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O PODER Da representatividade

o poder da representatividade Meu nome é valéria

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A cantora gaúcha fala sobre as batalhas travadas por ser quem é: mulher negra transexual

Texto: Paula Barcellos paula.barcellos@ufrgs.br

Dona de uma voz afiada e que se potencializa quando canta suas músicas de letras fortes e empoderadas, Valéria – antes, Houston – se tornou uma das cantoras mais reconhecidas da noite porto-alegrense. Além de seu talento, sua voz também tem importância na luta pelos direitos LGBT. Encontrei-a na Livraria Cultura, em Porto Alegre, antes de sua apresentação do espetáculo intimista Morangotango - Uma declaração de amor. Agitada, andava de um lado para o outro falando com todos da equipe, preocupada com a passagem de som e com o tempo para se arrumar e ser maquiada. Finalmente conseguimos sentar em silêncio no pequeno camarim. Ela me pediu desculpas pelo local não estar arrumado ainda, enquanto rapidamente organizava algumas coisas – apenas uma dezena de acessórios brilhantes e coloridos já estavam em ordem sob uma mesa. Disse para ela ficar à vontade. “Bom, então enquanto conversamos eu vou pintando as minhas unhas.”

Como foi crescer em Santo Ângelo, no interior do Rio Grande do Sul, sendo uma criança transexual?

Além de ser um lugar muito preconceituoso com relação à sexualidade, é muito racista também. Para mim foi muito difícil ser uma criança trans, até porque essas coisas não eram muito difundidas, então causava uma confusão, uma falta de entendimento. Ao mesmo tempo, eu tinha uma vontade de querer saber e de precisar saber. Foi bem difícil. Eu contei para minha mãe aos 18 anos, porque ela era a pessoa que eu devia mais satisfação em relação a isso, os outros não me interessavam muito. Ela ficou uma semana sem falar comigo [risos] e depois ela voltou a falar comigo, foi a minha melhor amiga.

Você se considera uma militante LGBT?

Eu não tinha muita noção dessas coisas porque eu achava que eu ia fazer meu trabalho, cantar as minhas músicas e estava ok. Mas eu comecei a receber muito feedback disso, falando ‘nossa, tu me representas’, e eu comecei a olhar isso com outros olhos. Quando eu fui agredida na rua da República no dia 30 de agosto de 2015, eu fui esfaqueada por um cidadão transfóbico que no meio de muitos xingamentos me disse ‘o teu lugar não é aqui’. E aquelas palavras ficaram na minha cabeça, sabe? E eu pensei ‘nossa, ele tem razão, de uma certa forma’, porque meu lugar não é aqui. Eu poderia estar fazendo outras coisas, muitas outras coisas para outras como eu, outros como eu que não tem essa facilidade, essa voz. Porque eu sou uma voz que sou ouvida literalmente. Então esse episódio fez

G erson roldo

com que eu pensasse mais em relação a isso. Hoje me considero militante mesmo e ativista, mas até então eu não tinha muita consciência.

Qual a importância da representatividade?

Toda a importância do mundo! Eu fico muito puta da cara quando eu vejo as pessoas falando ‘nossa, mas agora tudo é isso, porque agora querem colocar essas pessoas em todos os lugares’. A gente sempre esteve em todos os lugares, a gente precisa é de visibilidade. Veja bem, quando eu era adolescente, perdida num mundo de possibilidades que eu não conhecia, eu não tinha ninguém que me representasse. Durante muito tempo, eu não sabia se essa minha vida de cantora trans preta iria dar certo, embora esteja aqui na minha

G erson roldo

cara. Uma amiga minha, Elisa Lucinda, diz que nós somos corpos parlamentares, que nossos corpos falam por nós mesmos. Eu tive que ser o meu próprio espelho, eu tive que ser a minha própria representatividade. Hoje eu vejo outras se espelhando em mim e eu acho isso incrível. Nós temos que ocupar todos os espaços como um rio que às vezes não respeita margens. Que tem as suas margens, mas que acaba transbordando e levando tudo. Nós temos que acabar fazendo a nossa vida dessa maneira.

Você acha que o meio das artes é mais aberto às pessoas transexuais em comparação a outros meios?

