Cidade Solidária n.º 32

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Nº32 2014 REVISTA SEMESTRAL PORTUGAL: 3,60€

CIDADE SOLIDÁRIA

SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

FAMÍLIA e SOCIEDADE:

Coesão e desenvolvimento ECONOMIA DA PARTILHA | NEUROCIÊNCIAS | APOIO DOMICILIÁRIO


Venha conhecer...

PROGRAMA MITRA POLO DE INOVAÇÃO SOCIAL SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA A MITRA terá uma oferta que se vai materializar com a implementação dos seguintes projetos NAU: NAU Centro Psicogeriátrico

NAU Proteção Civil

NAU Oficinas

NAU Quinta

NAU Lavandaria

NAU Creche

NAU Acolhimento de Emergência

NAU Residências

NAU Mercado de Santo António

NAU Espaço Polivalente

NAU Comércio e Empresas

NAU Restaurante


EDITORIAL Os paradigmas mudam, mas a Família continua a ser o bastião de cada um de nós

A

família é a estrutura nuclear de qualquer sociedade. Tenho este princípio como sagrado. Sempre foi assim desde os primórdios da Humanidade e acredito que, apesar de todas as mudanças vertiginosas que vão alterando os paradigmas que condicionam a nossa forma de estar, a família continuará a ser o elemento primordial de coesão da sociedade. É certo que, hoje em dia, vivemos tempos de profunda mudança, mas penso que a maneira de olhar para os nossos familiares não mudou. As famílias a que pertencemos e constituímos, as de cada um de nós, são o nosso bastião, a nossa fortaleza, a nossa garantia. Os pais, os filhos, os irmãos, os netos, os avós, são, por natureza e por regra, os nossos melhores amigos. Muita coisa mudou de há uns anos a esta parte, sobretudo nas sociedades ocidentais, e em particular nos meios mais urbanos e cosmopolitas, cujo quotidiano foi agitado por transformações aceleradas, sobretudo a partir da década de 1990. Não foram apenas transformações da técnica, foram também do pensamento. Todos estaremos de acordo que o advento da internet e das novas formas de comunicação, nomeadamente as redes sociais e os dispositivos móveis, “aproximaram” as pessoas. Por outro lado, essas mesmas tecnologias têm contribuído, por vezes, para um distanciamento físico e emocional em relação àqueles que nos são mais próximos, criando barreiras intransponíveis no seio da própria família. Também concordaremos em afirmar que os avanços da medicina têm contribuído para o aumento da esperança média de vida, especialmente nas sociedades ocidentais. Ora, sendo esta uma realidade com a qual só nos podemos congratular, não devemos esquecer que daqui também surgem realidades tristes – como o abandono e esquecimento dos mais idosos – com as quais a SCML lida diariamente. Ao folhearmos as páginas deste número da Cidade Solidária, dedicada ao tema “Família e Sociedade: Coesão e Desenvolvimento”, ficaremos mais elucidados sobre alguns dos desafios e problemas que se colocam atualmente à família e à sociedade. Mas encontraremos igualmente algumas das respostas que estão a ser dadas pela SCML, quer ao nível do trabalho prático no terreno quer ao nível do desenvolvimento de novos conceitos e paradigmas, que ajudem a promover comportamentos potenciadores da coesão social e do desenvolvimento no seio da família e da sociedade.

Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Pedro Santana Lopes

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SUMÁRIO

FAMÍLIA E SOCIEDADE: COESÃO E DESENVOLVIMENTO

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Família: Valores & Práticas Maria das Dores Guerreiro

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Famílias migrantes: Acolhimento e solidariedade na sociedade multicultural Natália Ramos

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A economia da partilha: A tendência global que está a mudar a forma como pensamos, vivemos e negociamos Benita Matofska

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A família na conjuntura social Maria Gabriela Figueiredo Guterres Barbosa Colen

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Os direitos da criança/jovem no contexto de uma cidadania plena Catarina Silva

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Programa Intergerações/Intersituações de Exclusão e Vulnerabilidade Social João Marrana, João Firme, João Gonçalves e Carla Rosa

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As novas vidas da Quinta Alegre Helena Canto Lucas

SOCIAL 52

A unidade de emergência da Misericórdia de Lisboa: Novo modelo de atendimento e intervenção social Celeste Brissos e Ana Sofia Branco

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Apoio domiciliário a pessoas com VIH/Sida: A experiência da Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar Conceição de Andrade, Alcina Monteiro e Hélder Vicente

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Plataforma para a área do envelhecimento: Criação, ações e perspetivas futuras Nuno Cravo Félix

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Adaptar: Uma abordagem pela diferença Maria João Goldschmidt Gonçalves e Carla Teixeira Oliveira

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Modelo de intencionalidade terapêutica: Pistas de reflexão para uma mudança de paradigma António Santinha, João Bicho, Rui Godinho e Victor Silva

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SOCIAL 94

Lisboa: Uma cidade para as crianças Catarina Tomás, Clara Castilho, Cristina Gonçalves, Jaime Santos, Maria João Malho, Margarida Medina Martins

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No Chapitô: As artes circenses promovem a inclusão social Equipa do Chapitô

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Partilha de Saberes & Sabores Equipa do Centro de Acolhimento Infantil do Bairro da Boavista

SAÚDE

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Prémios Santa Casa Neurociências: Distinções são “oportunidade única” e “mais-valia” Entrevista realizada pelo Gabinete de Neurociências

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Hospital de Sant’Ana: Referência no tratamento da escoliose idiopática Rui C. Domingos, João Sarafana, Luís Cardoso, Estanqueiro Guarda, J. Gomes Peres

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O ensino das posturas sexuais após uma artroplastia total da anca por via posterior Bruno Fernandes, Filipe Ascenção e Sílvia Fernandes

HISTÓRIA E CULTURA

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Assistência às órfãs no Bairro Alto: O Recolhimento da Rua da Rosa Luísa Colen

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As cartas de jogar e os expostos da Misericórdia de Lisboa Fernanda Frazão

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As escolas maternais de Ilda de Bulhão Pato Maria Honrado

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A luzência/sombra: O visível e o invisível nos sinais dos expostos Gilda Nunes Barata

164 LEGISLAÇÃO

165 LIVROS

166 AGENDA

FICHA TÉCNICA

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DIRETOR: Pedro Santana Lopes DIRETOR-EXECUTIVO: Samuel Esteves CONSELHO EDITORIAL: Ana Salgueiro, Francisco D’Orey Manoel, Margarida Montenegro, Maria do Carmo Marques Pinto, Maria João Matos, Maria Teresa Grácio, Mário Rui André, Ricardo Amantes e Samuel Esteves PROJETO GRÁFICO: Catarina França. PAGINAÇÃO: Ana Lopes e Catarina França. EDIÇÃO DE CONTEÚDOS: Ana Gomes. REVISÃO: J. L. Baptista. APOIO LOGÍSTICO: José Carlos Gonçalves. SECRETARIADO: Antónia Saldanha. COLABORADORES PERMANENTES: Laurinda Carona e João Fernandes EDITOR: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA. Largo Trindade Coelho – Apartado 2059 – 1102-803 Lisboa. ASSINATURAS: SCML – Revista Cidade Solidária/Remessa Livre n.º 25013 – 1144-961 Lisboa (não necessita de selo). Tel.: 213 243 934 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Norprint. Tiragem: 5000 exemplares. Depósito Legal n.º 126 149/98. Registo no ICS: 121.663. ISSN: 0874-2952

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FAMÍLIA:

VALORES & PRÁTICAS Texto de Maria das Dores Guerreiro [PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA, ISCTE – INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE LISBOA_CIES-IUL]

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Nas últimas décadas, assistiu-se a uma redefinição da instituição familiar em Portugal, que se revela em profundas alterações nos valores e conceções de família, tanto no plano jurídico como no das práticas. O processo de democratização e modernização da sociedade portuguesa, bem como a integração na União Europeia, constitui o pano de fundo para compreender as atuais dinâmicas familiares e as mudanças nos papéis de género.

À

s transformações ocorridas na sociedade estão associadas – e delas são parte integrante – as mudanças na família. Constituindo a Revolução de Abril um marco histórico na transição da sociedade portuguesa para a democratização e modernização, o novo quadro legal então produzido em muito contribuiu para a redefinição da instituição familiar, das normas orientadoras do seu funcionamento e do relacionamento entre os seus membros em moldes mais democráticos. Por outro lado, desde então, continuamos a assistir a um conjunto de mudanças decorrentes das orientações e políticas europeias e das orientações ideológicas dos partidos políticos que vão liderando os diversos governos e têm implicações no modo como as famílias se estruturam. Tal como afirmam alguns autores (THÉVENON, 2011), as políticas de família inscrevem-se em circunstâncias institucionais e históricas específicas, que influenciam a sua configuração e se refletem nas condições de vida e níveis de bem-estar dos indivíduos. A modernização e a democratização do país, sobretudo a partir dos últimos trinta anos do século xx, deram origem a que se alterassem drasticamente valores e conceções de família, tanto no plano jurídico como no das práticas. Mas, por outro lado, é possível um outro olhar sobre aspetos problemáticos e de risco que ensombram o quotidiano de algumas famílias, em moldes estruturais ou enquanto fenómenos emergentes. 7

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O NÚMERO DE FAMÍLIAS AUMENTOU CONSIDERAVELMENTE, RESULTADO DE ORIENTAÇÕES MAIS INDIVIDUALISTAS, ENQUANTO A SUA DIMENSÃO MÉDIA ESTÁ CADA VEZ MAIS REDUZIDA” TENDÊNCIAS A comparação de indicadores sociais e demográficos respeitantes ao início da maior modernização da sociedade portuguesa, com dados de 2011, mostra que têm sido grandes as transformações na família. Uma primeira constatação é a de que o número de famílias aumentou consideravelmente, resultado de orientações mais individualistas, enquanto a sua dimensão média está cada vez mais reduzida. As famílias têm vindo a diminuir o número de filhos, predominando atualmente famílias de filho único (CUNHA, 2007). Portugal passou, assim, de uma situação em que a natalidade era excessiva e se reconhecia a necessidade de implementação de práticas contracetivas como medida de política, na década de 1960, para a atual fase de não renovação geracional, em que o índice de fecundidade é o mais baixo de sempre e o mais reduzido a nível da União Europeia. Este fenómeno tem dado lugar a discursos e políticas de incentivo à natalidade, independentemente da ponderação mais aprofundada que importa ser feita a uma escala não meramente setorial. As mulheres têm o primeiro filho, em média, já além dos 30 anos (DELGADO e WALL, 2014), sendo também cada vez mais tardia a idade em que jovens de ambos os sexos celebram o primeiro casamento. O prolongamento dos estudos e a di-

ficuldade em encontrar um emprego que constitua uma fonte de rendimento minimamente estável tende a retardar a entrada na conjugalidade formal e na parentalidade. Nota-se, aliás, uma diminuição drástica nas taxas de nupcialidade, as quais contrariam a tendência portuguesa para a oficialização do laço conjugal, verificada praticamente ao longo de todo o século XX, com valores próximos dos 6 por mil (GUERREIRO et al., 2009). O casamento católico perde também a sua importância, sendo já maioritária a modalidade de casamento civil. Mas esta baixa da popularidade do casamento não significa uma rejeição da vida em casal, a forma familiar predominante em Portugal. É cada vez maior a proporção de casais que vivem em coabitação antes do casamento, e muitos deles assim continuam, sem oficializar a conjugalidade. Nomeadamente os progenitores de perto de 80% das crianças nascidas fora do casamento vivem em coabitação. Por outro lado, a taxa de divórcio registou forte crescimento, nomeadamente após a lei que liberalizou os divórcios por mútuo consentimento. CONFIGURAÇÕES FAMILIARES Outro indicador ilustrativo das mudanças na família é o da configuração das unidades residenciais. No último meio século, o conjunto das pessoas a viverem sozinhas cresceu significativamente. Na sua composição encontramos dois perfis distintos: o dos jovens, em crescimento exponencial mas com uma expressão ainda minoritária, e o dos idosos, sobretudo mulheres viúvas que no final do

