Sextante 2018/1 - Toda Forma de Poder

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editoriais Livres para resistir

juntos, podemos

As relações humanas estão sempre permeadas por jogos de poder. Nas famílias, na política, nas religiões, nas escolas, enfim, todos os espaços são palco de lutas de poder, com um indivíduo procurando dirigir a conduta do outro. No jornalismo e na universidade não poderia ser diferente. Os dois ambientes são marcados por hierarquias fortes, portanto esta revista carrega os efeitos do poder, no mínimo, duplamente. Como professora de jornalismo, talvez este seja meu maior dilema. Como construir uma publicação coletivamente, da qual todos os alunos sintam-se verdadeiramente autores, se é preciso cobrar prazos, distribuir tarefas e fazer escolhas a cada movimento? Minha culpa só é atenuada quando penso que Foucault dizia que só é possível exercer poder sobre sujeitos livres. Em uma situação de dominação total, que bloqueia qualquer possibilidade de reversibilidade, a relação de poder também deixa de existir. É a opressão total. A resistência depende da noção de liberdade, e o caminho para alguém conseguir resistir é se autogovernando, o que implica o cuidado de si e dos outros. Os alunos que produziram esta Sextante logo me marcaram por serem resistentes. A discussão entre eles é naturalizada e, ao mesmo tempo, a opinião do outro é valorizada. Existe liberdade e respeito entre eles. Além disso, pela primeira vez, a revista contou com a parceria da turma de Fotojornalismo II, comandada pela professora Ana Taís Portanova Barros, o que fez com que alunos-repórteres tivessem que se relacionar e negociar com os alunos-fotógrafos. Foucault diz que o poder produz. Quando é preciso resistir e encontrar uma saída, é que se aprende. Espero que as relações de poder desta edição tenham sido suficientemente livres para que os alunos tenham aprendido a partir de suas escolhas e resistências.

Quem pode? Será que posso? Mas quando posso? E por que posso? Paro. Reflito. A capacidade de transformação pesa nas minhas mãos. Ela é o meu poder – a mudança. No entanto, a mudança vem acompanhada de conflito. Pronto, nasce uma nova pergunta: seria meu poder um contrapoder? Quanta ambição, como se pudesse algo só. A mudança é coletiva. Afinal, nem sei se posso algo se não estiver em relação com o outro. Podemos muito quando juntos. Reconstruímos o poder ao enxergar o outro, ao ouvi-lo, ao entender e respeitar o seu espaço. Nosso papel enquanto jornalistas é dar atenção para esse outro a quem historicamente o poder é negado, o outro que luta para conquistar o seu lugar, os outros que também podem ser nós e, juntos, defendemos mais inclusão e representatividade. A UFRGS passou por uma grande mudança com a implementação das cotas em 2008, a qual foi o primeiro passo para uma sequência de transformações em busca de uma universidade mais plural. Contudo, o poder de grupos sociais como negros, indígenas, mulheres e LGBTQs é constantemente barrado por outros poderes. Em uma sociedade que nega a ascensão do diferente, somos o contrafluxo, que solidifica um desejo de existir em todos os espaços. Por meio do poder do riso, do poder da cor, do poder do erro, do poder de não se depilar e de tantos outros presentes nesta edição da Sextante, podemos ser quem somos e dar ao leitor a chance de fazer o mesmo. Na comunicação que acreditamos, por vezes abrimos mão do poder da fala para dar lugar à escuta. O outro se coloca. Escutamos. Processamos. Reagimos. Nas próximas páginas, encontrarás um pedaço de cada um de nós, misturados a tantas outras identidades. Queremos o poder, queremos também que tu possas. Comissão editorial

Thaís Furtado Professora-editora thaisfurtado93@gmail.com SEXTANTE XXXXX julho DE 2018

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ÍNDICE o PODER DO TRÁFICO

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36 O PODER DA MÚSICA

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40 O PODER Da representatividade

O PODER DAS CORES

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48 O PODER DA UNIÃO

O PODER DA ÁGUA

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O PODER DA VOZ

O PODER DO PELO

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o poder dos animais

O PODER DO LIKE

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o poder da paixão

O PODER DO ERRO

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o poder da fé

Luiza Dorneles

O PODER DA EXPERIÊNCIA

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O PODER DO HUMOR

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O PODER do tráfico

ANTECEDENTES O tentador mundo do narcotráfico Texto: Victória Netto victoriagoulartnetto@gmail.com Fotos: Andrielle Prates e Raíssa de Avila andrielle.prates26@gmail.com / raissa20avila@gmail.com

Eram cinco horas da madrugada quando os policiais chegaram. Enquanto os moradores dormiam no interior das casas – havia duas construções no mesmo terreno –, os incontáveis “Anjos da Lei” se aproximavam, tanto por terra quanto em helicópteros. Entraram “pedalando” a porta da primeira residência, reviraram os pertences, detiveram os proprietários. A filha, que morava nos fundos, caiu em desespero quando foi levada à casa dos pais e se deparou com eles ajoelhados, as mãos atrás da cabeça, algemas nos pulsos. “Eu achei que, bem ou mal, só eu iria presa, mas os dois também

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estavam algemados”, relembra Antônia*, 23 anos, condenada a nove anos de prisão junto com o pai e a mãe, os três por tráfico de drogas. Os policiais estavam com mandados de prisão preventiva e levariam 37 presos naquela ação de 2016, que fazia parte da operação Anjos da Lei. Deflagrada simultaneamente em 2011 em 32 cidades do Rio Grande do Sul, a operação é uma ação permanente da Polícia Civil e investiga crimes envolvendo o tráfico de drogas nos arredores de escolas. De 2011 até 2017, 804 pessoas foram presas em todo o Estado pela operação.


Condenada a nove anos de prisão por tráfico de drogas, Antônia trabalha para reduzir a pena. A cada três dias laborais, um é subtraído de sua condenação

O cárcere no Brasil

Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2016, no Brasil, os crimes relacionados ao tráfico de drogas são os que mais levam pessoas às prisões, representando 28% da população carcerária total. Somados, roubos e furtos chegam a 37%, enquanto os homicídios correspondem a 11%. Em junho de 2016, o país assumiu a terceira posição mundial em número de detentos, com 622 mil 202 presos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Na prática, isso significa dois encarcerados para cada vaga no sistema prisional – são 368 mil 49 vagas, conforme o mesmo levantamento. O jornalista e doutor em sociologia Marcos Rolim, especialista em segurança pública, aponta para a criação de um ambiente propício ao desenvolvimento do crime organizado dentro dos presídios. De forma geral, os sistemas prisionais superlotados, insalubres e violentos são classificados como “depósitos humanos”, ineficientes na premissa fundamental de recuperação do detento, que sai do sistema penal mais violento do que

“O Estado hoje é um dos principais organizadores do crime por não dar atenção à execução penal” Marcos Rolim especialista em segurança pública entrou. “O Estado brasileiro hoje é um dos principais organizadores do crime por não dar atenção à execução penal. Enquanto pessoas ficam preocupadas com o que está acontecendo, elas deveriam se preocupar com como estamos tratando os presos, com como é feita a execução penal. Eu mando esta pessoa para a prisão para quê? Para que ela se torne um novo membro de facções, ou eu quero que esta pessoa aprenda a ler e a escrever, que tenha um emprego?”, questiona. “Em geral, a opinião pública diz ‘deixa que apodreçam lá, são bandidos’, e o resultado é que nós estamos contratando violência futura”, finaliza.

Nem mocinha, nem vilã

Os vários anéis e o eventual uso de maquiagem demonstram a preocupação com o visual. Tímida e vaidosa, distrai-se escutando música – gosta de pagode – quando não está ocupada com alguma demanda da minigráfica. Antônia trabalha há cinco meses entre papéis e uma grande impressora em uma instituição pública do Estado para reduzir sua pena. Até o momento da entrevista, havia cumprido um ano e três meses em regime fechado e mais seis meses em regime semiaberto. Todas as manhãs, ela sai da Penitenciária Estadual Madre Pelletier para ir ao novo trabalho, sempre de ônibus, e retorna ao cárcere no final do dia. No presídio, divide um alojamento com outras 10 mulheres, também trabalhadoras. Para Antônia, que nunca havia sido empregada formalmente, os compromissos que vieram junto com as atribuições do trabalho são motivadores. “Eu gosto de ter uma ocupação, ter que sair todos os dias e seguir uma rotina de horários”, comenta, timidamente. Conta que cresceu num bairro de periferia em Canoas, na região metropolitana de SEXTANTE julho DE 2018

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Porto Alegre. Parou de estudar na sétima série e lembra que, naquela época, gostava de história e de matemática. Foi um pouco depois de deixar a escola, entre 17 e 18 anos, que se envolveu com o tráfico pela primeira vez. Dois dos irmãos mais velhos – são oito filhos no total – já traficavam e tinham passagens pela polícia. A mãe, 48 anos, dona de casa, também se envolveu com o tráfico, e o pai, 50 anos, assassinado em janeiro de 2018 após ter sido preso e conquistado a tornozeleira para cuidar dos filhos mais novos, embora não concordasse, sabia de todos os esquemas. “Eu era bem conhecida do patrão, a gente se criou juntos, aí conversei com ele para conseguir uma mão para mim”, relata. A jovem interrompeu as atividades ilícitas após o nascimento do filho. O menino, de quatro anos, é fruto de um casamento que Antônia iniciou aos 16 anos e que teve fim no período em que descobriu sobre a gravidez. Casar e ter filhos cedo também se revela um padrão entre as meninas de comunidades. Segundo o levantamento “Ela vai no meu barco”, realizado pelo Instituto Promundo com apoio da ONG Plan International Brasil, o país tem cerca de 877 mil mulheres entre 20 e 24 anos que se casaram com 15 anos ou menos. “Quando eu tinha largado o tráfico e meu pai estava trabalhando, ele me ajudava, comprava as coisas para o meu filho, mas depois ele perdeu o serviço como pedreiro”, lembra. O “patrão” de Antônia, mais tarde assassinado por membros da facção Bala na Cara, no atual controle do tráfico de drogas em Canoas,

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Antônia dorme à noite na penitenciária feminina Madre Pelletier, em Porto Alegre

era amigo da família e recorrentemente fazia novas propostas a ela. “Eu fiquei dois anos sem me envolver, só que acabei entrando de novo, mas não era direto, via umas mãozinhas, só para pegar um dinheiro mesmo.” A noção sobre a complexidade do crime se atenua enquanto fala. Antônia sabe que o que fez “não é certo”, mas o narcotráfico é tão presente em seu entorno, que “umas mãozinhas” lhe parecem quase insignificantes.

O tentador mundo do tráfico “Sai dessa vida que não vai te levar a nada, ganhando dinheiro para os outros, vai entrar numa ruim por causa disso”, alertava a amiga de infância e comadre Camila*, 24 anos. Antônia estava à procura de trabalho, mas os gastos com o bebê começaram a preocupar. Em casa, toda a família estava desempregada,

e as facilidades do mundo do crime surgiram novamente como uma condição de garantir o sustento. “Meu pai sempre ensinou que isso era errado e eu sempre vi que era errado. Eu já tinha visto muita gente sendo presa, também já vi matarem muita gente lá [onde cresceu] e eu não queria isso. Se eu tivesse um serviço, nunca que eu ia me envolver”, garante Antônia, relembrando-se do pai num misto de dor, culpa e orgulho. A jovem vendia maconha e recebia diariamente cerca de 30 malotes de crack e cocaína, os quais repassava para outra pessoa vender. Com isso, “tirava” cerca de 1.500 reais por dia. O tráfico de drogas revela-se um universo tentador para quem não tem muitas oportunidades nem perspectivas. “Não era só ela que vendia droga, era a família toda, e como o dinheiro muitas vezes fala mais alto, acho que contribuiu para ela ter passado por essa vida”, pondera Camila. Conforme o Infopen, 62% da população carcerária feminina no Brasil foi condenada por envolvimento com o crime organizado. Para a Defensora Pública Isabel Rodrigues Wexel, o narcotráfico está onde o Estado não chega. “O tráfico se instala onde não há poder público, e o grande traficante muitas vezes ilude. Onde a pessoa fica alienada, ela não consegue ver outra forma de futuro além do que


Em regime semiaberto, ela é autorizada a sair da penitenciária para trabalhar

admira no grande traficante, que, para aquela sociedade, muitas vezes se torna o herói.” Somando o desespero, o rápido e alto retorno financeiro da atividade, aliados à sensação de empoderamento diante da ausência de melhores oportunidades, Antônia escolheu o caminho mais óbvio para a realidade dela, mas o menos promissor.

Qualificação profissional

Assim como Antônia, 75% da população prisional brasileira não concluiu o ensino fundamental e menos de 1% dos presos tem ensino superior. “Eu atuei muito em presídio, e quando o preso começa a ser incentivado ao estudo e ao trabalho, ele sai do mundo do crime e começa a fazer escolhas melhores”, aponta a Defensora Pública Isabel Rodrigues Wexel. O trabalho laboral possibilita

a remição da pena e permite que os presos aprendam um ofício e consigam disputar uma vaga no mercado de trabalho ao saírem do sistema penal. Na Noruega, onde há 73 presos para cada 100 mil habitantes – no Brasil, são 352,6 detentos para cada 100 mil habitantes – e o índice de reincidência criminal, 20%, é mais baixo do mundo, o sistema de execução penal exclui a cultura meramente punitiva de privação da liberdade. O foco é a reabilitação do preso por meio de qualificação profissional e educação para uma efetiva reinserção social. Para quem cumpre pena, é difícil sonhar com um futuro muito diferente do passado conhecido, sobretudo sem uma profissão e com o estigma de ex-presidiário. “Vai ser bem difícil conseguir trabalho, porque eles pedem atestado de antecedentes cri-

minais, daí a gente não consegue. Vai ser difícil”, reflete Antônia. Ela tampouco consegue imaginar sua vida daqui a 10 anos, não visualiza um futuro em que possa se tornar a médica ou professora que um dia sonhara ser, mas quando pensa sobre as perspectivas da infância, de um aspecto ela não tem dúvidas: a menina Antônia jamais pensou que hoje estaria presa. “Eu não queria isso. Sei lá, muita coisa mudou na minha vida, muita coisa mesmo. Para mim, esse negócio do tráfico não trouxe nada de bom, eu só perdi. Perdi a melhor coisa, que era o meu pai”, desabafa. A jovem se ilumina ao pensar no filho e, um pouco envergonhada para admitir de imediato, até consegue projetar dias felizes trabalhando, cuidando do menino e dos dois irmãos mais novos. *Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes. SEXTANTE julho DE 2018

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o poder da experiência

SABEDORIA DA Na aldeia guarani Estiva, em Viamão, os mais velhos são conselheiros respeitados pelos jovens Texto e fotos: Lais Godinho laissgodinho@gmail.com

O tempo para os indígenas é diferente. Na aldeia Estiva, em Viamão, a cerca de 40 quilômetros de Porto Alegre, as 35 famílias Mbyá-Guarani se vêem livres da correria da cidade. Eles costumam perguntar para os juruás (não-indígenas) que visitam a aldeia o que acharam sobre ela. A resposta parece padrão: “Tranquila”. Nessa tranquilidade eles vivem há quase 20 anos, quando chegaram nas terras do km 39 da RS-040, cedidas pela prefeitura. Antes disso, viveram em Tenente Portela, cidade localizada a 460 quilômetros de Porto Alegre, onde dividiam território com os Kaingang. Sentindo que estavam perdendo sua cultura para a deles, decidiram deixar a terra indígena Guarita e partir para Erechim, onde viveram durante cinco anos com os parentes Guarani. Para conseguir melhorias, procuraram um novo lugar onde pudessem ter a sua aldeia.

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Três irmãs, Claudia, Talcira e Genira Gomez, partiram com os maridos na busca. Juarez da Silva, marido da Talcira, era o cacique na época. Com alguns contatos que ele fez na capital, conheceu o vereador Eliseu Fagundes Chaves (PT), conhecido como Ridi, de Viamão, e as famílias decidiram ir para o município. Depois de buscar os filhos em Erechim, acamparam por cerca de dois anos na beira da estrada, até conquistar o terreno onde hoje vivem. Todos na aldeia conhecem essa história, e as próximas gerações também conhecerão. Os pais vão contando para os filhos, que vão contando para os netos. Um ciclo. É dessa forma que a cultura é passada e a espiritualidade preservada. Por isso, os mais velhos são tão respeitados pelos mais jovens. “Eles são os nossos livros”, explica Gerson Gomez, integrante do coletivo Comunicação Kuery, que surgiu

Na aldeia Estiva, as crianças crescem falando MbyáGuarani e aprendem o português somente na escola


VIDA


a partir da necessidade de registrar a vida das aldeias Guarani impactadas pelas obras de duplicação da rodovia BR-116. Os anciãos são os conselheiros da aldeia. As pessoas os procuram sempre que necessário. Com sabedoria, eles orientam o melhor caminho para os indivíduos e para a comunidade. Eles defendem que as decisões tomadas devem agregar e trazer benefícios para todos. Esse foi um dos motivos que fez Sandra da Rosa trocar o curso de Biologia na UFRGS por Odontologia. “Eu vi que precisava que eu trocasse, porque foi muito difícil a gente achar o dentista que está aqui (na unidade de saúde da aldeia) agora.” Após reprovar em disciplinas de física, ela percebeu que não estava rendendo no curso de Biologia, e decidiu fazer a transferência interna. Sandra pretende, depois de formada, trabalhar na unidade de saúde da aldeia. Zico da Rosa é o único com ensino superior na comunidade. Formado em enfermagem pela UFRGS, ele acredita que o indígena não está preparado para o mundo universitário, assim como a universidade não está preparada para o indígena. Eles estudam para trazer melhorias para a comunidade, apesar das difi-

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culdades. “Tem que entender quem eu sou e o papel que eu ocupo.” São os mais velhos que guiam os mais novos para esses caminhos. Desde crianças, eles são educados a pensar no coletivo. Todas as mães têm liberdade para orientar os mais

jovens, mesmo que não sejam seus filhos. “Elas passam o que ouviram da minha avó”, conta Gerson. Na aldeia Estiva, o cacique serve como porta-voz, mas quem detém a sabedoria são os anciãos, que se tornam conselheiros, e aqueles que desenvolvem o dom são os pajé.


