por isso, quando as corporações fazem acordos ou começam a desenvolver atividades que envolvam terras, territórios e recursos desses povos, é extremamente impor tante salvaguardar os direitos de autodeterminação.

Além da UNDRIP, em 2016 os países-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) — todos os países das Américas exceto Cuba — aprovaram a Declaração Americana dos Direitos de Povos Indígenas, que também confirma o direito à autodeterminação desses povos. Como a UNDRIP, a Declaração Americana reconhece uma série de direitos inerentes à gestão e con trole de territórios, incluindo os direitos à pro priedade tradicional — o que significa que os povos indígenas não precisam de um título legal para que o governo solicite e/ou obtenha seuEmboraconsentimento.aDeclaração Americana, assim como a UNDRIP, seja um documento não vinculante, dos 35 Estados-membros da OEA, 25 ratificaram ou aderiram à Convenção Americana de Direitos Humanos — um instrumento vinculante que entrou em vigor em 1978. A convenção criou a Comissão Intera mericana de Direitos Humanos e a CIDH para defender direitos fundamentais, como o direito à propriedade e à proteção judicial. Finalmente, 23 países ratificaram a OIT 169, acatando assim as obrigações vinculantes do tratado. Essa convenção determina direitos específicos de povos indígenas e comunidades tradicionais, incluindo o “direito de decidir sobre suas próprias prioridades no processo de desenvolvimento caso ele afete suas vidas, crenças, instituições, bem-estar espiritual e as terras que ocupam ou usam”.

46 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 língua, para que entendam as implicações [impactos] de qualquer escolha sobre suas vidas e façam opções conscientes. Se os povos indígenas ou comunidades tradicionais decidirem retirar o consentimento ou recusar qualquer tipo de negociação, o projeto não poderá prosseguir legalmente, porque fere o direito desses povos à autodeterminação sobre suas terras, territórios e recursos. Em resumo, para obter uma licença de operação, qualquer empresa precisa solicitar o consentimento livre, prévio e informado em um processo pautado por direitos e com um desfecho que res peite totalmente a decisão da comunidade indígena em questão. Direitos e risco Considerando que existe um consenso global de apoio aos direi tos de autodeterminação e controle de suas terras pelos povos indígenas, a transgressão corporativa desses direitos muitas vezes gera conflitos que levam a riscos legais, políticos, reputacionais, financeiros e operacionais para as empresas e seus investidores. Nossa análise de relatórios enviados à SEC revela que as empresas não estão divulgando as violações potenciais ou reais dos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais ou de seus recursos, apesar dos claros riscos financeiros envolvidos. A seguir apresentamos exemplos de riscos relevantes — quase sempre omitidos — a que organizações do mundo todo estão sujeitas. Em muitos dos casos, as empresas se viram obrigadas a relatar — para a SEC ou para a imprensa — perdas financeiras significativas por se recusarem a respeitar os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Os riscos legais referem-se à possibilidade de tribunais locais anularem concessões fornecidas pelo governo por violações de direi tos à terra, de haver ações judiciais resultantes de desrespeito aos direitos humanos durante a execução dos projetos e de ocasionar disputas legais diante de órgãos internacionais como a CIDH. Con tinuar com um empreendimento sem o consentimento livre, prévio e informado pode significar grandes atrasos nos cronogramas dos projetos caso tribunais internos ou internacionais determinem que a empresa retorne a um estágio anterior ou que realize nova análise ambiental para consultar adequadamente as comunidades afetadas. A empresa petrolífera Occidental Petroleum (OXY), com sede em Los Angeles, passou oito anos respondendo a um processo judicial nos tribunais norte-americanos movido pelas comunidades Achuar, do norte do Peru, pela contaminação ambiental e os impactos na saúde de suas populações provocados pelas operações. Em 2015, quando finalmente a OXY concordou em investir uma quantia não revelada em programas de desenvolvimento nas comunidades Achuar, o pro cesso foi encerrado. Nossa análise dos documentos regulatórios que a OXY envia anualmente à SEC mostra que, de 2007, ano em que a ação foi ajuizada, até o acordo, em 2015, não houve qualquer menção ao processo, aos direitos das terras indígenas nem tampouco à opo sição da comunidade como um risco ao empreendimento.

Decisões de tribunais internacionais também podem afetar indiretamente as empresas. Em 2007, a CIDH ordenou que fossem feitas mudanças na lei e em sua aplicação depois que o governo do Suriname autorizou a operação de várias empresas madeirei ras e mineradoras a trabalharem no território tradicional do povo indígena Saramaka sem seu devido consentimento. Na decisão, o tribunal reafirmou os direitos dos povos indíge nas e de suas propriedades comunitárias, direitos esses que exi gem medidas especiais que garantam sua sobrevivência física e cultural de acordo com a lei internacional de direitos humanos. O tribunal também declarou que a ação estadual e a legislação local “não eram suficientes para garantir ao povo Saramaka o direito de controlar efetivamente seu território sem interferência externa”.

O tribunal determinou que o Suriname revisse e tratasse de modificar suas concessões de mineração e de exploração de madeira de acordo com a sentença, e atualizasse as disposições legais para garantir completo gerenciamento e controle das terras e dos recursos naturais no território coletivo dos Saramaka. Como o governo do Suriname reluta em implementar a decisão judicial, o povo Saramaka decidiu continuar lutando em defesa de suas terras. Cortes e legislações nacionais [de vários países] estão inte grando os requisitos de tratados e convenções internacionais que tratam de povos indígenas, aumentando os riscos para governos e empresas caso projetos avancem sem o consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas. Em outubro de 2021, a Suprema Corte da Noruega decidiu que, de acordo com convenções internacionais, as fazendas de energia eólica Storheia e Roan, localizadas em território do povo Sami, criadores de renas, violavam os direitos dessa comunidade. Além disso, o tri bunal revogou as autorizações de funcionamento das 151 turbinas eólicas. No entanto, o tribunal não definiu como tudo deveria ser feito, nem se as turbinas deveriam ser removidas, deixando tanto o governo como a empresa num limbo legal e operacional até que seja definido como cumprir a ordem do tribunal. Em decisão similar de 2021, a Suprema Corte do Canadá, emitiu um parecer favorável à Blueberry River First Nations, declarando que seu direito de caçar, pescar e capturar animais dentro de seu território tradicional tinha sido violado pelo governo estadual, que concedeu permissões para várias atividades industriais sem a aprovação da comunidade. A decisão gerou uma significativa incerteza regulatória para os proponentes do projeto na província e abriu uma brecha para uma futura redução no ônus legal para a First Nations mostrar que a empresa e empreendimentos comer ciais violam seus direitos. Essas decisões sinalizam que os direi tos indígenas estão sendo implementados de acordo com regras locais no mundo todo, e que todos os atores precisam entender esses fatores como essenciais para suas métricas de avaliação de perfis de risco. Os riscos políticos podem incluir referendos, legislação ou novas regulamentações que atrasam, suspendem ou até impedem um empreendimento. Um exemplo ocorreu em 2017, em Cajamarca, Colômbia, em que um referendo vinculativo rejeitou os planos de US$ 35 bilhões para a abertura de uma mina de ouro da Anglo Gold Ashanti (na documentação anual daquele ano enviada à SEC, a AngloGold Ashanti não mencionou a oposição da comunidade). Em outro exemplo, o Tribunal Constitucional do Equador decidiu que as concessões de mineração na floresta de Los Cedros eram inconstitucionais e cancelou definitivamente todos os projetos de mineradoras. E na Libéria, em 2018, o Congresso do país aprovou a Lei dos Direitos à Terra, ampliando direitos de posse de terras tradicionais às comunidades locais. Insegurança social e conflitos causados pela impugnação de

O caso do conglomerado de azeite de dendê Sime Darby Berhad, da Malásia, ilustra o risco político de se ignorar os direitos à terra de povos indígenas e tradicionais, assim como a interação de riscos políticos com riscos operacionais e legais. Em 2009, a Sime Darby assinou um contrato de concessão de uso de 220 mil hectares de terras por 63 anos no noroeste da Libéria. Essa área representa 20% das terras da Sime Darby. O governo liberiano concedeu o uso da terra livre de ônus para o conglomerado que, por sua vez, se comprometeu a pagar ao Estado US$ 5 por hectare anualmente e a empregar mais de 30 mil liberianos. A previsão inicial era de que o projeto envolveria investimentos de US$ 3,1 bilhões ao longo de 15 anos. No entanto, a Sime Darby nunca obteve o CLPI da população local. Em novembro de 2012, mais de 150 representantes de comunidades afetadas pelas plantações de palmeiras decla raram que nenhuma consulta havia sido feita — e tampouco eles tinham consentido — antes de as terras serem cedidas ao conglomerado. Por outro lado, a Lei do Direito à Terra aumentou o poder das comunidades tradicionais no país. Nos anos seguintes ao investimento inicial da Sime Darby, a Libéria aprovou várias leis referentes ao consentimento livre, prévio e informado e aos direitos à terra que aumentavam as possibilida des de embargar um projeto ou de que ele sofresse novos atrasos por litígios dispendiosos. Com a nova legislação em vigor e uma contínua insegurança que crescia entre os grupos afetados, a Sime Darby precisaria dialogar com 55 diferentes comunidades para obter os consentimentos necessários para desenvolver o projeto. A julgar pela experiência anterior do conglomerado, um processo como esse levaria até dois anos, e algumas comunidades poderiam acabar se recusando a abrir mão das terras ou negociando uma redução na área cedida para plantio. Nenhum resultado atraía o grupo econômico. A Sime Darby acabou gastando mais de US$ 200 milhões nas operações da Libéria e declarou um prejuízo de US$ 26,81 milhões no ano financeiro de 2018. Em 2019, vendeu seu ativo de plan tações por US$ 1 acima do valor contratual. Nos três meses em que a venda foi negociada, a empresa amargou uma perda líquida de US$ 10,6 milhões e uma queda de 3,5% no seu faturamento. Os riscos reputacionais geralmente decorrem de publicidade negativa causada por violações de direitos humanos, desmatamento e poluição. A sociedade espera que as empresas não causem danos e, além disso, em nosso mundo digital e globalizado do século 21, resíduos tóxicos ou vazamento de petróleo na Amazônia peruana não passam mais despercebidos. Cenas de destruição ambiental produzida por uma empresa podem resultar em danos permanentes para sua imagem e sua reputação e até para seu relacionamento com clientes, acionistas e instituições financeiras. Os povos indí genas hoje se mobilizam e protestam durante reuniões de acio nistas, convocando a imprensa e instaurando processos judiciais para alertar investidores sobre violações de direitos. Todas essas ações aumentam os riscos se as empresas continuarem operando sem a chamada due diligence, a averiguação minuciosa da docu mentação e análise de risco. A luta da comunidade Sioux de Standing Rock, Dakota do Norte, Estados Unidos, contra a construção do oleoduto subter râneo da Dakota Access Pipeline (DAPL, na sigla em inglês) em seu território demonstra como o risco reputacional se interco necta com riscos políticos, jurídicos e operacionais. Já em 2014, o grupo indígena havia expressado seu desejo de modificação do projeto para que o oleoduto não atravessasse seu território. Em 2016, os Sioux instauraram um processo judicial contra o Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos, ao qual a empresa proponente, Dakota Access — uma sociedade de responsabilidade limitada, subsidiária da Energy Transfer Partners —, logo se juntou como acusada interveniente. Ao mesmo tempo, a comuni dade indígena lançou campanhas na imprensa mostrando como o oleoduto violava seus direitos. Apesar da ação judicial pendente e das mensagens claras da comunidade indígena comunicando sua oposição, a Energy Transfer Partners continuou a construção do oleoduto e, no processo, destruiu antigos cemitérios e objetos de extremo valor cultural e espiritual não só da comunidade Sioux de Standing Rock, mas também de outros grupos em toda a região das Grandes Planícies. Povos indígenas e aliados do mundo todo se reuniram em Standing Rock para protestar contra a constru ção do oleoduto. O movimento #NoDAPL chegou a reunir 15 mil pessoas no local e outros milhões seguiram as manifestações de perto pelas redes sociais e pela imprensa. A resposta da empresa e a ação da polícia local aos protestos resultaram na prisão de defensores da água, o que levou a mais violações de direitos humanos e civis. A oposição dos Sioux não só criou vários problemas para a Energy Transfer Partners e o projeto DAPL, mas também dis parou uma campanha de comunicação bem-sucedida visando as instituições financeiras que forneciam os recursos para a cons trução do oleoduto. Depois de selecionarem investidores social mente responsáveis e de se reunirem com várias instituições financeiras, muitos bancos europeus suspenderam seu apoio ao

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um projeto também podem causar atrasos significativos nas ati vidades empresariais. Muitas vezes os governos não conseguem consultar as comunidades indígenas afetadas antes de liberar uma concessão ou aprovar a instalação de um projeto. Mesmo que os povos afetados inicialmente concordem com um projeto, prejuízos não previstos ou a impossibilidade de envolver as comunidades afetadas nas tomadas de decisão podem levar a complicações e repercussões que impedem tais atividades, causando grandes pre juízos financeiros para as empresas.

Danos imprevistos, ou uma falha em envolver as pessoas afetadas na tomada de decisões, podem levar a complicações e retrocessos que bloqueiam as operações da empresa – a um custo significativo.

48 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 empreendimento. Uma análise realizada em 2018 pela First Peo ples Worldwide, um programa da University of Colorado, em Boulder, dedicado a aumentar a responsabilidade corporativa em relação aos povos indígenas, mostrou que, apesar do custo inicial estimado em US$ 3,8 bilhões, o oleoduto custou mais que o triplo quando foi concluído, em junho de 2017, depois de sofrer perdas financeiras acumuladas causadas por longos atrasos na constru ção devido à instabilidade social e aos processos judiciais. Além disso, as ações da Energy Transfer Partners tiveram um desem penho muito abaixo do esperado e a empresa sofreu uma perda de valor de mercado de longo prazo, que persistiu mesmo depois da conclusão do projeto. De agosto de 2016 a setembro de 2018, suas ações sofreram uma desvalorização de quase 20%, enquanto o índice S&P 500 registrou um aumento de quase 35%.

Apesar dos protestos dos indígenas e da aliança formada com alguns investidores, o petróleo começou a escoar pelo oleoduto em junho de 2017. No entanto, as dificuldades jurídicas e opera cionais continuaram. Em julho de 2020, James E. Boasberg, juiz de um Tribunal Regional dos Estados Unidos, ordenou que o oleoduto fosse fechado para que o governo federal pudesse fazer uma nova e mais completa análise do impacto ambiental. O jul gamento se baseou principalmente nas declarações dos nativos que alegaram não terem sido consultados nem para a análise de requisitos mínimos para o desenvolvimento do projeto e que, por isso, teria de ser considerada insuficiente. Essa decisão acabou se tornando um precedente importante ao mostrar que a consulta é um ponto inegociável da avaliação de risco e da análise ambiental para mitigar riscos legais, reputacionais e sociais. Em fevereiro de 2022, o Supremo Tribunal Federal dos Esta dos Unidos negou a apelação da empresa proponente, encerrando definitivamente a ação judicial. Embora a comunidade Sioux e outros grupos tenham aplaudido essa decisão, o petróleo continua a escoar pelo oleoduto, sob o lago Oahe, e não existe nenhuma norma em vigor para intervir em uma situação de emergência caso haja um vazamento — o que mostra que, mais de cinco anos depois da conclusão do oleoduto, os potenciais riscos operacionais continuam sendo subavaliados. O caso da DAPL não é isolado. Prejuízos econômicos e viola ções dos direitos dos povos indígenas ocorrem no mundo todo. A empresa de petróleo canadense ReconAfrica enfrenta atualmente uma crescente fiscalização em seu campo de perfuração exploratória de petróleo e gás na frágil natureza selvagem da Namíbia e Botsu ana, região que abrange a bacia hidrográfica do delta do Okavango e seis reservas de vida selvagem mantidas por comunidades locais. Os membros dessas comunidades estão preocupados porque as primeiras atividades de exploração da ReconAfrica já podem ter violado seus direitos. A lei da Namíbia exige que as empresas garan tam não só que povos nativos sejam consultados, mas também que sejam notificados publicamente sobre qualquer projeto proposto e que possam levantar questões que devem ser incluídas no relatório de avaliação final para receber a aprovação do governo. Em março de 2021, a ReconAfrica divulgou uma avaliação preliminar mas, para vários indivíduos e organizações de defesa dos direitos, a consulta era extremamente restrita: não havia traduções disponíveis nos dialetos locais e a empresa impôs limites à quantidade de partici pação de pessoas das comunidades, ignorou perguntas e cancelou sessões. Em maio de 2021, um agricultor local ajuizou uma ação contra a ReconAfrica por falta de consulta à população. Percebendo a oposição crescente, a empresa ameaçou processar os jornalistas que faziam a cobertura do processo. O líder de uma área de preservação administrada por membros da comunidade local diz temer por sua vida por ter se manifestado contra.