Nunca foi e nunca será. Não passeamos por um lugar permissivo em nenhum espaço, nem no próprio meio

“Eu tive que ser o meu próprio espelho, eu tive que ser a minha própria representatividade. Hoje eu vejo outras se espelhando em mim e eu acho isso incrível”

trans, nem nas artes, muito menos na política, ou seja onde for. As artes talvez nos deem um pouco mais de facilidade de entradas, mas isso não quer dizer que a nossa permanência seja fácil. As artes parecem muito permissivas, mas não são. É como no ambiente universitário. Nós pensamos ‘nossa, universidade, pessoal com cabeça aberta’. Mentira, não é nada. O povo é muito misógino, muito xenófobo, muito machista, muito transfóbico, muito gordofóbico, tudo isso disfarçado de palavras bonitas.

Você era conhecida como Valéria Houston, mas agora está abandonando o Houston. Como surgiu esse nome?

Eu participei do concurso de rainha do Carnaval lá em Santo Ângelo, o primei-

ro concurso de rainha gay do Carnaval lá. Eu precisava de um nome. Até então eu usava meu outro nome, que era Rodrigo, no feminino. Uma trans amiga minha falou que eu tinha gingado da Valéria Valença, globeleza, e a voz da Whitney Houston, então ficou Valéria Houston. Quando eu vim para Porto Alegre, em 2005, eu precisava de algo de destaque, então não teve coisa melhor que Valéria Houston, porque as pessoas perguntavam se eu dublava as músicas da Whitney Houston, e eu falava que não, que eu cantava. Era um gancho para que eu pudesse trabalhar, mas a minha carreira tomou uma outra direção. Eu sou uma cantora de música brasileira, sou muito mais do que a cover da Whitney Houston como eu fazia. Hoje em dia nós achamos melhor deixar muito brasileiro isso e usar como norte essas cantoras que não têm muita importância, como ‘Madonna’, ‘Beyoncé’ [risos], e deixar só Valéria, para ficar uma coisa bem brasileira também.

Como foi o processo legal de mudança de nome?

Eu já tenho a retificação civil (mudança de nome) na minha certidão de nascimento, escrito Valéria Barcellos, sexo feminino e gênero feminino. Foi uma luta. Dois anos para trocar o nome e mais meio ano para trocar o sexo e o gênero na certidão. É uma coisa doida demais, tive que passar por uma perícia forense, um psiquiatra me consultando. Para que qualquer outra pessoa trans tenha essa retificação, deve provar que tem uma disforia de gênero — tem que provar que é louca para poder fazer isso. E nós estamos tentando fazer essa mudança, de tirar essa patologia, mas se tirar isso não pode trocar o nome. Então ficamos nesse impasse: ou é louca, ou não pode trocar o nome. E ainda falam que a nossa vida é fácil.

E por que você considera importante essa questão do nome?

A gente não sabe o que aquela pessoa passou. Cada caso é um caso. Não é apenas uma questão burocrática e de deixar bonito com um nome do documento. Nós não sabemos a história dessa pessoa trans, não sabemos se ela foi abusada na infância, não sabemos se ela sofreu bullying — que com certeza deve ter sofrido com esse nome masculino sendo uma figura feminina. Deve se pensar nisso. Uma retificação de nome, mais do que dignizar, é talvez deixar para trás uma carga toda

RODRIGO BRAGAGLIA

RODRIGO BRAGAGLIA

Valéria fez a abertura do show da cantora norte americana Katy Perry, que

SEXTANTE julho DE 2018 ocorreu em Porto Alegre em dezembro de 2017 45

de bullying e sofrimento que essa pessoa trazia. Então muito mais do que uma questão ‘estética’, é uma libertação de uma carga pesada de outra coisa que essa pessoa trazia com aquele nome, de abuso sexual, de abuso com a sua imagem.

O que é ser mulher pra ti?

O que é ser mulher para ti? [silêncio] É ser. Além das questões muito utópicas de que ser mulher é ser muito sofrimento, é importante deixar claro que ser mulher trans não tem muita diferença, apesar do nosso físico [risos]. É algo que não se explica, é simplesmente ser, é algo que a gente só sente. Eu lembro de quando eu era criança e fui tomar banho com a minha mãe e eu a vi sem roupa e perguntei ‘mãe, o que que é isso?’, perguntando da genitália dela. Ela achou que eu estava falando dos pelos pubianos e me disse ‘quando tu cresceres, tu vais ter também’. E também tinha uma tia que ia na minha casa e ela tinha uma verruga que ela ficava cauterizando e voltava. Eu pensava ‘já sei, vai cair’. Eu fiquei esperando a vida toda, o que não aconteceu. O que me chocou mais não era eu ser menino, o que me chocou era eu não ser menina, porque eu tinha certeza. Então eu digo que ser mulher é simplesmente ser, e não é nenhuma tentativa, é ser mesmo com todas as dores e todas as agruras.