CARATERÍSTICA PECULIAR DAS FAMÍLIAS PORTUGUESAS É A DA PERMANÊNCIA DE FILHOS ADULTOS, EM IDADE AVANÇADA, EM CASA DOS PAIS”

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seu percurso de vida perderam o companheiro. Esta última categoria requer particular atenção a nível das políticas públicas, já que aqui se situam muitas pessoas sem família e, nalguns casos, sem qualquer rede social de apoio. As famílias constituídas por casais, com ou sem filhos, registam ao longo dos anos uma frequência constante e predominante no conjunto das famílias portuguesas. Confirma-se assim a grande valorização que os portugueses fazem da vida em casal, quando comparados com a população de outros países (GUERREIRO, TORRES e LOBO, 2009). No quadro de envelhecimento acentuado como o que Portugal atravessa, é de realçar o crescimento do número de casais sem filhos, onde são maioritários os casais “ninho vazio”, na sua grande parte compostos por idosos, a par – com menor proporção – de casais mais jovens, que protelaram a entrada na parentalidade. Mas a configuração familiar com maior representação continua a ser a do casal com filhos. Embora em decréscimo, o modelo de família nuclear continua a imperar sobre outras configurações, porventura com maior visibilidade, mas de expressão bastante mais reduzida, como sejam as famílias monoparentais. Estas, embora em crescimento, ficam aquém dos 10% e são ainda constituídas maioritariamente por mães e filhos. Registe-se, contudo, que as famílias monoparentais masculinas estão a aumentar. As famílias complexas ainda perduram, nas suas duas modalidades: famílias alargadas ou famílias múltiplas, mas em decréscimo. Para além de poderem integrar idosos carentes de cuidados, encontram-se aqui novos arranjos familiares como aqueles em que, devido a uma separação, a família monoparental é acolhida pela família de origem. Podemos igualmente admitir que algumas comunidades de imigrantes residentes em Portugal agregam vários núcleos familiares em corresidência. Caraterística peculiar das famílias portuguesas é a da permanência de filhos adultos, em idade avançada, em casa dos pais. Segundo o Censo de 2011, 47% dos jovens com idades entre os 18 e os 34 anos ainda reside com a família de origem, ou a ela regressou em situação de desemprego, na

ASSISTIMOS A NOVOS MODOS DE ORGANIZAÇÃO DO QUOTIDIANO FAMILIAR, QUE DEIXOU DE ASSENTAR NUM MODELO SEGMENTADO DE PAPÉIS DE GÉNERO” atual conjuntura de crise, introduzindo dinâmicas específicas nas interações familiares e gerando dependências tardias. Importará ainda referir uma outra estrutura familiar não captável através do indicador de corresidência: os casais que vivem em residências separadas. Estes casais podem ser casados ou viver em união de facto, muitas das vezes provindo de um casamento anterior entretanto dissolvido, com cujos filhos partilham residência. Noutros casos, estão a iniciar gradualmente uma primeira conjugalidade em coabitação. Em Portugal, apenas a partir de estudos pontuais se tem obtido alguns dados sobre este tipo de família, com pouca expressão numérica. Por outro lado, a lei que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a permitir quantificar esta oficialmente nova forma familiar que tem adquirido significativa visibilidade. Com o aumento dos divórcios e recasamentos também as famílias recompostas tendem a crescer. FAMÍLIA, TRABALHO E GÉNERO Outro sinal explícito de mudança na família e na sociedade é o do aumento exponencial da atividade profissional feminina. Na verdade, as mulheres sempre contribuíram para o orçamento familiar, por via de diversas formas de trabalho, formal e informal, pago e não pago, no domicílio ou fora dele. Mas nota-se um significativo acréscimo da participação profissional das mulheres no mercado de trabalho, ainda maior no que respeita às mulheres jovens, cuja taxa de atividade se aproxima bastante da dos homens nas mesmas faixas etárias. 9

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PERSISTEM ASSIMETRIAS NO MODO COMO HOMENS E MULHERES INTEGRAM O MERCADO DE TRABALHO, INSCRITO EM FORMAS DIVERSAS DE SEGREGAÇÃO PROFISSIONAL E INERENTES DESIGUALDADES REMUNERATÓRIAS E HIERÁRQUICAS” A carência de força de trabalho masculina originada pela guerra colonial e pela emigração dessa época foi preenchida pela ocupação de mulheres, tendo sido crescente, desde então, a sua inserção no mercado de trabalho, num novo quadro de valores e de cidadania promotores da igualdade entre mulheres e homens na família e no trabalho. Assistimos a novos modos de organização do quotidiano familiar, que deixou de assentar num modelo segmentado de papéis de género, com o homem a assegurar o sustento da família e a mulher na função de doméstica e cuidadora. Vingou um modelo de divisão familiar do trabalho pago que pode ser designado como o modelo “família de dupla profissão” (GUERREIRO, 2000), com ambos os cônjuges a contribuírem numa base de trabalho a tempo inteiro para o orçamento doméstico. Passou a ser feito recurso a serviços antes integralmente realizados no quadro doméstico, nomeadamente a nível da prestação de cuidados a crianças e a idosos, bem como de tarefas domésticas de índole vária, potenciadoras de novos empregos em creches, infantários, lares e outros serviços de apoio à família. As mulheres portuguesas são das que mais horas trabalham a nível dos países da União Europeia, o mesmo acontecendo com os homens, ainda que

em menor escala (BACK-WIKLUND et al., 2011). Com efeito, o nosso país regista uma cultura de longas horas de trabalho, para além do oficialmente estabelecido. Esta situação tem-se agravado na atual conjuntura de crise e de escassez de emprego, com prejuízo para o tempo dedicado à família. Além disso, persistem assimetrias no modo como homens e mulheres integram o mercado de trabalho, inscrito em formas diversas de segregação profissional e inerentes desigualdades remuneratórias e hierárquicas. Os salários médios mensais masculinos são superiores aos das mulheres. Também no plano doméstico não se assiste ainda a uma participação simétrica nas várias tarefas do quotidiano, recaindo sobre as mulheres maior volume de responsabilidades, com reflexo nos seus níveis de stress. Os estudos mostram ser ainda reduzida a participação masculina na vida doméstica e na prestação de cuidados a filhos e outros dependentes. Back-Wiklund et al. (2011) encontraram uma média de 13 horas semanais despendidas pelas mulheres com as tarefas domésticas, enquanto os homens despendem perto de sete horas. Disto é evidência o sentido de justiça manifestado por ambos acerca da divisão das tarefas domésticas: quase 40% dos homens e apenas 9% das mulheres declaram sentir que fazem menos do que devem (GUERREIRO, 2010). Tem aumentado, no entanto, o número de homens que usam parte da licença parental quando do nascimento dos filhos, representando 25,5% dos pais das crianças nascidas em 2013 (CITE, 2014), pese embora o crescimento das situações de precariedade contratual que inibem os pais do uso deste direito. A paternidade parece estar a assumir novos contornos, com o pai mais envolvido e participativo na prestação de cuidados aos filhos, ainda que se requeiram medidas complementares de política para um envolvimento mais paritário. FACES SOMBRIAS A par deste retrato acerca das transformações e modernização da sociedade, da família e dos papéis de género, coexistem, porém, algumas facetas mais problemáticas que ensombram o quotidiano das famílias e dos indivíduos que as compõem. Alguns destes problemas parecem assumir

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um caráter estrutural e reproduzem-se ao longo de gerações, se bem que por vezes possam emergir com outras configurações. Integram-se aqui as questões relacionadas com a pobreza que afeta significativo número de famílias na sociedade portuguesa, com repercussões continuadas a nível intergeracional. Segundo dados do Eurostat, 27% das crianças e jovens portugueses até aos 17 anos de idade vivem em situação de pobreza. Esta percentagem aumenta para além dos 40% quando se incide apenas nas crianças de famílias com níveis de educação mais reduzidos e mais baixas taxas de empregabilidade, caraterísticas que correspondem a um traço estrutural da nossa população que, mesmo em idades relativamente jovens, possuem níveis muito baixos de qualificações escolares. Ora, há forte evidência de que as crianças que crescem em contextos de pobreza e exclusão social tendem a ser menos bem-sucedidas no seu processo de aprendizagem escolar, sofrem de mais problemas de saúde e menos facilmente atingem condições de plena realização pessoal, correndo maiores riscos de desemprego ao atingirem a vida adulta (SPC, 2012). Note-se ainda que Portugal regista a peculiaridade de manter também em situação de pobreza ou exclusão social um amplo setor da população ativa integrada no mercado de trabalho, devido aos baixos salários auferidos, e ainda mais se a composição do agregado familiar é numerosa a nível de dependentes. Este aspeto impõe uma reflexão aturada sobre o impacte de incentivos à natalidade que não sejam acompanhados de medidas efetivas para dotar estas famílias de recursos, oportunidades e competências que as retirem da condição de pobreza em que se encontrem. Por outro lado, novos segmentos de famílias de classe média vivem situações de dificuldade económica crescente. O elevado desemprego, associado a corte de rendimentos, aumento de impostos e de despesas com um conjunto de bens e serviços essenciais – como alimentação, energia, transportes e rendas de casa – que, em muitos casos, duplicaram o seu custo e representam, por vezes, cerca de 50% do orçamento familiar, estão a gerar efeitos negativos no quotidiano das famílias portuguesas.