Em maio de 2021, uma denúncia anônima apresentou uma queixa à SEC dos EUA alegando que a ReconAfrica havia enganado os investi dores sobre seus planos de explorar depósitos de petróleo e gás na região, apresentando aos investidores projeções de lucros baseadas em atividades para as quais não tinha permissão ou autorização. O denunciante alegou também que a empresa “não revelou os valores pagos pela publicação de materiais de terceiros ou seus interesses financeiros nas ações da empresa”. A National Geo graphic relatou que um dia após ter solicitado que a empresa se manifestasse sobre as denúncias, a ReconAfrica apresentou novas informações e modificou os relatórios submetidos aos órgãos regu ladores canadenses. A natureza transnacional desses projetos demonstra a necessi dade de identificar, avaliar e mitigar todos os tipos de riscos para garantir a proteção de povos indígenas e comunidades tradicionais e diminuir efetivamente o risco para os acionistas e investidores.

Os riscos operacionais podem se originar de protestos da comu nidade e bloqueios que visam atrasar ou até obstruir permanen temente um projeto ou exigir informações inacessíveis. Uma pesquisa realizada pela Corporate Social Responsibility Initiative [Iniciativa de Responsabilidade Social Corporativa] da Harvard Kennedy School mostrou que “atualmente, a maioria das empre sas extrativistas não identifica, conhece e agrega todo o leque de custos de um conflito com as comunidades locais”. Os danos causados à comunidade podem custar a projetos de mineração de US$ 20 milhões a US$ 30 milhões por semana. No pior dos casos, os investidores podem até perder toda a sua participação acionária. Veja o caso do Block 64, no qual um grupo de empresas — incluindo a Occidental Petroleum, a Talis man (atualmente Repsol) e a GeoPark — tentou explorar poços de petróleo em seu campo na Amazônia peruana. Block 64, como o campo é conhecido, situa-se no meio das terras dos povos Achuar, A relação especial dos povos indígenas e das comunidades tradicionais com suas terras fez surgir uma série de normas jurídicas internacionais para protegê-la. As empresas e os investidores precisam estar cientes delas para mitigar vários riscos.

■ Todas e quaisquer reivindicações ou queixas sobre direitos à terra apresentadas por comunidades locais nas áreas de ope rações da empresa, a resposta da empresa e declarações dos queixosos sobre como eles avaliaram a resposta.

Além disso, todas as operações futuras deverão divulgar com pletamente os impactos com o mesmo nível de sofisticação e inte gridade com que outros requisitos ESG são tratados. Isso pode ser feito instituindo políticas de averiguação que garantam a proteção dos direitos indígenas nas operações e em toda a cadeia de supri mentos. É necessário respeitar os direitos dos povos indígenas em todos os aspectos ESG e nos compromissos com o clima para entender completamente um nível de risco ESG. Implementar o consentimento livre, prévio e informado de acordo com uma abor dagem baseada em direitos permitirá que as empresas não só evi tem conflitos e atrasos onerosos, mas também coletem dados sobre os principais indicadores de risco ESG relacionados aos direitos humanos e à sustentabilidade. Esses dados, por sua vez, podem ser divulgados aos acionistas e emissores. Como as previsões indicam um aumento acentuado nos efeitos das mudanças climáticas, uma ação em tempo real sobre a averiguação e divulgações que incluam todos os riscos humanos, climáticos e comerciais é absolutamente necessária e urgente. ■

■ Quaisquer processos abertos nos quais a empresa esteja ten tando consultar ou obter consentimento de povos indígenas ou comunidades tradicionais que possam ser afetados por uma atividade planejada ou em processo de planejamento pelo emis sor, subsidiária ou fornecedor.

Wampis e Quéchua. Na verdade, desde a criação desse campo, em 1995, pelo menos nove empresas petrolíferas adquiriram conces sões para perfuração, mas todas elas acabaram desistindo, depois de uma ferrenha oposição dos membros das comunidades locais. A Amazon Watch analisou os documentos regulatórios apre sentados à SEC nos períodos em que essas empresas mantiveram contratos com o Block 64, e praticamente não encontrou nenhuma menção de oposição das comunidades indígenas às operações de exploração de petróleo do grupo. A única empresa que chegou mais perto de mencionar essa oposição foi a Talisman, que em seu relatório de março de 2012 a descreveu como uma “federa ção local” (provavelmente aludindo à Federação da Nacionalidade Achuar do Peru [FENAP]) que havia bloqueado um rio, impedindo o transporte de funcionários da Talisman. A última empresa petrolífera a deixar o bloco foi a GeoPark, que anunciou sua saída em julho de 2020. A decisão da GeoPark foi tomada depois de seis anos de oposição das comunidades indí genas. Esse movimento começou com a declaração de intenções da FENAP para forçar a saída da GeoPark, depois do início das atividades de exploração da empresa no bloco, em 2014. Em 2018, a nação Wampis manifestou sua oposição, denunciando a GeoPark. A oposição indígena fez a GeoPark desistir de um estudo sobre o impacto ambiental em 2019. Naquele mesmo ano, as comunidades apresentaram uma queixa-crime contra a GeoPark para anular completamente o Block 64 por falta de consulta. Em 2020, foi a vez dos Wampis entrarem com uma queixa crime contra a Geo Park pelo perigo que a permanência dos empregados da empresa representava para a comunidade durante a pandemia de Covid-19. Embora os documentos da GeoPark submetidos à SEC em 2020 discutissem a decisão da empresa de se retirar do Block 64, a opo sição da comunidade não foi mencionada. No entanto, um prejuízo de US$ 34 milhões devido à desistência estava registrado. Tanto os documentos regulatórios de 2017 como os de 2018 enviados à SEC mencionaram custos de construção de pelo menos US$ 36,8 milhões — indicando que a empresa pode ter perdido mais de US$ 70 milhões em sua desastrada participação no bloco. Averiguação e divulgação

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■ De que forma seu modelo de negócios impacta as questões sobre direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais, incluindo as cadeias de fornecedores, contratados e subcontratados.

Muitas vezes, é preciso que as empresas cumpram normas e padrões internacionais por não poderem se apoiar nas políticas de proteção de povos indígenas nacionais dos governos dos países onde operam. Por isso, os investidores precisam ter pleno conhe cimento dos riscos decorrentes da violação dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Além disso, a SEC e outros órgãos reguladores devem exigir que todas as empresas prestem os seguintes esclarecimentos sobre suas operações diretas, bem como de seus fornecedores diretos e indiretos:

■ Todos os processos de consulta realizados no ano anterior, incluindo informação sobre qual entidade realizou a consulta e, se o consentimento foi obtido, como os povos indígenas afetados expressaram esse consentimento.

■ Todos os processos judiciais nos Estados Unidos e/ou em ju risdições de outros países relacionados a disputas de direitos à terra, processos de consulta e consentimento ou outros as suntos sobre direitos indígenas.

■ Todos os projetos assumidos pela empresa ou subsidiárias que exijam a realocação de comunidades tradicionais e/ou grupos indígenas, incluindo toda e qualquer indenização monetária ou de qualquer outra espécie fornecida em troca da realocação.

■ Os nomes de todos e quaisquer povos indígenas e/ou comu nidades tradicionais cujos territórios (tanto legalmente reco nhecidos como atualmente em fase de reconhecimento legal) sejam de alguma forma atingidos pelas operações da empresa ou diretamente afetados por ela (por exemplo, poluição de rios por resíduos de atividade petrolífera).

Qualquer empresa, subsidiária, ou fornecedor cujas opera ções impliquem o uso da terra e do subsolo deve prestar esses esclarecimentos. Embora eles se apliquem mais especificamente à agricultura, mineração, petróleo e gás, infraestrutura de ener gia, exploração de madeira e biocombustíveis, esses setores não são os únicos implicados nessas questões. Em 2016, por exemplo, povos indígenas de Oaxaca, México, interromperam a construção de uma fazenda de energia eólica pelo consórcio Energía Eólica del Sur, do qual participava um banco de investimento australiano, depois de demonstrar claramente que os povos indígenas próximos da cidade de Juchitán de Zaragoza não haviam sido devidamente consultados pelo governo. A divulgação das informações deve se aplicar a qualquer setor, subsidiária ou fornecedor cujas operações envolvam qualquer tipo de uso da terra.

Por Nancy M. P. Bocken e Thijs H. J. Geradts Ilustração de Mengxin Li quatro estratégias de negócios circulares: usar menos material por produto (estreitando os ciclos de recursos), estender a vida útil dos produtos (desacelerando os ciclos de recursos), reutilizar materiais (fechando os ciclos de recursos) e reviver os recursos naturais usados nos processos de produção (regenerando ciclos de recursos).1 Essas estratégias permitem que as empresas cortem custos, melhorem sua reputação e estimulem o desenvolvimento de novos produtos e mercados. 2 Muitas, no entanto, enfrentaram uma série de desafios gerenciais na transição para um modelo circular de negócios.3

Com base em mais de uma década pesquisando inovação de modelos circulares de negócios e sustentáveis e mais de 200 entre vistas com gerentes de empresas líderes em sustentabilidade, des cobrimos que, no processo de criação de um modelo circulares de negócios, as empresas enfrentam questões sobre conveniência de mercado, praticabilidade técnica e viabilidade do negócio. A busca por estratégias circulares e sua implementação são muitas vezes prejudicadas por práticas tradicionais de negócios — um desafio típico do trabalho de inovação social, como observa o professor Andrew Hoffman, da Universidade de Michigan. 4 Neste artigo, observamos como corporações que adotam essas quatro estratégias encontram diferentes obstáculos, incluindo se os clientes desejam tais inovações, se as empresas podem administrá-las e se as inova ções são lucrativas. Para contribuir na adoção de um modelo cir culares de negócios, identificamos as implicações administrativas e as melhores práticas para cada estratégia.

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50 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 s últimos oito anos foram os mais quentes já registrados, e os efeitos generalizados das mudanças climáticas sobre a humanidade tornaram-se cristali nos. Confrontadas com o número crescente de doenças infecciosas, secas e inundações em meio ao aumento do nível do mar, nações ao redor do mundo estão lançando planos para mitigar esses efeitos nocivos. Em 2019, a Comissão Europeia introduziu o Green Deal, um plano de 1 trilhão de euros para zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa na Europa até 2050. O pacote inclui um Plano de Ação de Economia Circular visando estabelecer processos de fabricação e produção industrial mais sustentáveis, incentivar o consumo ambientalmente consciente e reduzir resíduos, reciclando e reutilizando recursos pelo maior tempo possível. Nos Estados Unidos, o governo de Joe Biden voltou a entrar no Acordo de Paris no ano passado e prometeu investir 2 trilhões de dólares em infraestrutura e energia renovável. As grandes corporações também estão estruturando metas ambiciosas de sustentabilidade. A economia circular inspirou empresas a enfrentar os desafios ambientais em resposta à acele ração das mudanças climáticas. Afastando-se da economia linear do “pegar–fazer–descartar” — em que os materiais são extraídos para fazer produtos que são descartados após um tempo limi tado de uso —, a economia circular apresenta um novo modelo econômico de produção e consumo em que o descarte é elimi nado, os materiais são reciclados e a natureza é regenerada. Para implementar essa transformação, líderes corporativos contam com As corporações podem alcançar melhor desempenho ambiental e financeiro desenvolvendo e implementando estratégias de modelo de negócios circulares.

Estratégias para Adotar um Modelo de Economia Circular

THIJS H. J. GERADTS é gerente de sustentabilidade da região de Parkstad, na Holanda. Previamente, foi pesquisador-visitante na University of Cambridge e na Harvard Kennedy School.

Desacelerando os ciclos de recursos | Esta estratégia visa o consumo ex cessivo, estendendo a vida útil de um produto. O ex-CEO do eBay, John Donahoe, sustentava que as mercadorias mais ecológicas ge ralmente são aquelas que já existem, referindo-se ao mercado glo bal que o eBay criou para itens usados, recondicionados, antigos e novos. Plataformas de comércio eletrônico como o eBay oferecem um exemplo de como desacelerar os ciclos de recursos. As empresas também podem incentivar os consumidores a reutilizar produtos. O serviço de recompra e revenda da empresa sueca de móveis Ikea foi projetado para aumentar a duração do uso de um móvel. O serviço oferece vouchers de até 50% do valor original para itens em boas condições. Outros exemplos incluem modelos de negócios premium para produtos e serviços de longa duração, com garantias vitalícias, ser viços de conserto e contratos de manutenção. Os custos de pro dutos duráveis de alta qualidade são superiores à média na hora da compra, mas mais baixos ao longo do tempo não obstante a qualidade, assegurada pela garantia. Por exemplo, a empresa holan desa de saúde e eletrônicos Philips vende cuidados de baixo custo por meio de serviços integrais de gerenciamento do ciclo de vida que incluem alternativas para manter os equipamentos médicos em uso por mais tempo, como atualizações e recondicionamento e reforma de hardware. Fechando os ciclos de recursos | A estratégia de reutilização de mate riais depois do uso é comumente chamada de “reciclagem pós -consumo”. As práticas de reciclagem de plástico, papel e vidro já são bem difundidas. Na Europa, por exemplo, 66% dos resíduos de embalagens são reciclados. As empresas também incorporaram a reciclagem mais amplamente em suas operações. O projeto de alumínio REALITY da Jaguar reaproveita resíduos de latas, tampas de garrafas e veículos no fim da vida em carros premium como o Land Rover, um esforço que a montadora britânica estima poder reduzir em 26% suas emissões de CO2. O Walmart se comprome teu com embalagens 100% recicláveis, reutilizáveis ou industrial mente compostáveis até 2025. A Xerox estabeleceu um programa de devolução com foco na reciclagem de seus produtos para afastar os resíduos dos aterros sanitários. Trabalhando com recicladores terceirizados, desviou aproximadamente 276.000 toneladas de eletrônicos de aterros sanitários em 2018, evitando a produção de 724.000 toneladas de CO2. Regenerando os ciclos de recursos | Esta quarta estratégia de negócios se concentra em melhorar o meio ambiente que uma empresa ex plora para uso operacional e comercial. Práticas não sustentáveis em larga escala na indústria de alimentos, como o monocultivo (cultivar a mesma plantação na mesma terra, ano após ano) e o uso generalizado de pesticidas, degradaram o solo no mundo todo. Em 2018, a empresa de alimentos Danone investiu US$ 6 milhões em sua iniciativa de saúde do solo para ajudar a cumprir sua meta de fortalecer a resiliência agrícola. A multinacional desenvolveu uma estrutura de agricultura regenerativa em conjunto com a or ganização não governamental (ONG) internacional World Wildlife Fund for Nature para apoiar as práticas regenerativas de seus agri cultores. A Ikea também emprega uma estratégia de regeneração, já que a produção de seus móveis consome grandes quantidades de matérias-primas como a madeira, o que contribui para o des matamento. Como parte de sua abordagem, a empresa comprou cerca de 550 km2 de florestas em cinco estados dos Estados Unidos para protegê-las do desenvolvimento comercial. A Ikea prometeu tornar-se mais “climaticamente positiva” até 2030, continuando a adquirir áreas florestais para mantê-las, além de seus esforços de redução de emissões.

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NANCY M. P. BOCKEN é professora de negócios susten táveis no Instituto de Sustentabilidade da Universidade de Maastricht e fellow do Cambridge Institute for Sustainability Leadership. Ela também fundou a Homie, seu próprio negócio circular e sustentável.

Quatro estratégias circulares As corporações tradicionalmente focam a implementação de práti cas ecológicas simples e baratas — como reduzir o uso de papel ou usar sensores que desligam automaticamente as luzes do escritório — que resultam em economia direta de custos. Essas inovações incrementais são necessárias, mas insuficientes para reduzir de maneira significativa a pegada ambiental das empresas. Políticos e ativistas estão fazendo cada vez mais pressão para que medidas mais robustas sejam adotadas — como substituir materiais não sustentáveis por alternativas mais ecológicas, evitar o consumo não sustentável de produtos do cotidiano, reciclar produtos ou regenerar o ambiente natural usado para extração de recursos. A transição para a economia circular exige das empresas a adoção de uma abordagem mais integral, que inclua as quatro estratégias de modelo circulares de negócios, de estreitar, desacelerar, fechar e regenerar os ciclos de recursos. Estreitando os ciclos de recursos | Esta estratégia pretende tornar o processo produtivo mais eficiente utilizando menos recursos. A “Clean Future”, abordagem da multinacional de bens de consumo Unilever, por exemplo, inclui reduzir e substituir combustíveis fósseis por recursos renováveis para suas marcas de produtos de uso doméstico. O CO2 é recuperado dos processos de produção e reutilizado, e recursos fósseis não renováveis são substituídos por fontes naturais — caso do carbonato de sódio, um ingrediente em pó de produtos para lavar roupas, criado com a tecnologia de cap tura de CO2. A Unilever estima que essa inovação pode ajudar a reduzir sua pegada de carbono em quase 20%. Estreitar os ciclos de recursos também envolve aprimorar o design de produto com novos processos digitais e de fabricação. A mon tadora japonesa Toyota, por exemplo, fez parceria com a empresa de engenharia americana 3D Systems a fim de usar tecnologias de manufatura adicionais para criar peças leves com mais eficiência. Esse esforço está alinhado com a estratégia da Toyota de eliminar todas as emissões de carbono durante todo o ciclo de vida de um veículo até 2050. Até agora, a empresa reduziu suas emissões em 49% em relação aos níveis de 1990. A redução pode ser ainda maior com a construção de carros mais compactos movidos a hidrogênio. A Riversimple, empresa de carros ecológicos com sede no Reino Unido, desenvolveu um veículo elétrico movido a célula de combustível a hidrogênio que pesa cerca de 590 kg. Com um quilograma de hidro gênio, o ecocarro viaja 320 quilômetros — uma distância significa tivamente maior que os 180 quilômetros que o Toyota Mirai (com peso três vezes maior) percorre com o mesmo consumo.