Caraí, aquele que sabe

Os mais velhos estão sempre em contato com os jovens. Cada criança tem um nome de acordo com a sua personalidade, como Ara’i (abaixo) que significa raio de sol

Conectado com Nhanderu, o deus guarani, o pajé cuida da espiritualidade dos indígenas. Ele é chamado de caraí, que significa “aquele que sabe”. A aldeia pode ter mais de um pajé, homem ou mulher, mas nem todos desenvolvem esse dom. Por ter sido escolhido por Nhanderu e possuir uma sensibilidade acima do normal, o pajé é a pessoa mais respeitada dentro da aldeia. Na Estiva, há somente um pajé, o João Benites. O dom se desenvolve aos poucos. Quando morre um pajé outro costuma surgir, em meio às dificuldades. Eles são, ao mesmo tempo, conselheiros e curandeiros. Sabem da dor antes que a pessoa fale, seja ela física ou psicológica. Segundo os guaranis, a depressão, tão comum entre os juruás, ocorre quando os espíritos se apoderam psicologicamente da pessoa. O pajé é capaz de, com a ajuda de Nhanderu, tratar isso. “Os guaranis não têm depressão porque é tratado dentro da Opy (casa de reza)”, explica Gerson. Se os mais velhos são os livros, a Opy é a biblioteca. Construída por recomendação dos conselheiros, a casa de reza é frequentada pelos guaranis todos os dias. Gerson conta que na Opy eles rezam, cantam e dançam. “É o lugar que a gente agradece a vida.” No espaço há uma porta, mas não há janelas, para que os maus espíritos não entrem. Na Opy, o pajé dá nome às crianças. Ele recebe um sinal de Nhanderu, que indica como aquele bebê deve se chamar. “O pajé seria um mensageiro de Nhanderu”, contam os indígenas em nome do pajé. Devido a um mal-estar espiritual, nas três vezes que a reportagem foi a aldeia, o pajé não pôde conceder entrevista. Os moradores defenderam que poderiam responder por ele. Juntos, conversavam sobre as perguntas em Guarani, para ter um consenso, e elaboravam uma única resposta que era dita em português.

Centro Cultural No início de abril deste ano, começou a ser construído o Centro Cultural da Aldeia Estiva. O espaço foi uma demanda da comunidade, que sentiu a necessidade de ter um lugar fechado onde pudesse realizar eventos culturais e cerimoniais, como apresentações de canto, dança e pintura. Para concluir a obra, a comunidade conta com doações de materiais de construção. Para doar, entre em contato com Gerson Gomez através do telefone (51) 99748-7594.

No ritual de nomeação, os pais de meninos devem levar o mel, os pais de meninas devem levar o mbojape, um alimento parecido com pão, e todos levam erva-mate. No dia seguinte à cerimônia, é realizada uma confraternização com esses alimentos. Cada criança tem um nome relacionado à sua personalidade, mesmo antes de desenvolvê-la. Ara’i é uma menina de três anos que só fala Guarani, pois as crianças aprendem o português quando entram na escola da aldeia, aos seis anos. Seu nome significa raio de sol. Ela está sempre sorrindo, e o pai justifica: “Ela está feliz assim porque o dia está bonito”. O pajé passa o dia tomando chimarrão com algumas outras ervas e fumando petygua, o cachimbo. As ervas que bebe servem para limpeza espiritual, necessária para ele que está sempre em contato com Nhanderu. Para os Guarani, o petygua é a cura de tudo. “É a nossa santa, que os juruás chamam de um objeto sagrado”, eles comparam. Pode ser usado quando se está feliz, para agradecer, ou quando se está triste, como proteção. “É um forma de oração.” É preciso ter dom para fazer um petygua que funcione religiosamente. Na aldeia da Estiva, ninguém possui esse dom, por isso eles pegam com os parentes de outras aldeias. Os Guarani confeccionam cachimbos sem efeito religioso para venda. Eles têm o artesanato como a sua principal forma de sustento. Os mais experientes ensinam os jovens. O mesmo ocorre com as outras expressões culturais, como o canto e a dança. Assim, passando de geração para geração, a cultura sobrevive na vida dos Mbyá-Guarani. SEXTANTE julho DE 2018

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O Poder das cores

O COLORIDO QUE REPRESENTA Com o objetivo de desconstruir a ideia da “cor de pele”, que remete somente às pessoas brancas, o Curso de Aperfeiçoamento Uniafro, da UFRGS, propõe estojo de giz com tonalidades que representam a população negra Texto e fotos: Nathalia Sasso nathalianunes15@hotmail.com Fotos: Júlio Câmara julioscamara@gmail.com

Por muito tempo, um padrão de cor foi estabelecido culturalmente nas salas de aula: o “lápis cor de pele”. Com tons rosados, a cor restringia os desenhos somente para brancos, excluindo as pessoas negras que, conforme o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2014, representam 54% da população brasileira. Refletindo sobre essas questões, o Curso de Aperfeiçoamento Uniafro, da UFRGS, criado para promover políticas de igualdade racial nas escolas públicas, resolveu desenvolver um estojo de giz de cera que contemplasse diversos tons

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de pele. Gládis Kaercher, coordenadora do curso, comenta que o percurso para colocar o projeto em prática foi longo. “Primeiro, houve um movimento para ver se a gente teria como importar um estojo que existia na época, da marca Crayola, que é bem conhecida, mas o curso não tinha dinheiro para isso.” Insistindo na ideia, pensou-se que era possível desenvolver o próprio material, já que o giz é algo relativamente simples de produzir e a sua patente está em domínio público. A partir disso, a Uniafro entrou em contato com diversas empresas de materiais de desenho, mas nenhuma deu retorno. Até que a Koralle, loja de Porto Alegre que trabalha com produtos artísticos, resolveu abraçar a


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JÚLIO CÂMARA

proposta. Gládis destaca um momento pelo qual teve um encantamento particular durante o processo. Ela, juntamente com a supervisora do Uniafro, Tanara Furtado, e o diretor da Koralle, Frantz Soares, estavam em uma cafeteria rabiscando papéis para decidirem quais tonalidades iriam para o estojo. A atendente do local, que era uma mulher negra, ficou instigada, aproximou-se, e perguntou: “O que vocês estão pintando?”. Eles explicaram e pediram, então, que ela escolhesse uma cor de giz para pintar também. “Ela pegou um giz, pintou, e disse ‘é da minha cor!’ Depois, encheu os olhos d’água e abriu um sorrisão”, relembra Gládis. “Aquela cena nos marcou muito, porque a gente viu que mais do que discutir o poder de pintar, aquele giz

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“mais do que discutir o poder de pintar, aquele giz dava para as crianças, jovens e adultos uma concretude sobre a sua identidade” Gládis Kaercher

COORDENADORA DO UNIAFRO dava para as crianças, jovens e adultos uma concretude sobre a sua identidade, que é disso que se trata: as pessoas se reconhecerem.” O estojo de giz foi lançado no final de 2014 e, a partir de 2015, começou a ser distribuído aos professores participantes do curso. Patrícia Pereira, que é assessora de igualdade racial e diversidades na Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre e também professora do Uniafro, comenta que o retorno a respeito do uso do material foi muito positi-

vo. “As crianças amam buscar o tom de giz mais próximo de sua pele, encostando seus braços e mãos no giz. As representações das famílias, em todas as suas multiplicidades de tons de pele se tornaram um fenômeno, pois eles começam a entender, na prática, o quanto este colorido diverso é lindo”. Patrícia acrescenta que a compreensão do conceito de diferença, em oposição à desigualdade, é a chave para que se consiga disseminar a cultura do não preconceito, do não estereótipo e da não discriminação. “O racismo, o machismo ou homofobia surgem quando alguns não compreendem que a diferença não te torna superior ao outro, apenas te singulariza. Cada um de nós é diferente entre seus pares, até mesmo dentro de nossas famílias mais próximas.”


Cores no Brasil afora

Inicialmente, os gizes seriam produzidos apenas para o curso. A Koralle, no entanto, resolveu fabricar, em pequena quantidade, uma leva extra do produto caso alguém se interessasse. Conforme a analista de marketing da loja, Michele Monteiro, todos os estojos foram vendidos em uma semana e, a partir disso, tornou-se consolidado. Ela conta que inicialmente os clientes iam até a loja e pediam por lápis e canetas da cor pele e isso inquieta os vendedores. Hoje em dia, com o material à disposição, é possível oferecer outras alternativas e modificar esse consenso. Além das lojas físicas, localizadas em Porto Alegre, a Koralle trabalha também com as vendas online, o que possibilitou que diversos pais e educadores pelo Brasil afora pudessem ter contato com o produto, como é o caso de Alessandra e Luciane. Alessandra Lira é pedagoga na cidade de Arujá, em São Paulo. Em 2015, ela estava procurando na internet alguma atividade diferenciada que contemplasse as temáticas étnico-raciais para o projeto “Africanidades” de sua escola. A partir de reportagens, tomou conhecimento do estojo de giz. Desde então, o adquiriu e resolveu utilizá-lo em sala de aula. “A experiência com o desenho é maravilhosa. Em roda de conversa mostro o giz e comento sobre a diversidade na nossa sala de aula. Eles escolhem a cor que acham que se parece com a de sua pele e fazem o seu autorretrato.” Já Luciane Rocha é pedagoga e mestranda na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, no Distrito Federal. Ela conheceu o ma-

terial através de anúncios em blogs voltados para a temática da educação. Luciane adquiriu os gizes para mostrar a importância da representatividade aos seus filhos e, também, para o uso em sala de aula, de onde partiu uma história sobre a importância da igualdade, vinda de um aluno negro que, de acordo com ela, ainda não se enxergava como um sujeito histórico. Como uma confissão, ele relatou: “Tia, vou te contar um segredo. Sabe por que eu estudo? Estudo para um dia ser rico e ter muito dinheiro para poder trocar de pele igual aquele artista famoso que morava no estrangeiro e que um dia deixou de ser preto e tinha virado branco (referindo-se a Michael Jackson). Mas agora que você ensinou que as pessoas são diferentes e que têm várias cores de pele, eu fico mais feliz de saber que não vou mais sofrer pra trocar de pele. Posso ficar com a minha mesmo e ser feliz assim.”

A Lei 10.639 na Educação Brasileira O Curso de Aperfeiçoamento Uniafro surgiu com a proposta de qualificar a educação nas escolas públicas brasileiras para o cumprimento da Lei 10.639. Essa lei, publicada no Diário Oficial da União em 2003, tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, sendo elas públicas ou particulares, desde o ensino fundamental até o ensino médio. No ano seguinte ao decreto, estabeleceram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Esse documento estipula que o assunto deve ser inserido por meio de ações nas disciplinas que compõem o currículo escolar, sobretudo nas áreas da história, literatura e artes. Para Rita dos Santos Camisolão, coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da UFRGS (NEAB), uma das maneiras de abordar essas questões é construindo um plano político pedagógico que contemple a diversidade dos estudantes e que seja construído coletivamente, considerando a escola para além de um espaço físico. Rita complementa que, embora a lei tenha como foco três eixos (história, literatura e artes), sua implementação é para qualquer disciplina do currículo escolar. “O racismo e a discriminação acontecem no espaço escolar como um todo”, afirma. Como exemplo, ela cita que em uma aula de educação física pode ocorrer agressão racial entre alunos num jogo de futebol, e que essa atitude deve ser advertida e servir de gancho para o ensino. A professora da rede municipal de Porto Alegre Silvia Delgado alerta para o fato de que, muitas vezes, trabalha-se a questão da negritude somente no dia 20 de novembro, o dia da Consciência Negra. Ela também reforça que o assunto não deve se restringir somente à época da escravidão, mas ao estudo do continente africano de forma positiva, resgatando a importância das contribuições dos negros e afrodescendentes na história e no desenvolvimento do Brasil. Em 2018, a lei completa 15 anos de oficialização e traz consigo diversos avanços e desafios em relação às questões étnico-raciais. A coordenadora do Curso de Aperfeiçoamento, Gládis, pensa que a sociedade está passando por um momento importante de tensão em que as instituições estão avaliando se as ações propostas para essas questões funcionaram ou não. Para ela, a mudança mais significativa é a inserção da temática no debate social. Como exemplo, ela cita que as indústrias não vão deixar de fabricar e comercializar bonecas negras, assim como haverá muitos livros com protagonistas negros. Já Rita, coordenadora adjunta do NEAB, expõe que, na contrapartida da forte onda de intolerância dos últimos tempos, há como resposta o fortalecimento do movimento negro, sobretudo de jovens, que não deixa passar por despercebidas questões preconceituosas e estereotipadas impostas pela cultura no cotidiano. Os lápis com várias cores de pele são um exemplo dessa mudança. SEXTANTE julho DE 2018

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nathalia sasso

O Poder da รกgua


SOMOS ÁGUA Podemos sobreviver muitos dias sem alimentação, mas não sem água. O líquido corresponde a 60% do corpo humano e tem papel fundamental no organismo Texto: Lucas Katsurayama lucaskatsurayama@gmail.com

Fotos: Nathalia Sasso e Tamires Rodrigues nathalianunes15@hotmail.com / tamyrodriguesmoraes96@gmail.com


O corpo humano é sólido, mas cerca de 60% da sua composição é água, segundo estudos da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição (SBAN). O líquido é essencial nas funções vitais – da regulação da temperatura corpórea à eliminação de substâncias tóxicas – e é necessário tê-lo em quantidades corretas para um melhor funcionamento do organismo. Para evidenciar a importância do fluido, o pneumologista João Deodato Lunardi, de São Leopoldo, destaca: “O indivíduo pode até sobreviver muitos dias sem alimentação, mas sem água não tem como; ela mantém todo o corpo funcionando”. Tanto os rins quanto o sangue, por exemplo, são compostos em grande parte por água. O primeiro tem função de filtrar as impurezas do segundo, que, por sua vez, realiza a circulação de substâncias – sejam elas boas ou ruins – no corpo. A doutora em nutrição Renata Ramos, do Programa de Pós Graduação em Nutrição e Alimentos da Unisinos, lembra: “Além disso, a água é o meio de excreção de substâncias tóxicas através da urina”. Sem o meio aquoso em quantidades ideais, os rins não desempenham o seu papel corretamente, deixando de eliminar as impurezas do organismo, como explica Lunardi. “As bactérias, que seriam eliminadas, ficam no corpo e, como consequência, atacam o organismo”, esclarece o médico. Outra função do líquido é a regulação da temperatura. Ao praticar um exercício, ou até mesmo em um dia quente, uma pessoa transpira, “expulsa” o calor, para que a temperatura do corpo seja mantida entre 36 e 37°C. Caso contrário, o metabolismo não funcionaria adequadamente, já que necessita de determinada calidez, como explicam as pesquisadoras Ana Lúcia Serafim, Eilamaria Libardoni Vieira e Ivana Loraine Lindemann, de Santa Maria, no artigo Importância da água no organismo humano. A lubrificação também é destaque entre as atividades da água. Se uma pessoa, por exemplo, bater a cabeça em algum lugar, as meninges vão minimizar o impacto entre o crânio e o cérebro. Essas meninges, com funções protetivas à massa encefálica, são lubrificadas pelo meio aquoso, que ajuda na redução de danos físicos. Outro exemplo da lubrificação é nas articulações e nos órgãos, evitando atrito. A água também desempenha importante papel nas reações químicas do corpo e em processos fisiológicos. “Ela é responsável por

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A água pode dar mais saúde e qualidade de vida. Assim como pode, também, tirar uma vida, seja por excesso ou por falta manter a homeostase (equilíbrio) entres os meios intra e extracelular, que permite o funcionamento perfeito do corpo humano”, explica o pediatra Werner Carvalho, de São Leopoldo. Em processos como a digestão de alimentos, a água está diretamente ligada às reações químicas. O médico João Deodato Lunardi destaca ainda que o consumo adequado de água pode ser muito benéfico à pele. A epiderme hidratada fica “brilhosa, sebosa e escorregadia” e sem fissuras.

Desidratação mata

Durante o dia, uma pessoa perde água através da transpiração, da urina, das fezes e da respiração. Um estudo da pediatra Ana Escobar e da nutricionista Lara Natacci, ambas de São Paulo, aponta que a quantidade de líquido perdido diariamente é, em média, de 2,6 litros. Se uma pessoa realizar exercícios físicos ou estiver em ambiente quente – que a faça transpirar mais –, essa perda pode ser ainda maior. É necessário, então, repor, para que todas as funções já citadas ocorram normalmente. Caso contrário, a desidratação pode até matar – como

já explicado pelo médico Lunardi – já que os rins não desempenhariam o seu papel corretamente, deixando de filtrar o sangue. “No momento em que tu deixas de ingerir água, tu perde líquido e começa a entrar em colapso. A primeira coisa é a pessoa desmaiar, porque o cérebro manda um aviso ‘apaga esse ser para ele ficar deitado e não gastar energia’, para manter os principais órgãos, como coração e pulmão, funcionando”, explica o pneumologista. Com devida importância e tamanha perda, a água precisa ser reposta. A ingestão de água é uma das formas de repô-la, mas não é a única. Outras bebidas, como leite e sucos, e até mesmo a comida, possuem água. Pelos estudos de Ana Escobar e de Lara Natacci, apenas 58% da reposição do fluido é feito pela ingestão de líquidos; os outros 42% vêm da comida. Como exemplo: 87% da composição do leite é água; nas frutas e nos vegetais, o número chega aos 90%; o pão, por sua vez, detém cerca de 31%. A nutricionista Renata Ramos, porém, alerta: “Alguns chás podem conter substâncias desidratantes”. A quantidade de água a ser consumida não é determinada, pois varia de pessoa para pessoa. As mulheres possuem um volume aquoso menor do que os homens, necessitando, portanto, consumir menos água. “As mulheres devem ingerir 20% a menos de água pelo seu biótipo”, esclarece Lunardi. Carvalho explica a variação pela idade: “As crianças devem consumir, no mínimo, 150 ml/Kg por dia, e os adultos cerca de 1 ml/ quilocaloria ingerida. Então, se há um consumo diário de


A água está em todo lugar e é essencial para o ecossistema.Frutas e vegetais, por exemplo, podem conter 90% de água em sua composição

FOTOS: Tamires rodrigues

2000 quilocalorias, o ideal seria no mínimo ingerir 2 litros de água por dia”. Um dos cuidados alertados pelos nutricionistas e médicos é quanto à quantidade de sódio nas garrafas de água, que variam de empresa para empresa. Renata Ramos dá um conselho: “É recomendado até 300 mg de sódio a cada 500 mililitros. Mas, se possível, que tenha a menor quantidade.” Se consumido em excesso, o sódio pode causar pedras nos rins, acidentes vasculares cerebrais, hipertensão e outros problemas de saúde.