Uma outra face sombria da vida familiar é a da violência na relação conjugal, com forte predominância dos casos em que a vítima é a mulher. Sendo longínquos os tempos em que o sistema de dominação patriarcal atribuía ao marido o poder de infligir punições corretivas à mulher, tal como aos filhos e aos criados (WORSLEY, 1976), mais presente está ainda o ditado “entre marido e mulher não metas a colher”, apenas há pouco mais de uma década contrariado pela legislação nacional que tornou a violência doméstica um crime público. É extenso o número de queixas relativas a este tipo de crime e o número elevado de homicídios sugere que as formas oficiais de atuação, as políticas implementadas no terreno, estão aquém da dimensão do problema e das suas possíveis múltiplas causas, estruturais e circunstanciais (COLLINS, 2013). A violência na família abarca igualmente outros dos seus membros enquanto vítimas, designadamente crianças e pessoas idosas, ainda que também possam ser vitimizadas fora da família. As estatísticas oficiais sobre o número de registos

NO CASO DAS PESSOAS IDOSAS, PARA ALÉM DA VIOLÊNCIA FÍSICA, EXISTEM ESPECIFICIDADES A NÍVEL DOS MAUS-TRATOS, ENVOLVENDO FREQUENTEMENTE QUESTÕES DE EXTORSÃO FINANCEIRA OU PATRIMONIAL MAS, SOBRETUDO, DE AUSÊNCIA DE CUIDADOS E ISOLAMENTO” 11

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ENQUANTO INSTITUIÇÃO FUNDAMENTAL DA SOCIEDADE, A FAMÍLIA REPRESENTA O CONTEXTO POR EXCELÊNCIA PARA PROPORCIONAR O BEM-ESTAR DE TODOS OS SEUS MEMBROS”

de casos em que as crianças vivem situações de risco e são instauradas medidas para o seu afastamento das respetivas famílias assumem valores preocupantes. Mais uma vez, aqui importa ter presente o tipo de contexto familiar associado às diferentes formas de maus-tratos – agressão física, negligência, abuso sexual, entre outros – e assegurar não só a proteção da criança e o seu afastamento, mas também um trabalho efetivo de intervenção junto das famílias. Porventura ainda mais invisível do que a violência conjugal ou os maus-tratos a crianças, a violência sobre as pessoas idosas tem adquirido maior notoriedade à medida que se assiste a um crescente processo de envelhecimento da população, com grande volume de situações de perda de autonomia e dependência dos filhos ou de terceiros. Para além da violência física, encontram-se aqui especificidades a nível dos maus-tratos, envolvendo frequentemente questões de extorsão financeira ou patrimonial mas, sobretudo, de ausência de cuidados e isolamento. E não há dúvida de que a sociedade do presente, na sua atual configuração, com as gerações mais novas no mercado de trabalho ou em percurso prolongado de estudos, com redes de relações familiares mais frouxas – ou mesmo inexistentes –, carece de um sistema de prestação de cuidados a idosos que atenda à multiplicidade de necessidades dos mesmos, ne-

cessidades estas não apenas no que respeita às suas incapacidades físicas mas também ao seu percurso biográfico. CONCLUSÃO Neste texto analisou-se o modo como família e sociedade vão a par nas transformações e dinâmicas que as reconfiguram numa perspetiva temporal. O processo de democratização e modernização da sociedade portuguesa, bem como a integração na União Europeia, constitui o pano de fundo para compreender as dinâmicas familiares e as mudanças nos papéis de género. A grande maioria das mulheres faz parte integrante da população ativa no mercado de trabalho e os homens estarão mais envolvidos na vida familiar e no cuidado aos filhos, ainda que longe de uma situação de paridade a que as recomendações europeias dizem aspirar. Mas, por outro lado, a sociedade portuguesa detém um conjunto de condicionantes estruturais – como sejam os baixos níveis de escolaridade e de condições de empregabilidade – e conjunturais, no atual período de crise económica – a nível do aumento do desemprego, da baixa de rendimentos e aumento de despesas com os bens e serviços essenciais –, que afetam grandemente o quotidiano das famílias. Em Portugal, muitas famílias e crianças vivem em situação de pobreza mesmo após as transferências sociais que recebem do Estado. Outros problemas sociais inerentes à família prendem-se com as situações de violência conjugal, crianças em situação de risco, muitas a viverem fora das suas famílias de origem e, também, no plano dos cuidados às pessoas idosas, sendo recorrentes as questões dos maus-tratos por negligência ou abandono, os maus-tratos físicos e o abuso financeiro. Em todas estas áreas importa intervir. Há que assegurar uma boa gestão de políticas públicas e garantir que os recursos são despendidos de forma justa e em moldes que constituem investimentos estruturais para o desenvolvimento da sociedade e o bem-estar da pessoas e das famílias. Designadamente os serviços de apoio a crianças e a pessoas idosas poderão constituir equivalentes funcionais de políticas keynesianas que incremen-

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tem a criação de emprego, assalariado ou em regime cooperativo. Uma medida complementar seria a de assegurar que todas as crianças estivessem efetivamente integradas num sistema universal pré-escolar, que lhes proporcionasse condições de acesso a uma escolaridade bem-sucedida e a uma futura integração no mercado de trabalho, quebrando o ciclo de pobreza que afeta tão grande número de famílias em Portugal. Adicionalmente, são necessários programas de educação de adultos, que colmatem lacunas qualificacionais mas também a nível das competências parentais e familiares, necessárias à gestão das relações sociais e de parentesco no quotidiano.

A família é reconhecida como uma das principais instituições em qualquer sociedade, independentemente das formas que assuma e dos modos particulares que rejam as relações e interações entre os seus membros. Enquanto instituição fundamental da sociedade, representa o contexto por excelência para proporcionar o bem-estar de todos os seus membros. Tal como afirma a resolução da ONU, quando da comemoração do 20º aniversário do Ano Internacional da Família, “a família deve beneficiar do apoio necessário para poder assumir as suas responsabilidades sociais, pelo que enquanto unidade social básica tem o direito à proteção da sociedade e do Estado” (UN, 2014).

BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, A.N.; GUERREIRO, M.D. – A família. In FRANÇA, Luis de (org.) Portugal, Valores Europeus Identidade Cultural. Lisboa: IED, 1993. ALMEIDA, A.N.; ANDRÉ, I.M.; ALMEIDA, H.N. – Sombras e marcas: Os maus-tratos às crianças na família. Análise Social. 1999, Vol. XXXIV (150), pp. 91-121. ALMEIDA, J.F.; ALVES, N.; CAPUCHA, L.; COSTA, A.F.; MACHADO, F.L.; NICOLAU, I.; REIS, E. – Exclusão Social: Factores e Tipos de Pobreza em Portugal. Oeiras: Celta, 1992. BACK-WIKLUND et al. – Quality of Life and Work in Europe. Theory, Practice and Policy. London: Palgrave, 2011. CITE, 2014. Disponível em http://www.cite.gov.pt/pt/acite/protecparent006.html. COLLINS, Randall – Micro and macro sociological causes of violent atrocities. Sociologia Problemas e Práticas. 2013, n.º 71. CUNHA, V. – O Lugar dos Filhos. Lisboa: Imprensa Ciências Sociais, 2007. EUROSTAT, 2014. Disponível em http://epp.eurostat.ec.europa.eu/statistics_explained/index.php. DELGADO, A.; WALL, K. (eds.) – Famílias nos censos 2011: diversidade e mudança. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística / Imprensa de Ciências Sociais, 2014. GUERREIRO, M.D.; TORRES, A.; LOBO, C. – Changing families. In GUERREIRO M.D.; TORRES, A. & CA PUCHA, L. (eds.) – Welfare and everyday life. Oeiras: Celta Editora, 2009. GUERREIRO, M.D. – Trabalho e família: Na senda de novos equilíbrios. Dirigir, 2009, 107, pp. 3-6. GUERREIRO, M.D.; ABRANCHES, M.; PEREIRA, I. – Conciliação Trabalho-Família: Políticas Públicas e Práticas dos Agentes em Contexto Empresarial. Lisboa: CIES, 2000. SPC, 2012. Advisory Report to the EC: Tackling and preventing child poverty, promoting child well-being. THÉVENON – Family policies in OECD Countries: A comparative analysis. Population and Development Review, 2011, 37 (1), pp. 57-87. UNITED NATIONS, 2014. Resolution A/HRC/26/Rev.1. WORSLEY, P. – Introdução à Sociologia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1976.

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| MIGRAÇÕES |

FAMÍLIAS MIGRANTES Acolhimento e solidariedade na sociedade multicultural Texto de Natália Ramos [PROFESSORA ASSOCIADA DA UNIVERSIDADE ABERTA, LISBOA; INVESTIGADORA DO CENTRO DE ESTUDOS DAS MIGRAÇÕES E DAS RELAÇÕES INTERCULTURAIS (CEMRI), UAB]

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O atual contexto global exige a reflexão sobre os desafios colocados pela migração ao nível das identidades, papéis, relações familiares e práticas de maternidade. Importa ainda analisar as estratégias e políticas públicas tendo em vista o acolhimento, integração, direitos e bem-estar das famílias migrantes. INTRODUÇÃO s questões respeitantes às migrações, nomeadamente familiares, são da maior relevância e atualidade ao nível social, científico e político. Elas constituem um desafio mundial, europeu e nacional, sendo objeto de preocupação dos profissionais, dos Estados – sejam países de origem, de trânsito ou de destino de migrantes –, de Portugal e da União Europeia (UE) e de vários organismos nacionais e internacionais, nomeadamente: a Organização das Nações Unidas (ONU, 2006); a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE, 2000); a Organização Internacional para as Migrações (IOM, 2010); a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, 2005); a Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2008); e o Conselho da Europa (CE, 2001). Estes organismos têm assinalado os múltiplos desafios colocados pelos crescentes fluxos migratórios ao nível da multi/interculturalidade das sociedades, das estratégias e políticas públicas nos diferentes setores, no que respeita à integração social, ao acolhimento e solidariedade das populações oriundas de diversos universos culturais, em particular das famílias migrantes, à gestão dos contactos culturais e dos conflitos, bem como à gestão e organização dos espaços e das cidades. A multiculturalidade – no sentido da coexistência numa mesma sociedade de várias culturas e etnias distintas – e o contacto intercultural, ou seja, o encontro de pessoas e de grupos diferentes do ponto de vista cultural, étnico ou linguístico, são elementos que caraterizam cada vez mais