Viabilidade | Estreitar os ciclos de recursos de modo geral corta custos, recursos e energia. Por exemplo, ao melhorar a eficiência energética em suas fábricas, a Unilever deixou de gastar mais de 873 milhões de euros. Por outro lado, estreitar pode ser lucrativo quando a eficiência permite que as corporações posicionem melhor seus produtos. Um estudo divulgado em 2020 pela multinacional de tecnologia IBM descobriu que quase 80% dos clientes acreditam que sustentabilidade é importante e mais de 70% desses consumi dores pagariam em média 35% a mais por produtos sustentáveis.

Benefícios não quantificáveis, como melhor reputação, tam bém justificam o estreitamento dos ciclos de recursos. Quando a economia de recursos e emissões não corta custos de imediato, a liderança ambiental pode parecer atraente para os clientes. Esse potencial exige que as corporações considerem um conjunto mais amplo de métricas de desempenho para avaliar o cenário. Por exemplo, quando parou de usar materiais não sustentáveis, a fabri cante americana de carpetes Interface viu seus custos de produção aumentarem, o que resultou em uma perda financeira de curto prazo. No entanto, seu conselho executivo considerou que prova velmente se beneficiaria a longo prazo do ganho de reputação se usasse processos de produção mais limpos.

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de tecnologia Apple tanto para reduzir suas emissões gerais como para reduzir custos operacionais. Em outros casos, estreitar também significa redesenhar o pro duto. As marcas de sabão para roupas da americana Proctor & Gamble e seu concorrente europeu Unilever têm trabalhado em versões concentradas para que possam ser embaladas em frascos menores que exigem menos material e também são eficazes em temperaturas mais baixas de água, reduzindo potencialmente o uso de energia em casa. A companhia aérea franco-holandesa Air France-KLM fez parceria com a Delft University of Technology para dar a seus aviões um formato em V simplificado, e com isso econo mizou 20% no combustível usado nos voos e reduziu as emissões.

Desacelerando os ciclos de recursos Interesse | Quando desacelerar os ciclos de recursos se concentra em prolongar a vida útil de um produto, a longevidade se torna uma característica dele e os clientes podem levar esse fator em consi deração em suas escolhas de compra.6 Para aumentar o desejo pelo produto, desacelerar os ciclos de recursos geralmente inclui serviços pensados para o futuro, como garantias, consertos e manutenção. No caso da empresa internacional de produtos para esportes de Administrando ciclos A ciência do design estratégico há muito reconhece a necessidade de desenvolver produtos desejáveis usando modelos de negócios que sejam factíveis e viáveis do ponto de vista financeiro. Ao projetar seus modelos circulares de negócios, as corporações devem, por tanto, considerar esses três fatores ao procurar estreitar, desacele rar, fechar e regenerar ciclos de recursos. Primeiro, devem avaliar se as quatro estratégias do modelo circulares de negócios atrairão seus clientes. Segundo, precisam determinar se essas estratégias são tecnicamente e operacionalmente alcançáveis. Por fim, devem pesar se essas estratégias fazem sentido financeiramente. Vamos considerar os três elementos de design para cada estratégia circular. Estreitando os ciclos de recursos Interesse | Estreitar para alcançar eficiência de recursos pode deixar o interesse pelo produto inalterado quando os esforços de susten tabilidade permanecem desconhecidos ou invisíveis para os clien tes. Contudo, usar menos ou diferentes recursos provavelmente altera os custos de produção, potencialmente forçando as empresas a adequar seus preços. O estreitamento pode permitir reduções nos valores de co mercialização, o que aumenta o interesse pelo produto. De fato, mesmo com preços inalterados, a atratividade do produto tem chances de crescer mediante a divulgação das melhorias de sustentabilidade. Cobrar mais geralmente requer conhe cimento sobre elasticidade-preço e expec tativas do cliente. Embora a demanda do consumidor seja inversamente relacionada ao custo, quando os clientes valorizam o propósito social subjacente à missão da empresa, ela ainda pode subir, apesar da alta dos preços.5 Se os consumidores associarem desfavoravelmente a sustentabilidade a custos mais elevados ou qualidade mais baixa, as empresas talvez prefiram omitir a sustentabilidade da marca. Praticabilidade | Estreitar os ciclos de recursos pode ser relativa mente fácil de implementar por meio de pesquisas internas e prá ticas de design ou em colaboração com parceiros externos para alterar processos de produção, trabalhar com materiais reciclados ou usar tecnologias que economizam recursos. Abordagens es truturadas, como análises do ciclo de vida do produto, permitem identificar oportunidades para reduzir o desperdício durante o processo de produção. A análise do ciclo de vida da empresa de bebidas Coca-Cola, por exemplo, resultou na introdução da emba lagem PlantBottle, que rapidamente economizou 30% do petróleo tradicionalmente usado na produção. Os esforços para estreitar o ciclo também podem se concentrar nos fornecedores. A produção do alumínio está entre os maiores consumidores de energia e emissores de CO2 no mundo todo. As empresas de alumínio Alcoa e Rio Tinto estabeleceram uma joint venture para comercializar uma nova tecnologia que reduz de maneira significativa as emissões do processo de fusão do alumínio — um projeto no qual também investiu a empresa multinacional A transição para a economia circular demanda uma abordagem que inclua as quatro estratégias de estreitar, desacelerar, fechar e regenerar os ciclos de recurso.

É importante ressaltar que esses modelos podem permitir que consumidores satisfaçam suas demandas de maneira mais eficaz e sustentável sem exigir propriedade do produto, e ajudem a pro longar a vida útil deste, como serviços de aluguel.7 O programa Bugaboo Flex, da empresa de carrinhos de bebês Bugaboo, per mite aos clientes usar modelos mais novos conforme a necessidade e devolver os carrinhos quando não precisarem mais deles. Os produtos então são recondicionados para nova utilização, o que economiza recursos.

considerar joint ventures e aqui sições para trazer expertise. A H&M, por exemplo, comprou uma participação majoritária na loja online sueca de segunda mão Sellpy, o que permitiu ampliar seus negócios de roupas usadas como parte de sua meta de se tornar “100% circular”. Em 2018, o grupo suíço de artigos de luxo Richemont adquiriu a Watchfin der, uma plataforma sediada no Reino Unido que compra, vende e troca peças de relógios de luxo de segunda mão. A Watchfinder

Quando desacelerar os ciclos de recursos se concentra em prolongar a vida útil de um produto, os clientes podem considerar esse fator nas suas escolhas de compra.

Viabilidade | Para que as corporações se beneficiem da desaceleração dos ciclos de recursos, um valor adicional cobrado pela longevidade pode reduzir os efeitos negativos da canibalização de seu mercado de reposição. Em outras palavras, o preço inicial mais alto compen saria a receita perdida com o número reduzido de compras repeti das por cliente. Algumas marcas nórdicas de roupas, como Filippa K e Nudie Jeans, cobram mais por seus produtos duráveis premium. Elas também capturam o valor da longevidade do produto aceitando devoluções de roupas e revendendo esses itens de segunda mão.

Praticabilidade | Desacelerar os ciclos de recursos requer design pensado para a longevidade do produto e pronto reparo ou manu tenção, como por meio de software e componentes de hardware atualizáveis. Os desafios tecnológicos e operacionais, incluindo o design para facilidade de atualizações e manutenção e logística re versa para recuperar produtos para conserto, podem ser abordados por equipes internas de pesquisa e design, especialistas da cadeia de suprimentos ou por meio de colaborações externas. Outra alter nativa é a contratação de prestadores de serviços para manutenção e reparo, caso não possam ser executados internamente. No caso da Patagonia, a empresa colabora com a comunidade de consertos da plataforma baseada em wiki iFixit para disponibilizar guias e vídeos de reparos Alternativamente,online.épossível

aventura Patagonia, isso significa uma garantia vitalícia dos pro dutos que é facilitada pelo seu serviço de conserto. Esse suporte corresponde à filosofia da empresa de “compre menos, exija mais”, fornecendo aos clientes produtos duradouros e reparáveis, apoiados por serviço de alto nível. No entanto, a miopia dos clientes e o desejo por novidade podem comprometer a atratividade mercadológica dessa proposta. Quando o público quer o smartphone mais recente ou as roupas mais novas, soluções para esse tipo de consumismo incluem a entrega de novi dades por meio de modelos de aluguel, que oferecem variedade de itens sem propriedade, ou por meio de modelos de venda de produtos de segunda mão. Em 2019, a varejista sueca H&M tes tou o aluguel de moda, oferecendo aos membros até três peças de sua coleção Conscious Exclusive por cerca de 40 dólares por mês.

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Enquanto a desaceleração pode promover vendas futuras, os modelos de serviço podem gerar um fluxo de renda contínuo. Modelos de serviço também prendem os clientes e permitem a integração vertical na cadeia de valor para aumentar o lucro. O “power by the hour” do fabricante britânico de motores de aviação e automóveis Rolls-Royce é um serviço de substituição de peças e motores de avião oferecido a um custo fixo por hora. Esse contrato de serviço de longo prazo alinha os interesses do fabricante e do proprietário, que paga apenas por motores de alto desempenho.

processa mais de 20.000 relógios por ano por meio de sua central de atendimento credenciada, que inspeciona, autentica e prepara os itens para revenda. Essa aquisição permitiu que a Richemont atuasse no mercado de usados e contribuísse para a vida útil pro longada do produto. A desaceleração dos ciclos de recursos pode exigir que as empresas mantenham a propriedade de seus produtos ao fornecer serviços de aluguel. Além dos desafios legais, pode ser necessária uma revisão de seu modelo de negócios para lidar com as reper cussões nos sistemas, processos e recursos internos.8 A experi mentação em pequena escala permite que as corporações testem novas proposições e descubram as implicações das inovações do modelo circular de negócios.9 A antiga divisão de iluminação da Philips, Signify, por exem plo, fez parceria com Thomas Rau, da RAU Arquitetos, para lan çar vários pilotos para vender “luz como serviço” para empresas. Lâmpadas de diodo emissor de luz (LEDs) são mais caras do que as fluorescentes, mas, além de muito mais eficientes em termos energéticos, são também mais duradouras. Um contrato de serviço evitaria altos custos iniciais ao mesmo tempo que proporcionaria economia de energia. Ao mudar para esse modelo, a corporação teve que determinar como estabelecer contratos de serviço e ajustar seu sistema de planejamento de recursos. Como o ser viço ajuda empresas a reduzir suas contas de luz, a proposta se transformou em um serviço financeiro direcionado a gerentes financeiros em vez de gerentes de instala ções. A Signify manteve a propriedade dos equipamentos de iluminação e armações, e os gerentes de vendas foram treinados de acordo. E, como o acúmulo de ativos no balanço patrimonial pode atrair a ira dos investidores, a Philips colaborou com vários bancos por meio do “Philips Lighting Capital”, um centro interno de competência financeira que atua como consultor para desenvolver acordos de financiamento e evitar problemas, como ter muitos equipamentos listados no balanço patrimonial.10

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Cerca de metade do material é de qualidade suficiente para ser remanufaturado em peças novas, de modo que a vida útil do pro duto pode ser estendida. Isso provou ser uma estratégia altamente lucrativa: estima-se que o programa de serviços da Rolls-Royce seja responsável por 70% de suas receitas. Fechando os ciclos de recursos Interesse | Fechar esses ciclos envolve a reutilização de materiais por meio da reciclagem, normalmente facilitada por modelos de devo lução ou recuperação, que permitem aos clientes devolver produ tos usados à empresa para reciclagem ou reutilização. A marca de roupas holandesa MUD Jeans, por exemplo, oferece uma opção de devolução para incentivar a reciclagem. Os clientes recebem um desconto de 10 euros na próxima compra de jeans ao devol ver um par antigo. Modelos de recuperação readquirem material já descartado ou desperdiçado para usar em produtos novos. Isso pode resultar em preços mais baixos pela reutilização de recursos valiosos ou em vantagens de reputação ao abordar uma questão ambiental que permite às empresas cobrar um valor a mais. A colaboração Net -Works da Interface, do fabricante de náilon Aquafil e da Zoological Society of London, transforma plásticos dos oceanos, como redes de pesca de náilon recuperadas, em novos tapetes. A Net-Works se envolve diretamente com as comunidades locais nesse esforço, conectando-se a pescadores nas Filipinas e Camarões para evitar que redes de pesca sejam descartadas no oceano. A Interface usa padrões oceânicos nas peças a fim de tornar esse esforço de sus tentabilidade visível e atraente para os consumidores.

A regeneração pode ser particularmente importante em um ambiente empresa-a-empresa, em que as companhias se beneficiam ao fazer negócios com parceiros ecológicos com quem compartilham objetivos. Além disso, pode ajudar as corporações a criar boa vontade entre os clientes, comunidades e ONGs. Empresas como a Coca-Cola têm sido fortemente criticadas por agravar a escassez de água devido a suas operações comerciais. Em resposta, a Coca-Cola lançou uma estratégia de segurança hídrica para 2030 visando a melhorar a dis ponibilidade, qualidade, ecossistemas, acesso e governança da água para diminuir a escassez em comunidades no mundo.

Além disso, essa estratégia deve ser integrada às operações de uma empresa para regenerar os recursos utilizados em seus processos de produção. Por exemplo, a marca Knorr da Unilever coinveste anualmente 1,2 milhão de dólares com fornecedores e parceiros por meio de seu Fundo de Parceria Knorr, que financia

Praticabilidade | A estratégia regenerativa requer uma nova forma de capacidade e nível de responsabilidade. Os problemas exigem colaboração entre parceiros com os mesmos objetivos, que pode contribuir com conhecimentos e habilidades complementares. O conglomerado de alimentos suíço Nestlé está colaborando com a organização sem fins lucrativos The Xerces Society em sua ini ciativa de polinização de abelhas para melhorar os hábitats dos insetos, bem como garantir suprimentos futuros.

Praticabilidade | Fechar os ciclos de recursos requer habilidade téc nica para reciclar produtos, inovações logísticas para recuperar materiais ou mudanças fundamentais na cadeia de valor em torno da forma como as empresas colaboram com clientes e fornecedo res para recuperar e reprocessar produtos e materiais. No caso da Jaguar, a busca por reduzir o custo e a intensidade energética da reciclagem de alumínio levou-os a fazer um acordo com o forne cedor Novelis para garantir que os resíduos do metal puro e de alta qualidade dos processos de produção da Land Rover fossem coletados separadamente para reciclagem. Essa separação de su cata requer um esforço significativo, planejamento de produção e adesão dos investidores para alinhar os parceiros nos mesmos ob jetivos e evitar problemas que afetariam a qualidade do produto. A reciclagem também apresenta limitações físicas e práticas. Os materiais não podem ser reciclados infinitamente, pelo risco de con taminação durante o processo de coleta e de degradação após vários ciclos de reciclagem. Além disso, a coleta nem sempre é eficiente. Para encorajar clientes a retornar produtos antigos, incentivos como coleta gratuita ou descontos em novos produtos são uma boa alterna tiva. Assim como o envolvimento da comunidade na reciclagem. Em um projeto de colaboração com as organizações sem fins lucrativos Keep America Beautiful e The Recycling Partnership em associação com o Closed Loop Infrastructure Fund, a Coca-Cola doou mais de 1 milhão de lixeiras na última década e forneceu educação sobre reciclagem para residentes em mais de 1.400 comunidades em todo o mundo. Essa parceria evitou que mais de 360 milhões de quilos de recicláveis fossem parar em aterros sanitários. Para apoiar o fechamento dos ciclos de recursos, a legislação pode tornar a reciclagem mais difundida e impelir as empresas na dire ção certa. Depois que o Japão implementou uma lei de reciclagem de eletrodomésticos em 2001, a fabricante japonesa de eletrônicos Panasonic começou a se concentrar em esforços para aumentar a reci clagem, incluindo a educação dos consumidores sobre como reciclar melhor. Fechar o ciclo também pode exigir mudanças significativas no modelo de negócios de uma corporação, gerando a necessidade de reorganização interna e colaboração com parceiros externos. Viabilidade | Fechar o ciclo pode ajudar as empresas a diretamente economizar custos e aproveitar benefícios futuros ao reciclar re cursos que se tornarão cada vez mais escassos e valiosos com o tempo. No caso da Philips, a preocupação de longa data com a disponibilidade e o custo do alumínio a faz continuar expandindo seus modelos de serviços que permitem a reciclagem de matérias -primas. Em 2011, a Novelis anunciou a meta de usar 80% de sucata em suas fábricas até 2020. Em 2018, usava 60% de material reci clado, com uma economia estimada em 900 dólares por tonelada de alumínio devido ao aumento dos preços do metal. Por outro lado, fechar ciclos pode permitir que corporações cobrem um preço mais elevado, gerem economias de custos ou se beneficiem financeiramente de uma reputação melhorada. Para ilus trar o último caso, em 2015, 83% da equipe de vendas da Interface indicou que a Net-Works os ajudou a fortalecer seu relacionamento com clientes, o que resultou em mais 23,5 milhões de dólares em produtos vendidos naquele ano. Fechar o ciclo também pode levar a compras continuadas quando os serviços de devolução incluem um vale de descontos futuros, como no caso do MUD Jeans. Regenerando os ciclos de recursos Interesse | A regeneração visa melhorar o meio ambiente e a sociedade, e muitos veem valor nessa administração por parte das corporações.