Até quando o assunto é água, o excesso pode ser um problema. Em 2007, em um programa de rádio da Califórnia, os participantes tinham como objetivo beber a maior quantidade de água possível em um curto espaço de tempo para ganhar um videogame. Uma mulher de 28 anos ingeriu 6 litros em três horas e depois, em casa, morreu. A morte foi justificada por “intoxicação por água”. Para Lunardi, porém, a explicação é outra: “É um caso de edema pulmonar. O excesso de ingestão de água leva à insuficiência cardíaca. O corpo recebe uma quantidade de líquido maior do que estava previsto e, como o coração não está preparado, ele para pelo excesso de mandar tanto líquido para o corpo. Aí ele retém esse líquido nos pulmões. Os pulmões encharcam e levam ao edema pulmonar. Se não tratado com rapidez, leva ao óbito”. O pediatra Carvalho

também não concorda com a justificativa: “Uma pessoa que tem todos os órgãos em pleno funcionamento, não morre por intoxicação hídrica. Possivelmente essa pessoa tivesse algum problema cardíaco ou renal que provocou essa intoxicação hídrica”. “Beber água é beber vida!”, finaliza Renata. A nutricionista expressa o que pensa enquanto conhecedora de algo essencial para a existência da vida. A água pode dar mais saúde, maior qualidade de vida. Assim como pode, também, tirar uma vida – seja por excesso ou por falta. SEXTANTE julho DE 2018

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Fabiana Sasi e Vitรณria Pinzon

o poder do pelo

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APENAS DEIXE SER Em um mundo delimitado pelo gênero e regido por padrões estéticos, há quem crie suas próprias regras, enxergando os pelos como emancipação

Texto: Camila Souza camilasssouzaa@gmail.com Fotos: Fabiana Sasi, Vitória Pinzon e Lily Barbosa fabiana_sasi@yahoo.com.br vitoria_pinzon@me.com lily.nazar.barbosa@gmail.com

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“Você tá parecendo um homem.” “Nossa, você não se sente suja?” Frases como essas são constantemente pronunciadas para mulheres que escolhem não se depilar. Para as negras, é comum escutar que é preciso alisar os cachos. Afinal, de onde surgiu a noção de que o homem pode ter pelos e a mulher deve ter o corpo depilado e o cabelo alisado? Os modelos ideais de beleza estão aí, impostos pela cultura. Entretanto, há quem rompa com os estereótipos e torne as diferenças tênues. Na Idade Antiga, era comum ambos os sexos se depilarem, prática que iniciou no Egito. Tiras de tecido ou de pele de animais banhados em cera quente de abelha eram as técnicas para retirar os pelos dos homens e das mulheres. Foi na Grécia Antiga que a lógica mudou e a divisão de gênero se estabeleceu, o que pode ser comprovado analisando-se as estátuas gregas, como a imagem de Vênus – uma representação pudica e recatada do ideal de beleza feminino – que cobre a genitália com a mão, sem pelos em seu corpo. Com a Idade Média e a hegemonia da Igreja Católica, a depilação não era simples estética: era um sinal de castidade. Já para o homem, os pelos caracterizavam a masculinidade e a virilidade. Desde então, a depilação se popularizou entre as mulheres. Associada à beleza, à limpeza e ao que é aceitável, os pelos, naturalmente produzidos nos corpos dos indivíduos, se tornaram até mesmo uma obsessão. A inserção da mulher no mercado de trabalho, com uma

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“Essa fronteira distintiva está se apagando” Fernando Seffner Professor da UFRGs

rotina nas fábricas em que, muitas vezes, era necessário levantar os braços e expor as axilas, exigia a pele lisa. Recomendava-se inclusive a depilação para as mulheres “de família” que não desejavam ser erotizadas. Desde 1915, revistas brasileiras anunciam serviços de depilação com a promessa de deixar a mulher ainda mais bela. A indústria de cosméticos se aproveitou disso e, em 1930, já vendia cremes e aparelhos depilatórios com auxílio da publicidade, que reforçava o ideal estético. A moda também participou desse cenário, propagando as pernas depiladas, e o consumo de pornografia difundiu a imagem de uma vagina totalmente sem pelos. Para o docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS Fernando Seffner, que segue sua linha de pesquisa em Educação, Sexualidade e Relações de Gênero com ênfase na construção da masculinidade, as definições de cada gênero surgem junto com a história da humanidade: “Nem todas as sociedades procederam igual. Também variam os conceitos de beleza ao longo do tempo. Há uma ideia na cultura ocidental de que existem traços mais desejáveis ao corpo feminino e outros ao masculino. Na América Latina, é ainda mais visível a imposição pela pele

completamente lisa”. Exemplificando isso, cita a depilação à brasileira, conhecida internacionalmente como “Brazilian Wax” e que consiste na remoção total dos pelos na área da genital e do ânus. O pesquisador considera a descendência indígena relevante para se compreender esses parâmetros, pois havia o hábito do banho, da depilação e do desejo de mostrar o corpo nessas culturas. Na carta de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, é mostrado o espanto do europeu com o homem indígena por se depilar. “A prática da remoção de pelos vem sendo sedimentada há anos. Já foi mais restrita às mulheres. Esse padrão vem experimentando modificações, que não rompem com a ordem do sistema, porém são evidentes: há homens voltando a se depilar e mulheres que estão, a partir da ascensão de movimentos feministas, contestando isso”, pondera Seffner. Com o objetivo de verificar sua teoria, resolveu produzir uma pesquisa em 2015: visitou três locais de depilação exclusivos para homens, a fim de analisar a organização e os discursos produzidos nos estabelecimentos. “Primeiro, notei a ambientação dos lugares: são discretos, e os atendentes – em todos quem me recebeu foram homens – asseguravam que eu estaria sozinho, sem ficar numa sala de espera com outras pessoas. Era bem diferente do salão de beleza, e a argumentação dos funcionários era construída em volta da ideia de que a depilação era para a saúde, não por vaidade. Em um dos locais, me falaram que pelo era sujeira”. Para ele, há um crescimento de homens que se depilam por uma questão estética e várias meninas não têm mais a preocupação exagerada com a depilação, o que nota nas aulas em que ministra. “Essa fronteira distintiva está se apagando”.

Rebeldia

A economista e produtora Débora Nunes não sente necessidade em se depilar. Menstruou com apenas 9 anos, começou a ter pelos com 11 e logo sentiu a cobrança: “Tinha muita vergonha, porque tive pelos antes de todas as outras. Precisava ir em salão de beleza, que é um espaço onde não fico à vontade”. Foi após entrar na faculdade e ter contato com o feminismo que se desapegou de várias imposições estéticas: “Não depilo a perna há mais de um ano e é bem raro depilar a axila. A sobrancelha é que tiro um pouco com a pinça, acho que fica mais bonito no meu


Fotos: lily barbosa

“Nunca passei pela transição capilar. Minha mãe sempre fez muita trança em mim e enfatizava que era algo bonito. Tudo isso formou a minha identidade e, hoje, deixo o cabelo trançado” JANAÍNA RAMOS

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rosto.” Débora ressalta que construiu uma relação tranquila e leve com seus pelos e que deseja deixar seu corpo o mais natural possível, não pintando também o cabelo. Débora não é a única que pensa assim. Bianca Barreto, atriz e estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também prefere que seus pelos cresçam espontânea e naturalmente. “Lembro que quando eu estava no colégio, lá pelos meus 12 anos, as primeiras colegas apareceram de short com as pernas raspadas e se orgulhavam disso. Era algo que parecia contribuir com a autoestima. Uma das minhas amigas mais próximas já não fazia isso e foi chamada de macaca por um dos meninos. Havia uma diferença entre as que se depilavam e as que não”, comenta. Bianca sentiu obrigação de usar gilete ou cera no ensino médio. “Hoje, já associo isso a uma agressão ao meu corpo.” A pressão existe. “Minha família vê como se isso me deixasse mais feia. Não me depilar, no pensamento deles, faz com que menos caras queiram se interessar por

“Muita gente já me questionou e disse que pareço mais velha. Só que gosto dele assim, me sinto mais livre” Mariana wertheimer artista visual

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Mariana sente-se empoderada com os cabelos curtos e brancos

mim. A minha vó me pergunta por que não me depilo e preciso reforçar as razões de carregar esses cabelos embaixo do braço. Uma vez segurei na barra de ferro do trem e senti o preconceito, porque tinham olhares de nojo de pessoas olhando para mim”, relata Bianca. Sua relação com o pelo vai além: ficou, em 2015, careca para um personagem. A ação reconstruiu Bianca: “Foi uma grande aprendizagem. Pensei sobre o que leva alguém a raspar o cabelo e, no início, me achei feia, como se faltasse algo em

mim. No fim, minha visão do que é belo se aproximou mais do que é natural”. Não só o pelo corporal requer aceitação. Janaína Beatriz Ramos, especialista em gestão estratégica de negócios, tem o cabelo crespo desde criança e já sofreu pressão para alisar: “Nunca passei pela transição capilar. Minha mãe sempre fez muita trança em mim e enfatizava que era algo bonito. Tudo isso formou a minha identidade e, hoje, deixo o cabelo trançado”. A imagem das gaúchas, segundo Janaína, é a da mulher branca, de cabelo liso, loiro e com olhos azuis e, infelizmente, predomina o preconceito. “Já me perguntaram como eu lavo o cabelo quando eu estou com ele trançado, e eu já respondi ironicamente: corto e coloco na máquina de lavar. É algo


“Minha família vê como se isso me deixasse mais feia. Uma vez segurei na barra de ferro do trem e senti o preconceito, porque tinham olhares de nojo de pessoas olhando para mim” bianca Barreto

Fotos: Fabiana Sasi e Vitória Pinzon

estudante

que irrita, porque eu lavo do mesmo jeito que você”, contesta. A mídia exerceu influência em sua noção de beleza como mulher negra: “Quando era adolescente, minha banda favorita era a Destiny’s Child e a Beyoncé, nessa época, tinha cabelo loiro e alisado e eu queria isso também”. Os cabelos brancos também são mais aceitos atualmente. Mariana Wertheimer, de 51 anos, é artista visual e deixa os fios brancos à mostra: “Desde os 18 tenho cabelo branco. Muita gente já me questionou e disse que pareço mais velha. Só que gosto dele assim, me sinto mais livre”. Antes, o corpo sem pelos e o cabelo integravam o poder de se sentir belo e aceito socialmente. A realidade vem se diversificando. Empode-

ramento, para muitas mulheres, não tem mais relação com a beleza ou a valorização por um homem. Janaína, quando está com o cabelo black, sente que resiste e existe. Vê representatividade, reafirmando a sua presença como um ser político. Já o trabalho com economia feminista empodera Débora, que percebe a importância disso para outras mulheres. Ser produtora cultural e ser reconhecida em seu trabalho são uma forma de poder, que vem sendo conquistado em ambientes tradicionalmente masculinizados. Bianca, por sua vez, gosta de ocupar espaços em que se sente escutada. “Também me divirto planejando looks na frente do espelho, adoro fazer isso entre amigas. Me empodero com outras pessoas, sabe?”. Hesita no primeiro momento em responder o que a faz se sentir poderosa. Ela não sabe se há, de fato, alguma situação. Talvez o segredo para que um dia isso aconteça seja simplesmente deixar ser. Ser careca, ser depilado, manter os pelos, ser plural. Parafraseando os Beatles, apenas um gigantesco let it be.

Bianca vê a depilação como uma agressão ao seu corpo SEXTANTE julho DE 2018

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o poder do like

O marketing político que influencia sua decisão com base no que você faz nas redes sociais Texto: Juan Ortiz ricoortiz.juan@gmail.com Fotos: Luiza Dorneles, Nathália Cassola e Luísa Santini dorneleslui@gmail.com nathalia.cassola@gmail.com luisasantini5@gmail.com

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seu voto tem dono


Luiza Dorneles

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A sala estava superlotada, mas eram poucas as cadeiras ocupadas. Em pé, os residentes da casa aguardavam pela chegada do intimado. Por volta das 14h40min de 10 de abril de 2018, com mais de 20 minutos de atraso, Mark Zuckerberg atravessava os corredores do Congresso americano. A face pálida refletia um nervosismo raro em figuras públicas da sua altura. O bilionário fundador do Facebook — a rede social mais popular do planeta — parecia uma criança prestes a levar uma dura dos pais. Em torno da mesa reservada para ele, dezenas de repórteres se aglomeravam como caçulas à espera da bronca no irmão mais velho. O motivo da convocação foi anunciado logo no início da sessão. “Damos a todos as boas-vindas à nossa audiência de hoje sobre a privacidade no Facebook e o uso e abuso de dados”, disse o presidente do Comitê de Justiça do Senado, o republicano Chuck Grassley. O discurso fazia referência ao vazamento de informações pessoais de 50 milhões de usuários nos Estados Unidos usadas pela consultoria britânica Cambridge Analytica em favor da campanha presidencial de Donald Trump. Outros 43 congressistas marcaram presença. Entre goles d’água, pedidos de desculpas e olhares de assustado, Zuckerberg respondeu à sabatina de perguntas por quase cinco horas. Os principais assuntos foram as regulações mais duras para empresas de tecnologia, as permissões de aplicativos bisbilhoteiros e a mina de ouro do Facebook — os anúncios direcionados. O que o empresário não sabia

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(ou não queria) responder, rebatia dizendo “preciso verificar isso com a minha equipe”. Mas teve uma pergunta em especial da qual ele não conseguiu escapar: “Senhor Zuckerberg, você se sentiria à vontade para nos dizer o nome do hotel onde ficou na noite passada?”, atiçou o democrata Dirk Durbin. O jovem magnata deu uma risada nervosa. Depois, soltou um longo “aaah, não”. O parlamentar continuou: “Se o senhor trocou mensagens com alguém nos últimos dias, nos diria seus nomes?”. Novamente, Zuckerberg deu uma negativa: “Não, senador, provavelmente preferiria não tornar isso público”. “Acho que é disso que tudo isto se trata: o direito à privacidade, seus limites, e o quanto se renuncia na América moderna em nome de conectar as pessoas pelo mundo”, rematou Durbin. No dia seguinte, o Comitê de Energia e Comércio receberia Mark Zuckerberg para uma segunda audiência no Congresso. As famosas imagens do homem que fazia fortunas de camiseta e calças jeans agora destoavam do sujeito engravatado com cara de poucos amigos.

Entenda o caso

O escândalo do roubo de dados começou em março de 2018, quando Christopher Wylie, ex-funcionário da Cambridge Analytica, aceitou revelar o que sabia sobre as operações da empresa. Com supostos fins acadêmicos, a companhia desenvolveu um aplicativo que se passava por um quiz de personalidade no Facebook. As perguntas variavam entre orien-

tação política, religião e temas de interesse. Em troca de US$ 3 a US$ 5, centenas de milhares de pessoas aceitaram participar da falsa pesquisa. O truque estava nas abusivas condições do app, que solicitava acesso às informações pessoais dos usuários, seu histórico de atividades, publicações, curtidas e, por falha na segurança da rede social, de todos os seus amigos também. Foi esse detalhe que abriu a porta para o contrabando de informações de milhões de americanos. De posse desses dados, os marqueteiros políticos criaram propagandas direcionadas para sensibilizar diferentes públicos. É como se eles dissessem exatamente o que cada eleitor queria ouvir. A culpa do Facebook nessa história se deve ao fato de não ter agido a tempo, mesmo sabendo do desvio. Além disso, a rede social foi criticada no Senado americano por fazer praticamente a mesma coisa que a consultoria política: psicografar os usuários. A diferença é que a empre-


Nathália Cassola e luísaNathália santini Cassola e Luísa Santini

sa de Zuckerberg aplica isso com fins comerciais, e não dá os dados de bandeja para anunciantes, mas atua como intermediária, alugando seus serviços. Fora as eleições americanas de 2016, há indícios de que a Cambridge Analytica tenha interferido em outras decisões democráticas, como a saída do Reino Unido da União Europeia e o processo separatista catalão.

Big data brazuca

Na última década, o tráfego informativo gerado nas mídias sociais vem despertando o interesse de quem atua nos bastidores da política. Embora a consultoria britânica tenha ganhado holofotes por suas ações controversas, várias companhias se valem de grandes conjuntos de dados — também chamados de big data — para prever tendências de públicos. É o que faz a Ponte Estratégia aqui no Brasil. Sediada num coworking na zona oeste de São Paulo, a empresa pertence ao baiano André Torretta, que se autodenomina o maior espe-

cialista na classe C brasileira. Seu portfólio tem clientes de peso: Ambev, Samsung, Unilever, Claro e Itaú, apenas para citar alguns. E tem candidato que já contratou a Ponte para as eleições deste ano. Torretta não falou publicamente para quais campanhas vai trabalhar, mas o banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) revela com quem trabalhou anteriormente: Helder Zahluth Barbalho, atual ministro da Integração Nacional do Brasil e candidato a governador do Pará pelo PMDB em 2014. Naquelas eleições, Barbalho gastou R$ 857 mil com a consultoria, uma das maiores despesas da campanha. O peemedebista fez 48% dos votos válidos no segundo turno — apenas 3% a menos que seu oponente, Simão Jatene (PSDB). No início do ano passado, Torretta firmou uma aliança com a Cambridge Analytica para a corrida eleitoral deste ano. “Minha parceria é um next step na comunicação digital aqui no Brasil”, anunciou no dia 11 de março de 2017, em sua página do Facebook. A empresa tinha sido até rebatizada como CA-Ponte. Porém, o recente escândalo nos Estados Unidos fez o baiano recuar. Em nota, a Ponte informou que suspendeu as conversas com a consultoria britânica. A mineira Stilingue é outra empresa que usa tecnologia de ponta aplicada ao marketing. A joia da companhia é um programa com Inteligência Artificial que vasculha a rede em busca de informações valiosas. Batizado de War-Room, o software consegue ler textos em português e reconhecer imagens (até mesmo “memes”, as piadas da in-

ternet). O robô facilita a gestão de imagem do cliente e permite analisar a personalidade do público, de forma semelhante aos perfis psicológicos da Cambridge Analytica. Em 2016, a Stilingue fez seu primeiro serviço para uma campanha política. O cliente foi o fazendeiro evangélico Sebastião Quintão (PMDB), que concorreu à prefeitura de Ipatinga, interior de Minas Gerais. Quintão derrotou cinco opositores e foi eleito com 54% dos votos no primeiro turno. Mas, só em abril deste ano, o TSE conseguiu barrar a candidatura da chapa vencedora com base na Lei da Ficha Limpa. Quintão havia sido condenado por abuso de poder econômico e captação ilícita de recursos na campanha de 2008. As eleições suplementares de Ipatinga ocorreram dia 3 de junho.