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o tecido social e urbano, exigindo uma abordagem multidimensional. Na sociedade pluricultural contemporânea há novas mobilidades e novas configurações dos percursos migratórios devido a novos contextos sociais, familiares, demográficos, ambientais, laborais e políticos, tais como: a globalização; a urbanização; o envelhecimento demográfico nos países desenvolvidos; as necessidades do mercado de trabalho em muitos países industrializados; o desemprego e as crises internacionais que afetam os países desenvolvidos e em desenvolvimento; o aumento crescente da migração feminina; o turismo internacional; as catástrofes ambientais; os conflitos étnicos, políticos e religiosos; o surgimento de políticas migratórias em países que as não possuíam; a mobilidade gerida por uma governação mundial das migrações; as novas formas de mobilidade estudantil e qualificada; as necessidades de serviços domésticos e de cuidados aos idosos e às crianças nos países envelhecidos; os novos meios de comunicação (os media, a internet); as facilidades de deslocação e rapidez dos meios de transporte; o desenvolvimento de redes entre países baseadas na história, família e cultura. Os percursos migratórios são hoje mais diversificados, complexos, feminizados, qualificados, internacionalizados, atingindo todos os continentes, países, géneros, classes sociais e gerações e implicando os vários domínios da esfera pública e privada, particularmente familiar. Segundo a OCDE, um terço das migrações internacionais são migrações familiares, sendo a reunificação familiar a principal via de entrada da imigração para a União Europeia e EUA, verificando-se que 75% dos fluxos migrató15

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rios anuais são constituídos por cônjuges, filhos e outros familiares, ainda que os projetos migratórios sejam cada vez mais autónomos e individualizados (RAMOS, 2008, 2013). Mundialmente estima-se que haja 740 milhões de migrantes internos e 240 milhões de migrantes internacionais (ONU, 2012). Destes migrantes internacionais, 50% são mulheres, constituindo a feminização das migrações uma das caraterísticas das migrações contemporâneas. A Europa é o continente que acolhe o maior número de migrantes no mundo e o mais feminizado. Os que migram devido à insegurança, a catástrofes, a guerras ou por motivos políticos são cerca de 14 milhões, representando 7% dos migrantes no mundo. As migrações forçadas de pessoas, geralmente tráfico de mulheres e crianças por redes criminosas internacionais, atingem 12 milhões de indivíduos. Em Portugal, segundo os Censos de 2011, residiam em Portugal 394 496 indivíduos de origem estrangeira, representando 3,7% do total de residentes do país. Mais de metade desta população estrangeira é constituída maioritariamente por mulheres (206 410), sendo os homens 188 086

Já a união de facto é mais representativa nos PALOP, com São Tomé e Príncipe (55,6%) e Cabo Verde (51,7%) a dominarem este tipo de união. Os chineses encontram-se no extremo oposto, verificando-se que apenas 5,3% declararam esta forma de conjugalidade. O Instituto Nacional de Estatística (INE, 2011) destacava que, em 2009, os nascimentos em Portugal de filhos de imigrantes representavam 10,4% da totalidade dos nascimentos neste ano, sendo os brasileiros os que contribuem com o maior número de crianças e que se mantêm em primeiro lugar na união com portugueses. Em 2010, 25,3% dos recém-nascidos no Algarve eram filhos de mãe de nacionalidade estrangeira (sobretudo de origem africana dos PALOP, brasileira e europeia de leste). Os dados do INE registam igualmente um aumento de casamentos mistos em Portugal, ou seja, entre portugueses e estrangeiros. A mobilidade familiar e a feminização das migrações promovem oportunidades para a família e para a mulher ao nível identitário, social, educacional e económico, implicando, igualmente, riscos e vulnerabilidades sociais, de saúde e familiares, par-

OS PERCURSOS MIGRATÓRIOS SÃO HOJE MAIS DIVERSIFICADOS, COMPLEXOS, FEMINIZADOS, QUALIFICADOS, INTERNACIONALIZADOS e 51,6% reside na região de Lisboa (INE, 2012). A maior comunidade estrangeira é a brasileira (28%), seguindo-se a cabo-verdiana (10%), a ucraniana (9%), a angolana (6,8%), a romena (6,2%) e os originários da Guiné-Bissau (4,1%). Em Portugal, entre as mulheres estrangeiras, as brasileiras são as mais numerosas, representando 57,9% da comunidade brasileira. O estado civil mais representado na população estrangeira é o de solteiro (53%), seguido dos casados (39%), da união de facto (28,2%), dos divorciados (6%) e dos viúvos (2%). A título de exemplo, para os chineses (59,3%), moldavos (56,3%), ucranianos (56%) e ingleses (55,95%), o estado civil mais representado é o casado.

ticularmente para as mães e as crianças. A sociedade e as políticas públicas terão de fazer face às necessidades e expectativas criadas por estas realidades, particularmente pelos indivíduos e famílias migrantes que afluem às cidades e que partilham espaços, atividades e o quotidiano. POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO E SOLIDARIEDADE O acolhimento, integração e bem-estar das famílias migrantes nas sociedades recetoras estão relacionados com um conjunto complexo e variado de fatores, em que se destacam fatores psicológicos, sociais, económicos, culturais, jurídicos e políticos. Estes reenviam ao estatuto social, económico e

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jurídico do indivíduo e da família migrante na sociedade de acolhimento, às suas redes sociais e de suporte, às atitudes da sociedade de acolhimento e às políticas dos governos e dos Estados. Neste âmbito, têm sido implementados programas e políticas para responder às necessidades destas populações e preconizadas medidas tendo como objetivo políticas efetivas de acolhimento e integração, nomeadamente ao nível social e jurídico, assumindo particular importância a definição dos direitos dos trabalhadores migrantes e das suas famílias. Neste contexto foi adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução n.º 45/158, 18/12/1990) a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (2003). Para o Comité Económico e Social Europeu (CESE, 2004), esta Convenção tem como objetivo “a proteção dos direitos humanos e da dignidade das pessoas que emigram por razões económicas ou laborais em todo o mundo, mediante legislações adequadas e boas práticas nacionais”. Esta Convenção reconhece a proteção internacional de determinados direitos humanos fundamentais, definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU, 1948) para todos os trabalhadores migrantes e suas famílias, nomeadamente aquele que é consagrado no artigo 13º: “Todo o indivíduo tem o direito de circular livremente e escolher a sua residência no interior de um Estado. Todo o indivíduo tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.” No contexto europeu, a Convenção Europeia de Assistência Social e Médica e a Carta Social Europeia (2006) constituem instrumentos fundamentais para a garantia dos direitos de proteção social e de saúde, em situação de igualdade com os nacionais, da população estrangeira residente nos Estados membros do Conselho da Europa. Também em Portugal, o Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI) integrou no Plano para a Integração dos Imigrantes (PCM/ACIDI IP, 2010) noventa medidas em diversos setores de intervenção, tendo em vista a integração, a proteção, a educação, a saúde e a promoção dos direitos das populações migrantes, nomeadamente das famí-

lias migrantes, bem como o apoio aos profissionais que se ocupam destes grupos e a sensibilização da sociedade de acolhimento para estas questões. O acolhimento dos migrantes e a gestão da diversidade cultural nas zonas urbanas constitui uma das grandes preocupações atuais, tendo o Conselho da Europa e a Comissão Europeia lançado em 2008 – Ano Europeu do Diálogo Intercultural – o projeto Cidades Interculturais (2008), tendo como objetivos: combater os preconceitos, a discriminação e a luta pela igualdade de oportunidades, adaptando as estruturas de gestão, as instituições e serviços às necessidades de todos os seus habitantes e cidadãos; desenvolver em cooperação com as empresas, a sociedade civil e os diferentes agentes públicos, um conjunto de políticas e atividades de modo a promover os contactos entre os diferentes grupos culturais, diminuir os conflitos e a violência e consolidar políticas públicas que tornem a cidade mais sustentável, atrativa, acolhedora e solidária para todos. FAMÍLIA E MIGRAÇÃO: DINÂMICAS PSICOSSOCIAIS E DE SAÚDE O processo migratório constitui um processo complexo, capaz de provocar a inadaptação, o disfuncionamento, a doença, como igualmente de favorecer o desenvolvimento, o bem-estar, a saúde e a criatividade dos indivíduos e das famílias. Múltiplos fatores interferem na integração das famílias migrantes na sociedade de acolhimento e nas mudanças de valores, atitudes e comportamentos: o tempo decorrido desde a chegada ao país de acolhimento; o nível de escolaridade; a origem urbana ou rural da família; a situação económica da família no país de chegada; a estrutura e funcionamento da família; a rutura ou manutenção dos contactos com a cultura de origem; o nível de integração e as possibilidades de contacto da família migrante com a sociedade de acolhimento, nomeadamente ao nível do trabalho, associações, grupos de mulheres, serviços de saúde ou educativos. As migrações envolvem a separação da família enquanto rede de apoio, pelo que as condições de deslocamento influenciam os benefícios e resultados decorrentes. Em situação de migração, a família separa-se da vida comunitária tradicional, reduz-se a uma família nuclear ou monoparental, 17

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a qual deverá assegurar sozinha as responsabilidades partilhadas até aqui pela família alargada ou pela comunidade, verificando-se uma diminuição ou perda das redes de apoio familiar e suporte social, situação que vem reforçar o isolamento e a vulnerabilidade das famílias. Muitas famílias passam a deslocar-se dos seus países e a abandonar as suas casas para trabalhar em países mais ricos, sendo obrigadas muitas vezes a deixar os seus filhos no país de origem, ao cuidado de outros familiares. Sobretudo mulheres mães de família migram para cuidarem de outros, principalmente crianças, idosos e doentes, nos países de acolhimento, fenómeno que alguns autores designam de “cadeias globais de assistência”

consequências negativas para o seu bem-estar e saúde e limitações nas suas opções entre cuidados familiares e emprego (ILO, 2010). No país de acolhimento, o trabalho assalariado das mães migrantes (não exercido frequentemente no país de origem ou radicalmente diferente), a dupla jornada de trabalho, o isolamento familiar e social, novos modos de vida e novas referências socioculturais, por vezes contraditórias, trazem mudanças no estilo de vida, nas práticas reprodutivas e de fecundidade, em particular na diminuição do número de filhos, nas práticas de maternagem – por exemplo, a diminuição do período de aleitamento materno, o abandono de algumas práticas tradicionais de cuidados e socioeducativas –, podendo