5 Omar Rodríguez-Vilá e Sundar Bharadwaj, “Competing on Social Purpose: Brands that Win by Tying Mission to Growth”, Harvard Business Review, v. 95, n. 5, 2017.

O caminho para a circularidade A economia circular desafia empresas a reinventarem seus modelos de negócios. Mas como modelos circulares de negócios bem-su cedidos podem ser desenvolvidos e implementados? Conhecer as implicações administrativas das quatro estratégias e suas soluções pode oferecer orientação aos administradores sobre como mudar seus modelos lineares, liberando potencial para obter tanto impacto social quanto novas oportunidades de negócios. Embora algumas estratégias possam ser mais fáceis de implementar do que outras, as quatro devem ser combinadas para que as corporações trans formem completamente seus modelos de negócios.

9 Ilka Weissbrod e Nancy M. P. Bocken, “Developing Sustainable Business Ex perimentation Capability — A Case Study”, Journal of Cleaner Production, v. 142, 2017.

A Ikea, por exemplo, melhorou seus processos de produção e reduziu sua pegada ambiental ao mudar para fontes renováveis para estreitar o ciclo de recursos. Lançou uma iniciativa de aluguel de móveis para desa celerar o ciclo. Recolhe móveis usados para reutilização e reciclagem, contribuindo para desacelerar e fechar o ciclo. E está envol vida na regeneração, comprando terras — que de outra forma seriam desenvolvidas comercialmente — para plantar florestas que são cuidadosamente administradas por meio de parcerias com ONGs e governos. Ao considerar todas as quatro estraté gias circulares simultaneamente, as empre sas podem desenvolver novos produtos e modelos de negócios que sejam mais desejáveis para os clientes. Esse esforço integral tem o potencial de reduzir custos, economizando recursos. Também pode levar a ofertas inovadoras com margens mais altas e garantir uma rede de fornecimento futura, ao mesmo tempo que gera uma pegada ambiental significativamente menor e tem um impacto ambiental positivo. De fato, muitas empresas altamente bem-sucedidas come çaram a incorporar estratégias de modelo de economia circular em suas operações de negócios para obter esses benefícios associados.

Embora o caminho para a circularidade não seja linear, com certeza o futuro exige que as empresas sigam essa via. n

Ao

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4 Andrew J. Hoffman, “The Next Phase of Business Sustainability”, Stanford Social Innovation Review, v. 16, n. 2, 2018.

7 Arnold Tukker, “Eight Types of Product-Service System: Eight Ways to Sustain ability? Experiences from SusProNet”, Business Strategy and the Environment, v. 13, n. 4, 2004.

2 Mark Esposito, Terence Tse e Khaled Soufani, “Companies Are Working With Consumers to Reduce Waste”, Harvard Business Review, 7 jun. 2016.

6 Alex Gnanapragasam, Christine Cole, Jagdeep Singh e Tim Cooper, “Consumer Perspectives on Longevity and Reliability: A National Study of Purchasing Fac tors Across Eighteen Product Categories”, Procedia CIRP, v. 69, 2018.

3 Eric Hellweg, “Is Your Company Ready for the Circular Economy?”, Harvard Business Review, 25 jan. 2013.

11 Samuel W. Short, Nancy M. P. Bocken, Claire Y. Barlow e Marian R. Chertow, “From Refining Sugar to Growing Tomatoes: Industrial Ecology and Business Model Evolution”, Journal of Industrial Ecology, v. 18, n. 5, 2014. considerar as quatro estratégias circulares as empresas podem desenvolver novos produtos e modelos de negócios mais desejáveis para os clientes.

Mark R. Kramer, Thijs H. J. Geradts e Bhanuteja Nadella, “Philips Lighting: Light-as-a-Service”, Harvard Business School Case Collection, 2019.

8 Mark W. Johnson, Clayton M. Christensen e Henning Kagermann, “Reinventing Your Business Model”, Harvard Business Review, v. 86, n. 12, 2008.

projetos de agricultura sustentável, como plantar campos de flores e construir abrigos de abelhas para proteger os polinizadores. A Unilever também fez parceria com produtores de tomate espanhóis e a Sociedade Ornitológica Espanhola para melhorar os hábitats de 158 espécies de aves ameaçadas de extinção. Essa é uma estratégia ganha-ganha porque os pássaros comem os insetos que danificam as plantações de tomate — tomates são um dos ingredientes prin cipais dos produtos Knorr. Assim, apoiar uma população próspera de aves também favorece o desenvolvimento das plantações, o que beneficia consumidores e produtores de bens de consumo. Viabilidade | “Não há negócios a serem feitos em um planeta morto”, disse o ambientalista David Brower. A citação de Brower é exposta na entrada da sede da Patagonia, como um marco de seu compromisso em fazer negócios de forma sustentável. A Patagonia Provisions, sua divisão de alimentos, foi criada para que a empresa pudesse se tornar uma solução para o sistema alimentar global. A Patagonia escolheu a conservação do salmão como sua primeira iniciativa — o peixe desempenha um papel vital nos ecossistemas naturais, mas as populações diminuíram significativamente devido à pesca excessiva. A empresa estima que, por meio de colaborações com conservacionistas e governos locais, existem agora dezenas de milhares de salmões a mais nas águas dos Estados Unidos. Menos amplamente, as práticas de regeneração colaborativa podem criar novos fluxos de receita. A fabricante de açúcar Bri tish Sugar está trabalhando com seus fornecedores para proteger e melhorar a saúde do solo. Ajudou a estabelecer a British Beet Research Organisation, uma organização sem fins lucrativos que compartilha conhecimentos sobre práticas agrícolas sustentáveis. Por meio dessa colaboração, a empresa melhorou o uso do solo e os rendimentos da beterraba sacarina, ao mesmo tempo que desenvolveu uma nova ideia de negócio para o cultivo de tomates a partir de CO2 latente produzido pelos processos de produção, o que gerou novas receitas em uma indústria que está sofrendo com o declínio dos subsídios.11 A British Sugar está agora entre os maiores produtores de tomate do Reino Unido.

10

simultaneamente,

Notas 1 Nancy M. P. Bocken, Ingrid de Pauw, Conny Bakker e Bram van der Grinten, “Product Design and Business Model Strategies for a Circular Economy,” Journal of Industrial and Production Engineering, v. 33, n. 5, 2016; Jan Konietzko, Nancy M. P. Bocken e Erik Jan Hultink, “A Tool to Analyze, Ideate and Develop Circular Innovation Ecosystems”, Sustainability, v. 12, n. 1, 2020.

JUDEBELADEILUSTRAÇÃO

POR ALESSANDRA OROFINO, MANOELA MIKLOS E MIGUEL LAGO

Mobilização Cívica em Tempos de Ameaças Existenciais

No final de junho, o governo federal come çou a pagar parcelas mensais a mais de 80 milhões de brasileiros necessitados. Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, de início disseram que o programa duraria ape nas três meses. Mas a mesma coalizão que assegurou a primeira vitória lançou uma nova campanha pedindo mais tempo e recursos. Em agosto, o programa foi estendido até dezem bro — e o Congresso já introduziu cerca de 20 projetos de lei que criariam um esquema de renda básica permanente no país.

A sociedade civil brasileira trabalhou em conjunto para assegurar renda básica para os pobres. Seu sucesso ilustra como organizações devem juntar forças para garantir direitos e exigir mudanças sociais.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 57 INSIGHTS DAS LINHAS DE PONTOFRENTE DE VISTA

Essa incrível vitória contra um governo auto ritário com uma política de austeridade fiscal estabelecida foi possibilitada por uma vibrante infraestrutura de mobilização civil, encabeçada por um pequeno grupo de atores que tiveram papéis distintos, mas complementares. Neste artigo, partimos da nossa experiência desen volvendo diferentes peças de infraestrutura de mobilização civil no Brasil. Nosso objetivo é apresentar um referencial para analisar o setor de impacto social e formular caminhos para que se torne mais resiliente diante de crises. Instalações, recursos, espaços Sugerimos pensar sobre infraestrutura de mobilização civil do modo como urbanis tas pensam sobre infraestrutura urbana e uso de terras: com o objetivo de construir instalações funcionais, recursos eficazes e abundantes e espaços inclusivos. Pre cisamos das mesmas coisas da nossa infraestrutura de mobilização civil. Noções de uma sociedade civil prós pera e organizações específicas fortes em geral são confundidas. Sem dúvida, organizações específicas têm um papel vital na produção de conhecimento, partilham de experiência e garantia de credibilidade em prol de esforços de mobilização e defesa. Mas elas são somente parte de uma infraestrutura civil funcional. Essas organizações são especificamente instalações civis — são construídas para usos específicos. Ten dem a se basear em causas e a operar em nichos. Organizações internacionais como a Human Rights Watch e o World Resources Institute são bons exemplos.

Em março de 2020, a pandemia da Covid-19 começou a se espalhar pelo Brasil. O vírus ameaçou causar rupturas sociais e eco nômicas que atingiriam com mais impacto comunidades vulneráveis. Já atormentado por racismo sistêmico, políticas autoritárias e mudanças climáticas, o Brasil entrava em um período que seria, sem dúvida, definido por uma desigualdade cada vez mais profunda. A ameaça exigia uma atitude rápida. Organi zações da sociedade civil começaram a sondar parlamentares sobre a implantação urgente de auxílios financeiros emergenciais. Contra todas as probabilidades, uma ampla frente progressista iniciou uma mobilização sem precedentes em questão de dias, o que forçou o governo brasi leiro a destinar uma renda básica a seus cidadãos mais pobres. O governo do presidente Jair Bolsonaro viu a ideia do auxílio emergencial como uma oportunidade política para agradar eleitores e apresentou uma proposta. Mas enfrentou obstáculos como a burocracia (e consequente lentidão) do programa, a insuficiência do valor proposto e o fato de os beneficiários serem apenas uma pequena parcela dos necessitados. Atores da sociedade civil tinham ideias para melhorar a situação, mas faltava se unirem em uma contraproposta. Para isso, usaram uma abordagem inédita sob o governo de Bolsonaro: as mais de 200 organizações lançaram um debate público com espaço a vozes dissidentes para avan çar em direção a um consenso. Depois de concordarem sobre o melhor programa, elas mobilizariam todos os eleitorados políticos e fariam pressão sobre os parlamentares de Brasília. Em poucas semanas, essa coalizão pode rosa liderou um esforço histórico de aliança para pressionar pela aprovação de um auxílio emergencial muito mais ambicioso que aquele inicialmente proposto pelo governo. A coalizão queria auxílio financeiro incondicional, maio res pagamentos mensais, um prazo estendido e informações mais claras sobre critérios de seleção que abarcassem um número significa tivamente maior de beneficiários. Com a ajuda de parceiros legislativos inteligentes e esforça dos, esses pedidos levaram a um projeto de lei promulgado pelo Congresso Nacional em abril de 2020.

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Dois de nós, Alessandra Orofino e Miguel Lago, fundamos a NOSSAS em 2011 para mudar políticas públicas e criar soluções para problemas comuns engajando cidadãos comuns em causas e temas que tanto são relevantes para eles como se revelam pautados em garantir e promover direitos humanos e democracia no Brasil e na América Latina. A NOSSAS também visa atrair novos públicos (jovens, em particular) para essas causas, com o objetivo maior de estabelecer con senso na sociedade (e não só nas instituições) para apoiar uma abordagem baseada em direi tos para a formulação de políticas e a defesa de valores democráticos mesmo quando governos mudam e a opinião pública oscila. A Coalizão Negra por Direitos foi lançada em novembro de 2019 como a união de mais de 150 organizações do movimento negro brasileiro. Logo se tornou um ator central no avanço da igualdade de direitos, reunindo gerações diferentes do movimento negro, de pioneiros mais velhos a jovens ativistas negros digitais, para pressionar por mudanças. O trabalho desses dois recursos civis, por outro lado, foi amplamente facilitado pelo fato de que muitas organizações que eram parte da coalizão pertenciam aos mesmos espaços civis e já tinham colaborado anteriormente.

Muitas organizações sediadas no Brasil e lideradas por brasileiros tiveram um desempe nho notável como instalações civis durante o esforço de mobilização que forçou o governo a pagar uma renda básica aos cidadãos mais pobres. Entre elas, algumas mais antigas como o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), uma organização não governamental (ONG) apartidária que por quatro décadas ampliou o entendimento público sobre orça mentos governamentais e como eles afetam as vidas das pessoas, e o Instituto Ethos, outra ONG apartidária que desde 1998 promove responsabilidade social corporativa, inclusive defendendo direitos humanos e empoderando grupos discriminados por meio de mercados de trabalho mais inclusivos; bem como organiza ções mais recentes como a Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB), lançada em 2019 para promover renda básica universal no Brasil. Contudo, uma infraestrutura de mobilização civil funcional não se resume a instalações. A sociedade civil como um todo deve trabalhar em conjunto. Coalizões devem ser instituídas. Redes devem ser montadas. A criação de coali zões e redes de sucesso, por outro lado, requer diferentes tipos de organização para coordenar todas as partes. Esses grupos desempenham o papel de recursos civis. Ao menos três aspectos distinguem recur sos civis de instalações civis. Primeiro, recursos civis tendem a ser organizações multicausais. Eles costumam priorizar ideais transversais e são muito sintonizados com o ciclo de notícias, atraindo a atenção do público e conectando-a a questões estruturalmente importantes que fun damentam eventos específicos. Segundo, recursos civis tendem a mobilizar o apoio popular para causas, atribuindo a elas maior capital político, em geral com rapidez. Terceiro, esses grupos são quase sempre novos e liderados por jovens. Como resultado, são bem posicionados para desenvolver estratégias contemporâneas, com binando inerentemente táticas online e offline. No começo de 2020, a coalizão que defendia renda básica emergencial para todos os brasilei ros dependia dos recursos civis para atrair todos em torno de uma causa comum. Em particu lar, a NOSSAS e a Coalizão Negra por Direitos serviram como recursos civis que se ligaram às instalações civis anteriormente mencionadas, mantiveram a coalizão unida, lançaram sites e táticas de campanha, mobilizaram apoio popular e coordenaram conversas com líderes influentes.

Organizações sociais civis precisam de espa ços — lugares físicos ou espaços de encontro digital — para se conectar, debater e planejar ações. Em espaços civis, os membros se tornam parte de uma mesma comunidade: constroem confiança mútua e, a partir daí, podem otimi zar tempo e recursos. A sociedade civil brasileira foi bem-suce dida em garantir renda básica emergencial em parte porque muitos dos grupos envolvidos já se conheciam de espaços civis como o Pacto pela Democracia, de que a coautora deste artigo Manoela Miklos é membro-fundadora. Desde 2015, essa rede reúne organizações da socie dade civil brasileira para defender, celebrar e aprofundar a prática democrática no Brasil. O Pacto pela Democracia dedica recursos para criar um espaço igualitário em que as partes podem conectar-se e a democracia é forta lecida. Praticamente todas as organizações envolvidas na coalizão para a renda básica foram membros dessa rede. Financiando infraestrutura cívica Uma sociedade civil eficiente se pauta numa verdadeira divisão de trabalho entre organi zações. Além disso, organizações que visam impacto social funcionam melhor quando focam uma das três funções e servem como instalações, recursos ou espaços. Contudo, há fortes incentivos financeiros em campo que moldam a estratégia organi zacional em direção à autossuficiência total. Em vez de fazer parte de uma infraestrutura vibrante, organizações procuram tornar-se bunkers autossustentáveis. Doadores costu mam investir em instalações civis e assumir que elas também vão funcionar como recursos e abrir caminho para acolher espaços civis. Essas estratégias de investimento tendem a criar distorções e ativar dinâmicas que geram competição em lugar de colaboração. Recursos de financiamento clamam por métodos específicos, e espaços de financiamento clamam por intencionalidade. Uma infraestru tura funcional de mobilização civil não pode ser criada com base em uma organização e não acontece ao acaso. Requer uma gestão cui dadosa de diferentes tipos de organização que têm papéis específicos no ecossistema geral de uma sociedade civil vibrante.

Estamos entrando em uma era de ameaças existenciais. Conforme o planeta se aquece, a democracia é desafiada e os direitos são amea çados, organizações da sociedade civil precisam focar seus esforços onde funcionam melhor — seja como instalações, recursos ou espaços — e devem colaborar estreitamente com outras. Com certeza, haverá uma necessidade maior de res postas rápidas e imediatas para desafios impre vistos. Doadores deveriam começar a usar essas lentes ao apoiar o espaço civil como um todo, engendrando métricas diferentes de sucesso para cada uma das três funções e criando os incen tivos certos para moldar um cenário vibrante de infraestrutura de mobilização civil, pronto para ser posto em prática quando o próximo desastre ocorrer. Porque vai ocorrer, e logo. n

ALESSANDRA OROFINO é cofundadora e diretora executiva da NOSSAS, uma organização sem fins lucrativos comprometida com o fortale cimento da democracia, da justiça social e da igualdade. Também é escritora, diretora e produtora de documentários, e dirige o programa de jornalismo satírico Greg News, na HBO.

MANOELA MIKLOS é membro-fundadora do Pacto pela Democracia, um espaço civil que reúne centenas de organizações brasileiras da sociedade civil. Trabalhou no Programa Latino-americano da Open Society Foundations por cinco anos, ajudando a montar seu escritório regional no Brasil, e atualmen te é parte da equipe executiva da NOSSAS. MIGUEL LAGO é cofundador da NOSSAS e diretor-executivo do Instituto de Estudos de Políticas em Saúde, organização sem fins lucrativos que tem como objetivo contribuir para o aprimoramento das políticas públicas para a saúde no Brasil. Também é professor na School of International and Public Affairs da Columbia University, onde ministra um curso sobre inovação social e tecnologia.

