6 minute read

O PODER DA EXPERIÊNCIA

SABEDORIA DA VIDA

Na aldeia guarani Estiva, em Viamão, os mais velhos são conselheiros respeitados pelos jovens

Advertisement

Texto e fotos: Lais Godinho laissgodinho@gmail.com

O tempo para os indígenas é diferente. Na aldeia Estiva, em Viamão, a cerca de 40 quilômetros de Porto Alegre, as 35 famílias Mbyá- -Guarani se vêem livres da correria da cidade. Eles costumam perguntar para os juruás (não-indígenas) que visitam a aldeia o que acharam sobre ela. A resposta parece padrão: “Tranquila”.

Nessa tranquilidade eles vivem há quase 20 anos, quando chegaram nas terras do km 39 da RS-040, cedidas pela prefeitura. Antes disso, viveram em Tenente Portela, cidade localizada a 460 quilômetros de Porto Alegre, onde dividiam território com os Kaingang. Sentindo que estavam perdendo sua cultura para a deles, decidiram deixar a terra indígena Guarita e partir para Erechim, onde viveram durante cinco anos com os parentes Guarani. Para conseguir melhorias, procuraram um novo lugar onde pudessem ter a sua aldeia.

Três irmãs, Claudia, Talcira e Genira Gomez, partiram com os maridos na busca. Juarez da Silva, marido da Talcira, era o cacique na época. Com alguns contatos que ele fez na capital, conheceu o vereador Eliseu Fagundes Chaves (PT), conhecido como Ridi, de Viamão, e as famílias decidiram ir para o município. Depois de buscar os filhos em Erechim, acamparam por cerca de dois anos na beira da estrada, até conquistar o terreno onde hoje vivem.

Todos na aldeia conhecem essa história, e as próximas gerações também conhecerão. Os pais vão contando para os filhos, que vão contando para os netos. Um ciclo. É dessa forma que a cultura é passada e a espiritualidade preservada. Por isso, os mais velhos são tão respeitados pelos mais jovens. “Eles são os nossos livros”, explica Gerson Gomez, integrante do coletivo Comunicação Kuery, que surgiu

Na aldeia Estiva, as crianças crescem falando MbyáGuarani e aprendem o português somente na escola

SABEDORIA DA VIDA

a partir da necessidade de registrar a vida das aldeias Guarani impactadas pelas obras de duplicação da rodovia BR-116.

Os anciãos são os conselheiros da aldeia. As pessoas os procuram sempre que necessário. Com sabedoria, eles orientam o melhor caminho para os indivíduos e para a comunidade. Eles defendem que as decisões tomadas devem agregar e trazer benefícios para todos. Esse foi um dos motivos que fez Sandra da Rosa trocar o curso de Biologia na UFRGS por Odontologia. “Eu vi que precisava que eu trocasse, porque foi muito difícil a gente achar o dentista que está aqui (na unidade de saúde da aldeia) agora.” Após reprovar em disciplinas de física, ela percebeu que não estava rendendo no curso de Biologia, e decidiu fazer a transferência interna. Sandra pretende, depois de formada, trabalhar na unidade de saúde da aldeia.

Zico da Rosa é o único com ensino superior na comunidade. Formado em enfermagem pela UFRGS, ele acredita que o indígena não está preparado para o mundo universitário, assim como a universidade não está preparada para o indígena. Eles estudam para trazer melhorias para a comunidade, apesar das difi

culdades. “Tem que entender quem eu sou e o papel que eu ocupo.”

São os mais velhos que guiam os mais novos para esses caminhos. Desde crianças, eles são educados a pensar no coletivo. Todas as mães têm liberdade para orientar os mais jovens, mesmo que não sejam seus filhos. “Elas passam o que ouviram da minha avó”, conta Gerson. Na aldeia Estiva, o cacique serve como porta-voz, mas quem detém a sabedoria são os anciãos, que se tornam conselheiros, e aqueles que desenvolvem o dom são os pajé.

