Nova Safo, Visconde de Vila-Moura

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N o va S a f o

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Naquele estado de abatimento, pareceu-me a única maneira de sossegar. De repente o comboio estremeceu, galgando numa velocidade imprevista. Peregrina, que acordou aos primeiros solavancos, dirigiu-se-me: — Fez-me bem mudar de lugar. Estou melhor e muito reconhecida à gentileza de v. Dormi não sei por quanto tempo, o tempo bastante a cobrar forças que, de súbito, me faltaram. E eu, solícito e curioso: — Mas V. Ex.ª sofre ainda? Talvez fatigada pela viagem… — É certo — respondeu, animada pela minha curiosidade — estou fatigadíssima. Venho de longe, de muito longe. Sabe v.? — Há um facto que se dá semelhantemente em todos os países. É a impotência, a impostura da medicina em face da doença. Todo o seu empenho é encobrir as deficiências do mister, iludir, mistificar os pobres doentes. «Enfim — sublinhou com um riso amargo — não podemos querer-lhe mal! «A despeito de todos os epigramas com que temos flagelado os médicos — à menor coisa os procuramos. Não ocorre chamar qualquer artífice… Na maioria dos casos valeria o mesmo. «Pergunta-me v. o que tenho? Sei lá o que tenho! Tenho o mal de viver — uma doença longe da medicina, que me lassa os nervos, cria desejos e sensações inconsumíveis, que me irrita e alheia das coisas consagradas e me afina a sensibilidade para coisas pequeníssimas — minhas futilezas preciosas. Sou indiferente às trovoadas, e irrita-me o zunir duma abelha. Tenho o maior desprezo pela moral de toda a gente; faço do avesso dessa moral uma verdadeira religião, um culto fervorosíssimo.


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