Um Sentido de Pertencimento A saúde pública requer um esforço mais intencional na construção da conexão social.

socialmente conectadas são lugares onde as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras, onde se sentem acolhidas e se veem representadas, e onde são motivadas e apoia das a se engajarem civicamente.

Aqueles que sentem não pertencer por causa de sua raça, etnia, identidade de gênero ou orientação sexual são especialmente sus cetíveis ao isolamento social. Essa vulnerabi lidade pode ser exacerbada por experiências como doenças de longa duração ou deficiên cias, violência doméstica, perda de um ente querido, ter de cuidar de alguém, nascimento de um bebê, realocação, encarceramento, falta de moradia ou rejeição por familiares e amigos depois de se assumir queer. Muitas vezes, os mais vulneráveis ao isolamento social também estão vulneráveis a outros problemas de Atualmente,saúde.amaioria das estratégias para combater o isolamento social se concentra em oferecer programação, educação e outros recur sos. Embora esses esforços tragam benefícios, precisamos pensar de forma mais abrangente e projetar intencionalmente nossas comuni dades para a conexão social. Comunidades

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 59 PONTO DE VISTA

Em outro exemplo, a Suécia adotou um processo chamado “orçamento para o equilíbrio de gênero”, que revelou como práticas de limpeza de neve desfavo reciam as mulheres, mais propensas a oisolamento social é um grave problema de saúde pública, com impactos equivalentes aos do tabagismo crônico ou do con sumo de álcool. Está ligado a depressão, problemas de sono, declínio cognitivo ace lerado e imunidade prejudicada, e aumenta o risco de acidente vascular cerebral, do ença cardíaca coronária e morte prematura. Pessoas que se sentem desconectadas são menos inclinadas a trabalhar coletivamente para promover o bem-estar de todos. Por outro lado, ter fortes conexões e redes sociais promove o bem-estar. Pesquisas demons tram que a conectividade pode aumentar a expectativa de vida em 50%. Pessoas mais velhas com um forte senso de pertencimento à comunidade são mais propensas a ter boa saúde, de acordo com estudos do Canadá. A pandemia da Covid-19 levou a uma série de barreiras sistêmicas à conexão social –incluindo o fechamento de negócios não essenciais, restrições a reuniões sociais, teletrabalho e distanciamento social –cujos efeitos danosos se manifestaram em muitos lugares por meio do aumento do consumo de álcool e drogas ilegais, crescimento dos relatos de solidão e depressão, e maior procura por trata mento para problemas de saúde mental. Mas o isolamento social afeta pessoas de todas as idades, estratos sociais e iden tidades desde muito antes da pandemia. Em 2018 – antes da Covid-19 – mais da metade dos adultos nos Estados Unidos relataram não ter ninguém ou apenas uma pessoa em sua vida em quem pudes sem confiar. E apenas 19% afirmaram ter uma forte conexão emocional com sua comunidade.

A conectividade social deve ser um com ponente fundamental em todas as áreas de formulação de políticas, como transporte, planejamento urbano e serviços sociais, e deve incluir abordagens que discutam in justiça social, desigualdade e trauma. Essa estratégia pode ser mais fácil de imple mentar do que muitos imaginam. A melhoria da conexão social já é comumente um subpro duto dos esforços para fortalecer a equidade e o bem-estar. Por exemplo, a cidade de San José, na Califórnia, decidiu reduzir as dispari dades no serviço de internet de banda larga.

É hora de trabalhar em todos os setores para fortalecer políticas, estruturas e normas que eliminem o isolamento, promovam a conexão dentro da comunidade e melhorem a saúde pública. Especificamente, devemos dar três passos. Três passos para maior conexão Primeiro, devemos adotar uma “visão so cial em todas as políticas” para orientar esforços dos parlamentares, organizações de transformação social, doadores e outros que trabalham em questões relacionadas.

POR RISA WILKERSON

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Uma biblioteca local tem 3.000 hot spots disponíveis para períodos de 90 dias. Outros 8.000 serão fornecidos aos alunos que precisem de conectividade de banda larga. Embora as iniciativas se concentrem no acesso à internet, a capacidade de se conectar virtualmente é importante para a socialização, como a pandemia ressal tou. A troca de histórias e experiências online pode ajudar a conectar as pessoas, criando empatia, confiança e afinidade. E bibliotecas são lugares gratuitos e abertos a todas as pessoas.

Na Dinamarca, Copenhague queria trans formar seu porto industrial abandonado em um lugar onde se pudesse aproveitar o ar livre, conviver e praticar atividades. A cidade assumiu uma série de iniciativas de desenvolvimento, como a criação de um centro comunitário flu tuante com instalações para banho e sauna. Com objetivos semelhantes em mente, várias cidades dos Estados Unidos – incluindo Atlanta e Nova York – adotaram uma prática nascida em Bogotá, Colômbia, de fechar certas ruas ao tráfego de veículos motorizados para criar espaços seguros e inclusivos para as pessoas aproveitarem atividades ao ar livre. Terceiro, a conectividade social deve ser adotada como uma norma da comunidade. A mudança de políticas ou práticas pode influen ciar normas sociais, mas promover conversas inclusivas em que as pessoas possam criar cole tivamente normas que apoiem conexões sociais tende a ser mais eficaz para eliminar práticas e políticas prejudiciais e isolantes e apoiar outras novas e inclusivas. E mais sustentáveis. Algumas cidades, por exemplo, se declara ram comunidades compassivas ou acolhedo ras, comunidades resilientes ou áreas livres de estigma. Nos Estados Unidos, um crescente número de cidades – incluindo Detroit, em Michigan, Dayton, em Ohio, e Boise, em Idaho – reconhece os benefícios econômicos e sociais dessa transformação e está tomando medidas para acolher e integrar novos moradores e ajudar a colocá-los no caminho da cidadania.

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 202260 caminhar que dirigir. Como resultado, muni cípios suecos agora limpam as vias para pedes tres e ciclistas, especialmente aquelas próximas a pontos de ônibus e escolas, antes de limpar ruas e rodovias. Esse esforço para melhorar a equidade de gênero também ajuda as mulheres e seus filhos a permanecerem conectados com suas comunidades e dá suporte em condições climáticas potencialmente severas. Esforços para lidar com os impactos de traumas e construir resiliência também forta lecem a conexão social. Pessoas que passaram por uma experiência traumática costumam se isolar, evitando ambientes e interações sociais que contribuam para o trauma. Em segundo lugar, governos devem aumen tar seus investimentos em infraestrutura social – elementos físicos da comunidade que, segundo o sociólogo Eric Klinenberg, atuam como uma via para unir as pessoas e cons truir capital social. A infraestrutura social pode incluir desde parques e bibliotecas até transporte público e corredores de comércio. Esses investimentos devem ser feitos enquanto se trabalha em todos os setores e com comu nidades para criar lugares e programas que melhor conectem as pessoas.

Investimento na comunidade Apesar dos benefícios significativos da cone xão social na saúde e na qualidade de vida, a maioria das iniciativas para melhorar o bem -estar da comunidade não a aborda intencio nalmente. No entanto, pela própria natureza desses esforços, fazê-lo não precisa ser difícil e pode muito bem melhorar seu sucesso. À medida que a conexão social se torna um ob jetivo intencional para o investimento social, será importante para financiadores, líderes governamentais e outros interessados ver os resultados que documentem mudanças no âmbito da comunidade. Enquanto isso, líderes do governo, da filan tropia, de negócios, da academia e do setor sem fins lucrativos podem começar integrando o isolamento social nas avaliações das necessi dades de saúde da comunidade para ter uma melhor compreensão do problema. Além disso, líderes podem incorporar a conexão social ao trabalho que já estão fazendo e adotar métricas de conexão social em suas políticas e programas. O Índice Canadense de Bem-Estar é um bom exemplo: ele rastreia medidas de qualidade de vida como “vitalidade da comunidade”, “engajamento democrático” e “lazer e cultura”. De forma encorajadora, nos Estados Unidos, coalizões estaduais e locais estão se formando em torno do obje tivo de reduzir o isolamento social e a soli dão e construir conexões. Exemplos incluem Massachusetts, Texas, Connecticut, Geórgia, Michigan e Califórnia. Para trazer à tona soluções realmente efetivas e inclusivas, devemos criá-las em conjunto com comunidades afetadas pelo iso lamento social. Em 2021, a Healthy Places by Design, a consultoria sem fins lucrativos que lidero, publicou o relatório Socially Connected Communities: Solutions for Social Isolation [“Comunidades Socialmente Conectadas: Solu ções para o Isolamento Social”] com apoio da Robert Wood Johnson Foundation. Ele oferece orientações detalhadas para criar mudanças lideradas pela comunidade que construam conexões sociais. Nossa pesquisa foi feita por uma rede de aprendizado sobre isolamento social de participantes de diversos lugares e organizações que compartilharam abertamente seus esforços para reduzir o isolamento social e identificaram lacunas no diálogo nacional que ressaltavam a necessidade de abordar o isolamento social de forma mais sistêmica. As lições e recomendações do relatório visam inspirar ações coletivas para resolver esse pro blemaDevemoscomplexo.reconhecer a conexão social como uma prioridade de saúde pública e como uma ferramenta de cura e reconstrução. Podemos começar deixando de pensar no isolamento social como um problema pessoal e abordar intencionalmente as raízes das suas causas nos sistemas, normas, políticas e injustiças históricas de nossas comunidades. Comuni dades socialmente conectadas são saudáveis, resilientes e cocriadas com propósito. Investir na conexão social é um investimento na saúde e no bem-estar da comunidade e, em última análise, em mais e melhores oportunidades para todos. n

RISA WILKERSON é diretora executiva da Healthy Places by Design, um grupo de consultoria sem fins lucrativos que atende organizações filantrópicas e comunitárias nos Estados Unidos.

Muitas dessas cidades agora estão trabalhando com os residentes para considerar a melhor forma de substituir esses monumentos para criar espaços públicos que sejam acolhedores e respeitosos a todos.

Ao fazer com que segmentos historicamente marginalizados da sociedade se sintam aco lhidos e incluídos, essas localidades também estão fortalecendo a conexão social. Tornar espaços públicos mais acolhedores para mais pessoas é outra maneira de mudar as normas para promover a conexão social. Em 2020, durante a agitação civil após o assassinato de George Floyd, dezenas de cida des removeram ou renomearam mais de 160 monumentos e memoriais confederados cuja presença glorificava um passado escravocrata e negros americanos marginalizados e alienados.

POR ADAM SETH LEVINE

meses, apenas sete pessoas iniciaram contato com outra na plataforma. O fracasso da research4impact (que desde então apelidamos de research4impact 1.0) ensi nou que novos relacionamentos entre pensado res diferentes exigem não apenas capacidade, motivação e oportunidade, mas também o que chamo de relacionabilidade – uma crença de que os outros vão se relacionar conosco da maneira que gostaríamos, juntamente com a crença de que também podemos nos relacio nar bem com os outros. À primeira vista, essa ideia pode soar redundante: “Relacionar-se com os outros é importante para os relacionamentos”. No entanto, o ponto-chave aqui é que a relacio nabilidade abrange uma série de elementos sobre os quais as pessoas geralmente não têm certeza quando confrontadas com a perspec tiva de interagir com estranhos. O resultado é que não sabemos direito como proceder.

Ficamos inseguros sobre como iniciar novos relacionamentos colaborativos e se os outros virão retribuir. E diante da incerteza, tende mos a nos abster de interagir por padrão. Em suma, pelas dúvidas que cercam a relacionabilidade, é muito fácil que estranhos permaneçam estranhos. Quando entendermos melhor o que é relacionabilidade e por que as pessoas costumam ter tanta incerteza sobre ela, pesquisadores, profissionais e formulado res de políticas podem usar essas ideias para desencadear novas conexões. Uma barreira esquecida Para entender melhor por que o research4im pact 1.0 falhou, entrei em contato com deze nas de pessoas que criaram perfis, mas não iniciaram contato com ninguém na rede. Pedi a elas que compartilhassem quaisquer fontes de hesitação que estivessem vivenciando. Todas que falaram comigo concordaram que gostariam de se conectar a outras pessoas na rede. No entanto, também sentiram dúvidas sobre como iriam se relacionar com elas. Elas fizeram perguntas e expressaram preocupações que as levaram a hesitar ao pensar em entrar em contato, como: será que a outra pessoa realmente quer interagir comigo? A outra pes soa vai valorizar meu conhecimento e minha experiência sobre o assunto? Ela vai achar que eu valorizo a dela? Como devo começar a con versa? O que é apropriado ou não dizer? Será que a outra pessoa vai respeitar meu tempo? Que tipos de expectativa terá? Esses eram os elementos da rela cionabilidade no trabalho que impediam as pessoas de se envolverem ativamente. A última pergunta sobre expectativas merece ser elaborada. Ela ressalta como as pessoas querem novos relacionamen tos colaborativos por razões diferentes. Às vezes, o objetivo é ampliar sua base de conhecimento e compreensão do pro blema em que estão trabalhando, mas ao mesmo tempo permanecendo tomadoras de decisão autônomas. Por exemplo, ati vistas ambientais e pesquisadores climá ticos podem valorizar a oportunidade de compartilhar conhecimento sobre as Criando Relacionamentos Colaborativos

OBERLANDERJOHNDEILUSTRAÇÃO

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 61 PONTO DE VISTA

Em 2017, Don Green, Jake Bowers e eu lançamos o research4im pact, uma plataforma online no estilo LinkedIn para aproximar pesquisadores, profissionais de organizações sem fins lucrativos e parlamentares. Ali, os participantes criavam seu perfil e depois faziam suas conexões Cada um de nós já tinha uma vasta expe riência em se conectar com pessoas em pes quisa, prática e política, e via grande valor nelas. Sabíamos que pessoas dessas diferentes redes trazem conhecimento, sabedoria e experiência direta únicos para ajudar a entender e resolver muitos problemas de interesse mútuo, como desacelerar as mudanças climáticas, acabar com a pobreza, melhorar a educação e aumentar o engajamento dos eleitores. No entanto, muitas vezes elas permaneciam desconectadas. Ao mesmo tempo, colegas nos perguntavam sobre como promover novas relações colaborativas próprias para ampliar a base de conhe cimento e se envolver em parcerias de pesquisa. Nosso objetivo era construir algo que ajudasse. Nos primeiros dez meses, 388 pes soas criaram perfis onde falaram de si mesmas, de seu trabalho e assuntos de maior interesse. Todas superaram mui tas das principais barreiras a qualquer nova atividade voluntária: embora fos sem estranhas umas às outras, aprovei taram a oportunidade e demonstraram sua capacidade e motivação para se envolver. Satisfeitos com esse sucesso aparente, tínhamos todos os motivos para esperar que elas iniciassem uma enxurrada de novas conexões. Isso não aconteceu. Durante esses primeiros dez

Frequentemente, colaboradores em potencial se concentram no “por quê” em vez de no “como”. Ofereço uma abordagem em três frentes para superar barreiras à interação.

condições de inundação do bairro e a pesquisa sobre tendências de inundação em todo o país. Mesmo uma única conversa nesse sentido pode influenciar muito o comportamento. Outras vezes, o objetivo das relações colaborativas pode ser algo mais formal, como projetos que envolvem propriedade compartilhada, autori dade de tomada de decisão e responsabilidade – esforços como os de vizinhos que organizam uma limpeza juntos, oficiais de saúde pública e líderes comunitários que realizam conjunta mente uma campanha de vacinação, ou pesqui sadores e estrategistas de votação em parceria para estudar meios de aumentar a participação dos eleitores. De qualquer forma, se potenciais colaboradores tiverem expectativas pouco claras desde o início, pode ocorrer a inércia. Abordagem em três frentes Então, como superamos esse impasse? Eu defendo uma abordagem em três frentes: devemos conscientizar as pessoas sobre o que é a relacionabilidade e por que ela é importante; incentivar os potenciais cola boradores a comunicar explicitamente não só por que eles querem se conectar, mas também como eles vão se relacionar com os outros; e por fim devemos criar e apoiar líderes e instituições que possam reduzir a incerteza sobre a relacionabilidade entre potenciais colaboradores. Para conscientizar sobre a importância da relacionabilidade, devemos nomeá-la e descrevê -la. Por exemplo, como líder da research4impact, sou frequentemente questionado sobre a melhor maneira de formar novos relacionamentos cola borativos para encarar desafios cívicos. Muitas vezes, pessoas que fazem perguntas expressam -se em termos de por que desejam se conectar: “Temos visto muito mais inundações em nossa comunidade, portanto preciso conversar com alguém que tenha um conhecimento único sobre inundações que eu não tenho”. Sempre respondo enfatizando a importância da rela cionabilidade, talvez dizendo: “Você também precisa de alguém que se sinta à vontade para compartilhar o que sabe e valorizar o conheci mento, a sabedoria e a experiência direta que você lhe oferece”. Isso sempre soa incomum para as pessoas quando falo pela primeira vez, mas é porque se afasta de como normalmente descrevemos o que precisamos.