O PROCESSO MIGRATÓRIO CONSTITUI UM PROCESSO COMPLEXO, CAPAZ DE PROVOCAR A INADAPTAÇÃO, O DISFUNCIONAMENTO, A DOENÇA, COMO IGUALMENTE DE FAVORECER O DESENVOLVIMENTO, O BEM-ESTAR, A SAÚDE E A CRIATIVIDADE DOS INDIVÍDUOS E DAS FAMÍLIAS ou “cadeias globais de cuidados” (HOCHSCHID, 2000; EHRENREICH & HOCHSCHID, 2003, 2004; RAMOS, 2008, 2009a). Esta situação exige novos arranjos familiares e tem implicações psicológicas, familiares e sociais importantes para as famílias, sobretudo para as mães e as crianças que ficam, os “órfãos” das migrações, e têm tendência para se repetir no tempo e no espaço. Os desafios decorrentes da necessidade de equilíbrio entre a vida familiar e o trabalho, entre as responsabilidades familiares e laborais, podem favorecer vulnerabilidades e stress para as famílias migrantes, sobretudo para as de baixos recursos e para as mulheres. Na conciliação entre o trabalho e a família – e dado o número de horas que dedicam ao trabalho doméstico e ao emprego, à dupla jornada de trabalho e ao menor nível de apoio por parte de redes informais ao longo da vida conjugal –, estas famílias, principalmente as mulheres, sofrem

a migração dificultar a vivência da maternidade e educação dos filhos (WHO, 1983; RAMOS, 2004, 2008, 2009a, 2011). A situação de migração poderá representar uma situação de risco e fonte de sofrimento, stress, conflito e depressão para a mulher migrante, sobretudo durante a gravidez, no nascimento e após o parto, com consequências para a mãe e para a criança, devido às ruturas, ao isolamento, à solidão, às dúvidas e ansiedade que acompanham esta etapa (RAMOS, 2008, 2009a, 2011, 2012; MUNK-OLSEN et al. 2006; NY et al., 2007; FUNG & DENNIS, 2010). Com efeito, são particularmente as mães e as crianças, sobretudo nos primeiros anos de vida, as mais vulneráveis ao stress, às ruturas, às transformações e às dificuldades resultantes do processo migratório e de aculturação. Nas famílias migrantes, por um lado, a maternidade é vivida como uma nova etapa na constituição

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da família, com um aumento de responsabilidades e exigências; para outras, sobretudo para algumas mães, é vivida com angústia, medo e solidão, devido ao desenraizamento familiar e social. Em contexto migratório, o nascimento, momento de rutura psíquica e física, em geral reativa o sofrimento, a memória, a perda e a dor do exílio e da separação. A migração poderá vulnerabilizar a vivência da gra-

queixas psicossomáticas, o sentimento de incapacidade materna, as interações mãe-criança desarmoniosas ou os distúrbios psicológicos e somáticos da criança. A perda dos laços comunitários e familiares significa a perda da proteção física, psicológica, familiar e da tradição. Quando a cultura e o grupo desaparecem como fonte de transmissão, nomea-

EM CONTEXTO MIGRATÓRIO, O NASCIMENTO, MOMENTO DE RUTURA PSÍQUICA E FÍSICA, EM GERAL REATIVA O SOFRIMENTO, A MEMÓRIA, A PERDA E A DOR DO EXÍLIO E DA SEPARAÇÃO videz e da maternidade e as primeiras interações com a criança pelos condicionalismos impostos pela migração, nomeadamente a aculturação psicológica, a solidão/isolamento e o individualismo. A maternidade em situação migratória favorece conflitos de maternagem e disfuncionamentos culturais e psicológicos que são também verificados nas mulheres e famílias autóctones das sociedades ocidentais, problemas ligados ao isolamento das famílias, sobretudo das mães, às mudanças e conflitos culturais, à necessidade de conciliar diversos papéis e identidades na vida familiar e profissional e à cultura do individualismo, valor dominante na sociedade atual (RAMOS, 2004; HAYS, 1997). Para as mães migrantes, esta situação poderá constituir-se traumática e fonte de sofrimento, sobretudo para as mulheres que vêm de meios tradicionais, por exemplo de África, Ásia, América Latina, onde a mãe e a criança são fonte de cuidados e acompanhamento da família e da comunidade envolvente, sobretudo da comunidade feminina. A migração origina numerosas ruturas neste processo de transmissão, de partilha e de construção de sentido, traduzindo-se, por exemplo, na perda de apoio e acompanhamento pelo grupo, falta de suporte familiar, social e cultural e dificuldade em atribuir um sentido culturalmente aceitável a disfuncionamentos, tais como a tristeza da mãe, as

damente ao nível das práticas de maternagem, as competências das mães e dos pais são fortemente solicitadas, tendo estes de fazer face não só às exigências de serem bons pais e mães, como também aos conflitos culturais, ao trabalho de luto e à adaptação a um novo meio social e laboral. Para algumas mulheres, dar à luz, ser mãe, longe da cultura materna, da família – sobretudo para as que vêm de meios culturais e familiares onde estes elementos são fundamentais na transmissão, na saúde e na educação –, bem como conciliar diversos papéis familiares e profissionais, este luto, afastamento e mudanças podem originar conflitos e insegurança no papel materno, devido às contradições culturais e desequilíbrio entre as representações e a realidade vivenciada (RAMOS, 2004, 2008, 2011). A família, sobretudo a mãe migrante, transplantada de uma cultura para outra, isolada, desenraizada, corre o risco de não saber com a mesma segurança quais os gestos e os comportamentos a adotar, pois as referências não são as mesmas e o sistema referencial vacila. As práticas de saúde e educativas das sociedades industrializadas, muito dependentes dos especialistas e frequentemente diferentes, podem colocar em causa os comportamentos tradicionais das famílias migrantes, levando-as a questionar se os seus saberes são maus ou ultrapassados. A situação de conflito cultural, 19

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a insegurança e ansiedade daí resultantes estão na origem de conflitos de maternagem prejudiciais para a saúde, para a relação mãe-criança e para as competências maternas e familiares (RAMOS, 2004, 2009, 2011, 2012a,b). As dificuldades psicossociais, emocionais e culturais – sobretudo nos primeiros anos de migração –, a insegurança, a depressão e o isolamento das relações sociais e familiares e a sobrecarga de trabalho poderão provocar, em certos casos, um empobrecimento nos cuidados e estimulações dos filhos, um desequilíbrio no sistema de interação mãe-pai-criança, uma inadequação das respostas parentais, em particular maternais, às necessidades da criança ou mesmo o fortalecimento de certas práticas religiosas ou protetoras, nomeadamente práticas mágico-religiosas. Importa destacar que investigações sobre a saúde das mulheres migrantes, nomeadamente na União

infantil (RAMOS, 2004, 2008, 2009a, 2012; RADEMAKERS et al., 2005; MACHADO et al., 2006; LOPES, 2007; MANUEL, 2007; BRAGG, 2008). CONSIDERAÇÕES FINAIS É necessário proporcionar ao indivíduo migrante e à sua família um enquadramento informativo, social, familiar, cultural, educativo e jurídico, capaz de transformar o risco, o isolamento e a rutura que comporta a situação migratória, num processo estruturante, capaz de transformar a vulnerabilidade, a exclusão, o sofrimento e a violência frequentemente associados à migração, num processo dinamizador, participativo, criativo e inclusivo. As organizações e os serviços de acolhimento e apoio deverão favorecer uma intervenção global, coordenada e culturalmente competente, adaptada às caraterísticas, expectativas e necessidades individuais, sociais e culturais das famílias. A atua-

UMA SOCIEDADE MULTI/INTERCULTURAL E UM MUNDO GLOBALMENTE INTERDEPENDENTE NECESSITAM DE UMA NOVA ABORDAGEM DE CIDADANIA PARA AS POPULAÇÕES MIGRANTES E AUTÓCTONES Europeia, América do Norte, América Latina e Ásia, registam, sobretudo, problemas de saúde reprodutiva, apontando piores indicadores de saúde associados a estas mulheres, bem como maior tendência para assumir comportamentos de risco e menor predisposição para adotar comportamentos de prevenção. Muitas mulheres migrantes têm poucos conhecimentos sobre os serviços sociais e de saúde; utilizam, em geral, menos frequentemente os serviços de saúde reprodutiva do que as mulheres não migrantes; não recebem com frequência cuidados pré-natais, ou recebem-nos de modo inadequado ou tardio; apresentam menor utilização de métodos contracetivos e maior vulnerabilidade às doenças sexualmente transmissíveis, registando mais gravidezes indesejadas, taxas mais elevadas de aborto espontâneo, de recém-nascidos com baixo peso e de mortalidade e morbidade materna, perinatal e

ção destas entidades deve promover o acesso aos diferentes serviços e o combate à exclusão social, bem como conceber as diferenças individuais e culturais não como um problema, mas como uma oportunidade de enriquecimento, desenvolvimento e inclusão. Uma sociedade multi/intercultural e um mundo globalmente interdependente necessitam de uma nova abordagem de cidadania para as populações migrantes e autóctones, que incorpore a dinâmica da mudança, da diversidade cultural e os princípios fundamentais dos direitos humanos em estratégias e políticas que promovam o desenvolvimento humano, o bem-estar, a solidariedade, a inclusão, a igualdade de oportunidades e o pleno acesso à cidadania de todos os indivíduos e grupos, em particular dos indivíduos e famílias migrantes.

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A ECONOMIA DA PARTILHA A tendência global que está a mudar a forma como pensamos, vivemos e negociamos

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Estamos a testemunhar, em todo o mundo, o surgimento de uma nova economia sustentável, com exemplos reais de como comunidades, empresas e indivíduos estão a organizar as suas vidas em torno da partilha de recursos. Texto de Benita Matofska [PERITA EM ECONOMIA DA PARTILHA, FUNDADORA E PARTILHADORA CHEFE DAS PLATAFORMAS THE PEOPLE WHO SHARE E COMPARE AND SHARE]

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xistem no mundo bens inativos no valor de 3,5 biliões de libras1, desde espaços inutilizados a bancos de automóvel vazios. Se juntarmos a este facto o afastamento cultural do hiperconsumo e da necessidade de ter posses, em direção a uma economia com base no acesso, construída em torno da partilha de recursos e facilitada pela tecnologia, a que se soma um interesse renovado da comunidade, temos os ingredientes para a maior mudança social desde a Revolução Industrial. Pedem-me frequentemente que defina a economia da partilha. Decidi que era tempo de dar a resposta definitiva por escrito. É necessária uma definição inequívoca, não só para efeitos de clareza e para permitir uma discussão com sentido, mas também para oferecer um objetivo e direção precisos para todos aqueles que trabalham no sentido de permitir, criar e promover a economia da partilha. Além disso,

se esta economia sustentável se mover do nicho para o quantum, é necessária uma mensagem clara para popularizar o movimento crescente que mudará a forma como pensamos, vivemos e negociamos. A economia da partilha é um sistema socioeconómico baseado na partilha de bens físicos e humanos. Inclui a criação, produção, distribuição, comercialização e consumo partilhados de bens e serviços por diferentes pessoas e organizações. Embora esteja ainda na sua “infância”, conhecida apenas através de um conjunto de serviços e empresas em fase de arranque que permitem trocas

peer-to-peer com o uso da tecnologia, este é apenas o começo. No seu potencial máximo, a economia da partilha é um sistema socioeconómico novo e alternativo que integra a partilha e a colaboração como núcleo – em todos os aspetos da vida económica e social. A economia da partilha engloba os seguintes aspetos: troca, intercâmbio, compra coletiva, consumo colaborativo, propriedade partilhada, valor partilhado, cooperativas, cocriação, reciclagem, reutilização, redistribuição, troca de bens usados, arrendamento, empréstimo, modelos com base na subscrição, peer-to-peer, economia colaborativa, economia circular, economia pay-as-you-use, wikinomics, empréstimo peer-to-peer, microfinanciamento, microempreendedorismo, crédito mútuo, redes sociais, The Mesh, empresas sociais, futurologia, democracia, freakonomics, crowdfunding, crowdsourcing, cradle-to-cradle, fonte aberta, abertura de dados e conteúdos gerados pelo utilizador (UGC). Em 2010, após a humilde experiência de partilhar uma plataforma com Desmond Tutu e Bob Geldof no Congresso “One Young World” (e depois de vinte anos de trabalho em televisão), prometi que a minha próxima ambição seria encontrar uma solução para as crises globais mais urgentes. Após três meses de noites sem dormir, em que a palavra “partilha” ecoava na minha mente, acordei uma manhã com