A guerra política online

A aposta das campanhas nas redes sociais já era considerada desde as eleições presidenciais de 2010. O que é diferente agora são as ferramentas tecnológicas disponíveis, que levam as batalhas eleitorais ao ambiente cibernético. São esses robôs inteligentes que, quase instantaneamente, conseguem prever tendências ideológicas dos eleitores, controlar grandes fluxos de dados e identificar possíveis ameaças — tarefas que seriam muito mais lentas se fossem executadas por pessoas. “Existem aspectos em que os recursos de Inteligência Artificial já superam a capacidade humana, como nos casos de tratamento de grandes volumes de dados ou na associação de informações sem as limitações da memória humana”, explica Sandro José Rigo, pesquisador de Inteligência Artificial da Unisinos. Outro desafio para estas eleições é a propagação de informações fraudulentas e o uso de contas falsas pelos grupos políticos. Em março, o Movimento Brasil Livre (MBL) teve uma página e dois perfis bloqueados no Facebook por disseminação de fake news. O grupo, que apoia candidatos à direita, como o ex-prefeito de São Paulo João Doria Jr. (PSDB), é um dos mais ativos na guerra por influência digital. De acordo com o TSE, a veiculação de informações falsas e o uso de ferramentas que alterem a repercussão das propagandas em período eleitoral podem implicar multa de R$ 5 mil a 30 mil para os autores e os beneficiados. Só “não há uma regra definida quanto ao número de multas”, avisa o próprio tribunal. Resta saber se os partidos e os exércitos digitais já estão guardando dinheiro para pagar as infrações. SEXTANTE julho DE 2018

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o poder do erro

O LADO B

errar normalmente ĂŠ visto como algo negativo, embora seja um meio poderoso de adquirir aprendizado, conhecimento e crescimento pessoal Texto e fotos: Mariana Moraes mariana45098@hotmail.com

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DO ERRO

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Na escola, grandes figuras históricas estão presentes nos livros e nas aulas. As conquistas, as descobertas, o sucesso ganham sempre destaque nas narrativas. Entretanto, o caminho que leva ao prestígio não é somente composto por acertos. A penicilina, por exemplo, antibiótico amplamente comercializado na atualidade, passou a ser estudada por causa de um erro. Alexander Fleming era médico inglês e estudava a bactéria conhecida como staphylococcus aureus. Um dia, acabou deixando sem querer algumas das culturas bacterianas sem proteção e perdeu grande parte delas. Porém, ele percebeu que um fungo havia crescido nas culturas desprotegidas e que nessas não havia mais indícios de bactérias. A partir disso, ele passou a estudar o fungo, descobrindo a substância que destruía as bactérias, a penicilina. Desde a infância, somos incentivados a buscar os acertos, as notas mais altas, o primeiro lugar. As redes sociais hoje são um verdadeiro mural de conquistas. Um amigo conseguiu um novo emprego, outro está iniciando um relacionamento. Todos gritam A estudante Ana Paula ingressou no curso de Políticas Públicas da UFRGS depois do quarto vestibular

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seus sucessos, mas poucos falam dos erros que os acompanhou. A psicóloga Lúcia Ruduit, professora na faculdade Dom Bosco, de Porto Alegre, explica que o erro é fundamental e nos constitui como humanos. “Toda criança começa aprendendo através do que chamamos de ensaio-e-erro. Ela experimenta alguma coisa e aos poucos vai vendo se aquilo dá certo ou não, incorporando como uma aprendizagem.” Percebe-se que muitas pessoas têm dificuldades em aceitar os erros e vê-los como forma de aprendizado. De acordo com Lúcia, esse medo de errar é fruto de diversos aspectos culturais e sociais, como a criação da família e características da nossa sociedade. “Temos uma exigência muito grande em cima do outro, sobre as atitudes, então muitas vezes nós próprios nos tornamos os algozes do outro e sofremos isso também.” Lúcia destaca que, em função dessa percepção do erro como algo ruim, muitas pessoas exigem demais de si mesmas e acabam por perder situações de aprendizado. Ana Paula Pereira, de 21 anos, sentiu isso na pele durante seus quatro vestibulares. Ela ingressou no curso de Políticas Públicas da UFRGS em 2018, depois de três anos de cursinho pré-vestibular. “Quando você está estudando para o vestibular e vê que os outros estão curtindo, que estão numa nova fase, e você está ali, é difícil. Você começa a se cobrar, essa cobrança é ruim porque te atrapalha.” Ana conta que adquiriu maturidade com essa experiência, descobrindo até mesmo qual curso tinha mais interesse. Anteriormente, ela pensava em cursar Relações Internacionais, mas percebeu que o curso de Políticas Públicas tinha mais a ver com as suas expectativas. “A cada ano que passava eu conhecia pessoas novas, eu

aprendi a estudar, aprendi a ter foco, aprendi a ter disciplina, aprendi a ser mais responsável, eu evoluí.” Muitas vezes na vida o caminho trilhado pelos outros parece ser o melhor e que qualquer coisa fora disso constitui um erro de percurso, mas cada vivência é muito diferente. “Eu pensava que passar na UFRGS de primeira ou de segunda, passar logo, era a coisa certa a fazer e que não importava o caminho, eu tinha que passar, só que não. Para você ser aprovado no vestibular, tem que passar por mil coisas além das provas”, destaca Ana.

Conhecimento e erro estão conectados Essa concepção negativa do erro é algo presente desde a escola. Já nos anos iniciais, a busca pelos acertos é incentivada pelos professores. Os alunos que sabem as respostas, que tiram as notas mais altas, são os que se destacam. Gustavo Borba, professor da pós-graduação em design e diretor da Unidade de Graduação da Unisinos, vai contra essa concepção. “Num processo de sala de aula, é inegável a necessida-


de de ter espaço para o erro.” Gustavo diz que, quando os alunos fazem uma prova, por exemplo, dificilmente vão esquecer as questões que erraram, pois esse erro aciona gatilhos ligados ao desejo de saber mais e de frustração de não ter conseguido acertar. “A sala de aula é um laboratório, é o lugar em que a pessoa tem que errar.” De acordo com Gustavo, o erro é quase um pressuposto para o processo de inovação e a forma como as pessoas são educadas na escola pode afastá-las disso. “A lógica clássica que a gente acaba sendo educado faz com que a gente gere um padrão de comportamento que vai se espelhar em tudo que fazemos, tanto na vida empresarial como na vida pessoal.” Adriano Gomes, de 36 anos, é dono de uma loja de roupas situada em Parobé, na Grande Porto Alegre. Ele conta que as derrotas e os fracassos fazem parte do dia a dia de qualquer empresa. Os dias ruins servem para não se acomodar. Adriano é formado em comércio exterior e abriu o seu negócio em 2015. Ele mora em Cachoeirinha, mas optou por abrir seu estabelecimento na cidade de Parobé, a 80 quilômetros. “Comecei a estudar o mercado, a cidade de Cachoeirinha já era muito saturada de loja, já em Parobé tinha um potencial.” Quando abriu seu negócio, Adriano ficou três meses em uma galeria de Parobé. Nesse tempo, ele percebeu que seu público não chegava até lá e decidiu mudar para uma localização mais central. “Eu nem considero como um erro, ficou como aprendizado. Hoje, se eu for montar outra loja, eu já vou ver bem essa questão do lugar, da movimentação.”

Nilde acha que errou ao ter ficado cinco anos sem falar com a irmã

Todo mundo fracassa

Muitas pessoas engavetam ideias pelo medo do erro, do fracasso, o que pode ser limitador. O fato dos erros nunca ganharem visibilidade é um fator que contribui para isso. Parece que todo mundo é perfeito, e muitas pessoas perseguem essa perfeição irreal. O evento Fuckup Nights vem exatamente na contramão dessa ideia. O Fuckup Nights é um evento global, que começou no México e acontece em diversas cidades ao redor do mundo, incluindo Porto Alegre. O objetivo é que empreendedores dividam suas histórias de fracasso, como forma de desmistificá-las. “É impossível chegar em determinado patamar sem nunca ter errado. Sempre tentamos pegar uma pessoa de cada área, para que em algum momento elas (a platéia) identifiquem que aquilo pode acontecer com elas também ou que já aconteceu”, conta Manoela Radtke, uma das organizadoras do Fuckup Nights em Porto Alegre. O evento acontece a cada dois meses, sempre em um lugar diferente. “A gente fala às vezes na abertura: o legal de fazer um evento sobre fracasso é que se tudo der errado aqui, está tudo bem. Não é um evento que tem que sair perfeito, então a gente tenta disseminar essa ideia de que as pessoas parem de ser tão sérias, parem de se cobrar tanto.” O erro está presente em todas as esferas da vida. Nos relacionamentos não é diferente. Ninguém sabe exatamente quais as atitudes, as palavras que se deve ter com o outro. Os relacionamentos são um campo de acertos e erros. Afinal, lidar com outro ser humano é estar em constante aprendizado. Nilde Lúcia Marques, de 66 anos, aposentada, teve problemas no relacionamento com sua irmã Regina. Elas

passaram cinco anos sem se falar por causa de uma briga. A desavença aconteceu porque Regina não ia ver a mãe, que morava com Nilde. “Eu não tinha raiva, eu tinha mágoa.” Em 2011, as duas voltaram a se falar, quando Regina voltou a visitar a mãe; mas em agosto do ano seguinte, Regina faleceu, vítima de câncer. “Eu ia todo dia no hospital ver ela. Depois que ela ficou doente, eu queria sempre ficar próxima dela, queria fazer tudo pra agradar ela”. Nilde percebeu que não valeu a pena ter ficado todo aquele tempo desentendida com a irmã. “Eu me arrependo de ter ficado tanto tempo longe, de não ter procurado, nessa parte eu errei. O tempo passa voando, e você nem vê.” O arrependimento é algo que pode acompanhar constantemente o erro. Ninguém quer errar. Ninguém gosta de errar. Mas seja nos relacionamentos, no âmbito profissional ou na educação, o erro sempre vai estar presente. É por meio dos erros que o ser humano pode ser cada vez melhor. Evitá-lo é algo praticamente impossível, e a tentativa pode custar ensinamentos e amadurecimento que são essenciais. Errar é algo inerente a todos. SEXTANTE julho DE 2018

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O Poder da música

Os sons da maternidade Musicoterapeuta utiliza o canto materno como ferramenta para estreitar laços entre mães e bebês prematuros na UTI Neonatal Texto: Liz Diaz lizrdiaz@hotmail.com

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Thais furtado

Você está sozinho em uma sala escura. Pequena o suficiente para que não se sinta solitário. Aconchegante o suficiente para que você descanse. Na qual tudo que se tem é um barulho ritmado de um tambor, acompanhado por aquele que poderia ser o som do mar. Mas é como se você estivesse dentro desse mar. Ouvindo murmúrios de conversas das quais não faz parte. Até que, em meio a elas, ouve-se uma voz clara e familiar. Ela é feminina e parece ressoar em todo seu corpo. Ela é a sua mãe. E você vai entender isso depois de nove meses dentro dela, ou talvez

em menos tempo, se você for apressado. Assim se passa a vida de um feto até que alguém o expulsa do aconchego do ventre materno e o apresenta o mundo externo. De uma forma assustadora, a sala agora está cheia de gente, e os barulhos são mais próximos e não se pode mais reconhecê-los. Para um bebê, o contato com a realidade é hostil. Com o intuito de manter uma continuidade sonora e sensorial do bebê com o ambiente do útero materno, a musicterapeuta e mestre em Psicologia do Desenvolvimento Ambra Palazzi realiza um projeto de pesquisa focado no uso da musicoterapia a favor da interação da mãe e do bebê prematuro em uma realidade de UTI Neonatal. “A musicoterapia é o uso da música e de elementos musicais para fins terapêuticos, reabilitativos ou preventivos em áreas como a saúde e a educação”, explica. Na pesquisa, Ambra aplica a musicoterapia com

uma abordagem centrada na família: “Eu trabalho principalmente com o canto de músicas selecionadas pelas mães e também apoiando o canto materno para fortalecer o vínculo mãe-bebê”. O ambiente da UTI Neonatal marca uma total descontinuidade em relação ao que o bebê estava acostumado. Há uma hiperexposição a estímulos nocivos por serem sons em um volume ou frequência superiores ao que foi experienciado no mundo intrauterino. “Neste ambiente desconhecido, falta tudo que o bebê deveria ter para um desenvolvimento saudável: a SEXTANTE julho DE 2018

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ARQUIVO PESSOAL

presença da mãe, seu toque, cheiro e voz”, destaca Ambra. A valorização da voz e, portanto, do canto materno no trabalho da musicoterapeuta se deve justamente à intenção de proporcionar ao bebê a sensação de continuidade de um mundo que foi perdido no momento do nascimento. Para isso, são utilizados instrumentos auxiliares que reproduzem sons conhecidos, como o tambor oceano – que imita o som do mar de modo a remeter aos sons líquidos do útero, assim como o tambor de língua, através do qual é possível reproduzir o ritmo da frequência cardíaca. Ambra explica que, desta forma, se substitui a hiperestimulação da UTI Neonatal por um impulso mais saudável: “A

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musicoterapia instiga o bebê a partir de sons que façam mais sentido e sejam mais previsíveis e que, por consequência, promovam um efeito calmante”.

A interação na musicoterapia em UTI Neonatal

Segundo o Ministério da Saúde, à medida que cresce o número de bebês prematuros no Brasil – entre 2000 e 2005 o aumento foi de 13% – crescem também as possibilidades destas crianças sobreviverem após o parto. A taxa de sobrevivência dos bebês com peso entre 1 e 1,5 Kg é de 80%. Já aqueles com menos de 1kg, o índice é de 50%. Ambra aponta que a prematuridade é uma condição relativamente nova, a qual a tecnologia tornou possível: “Hoje é viável que um bebê nasça com cinco meses de gestação e 700 gramas, no entanto o prematuro é muito frágil”. O ponto é como não só trazer esta criança ao mundo, mas também possibilitar os cuidados necessários para garantir o melhor desenvolvimento para este bebê.

O potencial da musicoterapia está na capacidade de fazer o elo entre os mundos intra e extra uterino em um momento em que o bebê deveria ainda estar dentro do útero. “Durante a gravidez, é como se o bebê estivesse imergido na voz da mãe, pois escuta as vibrações da voz em qualquer ponto de sua pele”, ressalta Ambra. A musicoterapeuta afirma que, se a mãe canta, produz hormônios que fazem com que ela se sinta bem, e o bebê reflete esta sensação de bem estar. O ideal seria o bebê nascer e já ir para o colo da mãe para reconhecer o cheiro e a voz materna e identificá-la como mãe – é uma experiência multisensorial, que une olfato, audição e tato. No entanto, os pre-


maturos precisam ficar em incubadoras. “Quanto mais reproduzirmos esta multisensorialidade, mais conseguiremos ajudar no vínculo inicial entre mãe e bebê.” Para Ambra, a interação é o foco de todo este processo: “O bebê nasce com determinadas competências para enfrentar o mundo, mas só compreende o que acontece ao seu redor por meio das interações com os outros”. A musicoterapeuta observa que, se fosse possível alimentar um bebê de forma constante e repetitiva – como uma máquina – essa interação geraria um repertório muito limitado, pois ofereceria um único estímulo sem deixar espaço para que o bebê desenvolvesse algo além do movimento já co-

Ambra trabalha com músicas selecionadas pelas mães para fortalecer o vínculo delas com seus bebês

nhecido. A música ao vivo, do contrário, proporciona uma infinidade de estímulos para o desenvolvimento de competências. Ambra explica que a música se sincroniza ao bebê e este, por sua vez, consegue se auto regular. “O bebê acaba aprendendo coisas de si mesmo através da interação com o outro e este é o fundamento do desenvolvimento infantil”, enfatiza. O contato com o diferente, na musicoterapia, se dá por uma mescla de fatores. Pela eficácia do método, poderia-se utilizar canções de ninar, no entanto o processo une as características da música, da pessoa que está tocando o instrumento – musicoterapeuta, e de quem está ouvindo – paciente. Por isso, mais do que disponibilizar este momento com a música, é preciso focar nas interações. O bebê prematuro, por exemplo, não vai cantar, mas isso não quer dizer que não vá responder aos estímulos provocados pelos sons. A respiração do bebê é um dos indicativos: “Quem toca o instrumento vai moldá-lo e sincronizá-lo de acordo com as respostas do bebê, igualando o som aos padrões rítmicos da respiração do bebê”, exemplifica Ambra. As reações da mãe também são consideradas, pois, ao escolher músicas de sua preferência, a mãe se torna mais responsável e útil nesse processo. “O estímulo é mais emocionante porque esta é a música que a mãe escolhe compartilhar e dedicar ao bebê”, aponta. Quando a mãe canta com emoção é mais provável que o vínculo criado com o bebê seja mais forte e que o efeito da música sobre a mãe seja mais calmante. Os benefícios da prática da musicoterapia são tanto para o vínculo como para os sujeitos dessa relação. Por parte da mãe, há evidências de que este trabalho reduza a ansiedade principalmente quando as músicas forem significativas para a paciente. Além disso, um estudo da UFRJ, realizado por Martha Negreiros e publicado no Jornal de Pediatria, aponta que a música pode ser responsável por um aumento do aleitamento materno entre mães de recém-nascidos prematuros. O bebê prematuro é ainda mais beneficiado neste tipo de tratamento, as evidências abrangem tanto as respostas fisiológicas do bebê como favorecimento da saturação do oxigênio, respiração, frequência cardíaca, ganho de peso diário, assim como é ferramenta para relaxar e acalmar o bebê. “A musicoterapia na neonatologia é uma área nova de estudo, a qual tem se desenvolvido e mostrado cada vez mais resultados

“Durante a gravidez, é como se o bebê estivesse imergido na voz da mãe, pois escuta as vibrações da voz em qualquer ponto de sua pele” Ambra Palazzi musicoterapeuta

promissores”, afirma Ambra. Ambra aplicou seu estudos inicialmente no Hospital Presidente Vargas, em Porto Alegre, em 2015, hoje está em fase de seleção dos grupos de famílias a participarem de uma fase da sua pesquisa de doutorado, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Hospital Conceição, também na cidade de Porto Alegre. Ambra ressalta a receptividade das mães que, em meio a correria de uma UTI, se entregam às práticas da musicoterapia e se permitem contagiar pela emoção e expressar seus sentimentos. “Os relatos das mães é de que aquele é um momento de distração em que podem esquecer os problemas, o canto para elas é uma bolha feliz em meio as ansiedades causadas pelo ambiente da UTI Neonatal”, observa Ambra. A musicoterapeuta relata que quando começavam a cantar aos poucos não se ouvia mais os sons ao redor e, ao mesmo tempo, o ambiente era afetado, pois as outras pessoas passaram a baixar o volume das vozes e respeitar aquele momento que pertence à mãe, ao bebê e à musicoterapeuta. SEXTANTE julho DE 2018

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o poder da representatividade

Meu nome ĂŠ

valĂŠria

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RODRIGO BRAGAGLIA

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Texto: Paula Barcellos paula.barcellos@ufrgs.br

Dona de uma voz afiada e que se potencializa quando canta suas músicas de letras fortes e empoderadas, Valéria – antes, Houston – se tornou uma das cantoras mais reconhecidas da noite porto-alegrense. Além de seu talento, sua voz também tem importância na luta pelos direitos LGBT. Encontrei-a na Livraria Cultura, em Porto Alegre, antes de sua apresentação do espetáculo intimista Morangotango Uma declaração de amor. Agitada, andava de um lado para o outro falando com todos da equipe, preocupada com a passagem de som e com o tempo para se arrumar e ser maquiada. Finalmente conseguimos sentar em silêncio no pequeno camarim. Ela me pediu desculpas pelo local não estar arrumado ainda, enquanto rapidamente organizava algumas coisas – apenas uma dezena de acessórios brilhantes e coloridos já estavam em ordem sob uma mesa. Disse para ela ficar à vontade. “Bom, então enquanto conversamos eu vou pintando as minhas unhas.”