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Considere os resultados de um experimento de campo que conduzi com uma grande asso ciação cívica em 2019. Enviamos e-mails para 456 dos seus líderes nos Estados Unidos, ofere cendo-nos para conectá-los a um pesquisador para discutir pesquisas sobre voluntariado que ajudariam a enfrentar os desafios deles no tra balho. Alguns destinatários foram designados aleatoriamente para receber uma mensagem padrão focada no por quê. (Ela reconhecia que muitos líderes de grupo estavam lutando para recrutar voluntários comprometidos e ofere cia uma discussão com um pesquisador para falar sobre técnicas baseadas em evidências para aumentar o comprometimento volun tário.) Outros recebiam a mesma mensagem padrão, junto com um texto adicional que explicitamente comunicava a relacionabilidade ao mencionar como o pesquisador se esforça ria para interagir com eles durante a troca. A mensagem também dizia que esse pesquisador reconhecia que líderes de grupo tinham pouco tempo disponível e, por isso, compartilhariam eficientemente o que sabiam. E pontuava que o pesquisador valorizava sua experiência e estava muito interessado em seu trabalho e queria aprender sobre sua organização. O resultado? Adicionar a linguagem relacional mais que dobrou a taxa de resposta ao e-mail, o que levou a duas vezes mais novos relacionamen tos colaborativos e, como consequência, muitos novos voluntários comprometidos. A terceira frente é criar e apoiar líderes e instituições que possam reduzir a incerteza sobre a relacionabilidade. Compatibilizadores, líderes organizacionais e facilitadores podem desempenhar esse papel. Confirmamos esse ponto com o research4impact. Depois das minhas entrevistas, lançamos uma abordagem mais prática de compatibilidade em 2018, que se tornou o research4impact 2.0.

Projetamos nosso método de compatibili dade baseado em evidências, chamado Rese arch Impact Through Matchmaking (RITM) [“Impacto de pesquisa por meio de compatibi lidade”], para conectar vários pensadores com preocupações compartilhadas sobre problemas sociais, identificando explicitamente sua sobre posição essencial e estabelecendo relaciona bilidade. O RITM empregou várias técnicas, incluindo o uso de “atribuição de papéis” para comunicar o conhecimento, a sabedoria e a vivência única relativos a tarefas de cada pessoa; descrevendo a troca como uma opor tunidade de aprendizado mutuamente benéfica (para estimular uma mentalidade colaborativa entre todos os participantes); e reafirmando sucintamente o objetivo para que as expecta tivas fossem de conhecimento comum.

Como parte do projeto, também condu zimos divulgação para despertar o interesse de pessoas que podem ter pouca experiência anterior com relacionamentos colaborativos entreOferecersetores.explicitamente compatibilização prática provou ser um sucesso. Desde 2018, o research4impact 2.0 criou 308 novos relacio namentos colaborativos. Em conjunto, esta abordagem em três frentes se concentra na incerteza sobre a relacionabili dade como uma barreira importante que deve ser reconhecida e superada. Ela chama nossa atenção para os principais problemas que possí veis colaboradores enfrentam como eles os veem Todas essas práticas ajudam a fortalecer uma cultura de conexão para encarar problemas prementes em nossas comunidades. n

ADAM SETH LEVINE é professor associado de Política e Gestão de Saúde da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e presidente da research4impact.

Incentivar potenciais colaboradores a comu nicar explicitamente como vão se relacionar com os outros pode parecer um ponto óbvio – é claro que potenciais colaboradores devem procurar ser relacionais. No entanto, como no ponto anterior, muitas vezes ignoramos a relacionabilidade quando nos comunicamos com os outros, em parte por causa de uma característica comum da cognição social. Ten demos a avaliar nossas ações interpessoais principalmente em termos de competência (“Estou compartilhando efetivamente o que sei?”), em vez de pensar se estamos respon dendo às necessidades da pessoa com quem estamos falando (“A outra pessoa sabe que valorizo sua experiência?”). Em outras pala vras, nem sempre declaramos como seremos colaborativos. No entanto, quando objetivamos de modo explícito superar as preocupações de relacionabilidade, é mais provável que surjam novos relacionamentos colaborativos.

MADAMDEILUSTRAÇÃOcCAULEY

DANIELA BLEI é historiadora, escritora e editora de livros acadêmicos. Seus escritos podem ser encontrados em Eladaniela-blei.com/writing.tuítaesporadicamente em: @tothelastpage.

O primeiro estudo, base ado em uma parceria com a LeanIn.org, organização de liderança feminina cofundada

pela COO da Meta, Sheryl San dberg, examinou as respostas de uma amostra de prováveis eleitores democratas. Os par ticipantes responderam a duas perguntas: “Você acha que será mais difícil ou mais fácil para uma mulher vencer as eleições de 2020 contra o presidente Trump, em comparação com um homem?” e “Quão pronta você acha que a maioria dos americanos está para uma pre sidente mulher?”. Eles também apontaram sua “preferência pessoal” em uma lista de candi datos mais votados que incluía seis homens e quatro mulhe res. Os pesquisadores confir maram sua hipótese: muitos eleitores tiveram a percepção de que candidatas eram menos elegíveis do que homens, o que se tornou uma profecia autor realizável. O resultado foi a “mudança de gênero” ou o voto “por uma pessoa de gênero diferente do gênero da pessoa preferida”, geralmente para um candidato homem no lugar de uma mulher. O segundo estudo coletou convicções de elegibilidade sobre homens e mulheres. Os partici pantes responderam a pergun tas como “Quanto a maioria dos americanos gostaria de ver um homem ou uma mulher se tor nar presidente?” e “Se no final desse Joe Biden contra Eliza beth Warren, quem teria mais chances de vencer Trump?” Quando as per guntas foram ajustadas e a elegibilidade tornou-se mais relevante, as inten ções de apoiar uma candi data diminuíram. Os três estudos subsequen tes analisaram o que seria necessário para combater com sucesso o viés pragmático. Sim plesmente informar que os eleitores estavam prontos para eleger candidatas não era sufi ciente para abalar suas suposi ções sobre as ações dos outros, descobriram os pesquisadores. Em vez disso, eleitores queriam evidências de que candidatas venceriam na mesma proporção que os homens. Esses estudos, controlados por gênero, idade, raça e nível de escolaridade, demonstraram que interven ções eficazes — oferecendo aos eleitores provas das vitó rias eleitorais das mulheres — aumentaram as intenções deles de apoiar todas as mulheres, e não apenas uma determinada candidata à presidência. “Ao contrário de outras eleições”, diz Corbett, “como tínhamos quatro mulheres, pudemos analisar padrões por gênero, separados de mui tos outros atributos.” Os pesquisadores de Stanford puderam analisar as ideias dos eleitores sobre gênero, m 2020, pelamulheresquatrocompetiamindicaçãopre sidencial dos Democratas nos Estados Unidos ao lado de can didatos homens. Conforme as eleições primárias avançavam e a corrida afunilava, as pes quisas mostraram que, para muitos eleitores democratas, elegibilidade importava mais do que posições políticas ou ideias. Para eles, escolher um candi dato significava, primeiro, deci dir quem tinha maiores proba bilidades de derrotar Donald Trump nas eleições gerais. Pesando as perspectivas para as senadoras Elizabeth Warren, Kamala Harris, Amy Klobuchar e Kirsten Gillibrand junto a outros candidatos do sexo mas culino, eleitores e especialistas se perguntaram se uma mulher poderia ter apoio suficiente para se eleger presidente dos Estados Unidos. Para investigar a relação entre gênero e convicção de elegibilidade, ou percepções populares sobre as chances de vitória de um candidato, Christianne Corbett e Jan G. Voelkel, ambos doutorandos no Departamento de Socio logia da Stanford University, uniram-se a Marianne Cooper, socióloga no Stanford VMware Women’s Leadership Innova tion Lab, e Robb Willer, pro fessor de sociologia em Stan ford. O grupo conduziu seis experimentos durante as pri márias presidenciais de 2020 ViésGOVERNOde Elegibilidade Contra Candidatas do Sexo Feminino POR DANIELA BLEI

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 63 DESTAQUES DE PUBLICAÇÕES PESQUISAACADÊMICAS

do partido Democrata que se concentraram em como o “viés pragmático”, uma forma de pensamento grupal, influencia as ações dos eleitores americanos e os resultados das elei ções no país. Em um novo artigo comparti lhando sua pesquisa, os autores afirmam que ele desempenha um papel importante, mas corrigível, que impede eleitores de apoiar can didatas a quem eles de outra forma poderiam favorecer. Definido como “uma ten dência a não apoiar membros de grupos para os quais o sucesso é percebido como difí cil ou impossível de alcançar”, o viés pragmático refere-se à percepção de um eleitor de que apoiar uma candidata seria inú til. Apontando para o precon ceito de gênero, a cobertura machista da mídia e os altos padrões pelos quais as can didatas são julgadas, muitos eleitores democratas julgaram que uma mulher não pode ria ter a indicação do partido. “Mesmo entre pessoas que não têm preconceito de gênero, e até entre aqueles que preferem líderes mulheres”, diz Corbett, “as ideias e suposições que eles têm sobre o que os outros estão pensando podem minar seu apoio a uma candidata.”

64 StanfordPESQUISASocialInnovationReview Brasil | Setembro de 2022

POR DANIELA BLEI Steven Gray, profes sor de administra ção da University of Texas, estuda equipes desde a graduação. Em seu trabalho sobre como equipes fundadoras tomam decisões importantes sobre seus negócios recém-cria dos, Gray se concentra no papel da diversidade do conhecimento — a variedade de informações, perspectivas e compreensão entre os seus membros. Embora pesquisadores de gestão é provável que a hierarquia suprima as vozes de alguns e amplifique as de outros”, diz Gray. “A crença predominante é que equipes diversificadas devem minimizar a hierar quia para garantir que todos compartilhem seus pontos de vista.” Mas a falta de hierarquia pode ser igualmente prejudicial, porque equipes diversificadas podem ter que lutar para che gar a soluções coerentes para os problemas. “É aí que a hie rarquia pode desempenhar um papel mais funcional em equi pes diversificadas, ajudando-as a considerar entre argumentos conflitantes sobre qual decisão tomar”, diz Gray. Para entender quando os benefícios da hierarquia supe ram os prejuízos, outra variável foi inserida na análise: a flui dez da hierarquia de status, ou o quanto ela muda ao longo do tempo. Depois de interpretar dados quantitativos coletados pelos alunos de MBA que visi taram as equipes no local, os pesquisadores constataram que uma hierarquia fluida ou dinâ mica elevava novas perspectivas à medida que as tarefas evolu íam. Uma hierarquia fluida faci lita o alinhamento de demandas de tarefas com a experiência dos membros do grupo, conclu íram, permitindo que a equipe se adapte quando novos proble masPorsurgem.outro lado, uma hierar quia estável ou fixa que pouco mudou ao longo do tempo — devido a “papéis estabelecidos ou estruturas de autoridade” impostas de fora, normas insti tucionais ou histórico comparti lhado da equipe — produzia um melhor funcionamento quando a equipe era homogênea. Em casos de conhecimentos similares entre os membros, uma hierar quia instável tendia a promover o comportamento competitivo e a politicagem, à medida que uns procuravam obter vantagem sobre os outros. Em equipes tidas como mais estáveis e de conhecimento menos diversifi cado, ocorreram mais manobras e manipulações, prejudicando o desempenho do “Costumamosgrupo.pensar em equipes em termos de reunir as pessoas certas para traba lhar em uma tarefa”, diz Gray. “Nosso trabalho destaca os pro cessos envolvidos na forma de executar a tarefa em conjunto. As equipes se beneficiam da mudança dinâmica de influ ência de seus membros com a experiência mais relevante para atender aos requisitos do pro jeto em desenvolvimento.” Ao abordá-las como entidades dinâ micas em vez de estáticas, os pesquisadores sugerem que criar um ambiente ou conjunto de normas que respondam a novos desafios e demandas em cons tante mudança é fundamental para que um time prospere. A diversidade de conheci mento por si só pode não aju dar uma equipe a entender como aproveitar ao máximo suas diferenças informacio nais. “Essas descobertas apon tam para avanços importantes na compreensão de como as convicções — neste caso, cren ças sobre a hierarquia de uma equipe — afetam o engajamento das pessoas nos grupos de tra balho”, diz Kathleen Sutcliffe, professora da Johns Hopkins Bloomberg. “Esse estudo é cria tivo e abre novos caminhos para independentemente das quali dades ou políticas de um can didato. E testaram estratégias que ajudariam as candidatas a vencer, apesar da difusão do viés“Estepragmático.trabalho identifica um fator devastador, mas extrema mente importante, que impede que as mulheres ascendam aos níveis mais altos de cargos polí ticos”, diz Lindsay Owens, dire tora executiva da Groundwork Collaborative, organização de política econômica progres sista, e ex-assessora de Eliza beth Warren. “Comunicadores políticos e candidatas deveriam observar atentamente as reco mendações dos autores para ultrapassar esse viés se quise rem melhorar suas chances de sucesso Christianneeleitoral.”Corbett, Jan G. Voelkel, Marianne Cooper e Robb Willer, “Pragmatic Bias Impedes Women’s Access to Political Leadership”, Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 199, n. 6, 2022. concordem há muito tempo que a diversidade é necessária para um desempenho de alto nível, perspectivas diferentes numa equipe também podem trazer atrito ao seu funcionamento. Para compreender melhor como dinâmicas de grupos de trabalho são moldadas pela diversidade de conhecimento, Gray queria se concentrar no papel da hierarquia de status, ou “diferenças entre membros individuais na proeminência, respeito e deferência concedidos pela equipe”. Para isso, juntou -se a seu orientador de douto rado, J. Stuart Bunderson, pro fessor de ética organizacional e governança na Washington University em St. Louis, Gerben S. van der Vegt e Floor Rink, professores de comportamento organizacional na Universidade de Groningen, na Holanda, e Yeliz Gedik, professor do Depar tamento de Administração de Empresas da Universidade Firat da Turquia. Usando uma grande amostra composta por equipes de trabalho existentes compila das como parte de uma tese de MBA na Holanda, os pesquisa dores investigaram se a hierar quia de status fortalece os bene fícios da diversidade ou acentua seus custos. Coletando e anali sando dados de 156 equipes em diferentes setores — 110 organi zações, incluindo empresas tra dicionais, organizações sem fins lucrativos e ONGs —, o grupo descobriu que os efeitos da hie rarquia na diversidade são mais complexos do que se pensava. A sabedoria convencio nal acredita que a hierarquia é prejudicial à diversidade. “Se tivermos muitas perspecti vas diferentes em uma equipe,

DesempenhoHierarquiaDiversidade,COLABORAÇÃOe

O estudo descobriu que existe um abismo entre elites e cidadãos sobre a legitimidade das organizações internacionais, que se mantém em todos os diferentes estratos da elite, em todos os organismos estudados e em quatro dos cinco países, com as Filipinas sendo um ponto fora da curva. E conclui ainda que quatro características individuais geram as disparidades: status socioeconômico, valores políticos, identificação geográfica e confiança institucional nacional. As “circunstâncias contextuais” em cada país levaram a um efeito diferente para cada um desses fatores.Asituação política e social em cada um, por exemplo, tem nuances, por isso é necessário considerar a divisão entre elite e outros cidadãos no local onde ocorre, diz Dellmuth. Isso é particularmente importante em um mundo onde o populismo se tornou mais difundido e está ganhando vitórias nas urnas; vários países da pesquisa elegeram líderes populistas ou nacionalistas. Aqueles que trabalham no fortalecimento de organizações internacionais poderiam usar a pesquisa para ajudar a iniciar uma conversa sobre o abismo de legitimidade, em vez de deixar o campo do discurso para políticos populistas, afirma Dellmuth. Ela observa que embora a discrepância entre a confiança da elite e dos cidadãos nos organismos internacionais apareça nos cinco países pesquisados, um grande percentual de pessoas nesses grupos ainda acredita nas “Legitimidadeorganizações.éum tópico muito importante, especialmente para organizações internacionais”, diz a pesquisadora. “Se querem ter sucesso na divulgação de normas e convidar governos a apresentarem soluções políticas ambiciosas, elas precisam não só de legitimidade mas que o público em geral as valorize.”

Steven M. Gray, J. Stuart Bunderson, Gerben S. van der Vegt, Floor Rink e Yeliz Gedik, “Leveraging Knowledge Diversity in Hierarchically Differentiated Teams: The Critical Role of Hierarchy Stability”, Academy of Management Journal, a ser publicado.

CHANA R. SCHOENBERGER é jornalista e vive na cidade de Nova York. Escreve sobre negócios, finanças e pesquisa acadêmica. Ela pode ser encontrada no Twitter: @cschoenberger. entender por que simplesmente compor um time diversificado pode não ter os efeitos esperados. Esse é um acréscimo indispensável à pesquisa sobre como incentivar contribuições dos membros nas equipes.”