1. The People who Share, 2013.

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a frase que iria alterar o rumo da minha vida – “o que há de errado no mundo é a falta de partilha”. O mais entusiasmante desta ideia é que esta falta pode ser compensada se encontrarmos uma forma de aproveitar o potencial ilimitado de partilha. E foi assim que começou a minha vida enquanto fundadora da The People who Share, a campanha global para a criação de uma economia da partilha, iniciativa pioneira responsável pelo Dia Global da Partilha (que este ano teve lugar no dia 1 de junho). O movimento expandiu-se por todo o mundo e tem agora um alcance de setenta milhões de pessoas em 192 países. Não poderíamos ter imaginado, quando divulgámos pela primeira vez a hashtag #sharingeconomy no Twitter, em 2011, que o setor se tornaria tão popular de forma tão rápida. Embora o crescimento nesta área seja evidente, a clareza na definição é essencial, não só para que quem trabalha neste espaço possa traçar os seus objetivos, mas também para construir um sistema socioeconómico global robusto e sustentável. A economia da partilha é um sistema económico sustentável, que engloba dez elementos essenciais: 1. PESSOAS: As pessoas são o centro da economia da partilha. É uma economia popular, o que significa que as pessoas são cidadãos ativos e que participam nas suas comunidades e na sociedade em geral. As pessoas são também os fornecedores de bens e serviços;

em atividades produtivas e motiva-as a fazê-lo. Na economia da partilha, os desperdícios têm valor, são vistos apenas como um recurso no local errado. A economia da partilha permite que os desperdícios sejam aproveitados onde forem necessários e valorizados. são os criadores, colaboradores, produtores, coprodutores, distribuidores e redistribuidores. Na economia da partilha, as pessoas criam, colaboram, produzem e distribuem em peer-to-peer e de pessoa para pessoa (P2P). Os participantes da economia da partilha são indivíduos, comunidades, empresas, organizações e associações. 2. PRODUÇÃO: Na economia da partilha, as pessoas, organizações e comunidades, como participantes ativos que são, produzem ou coproduzem bens e serviços colaborativamente, coletivamente ou cooperativamente. A produção é aberta e acessível a todos que desejarem produzir. 3. VALOR E SISTEMAS DE TROCA: A economia da partilha é uma economia híbrida em que existem várias formas de troca, incentivo e criação de valor. O sistema engloba moedas alternativas, moedas locais, bancos de tempo, investimento social e capital social. É baseado nas recompensas materiais, imateriais ou sociais e incentiva a utilização mais eficiente dos recursos. Este sistema híbrido de incentivo permite que as pessoas se envolvam

4. DISTRIBUIÇÃO Na economia da partilha os recursos são distribuídos e redistribuídos através de um sistema eficiente e equitativo. Os recursos inativos são realocados ou trocados com quem necessita dos mesmos, criando um sistema circular ou um ciclo fechado eficiente e equitativo. A reciclagem, a reutilização e a partilha do ciclo de vida dos produtos são caraterísticas comuns na economia da partilha. O sistema emprega tecnologia para redistribuir ou trocar bens inutilizados ou “adormecidos”, gerando valor para as pessoas, comunidades e empresas. Os modelos de propriedade partilhada como cooperativas, compras coletivas e consumo colaborativo são caraterísticos da economia da partilha, promovendo uma distribuição justa dos bens, que beneficie a sociedade como um todo. O acesso é promovido e preferido em detrimento da propriedade, e encarado como propriedade distribuída ou partilhada. O car sharing – partilha de automóveis, por exemplo, pagando conforme o uso, é vista como preferível e mais inteligente em comparação com o custo, o encargo, o desperdício de recursos e o potencial de inatividade da propriedade.

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5. PLANETA: A economia da partilha coloca tanto as pessoas como o planeta no centro do sistema económico. A criação de valor, a produção e a distribuição operam em sinergia ou harmonia com os recursos naturais disponíveis, e não à custa do planeta.

os seus cidadãos, económica e socialmente, e permite a redistribuição de poder económico e social. Estas duas facetas baseiam-se num sistema de governação e de tomada de decisões aberto, partilhado, distribuído e democrático. Este ecossistema robusto facilita a abertura e partilha de opor-

o car sharing, a troca peer-to-peer e um vasto leque de formas de partilha de recursos. As leis, políticas, estruturas e infraestruturas criam um sistema de confiança, com os seguros, as garantias, as avaliações sociais e o capital de reputação na vanguarda.

AS PESSOAS SÃO O CENTRO DA ECONOMIA DA PARTILHA. É UMA ECONOMIA POPULAR, O QUE SIGNIFICA QUE AS PESSOAS SÃO CIDADÃOS ATIVOS E QUE PARTICIPAM NAS SUAS COMUNIDADES E NA SOCIEDADE EM GERAL A economia da partilha é inerentemente sustentável, porque o sistema é concebido para a sustentabilidade e não para a obsolescência. A conceção dos produtos, por exemplo, não só é baseada na disponibilidade ou reutilização de recursos, como também promove modelos com um impacte positivo no planeta. Ou seja, em vez levar a cabo a simples redução das emissões de carbono para atenuar o impacte negativo, a economia da partilha cria bens e serviços que afetam positivamente o ambiente natural, tais como os modelos de economia circular ou os modelos C2C2 – por exemplo, um par de ténis feitos com materiais recicláveis que possuem sementes implantadas nas solas biodegradáveis; à medida que os ténis se desgastam, as plantas crescem. 6. PODER: A economia da partilha capacita

tunidades e o acesso ao poder. O poder é partilhado ou distribuído e a infraestrutura permite aos cidadãos o acesso ao poder e à tomada de decisões. Os sistemas que permitem e promovem a remuneração justa e que reduzem a desigualdade e a pobreza – como o comércio justo – são apoiados e preferidos. Isto serve de incentivo às pessoas, que se tornam agentes económicos ou microempreendedores, que assinam contratos vinculativos entre si ou que efetuam trocas peer-to-peer. 7. DIREITO PARTILHADO: Na economia da partilha, o mecanismo de criação de leis é democrático, público e acessível. As regras, políticas, leis e normas são criadas através de um sistema democrático que permite e incentiva a participação em massa a todos os níveis. As leis e políticas permitem, apoiam e incentivam as práticas de partilha, como

8. COMUNICAÇÕES: Na economia da partilha, a informação e o conhecimento são partilhados, abertos e acessíveis. As boas comunicações abertas são essenciais ao fluxo, eficiência e sustentabilidade deste sistema económico. Um dos princípios fundamentais da economia da partilha diz que as comunicações são distribuídas e o conhecimento é vastamente acessível, fácil de obter e pode ser utilizado por diferentes indivíduos, comunidades e organizações, de imensas formas e com os mais variados propósitos. A tecnologia e as redes sociais permitem o fluxo de comunicação e auxiliam a partilha de informação. O foco das comunicações na economia da partilha é a promoção da mensagem: “Partilhe Mais”. 9. CULTURA: A economia da partilha promove uma cultura baseada no “nós”,

2. C2C: Modelo de design de produtos e sistemas cradle to cradle

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onde toda a comunidade e o bem maior são tidos em consideração. A saúde, a felicidade, a confiança e a sustentabilidade são algumas das caraterísticas a assinalar. A partilha é vista como um atributo positivo, as pessoas que partilham são enaltecidas, incentivadas e capacitadas. Um estilo de vida partilhável é preferido e defendido. A cultura de partilha estende-se a todos os setores, geografias, condições económicas, sexos, religiões e etnias. A diversidade é celebrada e as colaborações entre diferentes grupos são aplaudidas e incentivadas. A partilha de recursos faz parte da estrutura e do ecossistema da sociedade de

disruptiva, o empreendedorismo de partilha, o empreendedorismo criativo, o intraempreendedorismo e o microempreendedorismo são também comuns. 10. FUTURO: A economia da partilha é um sistema económico robusto e sustentável, construído em torno de uma visão a longo prazo, considerando sempre o impacte e as consequências futuras das ações no presente. Ao ter em conta as consequências a longo prazo, a futurologia e uma perspetiva ampla, a economia da partilha apresenta-se como um sistema económico estável e sustentável. O pensamento

Existem agora mais de sete mil iniciativas de economia da partilha no mundo3, desde peer-to-peer a alugueres de casas como a Airbnb ou a HouseTrip, clubes de car sharing como a Zipcar, empresas de ridesharing como a Liftshare e até o nosso ponto de comparação de mercado da economia da partilha – www.compareandshare.com –, que tem o objetivo de propagar esta nova economia à população em geral. O diretório global da economia da partilha (Global Sharing Economy Directory) da Compare and Share lista mais de sete mil iniciativas, ordenadas por categoria e distribuição geográfica, demonstrando que esta nova economia está lon-

A ECONOMIA DA PARTILHA PROMOVE UMA CULTURA BASEADA NO “NÓS”, ONDE TODA A COMUNIDADE E O BEM MAIOR SÃO TIDOS EM CONSIDERAÇÃO partilha. As externalidades são sempre tidas em consideração e integradas. A cultura de negócios é baseada na utilização mais eficiente de recursos e na cultura colaborativa de negócios. Negócios conscientes, sociais, sustentáveis, éticos, empresas sociais e negócios como força do bem são também caraterísticas da economia da partilha. Os modelos de negócio predominantes na economia da partilha são: modelos baseados no acesso, subscrição, aluguer e modelos colaborativos e entre peer-to-peer. A inovação

sistemático e a necessidade de uma abordagem sistémica à mudança são fundamentais para o sucesso da economia da partilha. Mas estes dez pilares não são apenas um sonho hippie, irrealista e inalcançável, ou uma visão idealista. O que estamos a testemunhar, em todo o mundo, é o surgimento desta nova economia sustentável com exemplos reais de como comunidades, empresas e indivíduos estão a organizar as suas vidas em torno da partilha de recursos.

ge de ser um sonho inalcançável. Nas avaliações do volume de mercado da economia da partilha surgem muitos valores entre os 110 mil milhões de libras4 até à casa dos biliões de libras, se o montante estimado do potencial inativo exceder os 3,5 biliões de libras5. No Reino Unido, 65% dos adultos participou na economia da partilha, rendendo essa participação cerca de 4,6 mil milhões de libras6, enquanto nos Estados Unidos, 52% dos norte-americanos arrendou, pediu emprestado ou alugou

3. Compare and Share, Global Sharing Economy Directory. 4. Fast Company, 2011. 5. The People who Share, 2013. 6. The State of the Sharing Economy; The People who Share, 2013.