Como você lida com os padrões de beleza?

Eu tinha muito problema com estética, até que eu entendi que esse ser mulher passa bem longe da estética. Que mulheres usam cal“O que me chocou mais não era eu ser menino, o que me chocou era eu não ser menina, porque eu tinha certeza. Então eu digo que ser mulher é simplesmente ser, e não é nenhuma tentativa, é ser mesmo com todas as dores e todas as agruras”

ça jeans, que mulheres não se maquiam, que mulheres usam camiseta, que mulheres usam calça de moletom, que mulheres não são tão delicadas assim e que não tem que ser aquele bibelô de porcelana que fica em cima da estante. Eu sofri muito com esses padrões estéticos, porque o padrão estético transexual é todo um padrão “Amélia”. Eu não sou esse tipo de mulher. Desculpa, sociedade. Não consigo ser esse tipo de mulher. Sou uma mulher com força e que cagou para os padrões estéticos. Não estou maquiada nesse momento e acho que é super-válido. As pessoas se prendem a esses padrões estéticos muito pequenos. Os padrões estéticos são muito cruéis na verdade, é isso que me assusta mais: impor que você tem que ser assim.

O que te empodera?

Cultura me empodera muito. Acho que dar uma resposta para uma pessoa que fica duas horas tentando entender o que tu falaste porque ela não sabe o que tu estás falando, porque ela não tem esse entendimento, é a melhor coisa da vida. Melhor arma é o conhecimento, a cultura. A cultura geral, de se informar, de querer saber dos assuntos. Hoje a gente tem juiz de facebook, jornalista de facebook, um monte de coisas do tipo. Então acho que o verdadeiro empoderamento é a cultura.

Em março você fez a abertura do show da Katy Perry em Porto Alegre. Como foi essa experiência? Quais os impactos na tua carreira?

Durante muito tempo eu vou ser a menina que cantou na abertura do show da Katy Perry. E eu acho ótimo, porque estou na pauta e não estou na página policial, estou na pauta e não estou sendo rechaçada ou ridicularizada por qualquer outra coisa. Foi muito lindo, ela é uma pessoa muito iluminada, tem uma benevolência muito grande. E eu agradeci por ela ter feito uma coisa muito maior, não foi só por mim, mas por uma parte da população que são as mulheres trans pretas daqui do Brasil.

TÂNIA MEINERZ

o direito a um novo nome

O novo código civil, de 2002, esclarece que toda pessoa tem direito ao nome, compreendido como prenome e sobrenome. No caso de Valéria, e tantas outras transexuais no Brasil, esse direito de ter um nome com o qual se identifica só é, em geral, conquistado com uma luta judicial. A advogada Márcia Abreu, membro da comissão de diversidade sexual da OAB/RS, explica que até então não havia nada específico na legislação brasileira sobre o direito de transexuais à mudança de nome. O que ocorria era a criação de jurisprudências, ou seja, decisões que servem de parâmetro para novos processos. Assim, era preciso que o interessado entrasse com um processo judicial para a mudança de nome. Em março deste ano, uma ação ingressada pela Procuradoria Geral da República criou uma jurisprudência em que o interessado poderia se dirigir diretamente a qualquer cartório e fazer a mudança de troca de nome, independente da troca de sexo e de decisão judicial. No Rio Grande do Sul, a regulamentação foi feita em maio, sendo o segundo estado a normatizar a atuação dos cartórios em relação às retificações. O que está em questão é como esse processo será feito. Até o momento, ao entrarem na justiça, pessoas transexuais devem passar por um processo que inclui um laudo psiquiátrico e, em alguns casos, testemunhas para comprovar que a sua identidade de gênero é diferente do gênero em que nasceu. Na opinião de Márcia, não é o laudo que comprovaria que a pessoa tem uma identidade de gênero diferente ou não. “Eu acho que é o fato de ela provar que ela realmente sofre todos os tipos de violência com relação ao fato de não se identificar com aquele gênero. É a minha opinião, mas não é a opinião do Ministério Público atualmente, nem de alguns juízes”, conclui.