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Como foi crescer em Santo Ângelo, no interior do Rio Grande do Sul, sendo uma criança transexual? Além de ser um lugar muito preconceituoso com relação à sexualidade, é muito racista também. Para mim foi muito difícil ser uma criança trans, até porque essas coisas não eram muito difundidas, então causava uma confusão, uma falta de entendimento. Ao mesmo tempo, eu tinha uma vontade de querer saber e de precisar saber. Foi bem difícil. Eu contei para minha mãe aos 18 anos, porque ela era a pessoa que eu devia mais satisfação em relação a isso, os outros não me interessavam muito. Ela ficou uma semana sem falar comigo [risos] e depois ela voltou a falar comigo, foi a minha melhor amiga. Você se considera uma militante LGBT? Eu não tinha muita noção dessas coisas porque eu achava que eu ia fazer meu trabalho, cantar as minhas músicas e estava ok. Mas eu comecei a receber muito feedback disso, falando ‘nossa, tu me representas’, e eu comecei a olhar isso com outros olhos. Quando eu fui agredida na rua da República no dia 30 de agosto de 2015, eu fui esfaqueada por um cidadão transfóbico que no meio de muitos xingamentos me disse ‘o teu lugar não é aqui’. E aquelas palavras ficaram na minha cabeça, sabe? E eu pensei ‘nossa, ele tem razão, de uma certa forma’, porque meu lugar não é aqui. Eu poderia estar fazendo outras coisas, muitas outras coisas para outras como eu, outros como eu que não tem essa facilidade, essa voz. Porque eu sou uma voz que sou ouvida literalmente. Então esse episódio fez

Gerson roldo

A cantora gaúcha fala sobre as batalhas travadas por ser quem é: mulher negra transexual

com que eu pensasse mais em relação a isso. Hoje me considero militante mesmo e ativista, mas até então eu não tinha muita consciência. Qual a importância da representatividade? Toda a importância do mundo! Eu fico muito puta da cara quando eu vejo as pessoas falando ‘nossa, mas agora tudo é isso, porque agora querem colocar essas pessoas em todos os lugares’. A gente sempre esteve em todos os lugares, a gente precisa é de visibilidade. Veja bem, quando eu era adolescente, perdida num mundo de possibilidades que eu não conhecia, eu não tinha ninguém que me representasse. Durante muito tempo, eu não sabia se essa minha vida de cantora trans preta iria dar certo, embora esteja aqui na minha


cara. Uma amiga minha, Elisa Lucinda, diz que nós somos corpos parlamentares, que nossos corpos falam por nós mesmos. Eu tive que ser o meu próprio espelho, eu tive que ser a minha própria representatividade. Hoje eu vejo outras se espelhando em mim e eu acho isso incrível. Nós temos que ocupar todos os espaços como um rio que às vezes não respeita margens. Que tem as suas margens, mas que acaba transbordando e levando tudo. Nós temos que acabar fazendo a nossa vida dessa maneira. Você acha que o meio das artes é mais aberto às pessoas transexuais em comparação a outros meios? Nunca foi e nunca será. Não passeamos por um lugar permissivo em nenhum espaço, nem no próprio meio

“Eu tive que ser o meu próprio espelho, eu tive que ser a minha própria representatividade. Hoje eu vejo outras se espelhando em mim e eu acho isso incrível”

trans, nem nas artes, muito menos na política, ou seja onde for. As artes talvez nos deem um pouco mais de facilidade de entradas, mas isso não quer dizer que a nossa permanência seja fácil. As artes parecem muito permissivas, mas não são. É como no ambiente universitário. Nós pensamos ‘nossa, universidade, pessoal com cabeça aberta’. Mentira, não é nada. O povo é muito misógino, muito xenófobo, muito machista, muito transfóbico, muito gordofóbico, tudo isso disfarçado de palavras bonitas. Você era conhecida como Valéria Houston, mas agora está abandonando o Houston. Como surgiu esse nome? Eu participei do concurso de rainha do Carnaval lá em Santo Ângelo, o primeiSEXTANTE julho DE 2018

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Como foi o processo legal de mudança de nome? Eu já tenho a retificação civil (mudança de nome) na minha certidão de nascimento, escrito Valéria Barcellos, sexo feminino e gênero feminino. Foi uma luta. Dois anos para trocar o nome e mais meio ano para trocar o sexo e o gênero na certidão. É uma coisa doida demais, tive que passar por uma perícia forense, um psiquiatra me consultando. Para que qualquer outra pessoa trans tenha essa retificação, deve provar que tem uma disforia de gênero — tem que provar que é louca para poder fazer isso. E nós estamos tentando fazer essa mudança, de tirar essa patologia, mas se tirar isso não pode trocar o nome. Então ficamos nesse impasse: ou é louca, ou não pode trocar o nome. E ainda falam que a nossa vida é fácil. E por que você considera importante essa questão do nome? A gente não sabe o que aquela pessoa passou. Cada caso é um caso. Não é apenas uma questão burocrática e de deixar bonito com um nome do documento. Nós não sabemos a história dessa pessoa trans, não sabemos se ela foi abusada na infância, não sabemos se ela sofreu bullying — que com certeza deve ter sofrido com esse nome masculino sendo uma figura feminina. Deve se pensar nisso. Uma retificação de nome, mais do que dignizar, é talvez deixar para trás uma carga toda

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RODRIGO BRAGAGLIA

ro concurso de rainha gay do Carnaval lá. Eu precisava de um nome. Até então eu usava meu outro nome, que era Rodrigo, no feminino. Uma trans amiga minha falou que eu tinha gingado da Valéria Valença, globeleza, e a voz da Whitney Houston, então ficou Valéria Houston. Quando eu vim para Porto Alegre, em 2005, eu precisava de algo de destaque, então não teve coisa melhor que Valéria Houston, porque as pessoas perguntavam se eu dublava as músicas da Whitney Houston, e eu falava que não, que eu cantava. Era um gancho para que eu pudesse trabalhar, mas a minha carreira tomou uma outra direção. Eu sou uma cantora de música brasileira, sou muito mais do que a cover da Whitney Houston como eu fazia. Hoje em dia nós achamos melhor deixar muito brasileiro isso e usar como norte essas cantoras que não têm muita importância, como ‘Madonna’, ‘Beyoncé’ [risos], e deixar só Valéria, para ficar uma coisa bem brasileira também.


ValĂŠria fez a abertura do show da cantora norte americana Katy Perry, que ocorreu em Porto SEXTANTE Alegre em dezembro dejulho 2017 DE 2018

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de bullying e sofrimento que essa pessoa trazia. Então muito mais do que uma questão ‘estética’, é uma libertação de uma carga pesada de outra coisa que essa pessoa trazia com aquele nome, de abuso sexual, de abuso com a sua imagem. O que é ser mulher pra ti? O que é ser mulher para ti? [silêncio] É ser. Além das questões muito utópicas de que ser mulher é ser muito sofrimento, é importante deixar claro que ser mulher trans não tem muita diferença, apesar do nosso físico [risos]. É algo que não se explica, é simplesmente ser, é algo que a gente só sente. Eu lembro de quando eu era criança e fui tomar banho com a minha mãe e eu a vi sem roupa e perguntei ‘mãe, o que que é isso?’, perguntando da genitália dela. Ela achou que eu estava falando dos pelos pubianos e me disse ‘quando tu cresceres, tu vais ter também’. E também tinha uma tia que ia na minha casa e ela tinha uma verruga que ela ficava cauterizando e voltava. Eu pensava ‘já sei, vai cair’. Eu fiquei esperando a vida toda, o que não aconteceu. O que me chocou mais não era eu ser menino, o que me chocou era eu não ser menina, porque eu tinha certeza. Então eu digo que ser mulher é simplesmente ser, e não é nenhuma tentativa, é ser mesmo com todas as dores e todas as agruras. Como você lida com os padrões de beleza? Eu tinha muito problema com estética, até que eu entendi que esse ser mulher passa bem longe da estética. Que mulheres usam cal-

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“O que me chocou mais não era eu ser menino, o que me chocou era eu não ser menina, porque eu tinha certeza. Então eu digo que ser mulher é simplesmente ser, e não é nenhuma tentativa, é ser mesmo com todas as dores e todas as agruras”

ça jeans, que mulheres não se maquiam, que mulheres usam camiseta, que mulheres usam calça de moletom, que mulheres não são tão delicadas assim e que não tem que ser aquele bibelô de porcelana que fica em cima da estante. Eu sofri muito com esses padrões estéticos, porque o padrão estético transexual é todo um padrão “Amélia”. Eu não sou esse tipo de mulher. Desculpa, sociedade. Não consigo ser esse tipo de mulher. Sou uma mulher com

força e que cagou para os padrões estéticos. Não estou maquiada nesse momento e acho que é super-válido. As pessoas se prendem a esses padrões estéticos muito pequenos. Os padrões estéticos são muito cruéis na verdade, é isso que me assusta mais: impor que você tem que ser assim. O que te empodera? Cultura me empodera muito. Acho que dar uma resposta para uma pessoa que fica duas horas tentando entender o que tu falaste porque ela não sabe o que tu estás falando, porque ela não tem esse entendimento, é a melhor coisa da vida. Melhor arma é o conhecimento, a cultura. A cultura geral, de se informar, de querer saber dos assuntos. Hoje a gente tem juiz de facebook, jornalista de facebook, um monte de coisas do tipo. Então acho que o verdadeiro empoderamento é a cultura. Em março você fez a abertura do show da Katy Perry em Porto Alegre. Como foi essa experiência? Quais os impactos na tua carreira? Durante muito tempo eu vou ser a menina que cantou na abertura do show da Katy Perry. E eu acho ótimo, porque estou na pauta e não estou na página policial, estou na pauta e não estou sendo rechaçada ou ridicularizada por qualquer outra coisa. Foi muito lindo, ela é uma pessoa muito iluminada, tem uma benevolência muito grande. E eu agradeci por ela ter feito uma coisa muito maior, não foi só por mim, mas por uma parte da população que são as mulheres trans pretas daqui do Brasil.

TÂNIA MEINERZ


o direito a um novo nome O novo código civil, de 2002, esclarece que toda pessoa tem direito ao nome, compreendido como prenome e sobrenome. No caso de Valéria, e tantas outras transexuais no Brasil, esse direito de ter um nome com o qual se identifica só é, em geral, conquistado com uma luta judicial. A advogada Márcia Abreu, membro da comissão de diversidade sexual da OAB/RS, explica que até então não havia nada específico na legislação brasileira sobre o direito de transexuais à mudança de nome. O que ocorria era a criação de jurisprudências, ou seja, decisões que servem de parâmetro para novos processos. Assim, era preciso que o interessado entrasse com um processo judicial para a mudança de nome. Em março deste ano, uma ação ingressada pela Procuradoria Geral da República criou uma jurisprudência em que o interessado poderia se dirigir diretamente a qualquer cartório e fazer a mudan-

ça de troca de nome, independente da troca de sexo e de decisão judicial. No Rio Grande do Sul, a regulamentação foi feita em maio, sendo o segundo estado a normatizar a atuação dos cartórios em relação às retificações. O que está em questão é como esse processo será feito. Até o momento, ao entrarem na justiça, pessoas transexuais devem passar por um processo que inclui um laudo psiquiátrico e, em alguns casos, testemunhas para comprovar que a sua identidade de gênero é diferente do gênero em que nasceu. Na opinião de Márcia, não é o laudo que comprovaria que a pessoa tem uma identidade de gênero diferente ou não. “Eu acho que é o fato de ela provar que ela realmente sofre todos os tipos de violência com relação ao fato de não se identificar com aquele gênero. É a minha opinião, mas não é a opinião do Ministério Público atualmente, nem de alguns juízes”, conclui.

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o poder da união

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Grupos femininos como espaços de empoderamento Texto e fotos: Marcie Gottschalk gottschalkmarciele@gmail.com Fotos: Nathália Gonçalves oi@nathaliagoncalves.com


Marcie Gottschalk

Ser mulher e andar sozinha é difícil. E não só porque tem assédio em cada esquina, medo em cada rua escura. É difícil porque o mundo ainda não nos comporta. Parece que não nos suporta. Dentro disso tudo, há que se existir. Resistir. Essas palavras podem parecer vazias se você não faz ideia do que é ser mulher, mas são essas cicatrizes e particularidades que nos unem. E essa união que nos fortalece. A criação de espaços de encontro exclusivos para mulheres não é nenhuma novidade. Em 1922 era fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, organização cujo objetivo era defender e reivindicar os direitos das mulheres. Independentemente de qual seja o segmento — os clássicos clubes de mães ou de leitura, os espaços religiosos ou de militância —, uma coisa é comum: a troca de experiências. É através dela e da criação de uma identidade coletiva que mulheres constroem redes de cumplicidade, seja para lutar por direitos, se capacitar ou compartilhar suas histórias.

Oásis literário

Encontro mensal do grupo União Feminina de Charqueadas

A tarde de sábado era marcada por uma chuva intensa que escorria incessantemente pelas janelas desde o início da manhã. Chuva daquelas que nos fazem pensar duas vezes antes de sair de casa. Ainda assim, às 16h, cerca de 15 mulheres se reuniam na Biblioteca Pública Municipal Josué Guimarães, em Porto Alegre, com seus livros, ou leitores de livros digitais, todos com uma capa comum: ‘As boas mulheres da China’, da escritora chinesa Xinran. Dez minutos de conversa paralela, mais algumas participantes chegam, e inicia-se então o encontro mensal do Leia Mulheres Porto Alegre, grupo que existe desde agosto de 2015. Antes de abrir o espaço para a discussão da obra, Clarissa Xavier, 40 anos, fundadora do grupo na capital, convida as participantes a analisarem as publicações da editora, descritas no final do livro: “Se tu for ver, tem nove livros de mulheres (de um total de 81 obras). Enquanto a lista estiver assim, precisamos ter o grupo! A gente ainda tem muito o que gritar”. A discrepância na publicação de obras femininas também foi objeto de interesse da pesquisadora Regina Dalcastagné, que constatou que 72% dos romances publicados no Brasil entre 1990 e 2004 eram escritos por homens. Dez anos depois, era lançado o guia ‘Por que ler os contemporâneos?’, reunindo 101 escritores que traduziam o nosso tempo. Apenas 14 eram mulheres. Buscar um olhar feminino do mundo foi o que deu origem aos 75 grupos vinculados ao Leia SEXTANTE julho DE 2018

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Arquivo pessoal

“Se a gente não pensar o que tá lendo, só lê homem. Se a gente só pensar em mulher, só lê mulher branca americana” Helen Pinho

mODERADORA DO GRUPO leia mulheres Grupo Leia Mulheres se reúne uma vez por mês para discutir obras escritas por autoras

Mulheres espalhados pelo Brasil. A cada encontro, novas obras, novos debates, trocas de experiências e uma alta dose de respeito, que pode ser percebida em cada pedido de desculpas recebido quando as participantes falam ao mesmo tempo, ou na tentativa constante de se colocar no lugar da outra, seja ela autora, personagem ou mulher, e entender sua vida, o que pauta sua percepção do mundo. Nesse sentido, é mais do que importante a pluralidade de relatos. E de mulheres. A meta do ano para o grupo é ler pelo menos 50% de obras escritas por autoras não brancas: “Se a gente não pensar o que tá lendo, só lê homem. Se a gente só pensar em mulher, só lê mulher branca americana”, enfatiza Helen Pinho,32 anos, administradora por profissão e moderadora do grupo. Entre capítulos e leituras de trechos específicos, peque-

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nos desabafos vão se soltando, seja do ambiente de trabalho majoritariamente masculino e machista de uma, dos desafios de outra, de tudo que envolve ser — e tornar-se — mulher. Para uma das participantes e moderadoras do grupo, a engenheira florestal Maurem Kayna, 45 anos, a experiência envolvida em toda essa troca é fantástica. “Qual foi a visão que a outra pessoa teve daquilo que tu leu? O que despertou para o outro e para ti não? Amplifica. Multiplica o potencial transformador da leitura.” Para Helen, o grupo é uma espécie de oásis. “Tem pessoas que às vezes nem leram o livro, mas ficam ali, só pra ouvir. Vira um local que essas pessoas se sentem acolhidas”, finaliza.