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itens que anteriormente teria possuído, com 83% a afirmarem que o fariam, se fosse fácil7. A atividade na economia da partilha está a crescer por toda a Europa. Na Holanda, 84,1% dos cidadãos de Amesterdão afirmam que participariam na economia da partilha8, enquanto a Europa representa 38,7% do mercado global de car sharing9. O crescimento da economia da partilha é evidente, embora falte uma avaliação exaustiva do mercado global. Em resposta a esta lacuna – e em colaboração com a New Economics Foundation –, vamos levar a cabo o estudo mais exaustivo relativo ao valor da economia da partilha até à data. O valor de mercado, neste caso, ultrapassa amplamente os cálculos tradicionais de contributo para o PIB, visto que os valores social e ambiental da economia da partilha são significativos – desde a redução de emissões de carbono à maximização de recursos, criação de coesão social e comunidades felizes e saudáveis. A Shareable – a maior publicação online de conteúdo sobre a economia da partilha, fundada por Neal Gorenflo – observou um crescimento ano a ano no setor. Lisa Gansky, autora de The Mesh, documenta como estão a despontar novos modelos de negócio, concebidos em torno do acesso e não da propriedade, onde as pessoas são produtoras e fornecedoras de bens e serviços – deixando de estar dependen-

tes das grandes corporações. As grandes corporações estão também a reconhecer esta oportunidade de mercado e a entrar no espaço. Desde os hotéis Mariott e a sua parceria com a Liquidspace – arrendando cantos inutilizados de hotéis a empreendedores –, até ao Walmart, nos Estados Unidos, que faz entregas online através de crowdsourcing com clientes na loja; ou a M&S no Reino Unido que, com a iniciativa Shwopping, reciclou milhões de peças de roupa ao mover-se para um sistema de circuito mais fechado. A economia da partilha tem, inclusive, o seu próprio analista – Jeremiah Owyang, fundador da plataforma Crowd Companies, que documenta e examina o crescimento do setor. Economistas e académicos por todo o mundo declaram a economia da partilha como o maior acontecimento desde a Revolução Industrial; e a imprensa global destaca a “nova e imensa economia da partilha [em que] a tecnologia reduz os custos das transações, tornando a partilha de bens mais fácil e barata do que nunca – sendo assim possível a uma escala muito maior”. O jornal The Economist de 9 de março de 2013 e a revista Forbes registam um crescimento de 25% na economia da partilha em 2013. Não restam dúvidas de que esta nova economia é a economia do futuro. Visto que quanto mais partilhamos, mais felizes somos10, é este o futuro que defendo.

BIBLIOGRAFIA Compare and Share, Global Sharing Economy Directory – There are now over 7,000 Sharing Economy initiatives in the world. Disponível em http:// www.compareandshare.com/sharing-economy-directory/. Fast Company (2011) e MIT Sloan Management – The Sharing Economy is valued at £110 billion. Disponível em http://mitsloanexperts.mit.edu/mit-sloan-grad-on-the-sharing-economy-the-next-big-trend-in-social-commerce/. Forbes Magazine claims 25% growth in the Sharing Economy in 2013, 23 de janeiro de 2013. Inquérito da ShareNL em 2013 – 84,1% of citizens in Amsterdam say they would participate in the Sharing Economy. Disponível em http://www.collaborativeconsumption.com/2013/08/20/what-is-the-consumer-potential-of-collaborative-consumption-answers-from-amsterdam/. Inquérito da Sunrun em 2013 – 52% of Americans have rented, borrowed or leased items they would have previously owned with 83% saying they would do so if it were easy. Disponível em http://www.sunrun. com/why-sunrun/about/news/press-releases/ new-survey-reveals-disownership-is-the-new-normal/. Huge new sharing economy [where] technology has reduced transaction costs making sharing assets cheaper and easier than ever – and therefore possible on a much larger scale. In The Economist, 9 de março de 2013. The Great Sharing Economy Report, Cooperatives UK, 2011 – The more we share, the happier we become. The People who Share, 2013 – There are £3.5 trillion worth of idle assets in the world. The State of the Sharing Economy Report, The People who Share 2013 – In the UK, 65% of adults have engaged with the Sharing Economy earning some £4.6 billion. Disponível em www.stateofthesharingeconomy.com. Universidade de Berkeley – Europe claims 38.7% of the worldwide car sharing market. Estudo sobre car

7. Inquérito da Sunrun em 2012. 8. Inquérito da ShareNL em 2013. 9. Estudo sobre car sharing da Universidade de Berkeley, 2013. 10. The Great Sharing Economy, Cooperatives UK, 2011.

sharing da Universidade de Berkeley, 2013.

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A FAMÍLIA

NA CONJUNTURA

SOCIAL

Texto de Maria Gabriela Figueiredo Guterres Barbosa Colen [IRMÃ E MEMBRO DO CONSELHO TÉCNICO DA IRMANDADE DA MISERICÓRDIA E DE SÃO ROQUE DE LISBOA]

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A atual situação do país apresenta diversos desafios que fazem perigar a família enquanto núcleo fundamental da sociedade. A agravar este cenário, as políticas públicas não promovem os direitos das famílias. Importa apoiar a família nos desafios que enfrenta, criando condições que permitam acreditar para construir e participar.

M

uito se tem dito sobre a família – normalmente é apresentada como a célula-base da sociedade, a primeira e a primordial comunidade humana. Para a família cristã ela constitui a primeira etapa da salvação, através da qual se concretiza a promessa divina: “Crescei e multiplicai-vos…” A família é algo de estruturante na vida das pessoas. Alicerçada em relações interpessoais, pressupõe uma aliança e um compromisso livremente aceites, que são identitários, afetivos, que promovem a dignificação e a felicidade de cada um dos seus membros; a comunhão de amor e de vida. “Ponto de partida para a cidade…” A família está em permanente evolução, variando ao longo do tempo, conforme o tipo de sociedade onde se insere e adotando organizações diversas – família patriarcal, matriarcal, mais alargada ou restrita, mais ou menos hierarquizada. Só por simplificação se pode fazer referência a “família tradicional”. Não existe, nem nunca existiu, um só tipo

de família, variando conforme o tempo, o território, a classe social, entre outros fatores. A sociedade influi na família, assim como a família na vida social. Nas sociedades pré-industriais, a família apresentava-se muito estruturada e com caraterísticas de solidariedade, integrando as necessidades dos seus membros, incluindo os mais fracos. Nas sociedades industriais, as mutações sociais influenciaram a família: nuclearizou-se, dispersou-se, afastando-se do seu lugar de origem. Mais isolada, perdeu alguma capacidade protetora. Atualmente, as famílias também não têm uma organização uniforme, quer na sua composição – famílias nucleares, com ou sem filhos, famílias monoparentais, extensas, famílias reconstituídas, uniões de facto – quer na divisão de papéis e de funções entre os seus membros. A evolução da família, como projeto humano que é, não fez desaparecer muitos aspetos da sua antiga estrutura e dinâmica, tendo mantido ao longo do tempo alguns traços comuns tal 29

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como as suas funções essenciais. Ao mesmo tempo que se realça a importância da família na vida dos indivíduos e das sociedades, é recorrente considerar a família como estando em crise. Na sociedade são registadas mutações e a família é uma comunidade de pessoas. A família é um fenómeno humano – é constituída por pessoas concretas, individuais e relacionais, com consciência e livres de fazer as suas próprias escolhas. Todavia, a família não é uma ilha. Sofre a influência da sociedade, que condiciona os comportamentos das pessoas e das famílias. A sociedade pós-moderna trouxe dificuldades acrescidas para assegurar o quadro relacio-

A falta de capacidade da sociedade em integrar estas novas situações das famílias faz evidenciar a sua vulnerabilidade e mesmo a sua desestruturação, que se revela no aumento de divórcios, no adiamento ou mesmo desistência da maternidade/paternidade, e a dificuldade de exercer a sua função educativa. Todavia, muitos destes aspetos da crise familiar não são mais do que a crise do homem. O que se observa é o primado do indivíduo e do que é efémero, das coisas e circunstâncias que ofereçam satisfação imediata. As representações sociais e culturais do “ter” são valorizadas, ao invés do investimento no “ser”. O consumismo fomentado pelo prazer

duzidos os abonos de família e os apoios à educação, e dificultado o acesso à habitação ou aumentado o encargo despendido com esta, com consequências dramáticas para a sua realização. As consequências evidenciam-se na diminuição do número de casamentos e aumento de divórcios, na diminuição acentuada de nascimentos, na emigração não desejada, no aumento do abandono escolar, na violência nas escolas e no aumento da violência doméstica e do abandono dos idosos. A ausência de expectativas de mobilidade social, uma classe média depauperada, a instabilidade profissional, as fracas perspetivas de futuro dos jovens e dos adultos desempregados de

ALICERÇADA EM RELAÇÕES INTERPESSOAIS, A FAMÍLIA PRESSUPÕE UMA ALIANÇA E UM COMPROMISSO LIVREMENTE ACEITES, QUE SÃO IDENTITÁRIOS E AFETIVOS nal e afetivo numa organização mais restrita – nuclear, conjugal ou monoparental –, onde existe a falta de suporte tradicional das redes de vizinhança, quer no isolamento do meio urbano quer no interior desertificado. Os ritmos exigentes de trabalho, as deslocações diárias – que consomem tempo e energia –, a alteração do estatuto da mulher e o seu crescente envolvimento no mundo do trabalho, a maior escolarização e consequente adiamento da constituição familiar, entre outros, são fatores que desencadearam alterações nos comportamentos familiares.

imediato e pelo desejo de status social são outros dos fatores que influenciam os comportamentos humanos e familiares. A atual situação do país veio agudizar algumas questões que comprometem o desenvolvimento pessoal e familiar. O processo de ajustamento orçamental fez aumentar exponencialmente o desemprego, o emprego precário e mal pago, o endividamento, a dificuldade de acesso aos serviços de proteção – nomeadamente à saúde –, com especial impacte nos grupos mais vulneráveis, como pessoas idosas, deficientes e doentes. As famílias viram re-

longa duração – que se admite não voltarem a obter emprego – fazem perigar a vida familiar. O adiamento de perspetiva de vida independente para os jovens que não podem aspirar a um mínimo de segurança que lhes permita constituir família, impedindo a construção do futuro, juntamente com a emigração jovem e a saída de grande número de imigrantes, fez baixar a natalidade, acentuando o problema demográfico que tem vindo a verificar-se nos últimos anos. Perante este cenário é de realçar a solidariedade demonstrada pelas famílias que, além de pres-