O artigo traz descobertas importantes e outras questões sobre por que as classes governantes não entendem o desprezo do resto da população pelas organizações internacionais e seu trabalho, diz Stefanie Walter, da Universidade de Zurique, Suíça. “A descoberta de que elites e indivíduos diferem consistentemente em quão legítimas consideram as organizações internacionais, apesar de todas as diferenças, aponta para um desafio sistemático para esses organismos”, afirma Walter. “Este artigo impulsiona a pesquisa sobre a reação contra a globalização do ponto de vista metodológico e teórico, pois fornece uma nova perspectiva sobre por que as elites podem

Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 65

POR CHANA SCHOENBERGERR. esde a GuerraSegundaMundial, organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Comércio (OMC) têm desempenhado um importante papel de coordenação em todos os continentes. Mas observadores de política externa notaram que essas entidades lutam cada vez mais para influenciar a geopolítica e manter a ordem, especialmente quando países e blocos regionais disputam o controle em uma turbulenta era pós-Guerra Fria. Um fator potencial é a falta de apoio a tais organizações existente entre os públicos nacionais e as elites. Enquanto em muitos países a classe governante anseia por trabalhar com essas agências, cidadãos confiam cada vez menos nelas. Demagogos populistas conseguiram explorar essa desconfiança para cortar financiamento à cooperação internacional e encorajar seus eleitores a menosprezar essas organizações junto com todo o projeto de globalismo. Um grupo de pesquisadores europeus se propôs a entender por que o apoio aos organismos internacionais é discrepante entre as elites e a sociedade em geral. Seu novo artigo, “The Elite-Citizen Gap in International Organization Legitimacy”, confirma que o abismo é um problema no mundo todo. “Nossas descobertas sugerem que diferenças profundas entre as elites e a população em geral podem apresentar grandes desafios para a cooperação internacional democrática e eficaz.”

MADAMDEILUSTRAÇÃOcCAULEY

Os professores Lisa Dellmuth e Jonas Tallberg, da Universidade de Estocolmo, Suécia, Jan Aart Scholte, da Universidade de Leiden, e delhantestempo,7),nocaramnizações,comunsMundialdialMundial,nal,Fundobunalsenasil,ramambassidadeVerhaegen,SoetkindaUniver-deMaastricht,naHolanda,analisa-comoaspessoasnoBra-naAlemanha,nasFilipinas,RússiaenosEstadosUnidossentiamemrelaçãoaoTri-PenalInternacional,aoMonetárioInternacio-àsNaçõesUnidas,aoBancoàOrganizaçãoMun-daSaúdeeàOrganizaçãodoComércio.Paraentenderoquepessoaspensamsobreasorga-ospesquisadorescolo-perguntaspersonalizadasWorldValuesSurvey(WVS-entre2017a2019.Aomesmofizeramquestõesseme-aosrespondentesdaelitecadaumdoscincopaíses.

ORGANIZAÇÕES SEM FINS LUCRATIVOS E ONGS Elites, Cidadãos e InternacionaisOrganizações

.

66 StanfordPESQUISASocialInnovationReview Brasil | Setembro de 2022

POR CHANA SCHOENBERGERR. ilegal discriminar ao contratar. Então, por que isso ainda acon tece com tanta frequência? Um novo artigo de pesquisadores da Stern School of Business da New York University analisa a interação entre viés e percep ções de mérito para entender o motivo. Pessoas que procuram contratar o melhor candidato tendem a focar as qualidades que consideram relevantes para o trabalho, mesmo quando elas podem não estar sob o controle do candidato e podem ser pro tegidasSegundolegalmente.eles,adiscriminação é reforçada mesmo por filosofias de mérito fundamentais: “As pes soas podem discriminar porque veem essas ações como justas”. Teodora K. Tomova Shakur, doutoranda em administração, e L. Taylor Phillips, professor de administração e organizações, analisaram dois fatores que fun damentam as percepções de mérito: controle e relevância. Eles teorizaram que, quando gerentes de recursos humanos estão decidindo, eles classifi cam os atributos dos candidatos com base em se podem con trolar a característica (seu peso pode ser visto como controlá vel, enquanto sua cor não), bem como se a característica parece ter alguma influência na capa cidade de executar o trabalho ou tarefa em questão (ter filhos pequenos pode ser tido como relevante, enquanto sua religião não). Segundo eles, a relevân cia pode ser considerada mais importante em uma sociedade meritocrática e, portanto, ter mais“Asinfluência.pessoaspodem perceber atributos demográficos relevan tes como justos para serem usa dos durante a seleção, mesmo que sejam percebidos como incontroláveis, porque a rele vância prioriza custos e benefí cios de desempenho”, escrevem. “Seguindo essa lógica, entende mos que as pessoas avaliam a relevância percebida mais for temente do que o controle per cebido ao julgar se é justo usar atributos demográficos.” Essa tendência pode levar à discri minação se forem favorecidas características baseadas em relevância que não são controlá veis e que podem ser protegidas legalmente, como idade, defici ência, gravidez ou responsabili dade pelo cuidado de alguém. Os autores examinaram como os participantes avaliaram legalmente como altamente relevantes para a maioria dos empregos, acreditando assim que a discriminação com base nelas era justa”, diz ela. O artigo constata que mesmo os participantes que entendem a lei de discrimina ção sentem que é justo favore cer atributos que consideram relevantes, ainda que essas características estejam além do controle do candidato e sejam protegidas por lei. “Embora se possa pensar que indivíduos experientes sabem como detec tar seus preconceitos e contro lá-los, descobrimos que funcio nários que tomam decisões de contratação em geral justificam suas decisões consequências”.superarnaistiçamentaismuitorescriminação.àacrescentamasdaajudaempessoas“IssoUniversityfazê-lo,sarcontinuamparadoxo:discriminatórias.”potencialmenteApesquisaapontaparaumporqueaspessoasadiscriminarapedeacreditaremqueéerradodizFelixDanbold,daCollegeLondon.mostracomoéfácilastransformarem‘injusto’‘justo’emsuasmenteseaexplicarapersistênciadiscriminaçãoapesardenoreleisclarascontraela.”SegundoDanbold,“oartigonuancesimportantespesquisasobrejustiçaedisErevelaquefatoderelevânciaecontroleháentendidoscomofundaaosjulgamentosdejusnãosãomeramenteadicioequeosprimeirospodemesteúltimocomsérias n Teodora K. Tomova Shakur e L. Taylor Phillips, “What Counts as Discrimination? How Principles of Merit Shape Fairness of Demographic Decisions”, Journal of Personality and Social Psychology, 13 de janeiro 2022 (primeira publicação responder às demandas dos cidadãos por mais legi timidade [dos

online). não

n Lisa Dellmuth, Jan Aart Scholte, Jonas Tallberg e Soetkin Verhaegen, “The EliteCitizen Gap in International Organization Legitimacy”, American Political Science Review , v. 116, n. 1, 2022, p. 283-300

cracianacionaisafirmamcussão“Nãoentenderçãocional,contribuicontínuointernacionais].”organismosArespostaéumdiálogosobrecomocadapaísparaaordeminternadizDellmuth.“Asoluésempreconversaretentarumaooutro”,dizela.podemosdeixaressadisparaospopulistasquequeorganizaçõesinterenfraquecemademoeavontadedopovo.”

DIREITOS HUMANOS

de

A MeritocraciaEncontraDiscriminaçãoa

15 atributos: “idade, a universi dade cursada, responsabilidades de cuidado, deficiência, nível educacional, origem familiar (ou seja, sobrenome), gênero, nacionalidade, conexões pesso ais, atratividade física, afiliação política, raça, crenças religio sas, orientação sexual ou sta tus socioeconômico”. Os expe rimentos mostraram como as pessoas confrontadas com deci sões de contratação pensavam sobre se e por quê contratar ou não candidatos. “Descobrimos que princípios de mérito levam pessoas a acreditar que é justo usar alguns atributos demo gráficos protegidos legalmente, permitindo que a discriminação persista”, escrevem os autores. Essa pesquisa decorre do interesse de Shakur no que ela chama de “favoritismo de rede”, a tendência a práticas discriminatórias como “nepo tismo, compadrio e referências de funcionários” de conexões anteriores. Este estudo vai além das ideias de simples preferên cia para explorar o que acon tece quando as pessoas sabem que não devem discriminar, mas o fazem mesmo assim. “A revelação principal do artigo está na ideia de que as pessoas usam princípios nobres como a meritocracia para puri ficar suas preferências egoístas e ter comportamentos discrimi natórios”, diz Shakur. Os participantes basicamente criaram suas próprias regras enquanto escolhiam quais atri butos influenciariam a capaci dade dos candidatos de realizar um trabalho e, depois, usavam -nas para orientar seu pensa mento. “As pessoas percebiam essas características protegidas

67 Entusiasta do investimento de impacto, Sir Ronald Cohen tem trabalhado incansavelmente nas duas últimas décadas para fazer o tema avançar entre investidores, grandes corporações, governos e organizações filantrópicas. Um novo modelo de capitalismo para gerar mudanças verdadeiras no mundo é o subtítulo de seu audacioso livro. Pioneiro do venture capital e do private equity nos anos 1980, Cohen mobilizou fortunas – e, no processo, fez a sua própria – para apoiar empreendedores do então nascente setor de tecnologias da informação e comunicação no Vale do Silício. Embora hoje associado a cifras de bilhões de dólares, esse movimento começou com alunos das melhores universidades americanas e pessoas dispostas a apoiá-los com recursos financeiros. Graças a sua proeminência no desenvolvimento desse mercado, Cohen foi convidado pelo governo britânico em 2002 para liderar uma força-tarefa que se debruçou sobre uma questão espinhosa: como direcionar recursos privados para encarar os desafios sociais que o país enfrenta? Desde então sua influência e liderança se expandiram para mais de 30 países que compõem o Global Steering Group for Impact Investment, mobilizando governos, setor privado e organizações da sociedade civil para promover o investimento de impacto e os negócios de impacto social e ambiental. Para criar sua visão de "revolução de impacto'', Cohen recorre a elementos que lhe são familiares: mercado financeiro, risco e lucros. Ele ressalta que vivemos o início de mais uma revolução no sistema capitalista, que estaria apoiada em três pilares: a transformação do binômio risco-retorno no trinômio risco-retorno-impacto; os mecanismos de pagamento por resultados; e o amadurecimento de métricas de impacto comparáveis e amplamente aplicáveis nos moldes já existentes para facilitar a contabilidade financeira. Para Cohen, essas medidas permitiriam aumentar o retorno financeiro e o impacto positivo sem alterar o risco.

O modelo mental subjacente à reflexão de Cohen surgiu nos anos 1950, quando o mercado financeiro viveu uma revolução a partir da teoria de Harry Markowitz. Seu artigo de 1952 apresentou uma definição clara e operacionalizável de risco e demonstrou matematicamente que a forma mais eficiente de maximizar os retornos financeiros dos investimentos é diversificação de portfólio. Ao ganhar corpo, essa visão alimentou o apetite de investidores por produtos de maior risco e viabilizou o surgimento dos mercados de venture capital e private equity que catapultaram a carreira de Cohen. Depois disso, foi a vez da revolução das tecnologias da informação e comunicação, quando jovens brilhantes desenvolveram e utilizaram tecnologias nascentes para criar produtos que revolucionaram mercados estabelecidos e até criaram outros novos, de computadores pessoais e software a smartphones e redes sociais. A revolução tecnológica e a revolução financeira descritas por Cohen criaram as condições para a globalização dos anos 1990. Se, de um lado, elas hoje permitiram mais investimentos em países emergentes e tiraram milhões de pessoas da pobreza, de outro intensificaram a concentração de renda e riqueza em âmbito global e, ao aumentarem a mobilidade internacional de grandes empresas e fortunas, reduziram o poder de arrecadação dos governos. Nesse contexto surgem os heróis do livro: os millennials inconformados com o paradigma de ganhar dinheiro com atividades nocivas à sociedade e ao planeta durante sua vida profissional e depois doar parte desses recursos para remediar os danos causados. Essa geração que nos próximos 20 anos herdará 40% das fortunas bilionárias do planeta busca alinhar seu consumo e seus investimentos à resolução de problemas sociais e ambientais. Se o argumento econômico não bastar para convencer o leitor, Cohen lembra que também os governos estão mudando, e existe o risco de novos impostos e regulamentações dificultarem a vida de empresas e investidores desatentos ao impacto que geram. Para aumentar o fluxo de recursos para as causas socioambientais na medida exigida pelos desafios, é preciso criar produtos financeiros focados em impacto para sensibilizar o bolso dos investidores. O autor a seguir fala dos contratos de impacto social (social impact bonds ou SIBs) e dos contratos de impacto destinados ao desenvolvimento (development impact bonds ou DIBs). Todos eles são arranjos entre quatro partes: investidor, organização executora, auditor e governo. O investidor aloca recursos de saída

Um Novo Modelo de Capitalismo Impacto, de Sir Ronald Cohen, mostra que o alinhamento do setor público com o setor privado pode mobilizar capital e promover inovações para solucionar questões ambientais e sociais.

POR SAMIR HAMRA E GRAZIELLA COMINI

68 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 LIVROS para financiar determinada intervenção em um problema social; a organização execu tora, que pode ser um negócio de impacto social ou uma organização da sociedade civil, executa a intervenção proposta; seus resulta dos serão verificados pelo auditor. O governo (no caso dos SIBs) ou as organizações volta das para desenvolvimento internacional (no caso dos DIBs) remuneram o investidor com uma taxa previamente acordada se as metas foremSegundoatingidas.oautor, essa dinâmica, que é o cerne da revolução de impacto, beneficia todas as partes. Os governos usam seus recursos de forma mais eficiente: remune ram apenas mediante resultados. Os investi dores, que podem ter interesses filantrópicos ou de retornos financeiros, apoiam as ino vações destinadas à solução de problemas sociais e, se tiverem êxito, serão remunera dos. As organizações executoras passam a contar com novas formas de financiamento, mais abertas à inovação. É o pagamento por resultados, visto por Cohen como a principal contribuição para a revolução de impacto. Essa prática muda radicalmente a lógica de provisão de serviços públicos pelos governos e abre espaço para mais inovação, além de permitir a alocação sinérgica de recursos públicos e recursos privados. As métricas de impacto social e ambien tal, estabelecidas à luz dos padrões já exis tentes para a contabilidade financeira das empresas e válidas para os negócios de todos os tipos, são o terceiro pilar dessa revolução. Inspirado pelos GAAPs ( generally accepted accounting principles ou princípios de contabilidade amplamente aceitos), o autor propõe o desenvolvimento de um conjunto de métricas que incorporem as externalidades aos demonstrativos de resul tados das empresas. Para isso, ele financia a Iniciativa de Contabilidade Ponderada pelo Impacto (impact weighted accounts initiative ou IWAI), liderada por George Serafeim, da Harvard Business School. O estabeleci mento de padrões de mensuração e reporte de impacto social e ambiental é fundamental para que os investidores possam incluir o eixo de impacto em suas análises e para que SIBs e DIBs ganhem força e se disseminem na condição de produtos financeiros. Esses três pilares devem guiar a parti cipação de empreendedores, investidores, grandes corporações, governos e organiza ções filantrópicas na revolução de impacto proposta por Cohen. Em um capítulo inteiro do livro ele descreve o engajamento de cada um desses atores e mostra como sua própria trajetória influencia suas ideias. Não surpre ende que ele também carregue algumas das limitações características dos setores onde construiu sua exitosa carreira.

Uma dose saudável de otimismo prova velmente foi fundamental para que Cohen se tornasse um dos pioneiros do venture capital e acreditasse no potencial dos negó cios em que investia. Esse mesmo otimismo se manifesta nas soluções um tanto ingê nuas que ele propõe para resolver problemas sociais e ambientais extremamente comple xos. O pagamento por resultados, por exem plo, embora possa trazer eficiência ao uso de recursos públicos e filantrópicos, torna a relação entre as partes apenas transacional e não colaborativa, o que dificulta a cons trução de relações baseadas na confiança mútua e de tolerância a erros. Ao propor esse modelo de alocação de recursos filantrópicos e de desenvolvimento internacional, Cohen ignora aspectos impor tantes. De um lado, desconsidera o papel da filantropia como apoiadora de causas cujos resultados não são imediatamente verificá veis, como as que visam a defesa de direitos ou mudanças em políticas públicas. De outro, pensando nos DIBs, elimina o mecanismo de accountability entre doadores e benefi ciários – ainda que frágil – representado pelos governos recipientes de recursos de desenvolvimento internacional. O apetite de investidores por retorno gera pressão por resultados e pode inibir a implementação de soluções inovadoras de fato. Além disso, a pretensão universalista da obra não reconhece aspectos contextuais importantes em três esferas. Globalmente, há diversos movimentos que buscam refor mar o capitalismo, de diferentes perspecti vas. Desde bilionários clamando por mais impostos sobre suas fortunas no Fórum Econômico Mundial até discussões sobre maior articulação internacional de políti casNofiscais.universo empreendedor, o movimento das zebras se contrapõe ao dos unicórnios (empresas que atingem valor de mercado de US$ 1 bilhão) ao promover colaboração e conexões duradouras em vez de cresci mento rápido e disruptivo. Esse movimento se caracteriza por iniciativas que geram impacto profundo, ainda que não atinjam escala compatível com as ambições dos fun dos de venture capital. Sua demanda por capital é também distinta, mais afeita a instrumentos de menor risco e retornos constantes, como dívida, que a participação acionária que visa múltiplos de dois dígitos em uma eventual saída. Em 2020, o mon tante alocado em venture capital e private equity no Brasil equivalia a menos de 1,5% do crédito para empresas. A obra de Cohen não leva em conta que o mercado de dívida para empreendedores é muito mais palatável aos investidores de mercados emergentes que o de venture capital Por fim, o livro passa ao largo também do ambiente institucional de países em desenvolvimento, como o Brasil. Pressupor a existência de investidores, organizações executoras e auditores de impacto prepara dos e dispostos a operar um SIB nesse con

SAMIR HAMRA é consultor e pesquisador de investimentos de impacto socioambientais. Atua com fomentadores dessa agenda no Brasil e no exterior, além de desenvolver pesqui sas no Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor (Ceats) da Faculdade de Economia e Ad ministração da Universidade de São Paulo (FEA-USP) como aluno de pós-graduação. GRAZIELLA MARIA COMINI é professora associada do De partamento de Administração da FEA-USP, coordenadora do Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Ter ceiro Setor (Ceats) da FEA-USP, vice-presidente do Instituto de Pesquisas Ecológicas e conselheira na área de empreendimen tos socioambientais e negócios sociais no Brasil.