Os mais velhos estão sempre em contato com os jovens. Cada criança tem um nome de acordo com a sua personalidade, como Ara’i (abaixo) que significa raio de sol Caraí, aquele que sabe

Conectado com Nhanderu, o deus guarani, o pajé cuida da espiritualidade dos indígenas. Ele é chamado de caraí, que significa “aquele que sabe”. A aldeia pode ter mais de um pajé, homem ou mulher, mas nem todos desenvolvem esse dom. Por ter sido escolhido por Nhanderu e possuir uma sensibilidade acima do normal, o pajé é a pessoa mais respeitada dentro da aldeia. Na Estiva, há somente um pajé, o João Benites.

O dom se desenvolve aos poucos. Quando morre um pajé outro costuma surgir, em meio às dificuldades. Eles são, ao mesmo tempo, conselheiros e curandeiros. Sabem da dor antes que a pessoa fale, seja ela física ou psicológica. Segundo os guaranis, a depressão, tão comum entre os juruás, ocorre quando os espíritos se apoderam psicologicamente da pessoa. O pajé é capaz de, com a ajuda de Nhanderu, tratar isso. “Os guaranis não têm depressão porque é tratado dentro da Opy (casa de reza)”, explica Gerson.

Se os mais velhos são os livros, a Opy é a biblioteca. Construída por recomendação dos conselheiros, a casa de reza é frequentada pelos guaranis todos os dias. Gerson conta que na Opy eles rezam, cantam e dançam. “É o lugar que a gente agradece a vida.” No espaço há uma porta, mas não há janelas, para que os maus espíritos não entrem.

Na Opy, o pajé dá nome às crianças. Ele recebe um sinal de Nhanderu, que indica como aquele bebê deve se chamar. “O pajé seria um mensageiro de Nhanderu”, contam os indígenas em nome do pajé. Devido a um mal-estar espiritual, nas três vezes que a reportagem foi a aldeia, o pajé não pôde conceder entrevista. Os moradores defenderam que poderiam responder por ele. Juntos, conversavam sobre as perguntas em Guarani, para ter um consenso, e elaboravam uma única resposta que era dita em português.

Centro Cultural

No início de abril deste ano, começou a ser construído o Centro Cultural da Aldeia Estiva. O espaço foi uma demanda da comunidade, que sentiu a necessidade de ter um lugar fechado onde pudesse realizar eventos culturais e cerimoniais, como apresentações de canto, dança e pintura. Para concluir a obra, a comunidade conta com doações de materiais de construção. Para doar, entre em contato com Gerson Gomez através do telefone (51) 99748-7594.

No ritual de nomeação, os pais de meninos devem levar o mel, os pais de meninas devem levar o mbojape, um alimento parecido com pão, e todos levam erva-mate. No dia seguinte à cerimônia, é realizada uma confraternização com esses alimentos. Cada criança tem um nome relacionado à sua personalidade, mesmo antes de desenvolvê-la. Ara’i é uma menina de três anos que só fala Guarani, pois as crianças aprendem o português quando entram na escola da aldeia, aos seis anos. Seu nome significa raio de sol. Ela está sempre sorrindo, e o pai justifica: “Ela está feliz assim porque o dia está bonito”.

O pajé passa o dia tomando chimarrão com algumas outras ervas e fumando petygua, o cachimbo. As ervas que bebe servem para limpeza espiritual, necessária para ele que está sempre em contato com Nhanderu. Para os Guarani, o petygua é a cura de tudo. “É a nossa santa, que os juruás chamam de um objeto sagrado”, eles comparam. Pode ser usado quando se está feliz, para agradecer, ou quando se está triste, como proteção. “É um forma de oração.” É preciso ter dom para fazer um petygua que funcione religiosamente. Na aldeia da Estiva, ninguém possui esse dom, por isso eles pegam com os parentes de outras aldeias. Os Guarani confeccionam cachimbos sem efeito religioso para venda.

Eles têm o artesanato como a sua principal forma de sustento. Os mais experientes ensinam os jovens. O mesmo ocorre com as outras expressões culturais, como o canto e a dança. Assim, passando de geração para geração, a cultura sobrevive na vida dos Mbyá-Guarani.