O dia é delas

Se você tivesse um dia para si, longe das obrigações de trabalho, estudo ou família, o que faria? Iria se divertir com os amigos? Aprender algo novo? Pois é isso que fazem as participantes da União Feminina de Charqueadas, grupo que se reúne uma sexta-feira por mês, das 9h às 16h. Fundado em maio de 2015, o grupo, ligado à Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), reúne agricultoras, pescadoras, professoras e artesãs da cidade de Charqueadas, que fica a 58 km de Porto Alegre. A data do encontro é sempre aguardada: “A gente tem uma agenda, então vai chegando perto do dia, eu já fico me preparando, sempre tem uma novidade, eu adoro

estar aqui!”, conta uma das fundadoras do grupo, a aposentada Vânia Maria Silva de Lima, 55 anos. Reaproveitamento de alimentos; artesanato com matérias-primas como escamas de peixe, sementes e ervas; receitas; produção de sabão e sabonetes naturais e a participação em um coral, que se apresenta em datas comemorativas, são só algumas das atividades desenvolvidas. No meio de tantas opções, é outro o aspecto preferido das participantes: a união. “É praticamente uma segunda família. Se vamos fazer um artesanato, a que sabe ajuda aquela que não sabe. Se uma termina o seu primeiro, ajuda a que não terminou. São todas como irmãs, nenhuma deixa a outra mal”, comenta a pescadora Eva Janice Silveira de Castro, 50 anos. “Se tu tem um problema, todas elas te ajudam”, resume a professora aposentada Vilma Marinho,62 anos. Entre uma atividade e outra, com o chimarrão sem-


pre passando, as mulheres conversam sobre a família, a casa, os acontecimentos da cidade, histórias engraçadas, lembranças de suas vidas e inúmeros acontecimentos do grupo – as viagens que fizeram, as gincanas, o primeiro aniversário da neta de uma, as noites do pijama, as cervejinhas compartilhadas… Assunto é o que não falta para essas amigas que parecem se conhecer desde sempre, assim como o carinho, que se faz presente em cada abraço e, até mesmo, nas atividades mais primordiais, como lavar o prato da outra ou ajudá-la a fazer um laço. A pergunta mais ouvida, em cada canto, é “e como tu tá?”. O carinho do grupo e os conselhos das mulheres mais maduras foi o que fez com que Suélen de Souza Nunes,20 anos, se tranquilizasse sobre sua gravidez. “Eu não queria ter engravidado tão cedo, aí elas começaram a me aconselhar, a contar como era bom ser mãe.” Meses depois, era ela quem passava os ensinamentos adiante: “Como foi uma gravidez atrás da outra aqui no grupo, eu dei conselhos, disse que era uma experiência muito complicada, mas muito boa”. Suélen é a filha mais nova da pescadora Iracema Maciel de Souza,55 anos, outra das fundadoras do grupo, que fala cheia de orgulho sobre a netinha Ana Jullya, de quase dois anos, participar das reu-

Fotos: Marcie Gottschalk

Nos encontros do União Feminina de Charqueadas, as participantes confeccionam sachês (acima) e sabonetes com ervas naturais, entre outras atividades

Iracema, sua filha Suélen, a nora Franciele e as netas Lívia e Ana Jullya são participantes do grupo

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Fotos: nathália gonçalves

A presença de mães lactantes com seus bebês foi um dos destaques do Django Girls 2018, oficina de programação gratuita para mulheres

niões desde que tinha apenas dezoito dias. Entre organizar a agenda do dia, orientar cada passo das atividades e combinar o que será feito no próximo encontro, que marca o aniversário do grupo, a tecnóloga em Desenvolvimento Rural da Emater Letícia de Lima, 38, conta animada sobre os próximos planos e as surpresas que prepara para a gincana que se aproxima, chamada ‘Encontro das vizinhas’. “Isso aqui, esse momento só nosso, é uma terapia pra mim também.” Muito se fala sobre conceitos como feminismo, empoderamento, sororidade, empatia. Ainda que alheias à maioria deles, as participantes da União Feminina fazem jus a seu nome e criam espa-

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ços de apoio, seja para aprender algo novo, aconselhar sobre uma situação que já viveram ou trocar experiências. Param tudo, uma vez por mês, para cuidarem de si. E das outras. Quando questionadas sobre a possibilidade de homens participarem do grupo, a resposta foi unânime: este dia é da mulher e só dela.

Um caminho sem volta

Bastante promissora em termos de carreira e salários, a área da tecnologia da informação ainda é para poucas. Segundo o relatório ‘Por um planeta 50-50 em 2030: mulheres e meninas na Ciência e na Tecnologia’, lançado pela Unesco em fevereiro de 2018, as mulheres detêm apenas 18% dos títulos de graduação em Ciências da Computação e são 25% da força de trabalho da indústria digital no mundo. Aumentar esses números é um dos objetivos do Django Girls, oficina de programação gratuita para mulheres. Criado em 2015, o evento acontece em dois dias e busca que, através da linguagem de programação Python, as mulheres criem um

site, dando o primeiro passo rumo a autonomia tecnológica. Para participar é preciso preencher um cadastro no site, com informações pessoais, como vulnerabilidade, renda, identidade de gênero, cidade e a motivação de cada uma. Este ano, foram mais de 400 inscritas. O desejo principal? Iniciar ou mudar de carreira. A seleção é realizada através das respostas e busca atingir o maior número de inclusão possível. “Se eu quero incluir mulheres, eu tenho que incluir todas as mulheres”, enfatiza Andreza Rocha, 35 anos, recrutadora sênior de Tecnologia de Informação e organizadora do evento. Para ela, um dos destaques da edição 2018 foi a presença de duas mães amamen-


tando. “Essas mães levaram seus bebês de colo. Sabe o que é uma mãe se libertar de toda aquela obrigação materna por um dia? Elas estavam encantadas e o mais bonito é que elas ficaram o dia inteiro, das 8h às 17h, porque elas se sentiram seguras.” Além dos ensinamentos dos dois dias de tutoriais, a ideia é manter as participantes por perto, para que assim se fortaleçam juntas, seja ajudando na organização das próximas oficinas ou participando dos grupos de debate. “É um ambiente de fortalecimento. A mulher, quando fala de algo tecnicamente, é sempre testada. Nos ambientes que a gente se reúne é superdiferente: você pode falar o que quiser, perguntar qualquer coisa”, conta Andreza. Graças à independência conquistada, algumas participantes já estão estagiando na área ou assumindo cargos em sua nova carreira. E ainda que esses sejam os casos-exemplo, o maior trunfo do grupo é apoiar suas integrantes. “Não é só empoderar, é apoiar. Porque às vezes a gente não tá empoderada ainda. E nem todas vão se empoderar também, cada uma tem um ritmo, um tempo, um interesse. E a gente precisa respeitar. É um espaço de não opressão”, finaliza Andreza.

Livros escritos por autoras *

Meio Sol Amarelo, de Chimamanda Ngozi Adichie A Filha perdida, de Elena Ferrante Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo A Política Sexual da Carne, de Carol Adams Persépolis, de Marjane Satrapi A República dos Sonhos, de Nélida Piñon Malena é um nome de tango, de Almudena Grandes * Indicações grupo Leia Mulheres

Mais de 400 mulheres participaram do Django Girls 2018 em busca de autonomia tecnológica

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o poder da voz

A forma como você diz algo pode se tornar um desastre. Ou um sucesso. Saiba como sua personalidade é transmitida pela entonação Texto: André Luiz Rodrigues da Silva andreluizrss@gmail.com Fotos: Gabriela Gonçalves gabicargon@gmail.com Produção das fotos: Kênia Fialho kenia.r.fialho@gmail.com

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M E U Q FALA É A EMOÇÃO SEXTANTE julho DE 2018

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A vestibulanda Ingrid Elisabeth dos Santos, de 21 anos, tem medo de ter discussões com o namorado. Evita confrontos a todo custo e, em algumas situações, prefere se comunicar por e-mails ou até no escuro. Inconscientemente, Ingrid utiliza aspectos evolutivos do cérebro humano para lidar com o trauma de um pai autoritário: suas mãos começam a tremer quando sente que está ameaçada pelo tom de voz de alguém, e ela então fala em um volume muito baixo, quase cochichando. Criada em um círculo familiar hostil, Ingrid sempre sofreu repressão ao tentar discutir algo com o pai. Isso a traumatiza até hoje. “Num ambiente extrovertido, eu ainda consigo falar. Mas quando vejo que tem tensão ou um confronto muito direto de opiniões divergentes, tenho medo. ‘Me dá branco’ e eu paraliso”, conta. O que ela vive é muito comum: o que a preocupa não é o medo de falar algo errado, mas falar numa entonação inapropriada, por causa do contexto emocional. O tom de voz pode, principalmente, gerar confiança. Nos dois primeiros segundos de uma conversa já é possível

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saber se alguém é confiável, concluiu uma pesquisa feita em 2014 por psicólogos da Universidade de Glasgow, na Escócia. Por isso que ouvir um simples “alô” da pessoa amada pode acalmar instantaneamente. Todo o processamento neurológico da informação a ser comunicada ocorre muito rápido. Três principais áreas cerebrais são ativadas: córtex motor, sistema límbico e cerebelo. No córtex motor, são processados os gestos articulatórios da boca, sendo acionados os mecanismos físicos para “falar bem”. Quando alguém fala de modo mecâni-

“chega um ponto em que eu vou diminuindo a voz. eu não quero me ouvir argumentando, eu não quero ouvir a minha voz” ingrid elisabeth estudante

co, automático, a informação passa do córtex motor para o cerebelo, que filtra a voz e dá afinação. É o que acontece quando se quer passar um recado simples, por exemplo. Mas é no sistema límbico que a emoção entra. Após passar pelo córtex motor, é nessa área que você se abre mais, sem ter intenção de autocontrole. Aqui, a amígdala é responsável pela percepção e as memórias emocionais, e o tálamo liga as emoções às ações motoras: a entonação então mostra a emoção que é passada com a informação. Tudo isso acontece inconscientemente. “É uma questão de sobrevivência. Ao sermos capazes de perceber emoções pela voz, podemos detectar ameaças e perigos”, aponta Mara Behlau, professora de fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em 2011, Mara desenvolveu um estudo com 24 adultos e verificou que há influência da ansiedade na comunicação ‒ e isso se torna perceptível pela fala. Por terem armazenadas imagens traumáticas, pessoas como Ingrid têm distorções de funcionamento neuroquímico, o que deixa sua amígdala em forte estado de alerta. Quando a ansiedade sobe a níveis altos, a defesa da vestibulanda se torna uma tentativa de sair da situação: “Chega um ponto em que eu vou diminuindo a voz. Eu não quero me ouvir argumentando, eu não quero ouvir a minha voz”.

Como falar melhor?

Há inúmeras saídas para aprimorar as técnicas vocais e se expressar melhor. No filme O Discurso do Rei (2010), a história de George VI mostra como o monarca superou a gagueira causada por traumas de infância e o medo


de falar à nação por meio de acompanhamento fonoaudiológico. Na década de 1930, poucos tratamentos para melhorar a fala eram difundidos. Hoje, a situação é diferente. A fonoaudiologia é repleta de técnicas, que devem ser feitas sob acompanhamento profissional. Caso você queira iniciar exercícios, recomenda-se que comece pela respiração, trabalhada também por outras áreas ‒ incluindo a psicologia (ver quadro). “Sempre que alguém chega com perda de voz ou alteração vocal e não tem nenhuma lesão física em prega vocal, encaminhamos para a psicologia”, diz Mauriceia Cassol, pesquisadora e professora de fonoaudiologia na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Além das psicoterapias, outros encaminhamentos que podem ser feitos são os treinamentos de coaching e programação neurolinguística. Neles, são buscadas ferramentas que o próprio indivíduo tem para a comunicação e a expressão de forma rápida. Aulas de yoga, canto e teatro também são bons caminhos para trabalhar a relação entre mente e corpo. Tente encontrar o que mais se adequa ao seu perfil.

Vociferando para o futuro É comum dizermos que a geração atual está mais ansiosa, e não sem razão. A diminuição da comunicação face a face realmente pode atrapalhar no desenvolvimento vocal. E, como todo sintoma, isso é perceptível pelos aspectos fisiológicos. Quando se dá preferência à comunicação via texto, não há entonação. Pode-se entender de várias maneiras uma mensagem recebida, que não será transmitida com a emoção da voz (ainda que você use os emojis). E, em geral, as mensagens de voz são muito pouco utilizadas, sendo destinadas somente a quem é muito íntimo. Assim como um aparelho desligado pode enferrujar, também as estruturas vocais podem enfraquecer. “Quando se diminui o uso de um órgão, como a laringe ou a boca, ele começa a perder sua função. Se não precisa mais ser usado, ele começa a regredir”, diz Mauriceia. O simples gesto de ficar por muito tempo com a cabeça abaixada para mexer no celular também interfere, pois há forte con-

tratura dos ombros (o que gera tensão e dores) e enrijecimento dos músculos. Não é à toa que a falta de exercício vocal mostra como há diferenças de personalidade de uma mesma pessoa na web e “ao vivo”. Afinal, quando somos observados (não necessariamente de forma negativa) também aprendemos a mudar nossos gestos, inconscientemente se autoeducando. Se, antes, grandes locutores de rádio e políticos conseguiam conquistar o público utilizando as técnicas de expressão vocal, hoje precisamos nos atentar ainda mais para receber e transmitir corretamente o que desejamos. “A pessoa que sabe usar essa ferramenta de conquista e empatia ganha muito. Isso tem um lado bom e um lado ruim”, conclui Mauriceia. Grandes líderes espirituais, como Gandhi, souberam utilizar bem a entonação. Porém, existe também a liderança negativa. Por isso, tente redobrar a atenção antes de se levantar para aplaudir alguém influente.

Treine a respiração “O centro respiratório é muito afetado pela emoção. Por isso, indica-se que as pessoas façam muitos exercícios respiratórios, sentindo o corpo”, aponta a pesquisadora e professora de fonaudiologia Mauriceia Cassol. Em momentos difíceis, você pode estar tentando se defender ao contrair a região dos ombros e respirar em períodos curtos sem perceber. Atente-se ao movimento da respiração utilizando a parte abdominal para evitar desconfortos. Essas técnicas são também utilizadas por psicoterapias comportamentais que têm por base a mindfulness, meditação de consciência plena.

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o poder dos animais

ADORADOS A águia, como reflexo do espírito estadunidense; a vaca, como fertilidade; e o gato, como proteção, são exemplos de como os animais são símbolos de poder em várias culturas Texto e fotos: Camila Medroa camilamedroa@gmail.com Fotos: Gabrielle de Luna gabideluna209@gmail.com

Gatos, cachorros, peixes, coelhos ou pássaros. Hoje é difícil encontrar um lar que não tenha um animal doméstico. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Produtos de Animais de Estimação (Abinpet), o Brasil ocupa o quarto lugar em população total de animais de estimação no mundo. Contudo, nas sociedades antigas, como o Antigo Egito, e em certas práticas religiosas, como o Hinduísmo e o Xamanismo, os animais representam muito mais do que bichos de companhia: são seres sagrados que ajudam a entender o mundo, a vida e até a individualidade das pessoas.

EGITO ANTIGO

As civilizações do Vale do Nilo, no Egito Antigo, desenvolveram-se no nordeste do continente africano, por volta de 3.200 a.C. Foi uma das maiores civilizações da antiguidade, destacando-se pelos grandes monumentos arquitetônicos, como as pirâmides; pela escrita, com os hieróglifos; e pelas ciências, com a mumificação. O solo fértil da região – graças às enchentes do rio Nilo – ajudou a sociedade egípcia a estabelecer um sistema de agricultura, com

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a plantação de cereais, como trigo e cevada. Para o armazenamento, foram instalados celeiros e depósitos. Com isso, os alimentos ficaram à mercê de uma infestação de roedores, e os gatos foram a solução perfeita para evitar a disseminação da epidemia. Com o tempo, os gatos ficaram próximos dos seres humanos e tornaram-se os animais protetores da sociedade egípcia. A deusa Bastet – deusa retratada com cabeça de felino e corpo de mulher – era considerada a protetora das mulheres grávidas. Também chamada de Ailuros, que significa “gato” em grego, a deusa era relacionada à fertilidade e à sexualidade e em sua homenagem foram criados centros de culto na cidade de Bubastis para o ensinamento das práticas obstétricas. Nem todos os gatos eram considerados divindades. Os escolhidos tinham sido selecionados porque acre- ditava-se que eram reencarnações dos deuses. Esses gatos chegaram a ser domesticados em templos e eram tratados como membros da elite – com o direito de usar joias como os faraós. Para Wellington Balém, professor de História do Centro Universitário Metodista (IPA),


camila medroa

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em Porto Alegre, os egípcios viam, em certos animais, características de elementos da natureza. “O Rio Nilo, o deserto, a tempestade, todas essas forças da natureza, por exemplo, vão ser consideradas deuses, e os animais vão ser formas de identificar essas forças”, afirma o professor. “O crocodilo vai representar o silêncio; o hipopótamo, a fertilidade e a maternidade; o escorpião, a cura do veneno; o chacal, o protetor dos mortos, porque era um animal que rondava as necrópoles; e a íbis era um pássaro ligado ao deus Thot, que representa a sabedoria”, ressalta Balém. Quando os animais sagrados morriam, eram mumificados e enterrados em locais específicos. Em 1888, um fazendeiro encontrou em Beni Hasan – cidade do Egito central – mais de 200 mil múmias de animais, em sua maioria gatos. No espaço Terra Mística – Núcleo de Vivências e Terapias, elementos ajudam a descobrir o animal de poder de cada visitante

O xamanismo é um conjunto de práticas encontrado em várias culturas ancestrais que procura conectar-se com outros planos de consciência que levam à cura, ou que busca a conexão com o mundo exterior e interior. A base do xamanismo é proveniente das culturas do norte da Ásia, como a Mongólia, a Sibéria e a Rússia. No xamanismo existe a crença de que uma energia encontra-se disponível no universo e que nos acompanha na vida. Os estudiosos do xamanismo, como Michael Harner, antropólogo americano e presidente da Fundação para Estudos Xamânicos, perceberam que diferentes culturas manifestavam uma associação entre os humanos e elementos da natureza. Geralmente, essas energias apareciam em formas, como pedras, ou através de animais. Esses são chamados de animais de poder. Tatiana Menkaiká, fundadora do espaço Terra Mística – Núcleo de Vivências e Terapias, em Porto Alegre, afirma que essa energia, representada por um animal, tem características muito parecidas com a nossa personalidade. “Ele seria como um anjo da guarda, como uma proteção. É uma energia que surge para te proteger, te guardar e que te ajuda a perceber melhor os sinais dos recursos à tua volta. É como se fosse um alerta e uma proteção.” O filme de animação dos Estúdios Disney, Irmão Urso, relata a conexão entre um nativo americano e seu totem, o urso do amor. Sem entender o motivo de ter esse animal como

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fotos: tatiana menkaiká/arquivo pessoal

XAMANISMO

sua proteção, Kenai é transformado em urso pelos espíritos ancestrais para compreender o significado do seu totem. A história demonstra justamente essa ligação entre os animais e os humanos. Tatiana explica que a concepção dos animais de poder acabaram se popularizando no meio urbano e diferem-se do entendimento do xamanismo tradicional. “Um caçador foi atacado por uma onça na floresta. O animal arranca a mão dele, mas o homem consegue lutar e mata a onça”, exemplifica. “No momento que ele matou a onça, passou a adquirir a energia daquele animal e também passou a entender como era ser um felino. Ele volta para sua comunidade como um vencedor que se salvou de um ataque de um animal feroz


GABRIELLE DE LUNA

e que adquiriu a energia da onça.” No meio urbano é diferente: geralmente são feitas conexões para descobrir o animal de cada pessoa. Eles podem ser encontrados em sonhos, visões ou com a companhia de um xamã, através de meditações. Cada animal de poder possui uma única significação. O urso, por exemplo, representa encontrar a própria cura, porque, quando ele precisa, cava a terra em busca de raízes para se curar. O beija-flor representa alegria. Em algumas culturas nativas brasileiras, acredita-se que o grande espírito manifestou-se pela primeira vez na forma de um grande beija-flor. Já o lobo representa aquele que tem o instinto de cuidar, pois cuida da sua matilha. Também é um animal muito fiel e observador.