Cohen desconsidera o papel da filantropia como apoiadora de causas cujos resultados não são imediatamente verificáveis, como as de defesa de direitos ou mudanças em políticas públicas.

Inovações que Podem Funcionar para o Problema da Moradia

O livro cumpre o importante papel de mostrar o potencial dos investimentos e negócios de impacto a um público que compartilha da trajetória e linguagem do autor, como investidores e atores do mercado financeiro. Pode também inspirar e mobilizar quem se sente impotente diante dos desafios dos tempos atuais. Mas decepciona os engajados na solução de problemas socioambientais que não visualizam o mercado como protagonista da tão sonhada revolução de impacto descrita no mesmo livro. Afinal, problemas complexos não têm soluções simples, meramente quantitativas: um novo capitalismo passa por mudanças estruturais que possibilitem a internalização de valores de justiça social e ambiental por todos os atores. n

O universo de empreendedorismo tecnológico parece sempre defender fervorosamente uma visão, mesmo que os meios de concretizá-la ainda não estejam disponíveis por completo. Se de um lado isso é importante para mobilizar equipes e recursos financeiros necessários para tornar essa visão uma realidade, de outro pode gerar expectativas muito maiores que a entrega, levando o público a notar que o rei, se não está nu, veste apenas ceroulas.

Ten Global Cities apresenta uma série de medidas que, por meio de uma forte colaboração, poderão trazer soluções para pessoas em situação de rua inovações para solucionar questões ambientais e sociais.

POR GARY PAINTER Apopulação de pessoas vivendo nas ruas está aumentando no mundo todo, de São Francisco a Hong Kong. Embora as pesquisas mostrem que não existe uma solução única para esse problema, propostas recentes podem ajudar a reverter essa tendência global devastadora .

69 texto desconsidera questões cruciais como gestão orçamentária deficiente, instabilidade institucional e de pessoal e possíveis conflitos de interesse. Se a confiança mútua aparece como requisito básico nessa construção colaborativa, a visão de cada uma das partes sobre o papel do Estado e sobre seu modo de se relacionar com os outros setores se reflete diretamente na maior ou menor aceitação desse tipo de contrato. Não à toa, os países ricos concentram esses instrumentos. Segundo um laboratório da Universidade de Oxford, até fevereiro de 2022 havia 227 projetos de SIB assinados em 35 países, em diferentes estágios de execução, com recursos estimados em US$ 547 milhões e 950 mil pessoas como público-alvo. Europa e América do Norte concentram 80%, Oceania e Ásia 7% cada uma, África e América do Sul 3% cada uma. No Brasil, há três experiências inconclusas.

How Ten Global Cities Take On Homelessness: Innovations That Work (Como Dez Cidades Globais enfrentam o problema dos sem teto: inovações que funcionam, ainda sem tradução em português) apresenta algumas das intervenções mais promissoras para resolver essa crise. Os quatro coautores juntos formam um grupo com décadas de experiência em assistência social e habitação em Nova York: Linda Gibbs, responsável pelo setor de serviços sociais da Bloomberg Associates, Jay Bainbridge, professor associado de administração pública da Universidade Marista, Muzzy Rosenblatt, presidente e CEO do Comitê de Moradores da rua Bowery — organização sem fins lucrativos com foco em moradia, e Tamiru Mammo, gestor da consultoria de serviços sociais da Bloomberg Associates. A “paixão” — uma palavra que o livro cita mais de trinta vezes — é o que move o projeto. Os autores acreditam que “criar uma cultura de colaboração baseada em confiança, responsabilidade e uma forte paixão poderá atrair mais pessoas para locais onde possam encontrar segurança, dignidade e satisfação”. Cada capítulo apresenta inovações de uma cidade do mundo, com 10 estudos de caso — Bogotá, Cidade do México, Los Angeles, Houston, Paris, Nashville, Baltimore, Edmonton, Atenas e Nova York — que exploram como se aproximar das pessoas desabrigadas até como desenvolver uma estratégia para moradias populares. Os quatro últimos capítulos se concentram em questões tanto no nível macro como de sistemas, por exemplo, como criar apoios políticos para obter mais recursos financeiros, como reagir em casos de emergência, e como as abordagens de gestão-desem-

penho podem facilitar o aprimoramento dosÉsistemas.provável que o livro não traga infor mações novas para os especialistas, mas os exemplos reais fornecem informação valiosa principalmente para o público em geral, especialmente para ativistas recém -iniciados no campo. Cada capítulo mostra como as cidades estão utilizando soluções inovadoras emer gentes e outras já comprovadas para abor dar o problema de pessoas em situação de rua. Segundo os autores, as mais bem-suce didas são aquelas que optaram por empre gar uma combinação de “gestão eficiente, recursos suficientes investidos em práticas baseadas em evidências, e liderança”. Os autores propõem duas inovações com modelo de serviço ambas focadas em práticas e programas: a primeira chamada Housing First (Moradia Primeiro) e a Enga ging People on The Street (Envolver as Pessoas em Situação de Rua). Além disso, sugerem duas inovações no ecossistema com foco na colaboração transetorial: o pensamento sistêmico e as infraestruturas unificadas de dados digitais, ambas para coordenar e agilizar estratégia e serviços. O objetivo é que as inovações reduzam as barreiras burocráticas e organizacio nais para enfrentar o problema da falta de moradia.Paraamaioria dos leitores a ideia de fornecer ‘moradia primeiro’ sem ressalvas ou pré-requisitos pode parecer óbvia. No entanto, não faz muito tempo, o setor de moradia adotava uma filosofia segundo a qual uma pessoa desalojada só poderia ter direito a uma moradia permanente depois de “escalar gradativamente os degraus: da vida nas ruas, nos abrigos, depois nas moradias temporárias e, finalmente, como último degrau, a moradia permanente”, explicam os autores. Essa visão considerava a moradia como “uma recompensa pelo cumprimento das regras e uma melhoria progressiva”. A abordagem muitas vezes ou mantinha as pessoas em habitações temporárias ou as levava de volta às ruas. No entanto, no início deste século, espe cialistas como Sam Tsemberis, fundador e diretor de Pathways to Housing (Caminhos para a Moradia), desenvolveram a aborda gem ‘moradia primeiro’, segundo a qual a moradia era fornecida sem exigência pré via de sobriedade ou de adesão a algum programa de atendimento médico. Esse modelo de habitação solidária forneceu às pessoas em situação de rua a assistência necessária na condição de uma moradia estável.Rigorosamente testado, o modelo mos trou-se adequado para criar uma estabi lidade de moradia de mais longo prazo. Igualmente importante para a ampla ado ção dessa visão foi o trabalho de Dennis Culhane. O cientista social demonstrou que com custos de apenas mil dólares mais altos que os das abordagens alterna tivas e com resultados habitacionais muito melhores, esse valor era bem empregado.

GARY PAINTER é professor da Faculdade de Políticas Públicas Sol Price e diretor do Centro de Inovação Social Sol Price da University of Southern California.

O sucesso do ‘moradia primeiro’ levou muitas cidades a tentar soluções que ofe reciam somente abrigo, concedendo uma espécie de vale-moradia tanto como estra tégia de intervenção como de prevenção. Veja, por exemplo, o novo programa de abrangência nacional nos Estados Unidos chamado Rapid ReHousing (Realocação Rápida), que oferece um auxílio imediato e de curto prazo para pessoas desabriga das. O estudo de 2019 do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos sugere que os vales de Realocação Rápida tinham uma efici ência “40% maior que a opção de abrigos para evitar o retorno das pessoas às ruas”. Esse resultado foi tão animador que as cidades americanas — incluindo as que figuram no livro — ampliaram seus pro gramas de vales. Talvez a contribuição mais expressiva dos autores a essa área seja o capítulo dedi cado à inovação de um modelo de serviço mais eficiente de aproximação das pes soas em situação de rua. Os métodos de abordagem são sutis, mas importantes de entender e aplicar, porque as pessoas envol vidas no serviço muitas vezes se sentem confusas quando desalojados não aceitam a oferta de moradia estável. Os autores explicam como traumas vividos podem criar barreiras psicológicas que resultam na recusa. Eles também observam que “é muito comum que indivíduos cronicamente em situação de rua não tenham comple tado o ensino médio e tenham sofrido traumas em casa — físicos ou psicológicos ou ambos”. Nesse caso então, as equipes precisam desenvolver laços de confiança baseada nos princípios de tratamento de trauma que requerem empatia e sensibili dade. Uma oferta de abrigo jamais pode ser feita de supetão, como uma opção “pegar ou Oslargar”.autores ainda enfatizam que a coer ção “não é uma estratégia eficiente”.

O livro apresenta exemplos bem-suce didos em Nova York, Bogotá e Atenas que podem orientar os interlocutores a “fazer o que a pessoa pede, dentro dos limites da adequação clínica e da conduta profissio nal”. O que esse trabalho inovador requer é dedicação e paciência das equipes, assim como disposição para "ouvir e não julgar, mostrar respeito, oferecer apoio, e moti var”, a fim de estimular “um relaciona mento de confiança e frutífero”.

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A moradia era vista como “recompensa pelo cumprimento das regras e melhoria progressiva”. Muitas vezes isso mantinha as pessoas em habitações temporárias ou as levava de volta às ruas.

Algumas das ideias inovadoras neces

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Um capítulo destaca o sucesso da cam panha “Everyone In” (Todos Dentro) em Los Angeles cujo objetivo foi estimular a população a apoiar várias iniciativas do setor público para reduzir o número de desabrigados.Oscapítulos seguintes incluem mais detalhes aos sistemas de assistência social para pessoas em situação de rua e destacam a importância da gestão do desempenho.Aconclusão final descreve como as comunidades reagiram em momentos de crise como a pandemia da Covid-19, desas tres ambientais e situações de emergência de saúde pública. De diferentes formas, o capítulo final mostra como as comunida des podem se mobilizar rapidamente para resolver a crise de direitos humanos exis tente em tantas cidades. Mas os autores deveriam ter apresentado uma reflexão mais adequada para explicar como essas lições podem ajudar a transformar o sis tema de assistência social “resolvendo a crise do momento e modificando o sistema no longo prazo e para melhor”, como eles desnecessariamente sugerem.

Finalmente, o livro demonstra que, gra ças à paixão e determinação dos atores do serviço de assistência às pessoas em situ ação de rua, surgiram formas inovadoras de abordagem e modelos de ‘moradia pri meiro’ bem-sucedidos. No entanto, ainda há muito trabalho a ser feito na integra ção dos sistemas para mitigar a crise em escala global. n

sárias para acabar com a falta de mora dia, dizem os autores, tem como objetivo melhorar o ecossistema para que os mode los que oferecem serviços sejam mais bem direcionados e eficientes. Segundo eles, o nível de pensamento sistêmico neste con texto vai muito além de uma simples coor denação e colaboração, porque a maioria das cidades dispõe de uma complexa infra estrutura de departamentos que atendem pessoas em situação de rua. Los Angeles é um excelente exemplo, embora ainda mereça cautela: a cidade fornece abrigos, segurança pública, ser viços de higiene, e os distritos regionais supervisionam a maior parte da saúde e vários outros serviços sociais. Além disso, as redes de grandes e pequenas organiza ções sem fins lucrativos estão nas linhas de frente, juntamente com os órgãos públicos, abordando as pessoas que se encontram em situação de rua. No exemplo de Los Angeles, os autores mencionam como a Câmara de Comércio de Los Angeles e a organização filantrópica United Way elabo raram uma abordagem de impacto coletivo de coordenação e inovação entre diferentes líderes, chamada Home for Good (Lar para o Bem). Financiados em grande parte com recursos da Fundação Conrad N. Hilton, a Home for Good reúne agentes do ser viço social e parceiros públicos e privados “para promover discussões mensais entre as equipes … sendo que a United Way for nece uma confortável sala de conferências e oferece aos participantes uma boa refeição preparada no local”. Uma segunda inovação importante no ecossistema de assistência às pessoas em situação de rua se refere à capacidade de atualizar e integrar sistemas de gerencia mento dessa população a vários bancos de dados de saúde e emprego. Nova York e Los Angeles, por exemplo, têm acesso a sofisticados bancos de dados, enquanto que em Bogotá a vinculação de várias fontes de dados é suficiente. No entanto, os autores não enfatizam o fato de que essas inovações nas redes estão todas em estágios iniciais de desen volvimento e implementação. Apesar de os ganhos iniciais com o intercâmbio de dados para evitar que pessoas com alto risco de situação de rua terem se mostrado promissores, nesses sistemas os dados não incluem elementos importantes como dados demográficos e histórico de desen volvimento habitacional. Devido à abrangência dos estudos de caso, o livro não especifica detalhes sobre cada cidade para que o leitor possa enten der os contextos nos quais as inovações funcionam. Os autores demonstram um profundo conhecimento sobre mudanças e inovações em Nova York — o que não surpreende, uma vez que eles trabalham na cidade — mas não conseguem demons trar isso nos exemplos das outras nove cidades. Em particular, os estudos de caso de Edmonton, Bogotá, Atenas e Paris não apresentam dados suficientes para que os leitores possam entender como suas ino vações estão conectadas à infraestrutura e aos sistemas de sociais mais amplos da cidade.Osleitores talvez sintam que o livro, como indica o subtítulo, ”Inovações que funcionam”, promete mais do que pode oferecer. Muitas inovações em estágios ini ciais ensinam lições importantes, mas não levam a soluções bem-sucedidas. É neces sário especificar claramente quais delas tiveram sucesso e quais em estágio inicial foram projetadas e estão sendo implemen tadas atualmente. A falta dessa distinção pode levar a algumas conclusões engano sas — talvez um subtítulo mais adequado fosse “Inovações que Podem Funcionar ”. Por outro lado, várias cidades incluídas nos estudos de caso, como Los Angeles e Cidade do México, mostraram um aumento no número de pessoas em situação de rua, enquanto que outras como Houston e Nova York tiveram uma pequena redução. Essa discrepância está relacionada a questões que estão fora do escopo dos serviços de assistência aos desabrigados, como racismo sistêmico e burocracia dos governos locais que impedem o desenvolvimento de progra mas habitacionais. Os autores mencionam superficialmente esses temas que deveriam ser abordados novamente em mais detalhes na conclusão, discutindo como as melhorias no sistema de assistência aos desabrigados não acompanharam o número crescente de pessoas em risco de vulnerabilidade habitacional.Emvezdisso, o livro termina com uma mistura de conclusões fragmentadas que discutem a situação das pessoas em situação de rua no contexto dos aconte cimentos contemporâneos e das questões sociais mais amplas para propor soluções que podem ser aplicadas em outras cidades.

Demarcada há 30 anos, a terra Yanomami con tinua sob ameaça crescente. Distribuída entre os estados de Roraima e Amazonas, a maior terra indígena do país vive seu pior momento da atividade de garimpo ilegal desde a homologação do território, segundo a Hutukara Associação Yanomami. Em relatório de 2021, a associação aponta a invasão garim peira como causa de violações sistemáticas de direitos humanos das comunidades que vivem ali, com impactos e consequências assustadores. Em viagem no mês de julho pelo Rio Maturacá, no Ama zonas, o fotógrafo especializado em povos indígenas Renato Soares captou um momento de extrema beleza envolvendo jogo e vida: a brincadeira de crianças yanomami nas águas limpas e ainda livres de mercúrio do rio.

A Vida em Jogo

72 Stanford Social Innovation Review Brasil | Setembro de 2022 IMAGENS QUE ÚLTIMOINSPIRAM OLHAR

Renato FotógrafoSoareseIndigenista

Conheça alguns de nossos projetos: Cooperativas Sociais - Capacitação profissional e geração de renda para pessoas privadas de liberdade, egressas do sistema prisional e vítimas de violência doméstica, através de cooperativas sociais formadas dentro e fora de penitenciárias.

LAB360 - Cessão de computadores para uni dades prisionais para que pessoas privadas de liberdade possam receber ensino a distância, fazer videoconferências com seus familiares. Índice de Engajamento Cidadão das Américas - Comparativo do nível de engajamento e participação cívico-social dos habitantes de países do continente em parceria com a The Economist Intelligence Unit (EIU).

Nosso propósito é reduzir a violência, promover a cidadania ativa, justiça climática e transparência.

O Instituto Humanitas360 trabalha para construir sociedades mais justas e igualitárias em diversos países da América Latina, graças às nossas equipes no Brasil, EUA e com apoio de conselheiros e colaboradores na Colômbia, Chile, Uruguai, México, Argentina, Bolívia e Guatemala.

Tecendo a Liberdade - Documentário revelando as contradições do sistema de Justiça Criminal brasileiro sob a perspectiva das mulheres que trabalham nas cooperativas sociais apoiadas pelo H360. Saiba mais sobre nosso trabalho em www.humanitas360.org @humanitas360

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