HINDUÍSMO

O hinduísmo – também chamado de Sanātana Dharma – é uma das filosofias religiosas mais antigas do mundo que engloba várias culturas e

quase todas as religiões do subcontinente indiano. Nela, a função da alma é de servir à Krishna, o deus. Tanto os homens quanto os animais, mesmo não sabendo, estão servindo a deus, pois, ao vivenciar o mundo material, estão tentando satisfazer a ele de alguma forma. Por isso, no hinduísmo, tanto os seres humanos como os animais são sagrados. O respeito do hinduísmo pela vaca é bastante difundido em telenovelas e filmes. E qual é o motivo da veneração por esse animal específico? Raghu Nandan, coordenador do templo Sri Narayan Goswami – Goudiya Math, em Porto Alegre, relata a história do surgimento da adoração da vaca. “Existe um plano espiritual eterno no qual Krishna reside e manifesta sua forma original. Nesse local, ele tem diversas atividades, como a de criação de vacas. Sendo provenientes desse plano, elas são consideradas sagradas. No mundo mate-

PARA O HINDUÍSMO, Tanto os homens quanto os animais, mesmo não sabendo, estão servindo a deus, pois, ao vivenciar o mundo material, estão tentando satisfazer a ele de alguma forma

Sala do Templo Sri Narayan Goswami – Goudiya Math. Para entrar no aposento, é necessário retirar os sapatos

rial, são reflexos desse mundo espiritual, mas não são deuses nem divindades. Ela é um ser puro e por isso não podemos nos alimentar dela.” Certas divindades, como Hanuman, Narasimha, Garuda, Ganesha, possuem partes de animais no corpo, mas não podem ser considerados animais. São semideuses, partes de Krishna, que têm uma função específica e auxiliam nas tarefas divinas. Sri Ganesha, por exemplo, possui cabeça de elefante e corpo de homem e é considerado o deus da sabedoria, protetor do casamento e removedor de obstáculos. Os animais são muito mais do que companheiros domesticados. Eles podem ajudar a compreender o extraordinário, a proteger e ajudar a entender melhor o relacionamento com a natureza e com a própria individualidade. SEXTANTE julho DE 2018

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o poder da paixão

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As ambivalências neurológicas e comportamentais por trás de um suspiro apaixonado Texto e fotos: Antonella Nery antonella.nery@ufrgs.br

LOUCURA?

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A paixão parece muito atraente aos olhos de quem observa de fora. De longe já conseguimos perceber o brilho nos olhos de quem está apaixonado. Filmes com casais enamorados, cenas românticas, corações e cupidos. É dessa forma que a paixão se apresenta na sociedade. Quem não conhece aquele famoso símbolo da paixão que traz a flecha do cupido atravessando o coração como máxima de felicidade? É uma figura popular com raízes na mitologia greco-romana. No entanto, entendemos como a paixão se desenvolve, de fato, sob o ponto de vista neurológico e psicológico? Essa química acontece com substâncias que provocam sintomas intensos e avassaladores em todo o corpo. Os mais evidentes, já identificados pela ciência, são o aumento da pressão arterial, da frequência respiratória e dos batimentos cardíacos. Juntamente da dilatação das pupilas, dos tremores e até da falta de apetite, de concentração e de sono. A dopamina, composto químico produzido pelos neurônios e responsável por transmitir as

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informações necessárias para o corpo, neurotransmissor da alegria, é uma das culpadas por essa série de alterações corporais, potencializando a sensação de que “o amor é lindo”. A paixão pode muitas vezes até ser confundida com a loucura, conforme a psiquiatra Elaine Silveira, de Porto Alegre. É tanta emoção provocada na pessoa apaixonada que chega a transitar entre a vida e a morte, a saúde e a doença, dependendo do nível da química. A psiquiatra ainda alega que justamente por toda essa intensidade é impossível que a paixão dure por um tempo prolongado. Acredita que passando por uma duração acima de seis meses corre o risco de causar um estrago no organismo. Afinal, a paixão provoca tantas manifestações cerebrais que pode pôr o corpo em colapso. Os apaixonados dizem que queriam viver sempre neste estado, felizes, mas Elaine acredita que isso é inviável, já que a tristeza e a calmaria são necessárias de vez em quando. “Nos encantamos logo no primeiro olhar”, diz a jovem Joana* que lembra-se das loucuras que fez por paixão. Quando foi visitar sua avó na cidade que morava no interior, conheceu sua prima Georgia*, e acabaram ficando juntas logo na primeira noite. No entanto, depois de três dias, a prima voltou para sua cidade, onde tinha uma namorada. Dessa forma acabaram se distanciando por um tempo, mas mantendo contato. Então, anos depois, o inesperado aconteceu: se reencontraram e resolveram viver o que sempre sentiram. Moraram juntas por três anos. “Foi algo que nunca havia sentido, uma paixão enlouquecedora”, lembra a garota.

De acordo com a psicóloga e psicanalista Luciana Schmall, que já trabalhou no Hospital Ernesto Dornelles e hoje atua em seu próprio consultório, em Porto Alegre, a paixão é um fenômeno encantador do ponto de vista de quem olha de fora. De longe, é perceptível uma química, como se os dois estivessem hipnotizados e fora do mundo real. Esse sentimento é quase uma projeção no outro do que o próprio indivíduo quer, como um mito ou uma invenção de um personagem. A profissional afirma, portanto, que a paixão é praticamente da ordem da fantasia, sobre o que imaginamos que o companheiro seja. Ademais, pelo fato de ser uma exposição de sentimentos positivos sobre alguém que até então era quase desconhecido, com o passar do tempo a realidade vai aparecendo. Joana considera que seu relacionamento foi de extremos. Por sua parceira ser impulsiva e mandona, aceitou fazer tatuagens para agradá-la: o rosto da prima na panturrilha e o nome perto do umbigo. A jovem ainda afirma que por um momen-


O apaixonado passa a viver em função do seu objeto de paixão, esquecendo até sua própria identidade

to achou que era “burrice”, mas no impulso e para provar amor, aceitou as duas marcas dela em seu corpo. Segundo a psiquiatra Elaine, o apaixonado passa a viver em função do seu objeto de paixão, esquecendo até sua própria identidade e fazendo de tudo para não perder a pessoa querida. Todavia, a especialista questiona-se: é medo de perder o outro ou perder as sensações sentidas com o outro?

Muito mais do que flores e declarações apaixonadas

A etimologia do vocabulário paixão segundo o livro de termos psicanalíticos de David Zimerman deriva do grego pathós, com significado de dor e sofrimento. Além de estar associada a outras palavras que partem da mesma raiz, como patologia e passividade. Assim, a psicóloga reitera que pode causar no indivíduo apaixonado um estado de “cegueira” e até “burrice”, provocando desde condutas autopunitivas até atos agressivos. “Claro que é ótimo nos apaixonarmos várias vezes du-

rante a vida, mas viver em constante paixão é impossível”, comenta a psiquiatra. O que a especialista percebe em seu consultório é que muitas pessoas precisam viver nesse constante estado de neurotransmissores em alta, como se fosse uma droga. Acabou o romance e já precisam ir para outro, já que o fim da paixão causa uma terrível abstinência. Ela explica que a paixão é bastante estudada, misturando o que é científico e o que é cultural. Nos estudos mais clínicos, é possível perceber que no auge da paixão o córtex pré-frontal, responsável pelo raciocínio lógico e julgamento das coisas, praticamente se desliga. Nesse sentido, é impossível não lembrar da frase “a paixão é cega”. Talvez aí esteja a raiz da questão. O turbilhão de sentimentos da relação que parecia tão intensa e vital para Joana acabou chegando ao fim. Hoje ela conseguiu cobrir suas tatuagens com outras e sente vergonha por essa loucura que viveu. “Inclusive são poucas pessoas que sabem, porque não gosto de falar. Penso que foi fraqueza da minha parte, mas, como era louca por ela fiz para agradá-la. Jamais faria isso novamente, mesmo que apaixonada por alguém”, desabafa. Luciana explica que sempre devemos ter em mente a diferença do amor e da paixão para não confundí-los. A psicóloga define a paixão como uma relação de química intensa do subjetivo. “Brincamos que a paixão refere-se ao príncipe encantado, o amor, ao príncipe-sapo“, comenta dando risada. Segundo o dicionário, alguns termos relacionados à paixão são fanatismo, predileção, afeto violento e amor ardente. Então a paixão realmente está no nível dos fanatismos.

Conforme a especialista, é um transbordamento de emoções que tem prazo de validade. Logo, quando a paixão acaba, ou dá espaço a uma profunda tristeza, ou transforma-se em algo a mais e dá espaço a outros sentimentos, como o amor e o companheirismo. Portanto, o amor é algo construído com o tempo. Caracteriza-se como um sentimento mais verdadeiro, com a questão da alteridade, na qual o indivíduo enxerga quem é o outro de fato. Pode parecer uma loucura se apaixonar, e às vezes pode ser; mas a paixão está restrita a um curto período e é extremamente necessária, na medida certa e sem extremos. É um grande aprendizado. “Esses momentos de felicidade vividos podem encontrar várias expressões depois. Não só por uma pessoa, mas por uma atividade física, uma viagem, um livro“, conclui a psicóloga. Portanto, todas essas vivências e experiências que começam a serem sentidas a partir da paixão acabam sendo as que vão definir nossos gostos, nossas vontades, nossa vida. *Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes. SEXTANTE julho DE 2018

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O Poder do Humor

QUE PALHAÇADA É ESSA?

As doutorzinhas Biscoito, Chica e Florisbela têm a missão de fazer a pequena paciente esquecer a dor

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O bom humor dos palhaรงos pode transformar momentos dolorosos em alegria e esperanรงa

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Texto e fotos: Luiza Dorneles dorneleslui@gmail.com

A cara pintada. O figurino pronto. Falta apenas uma peça, a peça chave: a menor máscara do mundo. Cada uma se coloca em um canto da sala. Respiram fundo, quase que sincronizadas, e vestem o nariz de palhaço. Poderia ser mais uma manhã de sexta-feira qualquer – e era – mas para as crianças internadas no quinto andar do Hospital da Criança Santo Antônio, situado no complexo hospitalar da Santa Casa, em Porto Alegre, era dia de esquecer. Biscoito (Izabella Rosa), com uma bolsa rosa quase maior do que ela, uma saia florida e um ukulele na mão. Chica (Petha Rodrigues), com uma trança bagunçada de um lado, a outra arrumadinha e uma faixa azul-gritante nos cabelos. Florisbela (Karen Tadros), com seus excêntricos sapatos vermelhos, espartilho e marias-chiquinhas acompanhadas de flores pretas. Três doutorzinhas de avental branco e uma missão: fazer esquecer a dor, o ambiente hospitalar e a doença naquele momento.

As doutorzinhas espiam pela porta para brincar com as crianças antes de entrarem no quarto do hospital

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Sara, uma criança de três anos, observa o trio de dentro do quarto com a porta entreaberta. Elas se aproximam. “Oi! A gente pode entrar?”, pergunta Chica. A menina faz que não com a cabeça. Florisbela insiste: “Eu já sei do que ela gosta! De música!”, e logo surge um sorriso contido, escondido pela chupeta, acompanhado da cabeça que balança para cima e para baixo. “Vou fazer um transimento de pensação e ver qual a música que ela gosta... É... É... Borboletinha!”. Sara responde rindo que sim, borboletinha! Em questão de minutos, crianças, pais, avós, faxineiras, enfermeiras se aproximavam daquele universo criado ali, no palco das três palhaças. Antes de ingressarem no mundo mágico do quarto hospitalar, as doutorzinhas espiavam pelo vidro da porta. Observavam o desconhecido através das persianas e da fechadura. O olhar, as caretas, o vislumbre. Toc, toc. “A gente pode entrar?”. O sorriso de alívio das mães ao verem palhaças no quarto carregava a certeza de que Biscoito, Chica e Florisbela estavam no lugar certo, na hora certa. “Bom dia!”, exclama Chica. “Bom dia começa com o quê?” Bom dia começa com alegria, Bom dia começa com amor. O sol a brilhar, as aves a cantar, Bom dia, bom dia, bom dia. “Com Minion!”, enfatiza Florisbela, olhando para uma menina com uma camiseta dos Minions sentada no colo da mãe. Ela sorri. A pergunta segue para todos no quarto, e cada

resposta vira sorriso, riso, gargalhada e paródia da música de Júlio D’zambê. Bom dia começa com os Minions, Bom dia começa com os filhos, Bom dia começa com Dudu, Bom dia começa com Ana Júlia, Bom dia começa com Caleb, Bom dia, bom dia, bom dia! A ONG Doutorzinhos trabalha em 12 hospitais de Porto Alegre, além de desenvolver campanhas, como, por exemplo, a de doação de medula óssea. Cerca de 70 doutorzinhos fazem as visitas nos hospitais, uma vez por semana, sempre em duplas ou trios. A visita tem cerca de três horas de duração. Aproximadamente, 10 mil pessoas, entre pacientes, acompanhantes e equipe hospitalar, são impactadas com as visitas mensalmente. Em seu site, os doutorzinhos definem seu trabalho da seguinte forma: “O nariz de palhaço é uma forma de contar para todos quem somos, humanos primeiro, humor depois. Somos palhaços que fingem


ser médicos, para pacientes que fingem acreditar. Somos altamente treinados para não saber o que estamos fazendo. Por isso, nós não podemos prometer curar, mas prometemos cuidar de cada paciente”. Não importa a quantidade de planejamento que a vida exige, o maior cúmplice do palhaço é o acaso – aliado à escuta fina, ao olhar atento e a uma abertura completa para o outro. Do espontâneo, ele convoca um universo novo diante do espectador – você – já cansado de uma rotina sistemática e de se imaginar mandando o chefe tomar “naquele lugar”. O palhaço é o encontro da coragem per-

dida, não pela ausência de medos. Todos somos mortais, e partes de nós morrem mesmo. Tudo bem. É preciso coragem para encontrar seu ridículo, rir das suas tragédias e expor o íntimo, que vira cômico ao vermos que não estamos sozinhos na nossa pequenez.

FLORISBELA

Doutora Florisbela é interpretada por Karen Tadras, mas Karen parece ainda não saber se é ela quem representa a palhaça ou o contrário. “O palhaço pra mim foi como se tirasse todas as cascas da cebola e ficasse a essência. Então, apesar de eu não estar de nariz vermelho em tudo que é lugar, essa essência eu levo comigo.” Seu contato com a figura do palhaço começou aos cinco anos, quando participou do programa “Mundo Mágico do Tio Tony”, na TV Urbana, e conheceu a palhaça Bolinha. Na adolescência, se deparou com os valores familiares de estabilidade financeira e prestou vesti-

bular para Direito na PUCRS em 1997, onde se graduou. Com 40 anos, Karen já foi assessora de desembargador no Tribunal de Justiça e possui algumas causas jurídicas “para sobreviver.” Em 2016, o palhaço cruzou sua vida novamente. Foi aos 38 anos com a oficina “Clown para curiosos” e com a formação para a ONG Doutorzinhos que conseguiu resgatar sentimentos engolidos pelo jurisdiquês e encontrou sua motivação maior: ajudar o próximo. “O palhaço me deu essa coragem de seguir sem ter certeza.” Vinte anos depois de ingressar na faculdade, outra Karen retor-

A advogada Karen, que interpreta Florisbela, diz que a palhaça lhe ajuda a ter mais coragem na vida

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na. Já misturada com Florisbela, que não conseguiu se esconder por muito tempo, ingressou para o curso de Psicologia. Ela garante que, assim que possível, mudará a profissão para psicóloga. “O meu processo de construção do palhaço foi um dos maiores desafios da vida. Eu sempre fui de uma carreira jurídica, onde as coisas foram muito enquadradas, e o palhaço me libertou disso tudo e fez com que eu voasse voos muito mais destemidos sem me preocupar com a chegada, mas aprendendo que o caminho pode ser o mais lindo da vida da gente.”

CONSTRUINDO SEU CLOWN

Um círculo. 16 estudantes. Um professor. Uma sala praticamente vazia no quinto andar do Centro Cultural Cia de Arte, em Porto Alegre. Era uma noite de quinta-feira com céu limpo e temperatura agradável. Naquela roda, cada um teria um tempo para falar de si – como foi a semana, o que tem sentido nos últimos dias. As falas transbordavam transformações individuais latentes no cotidiano, enfrentamentos de medos, percepções de limitações, busca por amor próprio, o íntimo exposto ao grupo. Quem não sabe do que se trata, facilmente acreditaria ser um grupo de autoajuda – e por que não? A Escola de Palhaços Construindo seu Clown nasceu em 2015 com a missão de, através da arte da palhaçaria, possibilitar o encontro de cada participante com seu próprio clown. Os problemas pessoais não ficam do lado de fora da porta, muito pelo contrário, auxiliam na criação do personagem de cada participante. “Parei, olhei, virei e fui”.

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O chão da sala era marcado por três grandes linhas cruzadas por cinco outras, onde os 16 palhaços em formação deveriam fazer um exercício simples: parar, olhar, virar o corpo e caminhar até o ponto desejado. Enquanto faziam isso, falavam em alto e bom tom: “Parei, olhei, virei e fui!”, cada um com seu ritmo, melodia e comicidade próprios. Um exercício simples que, ao final da

aula, mostrou ter mexido com vários deles. Rafael de Moura, o professor, brinca: “Pessoal, hashtag da semana pra vida! #parei #virei #olhei #fui”. Naquela aula, acontecia a preparação para, na quinta-feira seguinte, vestirem


Rafael prepara seus alunos para colocarem o nariz de palhaço pela primeira vez

o nariz de palhaço pela primeira vez. A construção do significado do momento esperado é feita na relação entre os participantes e suas caixinhas misteriosas, que guardam a máscara tão desejada. Como os santos para os católicos, a caixa é sagrada,

amada, idolatrada. Se você considera simples colocar o nariz, para eles demora um ciclo de dois meses de jogos de desinibição, comunicação não verbal e interpretação até o momento tão esperado.

RAFAEL, O PINGUINHO

Rafael de Moura, 36 anos, nasceu em Santa Rosa, no interior do Rio Grande do Sul,

em uma família pobre. Não conheceu a mãe, que morreu por complicações no parto, nem se recorda do pai, que sofreu um acidente de carro quando ele tinha apenas um ano. Lembra que desde pequeno tinha uma facilidade: fazer rir. “Através do meu sorriso, do meu riso, da minha gargalhada, me fiz presente e me fiz marcar. Quer poder maior do que esse?”. Na infância, Rafael já imitava personagens da Escolinha do Professor Raimundo e criava seus próprios, que eram aplaudidos pelos colegas e pais em seus talk shows na escola. Percebendo o talento nato, Rafael ingressou na Escola Municipal de Teatro de Santa Rosa em 1991 e ali se destacou nas aulas e nos palcos. Aos 14 anos, foi morar na capital para estudar teatro e teve contato com nomes importantes das artes cênicas, como Esio Magalhães, Zé Adão Barbosa, Camilo de Lélis, o palhaço e ator espanhol Pepe Nuñez, entre outros. Descobriu seu clown, o Pinguinho, em 2001, quando foi chamado para trabalhar com o palhaço português Zé Ramalho, com quem aprendeu as técnicas de palhaço de picadeiro. A partir desse contato, sente que teve um crescimento como pessoa e iniciou um processo de transformação que transbordou no então professor da arte da palhaçaria. “Eu comecei a fazer palhaço pra sobreviver. Precisava pagar minhas contas, era o que eu sabia fazer. Hoje eu faço palhaço pra existir. Se eu não fizer, eu não existo.” Depois de alcançar o sucesso e ganhar dinheiro com o palhaço, Rafael percebeu que não estava realizado. Aos SEXTANTE julho DE 2018

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29 anos, depois de se separar da esposa, passou por um período de depressão. “A história do retirante, né? O cara pobre, órfão, que veio do interior pra ganhar a vida, tentar sucesso. Eu fui aplaudido, ganhei prêmio, e estava infeliz. Porque não era eu. Eu era um personagem. E o palhaço me deu o suporte pra eu jogar tudo isso fora e não me importar com nada, e dizer: não, eu quero rir que nem as pessoas riem de mim.” Nesse momento, compreendeu que a única pessoa que ele tinha no mundo era ele próprio, e que os aplausos da plateia não o preencheriam enquanto ele mesmo não soubesse se aplaudir. “Foi aí que eu aprendi a beijar, aprendi a abraçar, aprendi a sentir o gosto de comida, aprendi a olhar pro céu, olhar pro sol, sabe? Agradecer a tudo.” Para ele, o palhaço simboliza a vida, e por isso também é carregado de tristeza. Rafael lembra da música do Barão Vermelho, Quando você ficar triste Que seja por um dia E não o ano inteiro E que você descubra Que rir é bom Mas que rir de tudo É desespero

AÇÕES SOCIAIS

Em 2017, Pinguinho e uma turma composta majoritariamente por palhaças foram se apresentar no presídio feminino de Porto Alegre, a Penitenciária Madre Pelletier. Chegaram recebidos às vaias e xingamentos das presas – estavam em um local onde não foram convidados. Após 50 segundos de apresentação, elas silenciaram e se emocionaram com as palha-

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ças. “Eram cenas construídas através das dificuldades das mulheres, então tinha cenas falando sobre masturbação feminina, sobre o amor, e elas se identificaram, riram das suas mazelas, das suas desgraças: ‘Ah, é bem assim mesmo!’. E aquelas mulheres estavam lá dentro, se sentindo livres, porque elas podiam se expressar, rir delas mesmas e dizer: ‘Bá, olha só, não sou só eu que sou assim’.” O palhaço Pinguinho também visita o Centro de Integração da Criança Especial Kinder, onde atua para crianças autistas e com tipos variados de deficiência. Em um trabalho de extrema sensibilidade, Pinguinho consegue se comunicar com crianças que não falam, não enxergam. “Eu criei uma relação especial com uma turma. O Pinguinho tá presente no cotidiano deles, na vida deles. Então eles me escrevem. Por exemplo, o Edgar apertava o nariz enquanto eu tocava violão, e eu me perguntava: ‘Bá, que música é?’. Até o dia em que descobri que ele queria ouvir ‘Só Love, Só love’, do Claudinho e Bochecha – não me pergunta como –, e ele começou a cantar.” Uma menina cega, que não costuma falar com as pessoas, começou a ser estimulada por Pinguinho, que perguntava com sua voz fina: “Oi, sabe quem é que tá aqui?”. Agora, quando ele chega, basta tocar uma nota no violão que ela já exclama: “Pinguinho!”. “É mágico, é muito mágico”, comenta Rafael. A cara pintada. O figurino pronto. Falta apenas uma peça, a peça chave: a menor máscara do mundo. Respiram fundo e vestem o nariz de palhaço. Toc,toc. “Oi! A gente pode entrar?”

O PALHAÇO NA HISTÓRIA A figura do palhaço enquanto arquétipo existe muito antes de ser chamado de clown, tendo registros já nas primeiras civilizações (como a egípcia, 2500 a.C) e em tribos indígenas norte americanas. A pré-história dos clowns está muito ligada a figuras incomuns – xamãs, loucos, marginais, outsiders – criaturas consideradas esquisitas que habitam as bordas da condição humana. Uma representação histórica da figura do palhaço e mais popularmente conhecida é o Bobo da Corte. Contratado pelo rei para entreter e fazer rir a família real, seu sucesso estava ligado à sua aparência grotesca, sua loucura ou sua habilidade de utilizar a simplicidade para efeitos cômicos. Alguns eram criaturas simplórias que eram motivo de riso e chacota. Outros eram muito inteligentes, exímios acrobatas e músicos, adorados pelo rei e considerados símbolo de status para aqueles que os possuíam. Esses interferiam em assuntos políticos e eram muito hábeis em lidar com a psicologia humana, demonstrando desde cedo na história a possibilidade de transformação e enfrentamento do humor.


Na caixinha, os palhaรงos guardam a menor mรกscara do mundo: seu nariz

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Anderson Dorneles

O Poder da fĂŠ

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Se Quiser, Acredite A influência da fé nos tratamentos médicos Texto: Dora Assumpção Schmidt dora.assumpcaos@gmail.com

Fotos: Anderson Dorneles e Mariane Venditti anderson.615@hotmail.com / marianevenditi@gmail.com

“A coisa mais importante na minha vida é Deus.” Essas palavras são de Eliângela Silva Sasso, de 54 anos, mas poderiam ser de inúmeros brasileiros. A influência da cultura religiosa por aqui é grande: de acordo com o censo demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 64,6% dos brasileiros declaram-se católicos, o que representa aproximadamente 123 milhões de cidadãos. Logo em seguida, encontram-se os evangélicos, que concentram 22,2% da população, cerca de 42,3 milhões de pessoas. É nessa segunda categoria que está Eliângela, de Santiago, no interior do Rio Grande do Sul, frequentadora da Igreja Batista, denominação cristã orientada pela Igreja Evangélica. Os momentos de dificuldade foram diversos na sua vida, sendo o último deles gravíssimo: Eliângela descobriu, em 2016, que estava com câncer de mama. Ao fazer a biópsia, recebeu a notícia que o seu tipo de câncer era um dos mais agressivos que existia. No período de um mês, entre a realização de diagnóstico e o início do tratamento, o nódulo aumentara em 8mm, o que deixou os médicos bastante receosos quanto aos resultados que o tratamento teria. Mesmo assim, ela dizia: “Eu acredito, doutor. Eu tenho fé”. Assim, encarou as cinco sessões de quimioterapia, a perda dos cabelos, uma cirurgia e 30 sessões de radioterapia. Mesmo que estivesse angustiada por estar sendo acometida por uma grave doença, ela conta que existia uma tranquilidade. Devido a sua fé em Deus, ela acredita que SEXTANTE julho DE 2018

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os efeitos do seu tratamento foram bastante amenos. “Ele que me sustentou durante esse tempo”, explica. Após a realização da cirurgia, foi feita uma outra biópsia e o resultado foi surpreendente: não foi encontrada nenhuma célula com câncer, o nódulo havia desaparecido totalmente. “Deus me curou, eu não tenho dúvida. Isso é o poder de Deus. Deus agindo”, diz. Apesar disso, ela pondera: mesmo que acredite que Deus a tenha curado, ela se comprometeu em fazer a sua parte, realizando todos os exames e seguindo as orientações dos médicos à risca.

Ciência e espiritualidade Lado a lado: é possível?

Durante a história da humanidade, ciência e religião estabeleceram uma relação que foi mudando conforme os valores vigentes. Hoje o mundo se encaminha para um patamar mais harmonioso, mas por muito tempo essa relação foi conflituosa. Durante a Antiguidade, diversos povos tinham uma relação com a natureza intermediada pelos cultos religiosos. Esse pensamento perdurou até o fim da Idade Média, quando os principais apoios para o homem eram sua família, seu povo e a religião, de acordo com o artigo História da ciência: da idade média à atualidade, de Ana Lucia de Mônaco Primon, Lourival Gabriel de Siqueira Junior e Silvia Maria Adam, publicado pelo Instituto Metodista de Ensino Superior. Durante esse período, a Igreja tinha grande influência nas descobertas científicas, e foi por meio dessa relação que ideias como da Terra plana surgiram. Foi a partir do perío-

do seguinte, o Renascimento, que se deu o rompimento entre ciência e religião através da chamada Revolução Científica (entre os séculos XV e XVI), que impactou todas as áreas da ciência. Desde então, passou-se a buscar um tipo de conhecimento cada vez mais especializado na ciência, que se refletiu também na medicina. Como explicado no artigo A medicina integrativa e a construção de um novo modelo na saúde, dos pesquisadores Márcia Aparecida Padovan Otani (Famema) e Nelson Filice de Barros (Unicamp), esse modelo moldado pela especialização, que chama-se biomédico, tem sido criticado pela população. A insatisfação causa a busca por outras formas de tratamentos não convencionais, as práticas alternativas. Na tentativa de se formular um novo modelo de saúde que contemple o ser humano na sua totalidade, foi cunhado, em 1990, o termo “medicina integrativa”. Entre os temas associados a esta prática, está a necessidade de validação de outros tipos de evidências no campo da saú-

fé e religiosidade Em artigo intitulado “Espiritualidade baseada em evidências” publicado na revista Actafisiátrica, da Universidade de São Paulo (USP) pelos médicos Marcelo Saad (Unifesp), Danilo Masiero (Unifesp) e Linamara Rizzo (USP), foram reunidos os principais estudos em saúde e espiritualidade realizados até então, trazendo as seguintes descobertas: • Em adultos doentes terminais hospitalizados, existe uma relação entre o bemestar e a espiritualidade • Num grupo de 5.286 cidadãos, acompanhados por 28 anos, os praticantes religiosos tiveram uma taxa de mortalidade menor • Em 30 pacientes recém diagnosticados com câncer, a fé foi um fator maior na busca por significado e na capacidade de lidar com o diagnóstico • Em 61 pacientes com dor crônica, estratégias de enfrentamento religioso positivas foram associadas a melhores resultados

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de. Desta forma, os pesquisadores definem a medicina integrativa como uma prática que “fundamenta-se na abordagem holística, isto é, na compreensão do homem como um todo indivisível, impossível de ser separado em corpo físico, mente e espírito, com ênfase na cura, no relacionamento interpessoal e no contexto de vida”. Não se encontra uma data específica em que o tema da espiritualidade na medicina ou na psicologia passou a ser pesquisado, seja por uma virada de chave ou com algum autor que liderou o movimento. O que fica evidente, de acordo com artigo publicado por Valdir Reginato no site do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Unifesp, é que esse tema, essa dúvida, essa inquietação nunca deixou de estar presente. Pesquisas que eram realizadas pontualmente foram, aos poucos, ganhando relevância e incentivando que o tema fosse trazido com mais afinco para o meio acadêmico.

Acredite para aceitar

Na Vila Cruzeiro, em Porto Alegre, em frente à Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), fica o Núcleo Espírita Fraternidade, instituição que existe há 30 anos e possui grande importância para a comunidade da Cruzeiro, fornecendo assistência social, além de funcionar como centro espírita. Às 20h se inicia a sessão e, aos poucos, os frequentadores vão chegando e tomando seus lugares à mesa. “Boa noite, seu Joaquim”, eles dizem e sentam. Joaquim Marchisio é o dirigente espírita do Núcleo e está na casa há 36 anos. Para ele, existem dois


Fotos: Mariane Venditti

tipos de fé: uma fé racional, embasada, e uma fé cega, baseada em leituras puramente literais (como, por exemplo, da Bíblia), sem interpretações. Esse tipo de leitura não traz respostas para as questões internas e não produz espiritualidade. Para definir a fé racional, Joaquim utiliza uma frase de Allan Kardec, grande referência da doutrina espírita: “Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade”. Para ele, essa fé é capaz de enfrentar todas as circunstâncias. Considerando casos extremos como são os de pacientes terminais, existem dois caminhos possíveis para a fé: resistir ou aceitar. No caso da doutrina espírita, ela está mais alinhada a aceitação, pois a resistência, embora possa retardar o avanço da doença, o faz a um custo muito alto de dor. Para ele, essas são as consequências de uma fé que não se prepara para enxergar os acontecimentos da vida com certa razoabilidade. Nas sessões espíritas, em que as pessoas buscam a compreensão, essas consequências aparecem bastante. Sendo assim, essas questões estão relacionadas à forma como cada indivíduo vê as suas dificuldades e como formata a sua

mente. Na visão de Joaquim, se a fé não for bem trabalhada, ela pode vir a trair a pessoa. A doutrina espírita prega então uma libertação do ego e um direcionamento ao outro e aos coletivos, ou seja, ao invés de se fechar em si mesmo o indivíduo faz o movimento contrário: se abre. Dessa forma, se constrói uma diferente visão dos próprios problemas, a partir de outro ponto de vista, que implica numa atitude diferente frente à própria vida.

O qUe diz a ciência?

Para a ciência, existem diferenças entre religiosidade e espiritualidade. De acordo com um artigo dos pesquisadores Juliane Gonçalves, Giancarlo Lucchetti, Frederico Leão, Paulo Menezes e Homero Vallada, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), a espiritualidade se caracteriza como uma crença de “força maior”, sem necessariamente se ancorar em algum dogma específico, podendo até abranger ateus e agnósticos. Já a religiosidade se dá através de um sistema organizado de crenças, como o catolicismo ou o islamismo, que são uma forma de manifestação da espiritualidade. Janaíne Martins é farmacêutica homeopata e é presidente da Liga de Espiritualidade em Educação e Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Ela conta que hoje, embora haja uma grande dificuldade em se realizar pesquisas científicas sobre o tema, existem muitos estudos sendo realizados em torno da espiritualidade. Janaíne diz que o próprio cartesianismo no qual a ciência é baseada não possui modelos de pesquisa que permitam que se comprovem as evidências da espiritualidade. “Para muitas coisas, os médicos dizem hoje em dia que ‘é um milagre’, ‘não se explica’, mas é a fé da pessoa. Se a pessoa tem fé na cura, fé em si mesma, fé no tratamento, faz toda diferença”, afirma Janaíne.

“Se a pessoa tem fé na cura, fé em si mesmo, fé no tratamento, faz toda diferença” Janaíne Martins

presidente da Liga de Espiritualidade em Educação e Saúde da UFCSPA A doutora em psicologia Luciana Marques, do Programa de Pós-Graduação em Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), buscou mostrar, em sua tese, a interrelação entre o bem-estar espiritual e a saúde geral e encontrou valores altamente correlatos e significativos. No entanto, a pesquisadora coloca que as pesquisas voltadas a essa questão ainda são desvalorizadas hoje e vistas com uma certa desconfiança, tendo em vista que, muito do que se tem, são apenas relatos de vivências. Os estudos de religião relacionados à psicologia existem desde meados de 1800 e são rodeados de tabus. Quais são as questões emplacadas de fato na pesquisa desta outra ciência que, por toda a história, acompanhou o homem em seu desenvolvimento? SEXTANTE julho DE 2018

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