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tarem auxílio económico, acolhem os seus elementos que se encontram desempregados ou desalojados de habitação, tal como os filhos e netos em dificuldades. Por outro lado, não se conhece, ainda, o impacte que a coabitação pela força da necessidade terá na qualidade de vida, nomeadamente dos idosos, e nas relações interpessoais no seio familiar.

pobres, como o Rendimento Social de Inserção (RSI), abono de família, subsídio de desemprego, apoio a pessoas com deficiência, complemento solidário a idosos, entre outras, originam um aumento da pobreza (24%). A diminuição generalizada dos níveis de bem-estar de grandes franjas da população e o agravamento das desigualdades acentua a

dela que se comunica o património de humanidade e o diálogo intergerações. Importa apoiá-la nos desafios que enfrenta, criando condições que permitam acreditar para construir e participar, através da adoção de políticas claras estáveis que reconheçam a família como parceiro na assunção de leis que estejam de acordo com

É ATRAVÉS DA FAMÍLIA QUE SE COMUNICA O PATRIMÓNIO DE HUMANIDADE E O DIÁLOGO INTERGERAÇÕES Relativamente às políticas públicas, faltam respostas concretas de promoção e inclusão de todos os cidadãos de forma duradoura e sustentada. Mais do que isso, retrocedeu-se relativamente ao modelo de proteção, passando a um modelo assistencialista, menos respeitador da dignidade e menos eficaz na promoção e autonomia familiar. A ação política desvaloriza a família enquanto parceira, havendo uma ausência de medidas que reconheçam a promoção dos direitos das famílias. De referir a vacuidade de certas medidas que, embora tenham o seu mérito intrínseco, não se adaptam à atual situação do país, nomeadamente o cheque-ensino ou a proposta de subsidiar trabalho a tempo parcial. Verifica-se uma ausência de ponderação do impacte que as decisões políticas têm na família, desde as medidas de política de habitação, saúde, financeiras, fiscais e de emigração. O acentuar das restrições na atribuição das medidas protetoras dos mais pobres entre os

fragmentação social, tornando a sociedade menos coesa e diminuindo a solidariedade. A organização social com a ausência ou a instabilidade profissional dos jovens e jovens adultos conduz à nuclearização, impedindo a consolidação de um projeto de vida, adiando ou desistindo da constituição da família. A incerteza do nosso futuro próximo está a fazer com que muitos se remetam ao presente e isso conduz à desistência face à impotência perante as políticas unilaterais que nos são impostas, infunde modelos de comportamento efémeros, condiciona compromissos, banaliza outras formas de convivência. Urge afirmar a família como grupo fundamental e insubstituível no desempenho das suas funções essenciais, na transmissão de valores e como principal educador das crianças e dos jovens. É na família que temos a primeira experiência de sermos amados, estabelecendo relações de pertença, que nos ensina o que somos e o cuidado desinteressado pelos outros. É através

os princípios éticos. É indispensável criar condições para que as famílias possam ter o número de filhos que desejam – condições de emprego, flexibilidade de horários, acesso a equipamentos e serviços e, principalmente, confiança no futuro. Revela-se imprescindível considerar o trabalho como uma dimensão fundamental da existência e do desenvolvimento humano e não como mero fator de produção. Compete assim a toda a sociedade alterar modelos individualistas, dominados pelo efémero; fomentar a abertura das famílias à comunidade e reorientar hábitos, aspirações e prioridades dos indivíduos e das famílias e valorizar um modo de vida mais frugal e sustentável sob o ponto de vista económico e ambiental. Sem faltar à proteção das pessoas mais vulneráveis, é responsabilidade de todos cuidar das crianças e dos jovens que, como diz o Papa Francisco, “têm uma pertença – a uma família, a um país, a uma cultura, a uma fé”. 31

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OS DIREITOS DA CRIANÇA/ no contexto de JOVEM uma Cidadania plena A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa investe desde há alguns anos na criação de respostas na área das crianças e jovens em risco. As atuais Equipas de Apoio à Família, criadas em 2012, trabalham numa perspetiva de promoção e proteção dos direitos das crianças e jovens e das respetivas famílias, proporcionando as condições adequadas para garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral. Texto de Catarina Silva [COORDENADORA DE EQUIPA DE APOIO À FAMÍLIA_SCML]

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ntende-se por cidadania o direito à vida, à liberdade, a viver em condições condignas, com acesso à saúde, educação, habitação, à igualdade perante a lei, entre outros. Significa também manifestar opinião, votar, ter direitos políticos e civis. Contudo, por si só, estes direitos não garantem a participação individual e coletiva em todas as dimensões da vida humana se não se aliarem aos direitos sociais, que visam garantir aos indivíduos o exercício e usu-

fruto de direitos fundamentais, através da proteção e garantias dadas pelo Estado democrático. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada por unanimidade a 20 de novembro de 1989 pelas Nações Unidas, correspondeu a um dos sinais mais representativos no que se refere à designação da criança enquanto sujeito de direitos. O documento expressa um vasto conjunto de direitos fundamentais, os direitos civis e políticos, mas também os direitos

económicos, sociais e culturais de todas as crianças. A referida convenção define ainda as disposições para que estes mesmos direitos sejam aplicados, representando assim um vínculo jurídico para os Estados, que devem adequar as normas de direito interno às da convenção, para a promoção e proteção eficaz dos direitos e liberdades nela consagrados. Nesta medida, a convenção marcou uma viragem na conceção dos direitos da criança, ao reconhecê-la como sujeito autónomo de direitos, destacando a importância da família para o seu bem-estar e desenvolvimento harmonioso. É neste contexto que a família se assume como um espaço privilegiado de socialização e da promoção do desenvolvimento da criança/jovem, onde se desenvolve a sua aprendizagem e na qual esta integra as suas experiências pessoais, adquiridas noutros contextos, construindo uma identidade própria. A família como sistema “é uma rede complexa de relações e emoções na qual se passam sentimentos e comportamentos que não são possíveis de ser pensados como instrumentos criados pelo estudo dos indivíduos isolados” (Gameiro, 1998). Somente a descrição de um elemento da família não chega para transmitir a sua complexidade relacional dentro dessa estrutura, sendo que, dentro desta, estão aqueles que são considerados os seus subsistemas, que mantêm, permanentemente, interações dinâmicas, no sentido de garantir o equilíbrio, 33

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NENHUM PAÍS CONSEGUE DESENVOLVER-SE E PROGREDIR SE NÃO INVESTIR NA PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DAS SUAS CRIANÇAS, EM TODAS AS DIMENSÕES INERENTES AO SEU DESENVOLVIMENTO, O QUE SIGNIFICA PREOCUPAR-SE COM A INFÂNCIA E COM A ADOLESCÊNCIA” face às mutações endógenas e exógenas do sistema. A família terá de ter a capacidade de autorregulação e de equilíbrio. “A família, como todos os seres vivos, está comprometida com os processos interativos autorreferenciais e equilibra-se, permanentemente, para assegurar a sua própria sobrevivência harmoniosa, ou seja, a dos seus membros. Quando se apresentam ameaças a esta sobrevivência, a situação é definida como um problema, em que os processos de equilíbrio estão momentaneamente crispados e uma ativação do processo autorreferencial, até aí utilizado, torna-se necessária para que a situação deixe de ser definida como problemática.” (AUSLOOS, 1996). FATORES DE RISCO Neste sentido, quando se instalam nas sociedades os ciclos de pobreza, a instituição mais penalizada é a família, com especial relevância para as suas crianças, uma vez que estas representam a face mais vulnerável da sociedade. As famílias socialmente

vulneráveis são aquelas onde os fatores de risco estão presentes e a probabilidade de o efeito negativo ocorrer é elevada (SOUSA, HESPANHA, RODRIGUES & GRILO, 2007). Contudo, o risco não deve ser pensado como um processo isolado, uma vez que as suas componentes encontram-se num conjunto de processos que delas emergem e que ligam as condições de risco com os efeitos indesejáveis. Sendo as famílias vulneráveis mais frágeis e com menos recursos, na presença de fatores de risco são mais propensas ao desenvolvimento de comportamentos desajustados (SOUSA, HESPANHA, RODRIGUES & GRILO, 2007). As famílias vulneráveis não são apenas uma prerrogativa de estratos mais baixos. Contudo, é a pobreza, combinada ou não com outras carências – como a habitação precária ou desemprego –, que acentua a sua visibilidade. Neste contexto, quando a disfuncionalidade ocorre em estratos sociais elevados, a evidência para o exterior é menor e, consequentemente, as espetativas positivas

são superiores (SOUSA, HESPANHA, RODRIGUES & GRILO, 2007). Com efeito, ser pobre não significa necessariamente ser disfuncional. Contudo, a pobreza é um fator que pode forçar as famílias a bloquearem, particularmente quando se encontram inseridas e se mantêm em contextos de pobreza e de pouco poder (Hines, in SOUSA, HESPANHA, RODRIGUES & GRILO, 2007).

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Nenhum país consegue desenvolver-se e progredir se não investir na promoção e proteção das suas crianças, em todas as dimensões inerentes ao seu desenvolvimento, o que significa preocupar-se com a infância e com a adolescência. Desta forma, é imprescindível uma intervenção ao nível do sistema familiar e em situações consideradas multiproblemáticas, em que os fatores de vulnerabilidade e/ou

risco social prevalecem face aos de proteção. Neste sentido, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), como entidade com competência em matéria de infância e juventude, nos termos da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei 147/99 de 1 de setembro), investe desde há alguns anos na criação de respostas na área das crianças e jovens em risco. As primeiras equipas

implementadas assentavam nu-ma lógica de apoio integrado, centrado na criança, mediante a concretização de ações de natureza preventiva. Esta intervenção procurava assegurar condições facilitadoras do desenvolvimento da criança e orientar as famílias para se focalizar nesta, por forma a dar resposta às suas necessidades específicas e minimizar e/ou eliminar os fatores de risco e vulnerabilidade existentes, tentando 35

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A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, COMO ENTIDADE COM COMPETÊNCIA EM MATÉRIA DE INFÂNCIA E JUVENTUDE, NOS TERMOS DA LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO (LEI 147/99, DE 1 DE SETEMBRO), DESDE HÁ ALGUNS ANOS QUE INVESTE NA CRIAÇÃO DE RESPOSTAS NA ÁREA DAS CRIANÇAS E JOVENS EM RISCO” evitar a reincidência e a emergência de situações de perigo. Contudo, com o decurso do tempo, pela análise do trabalho desenvolvido por estas equipas, observou-se que a maioria das situações acompanhadas se situava, maioritariamente, ao nível do perigo. Não foi possível remover o perigo num primeiro nível dentro do sistema legal de promoção e proteção de crianças e jovens, tornando-se impreterível dar uma resposta de maior celeridade, devidamente programada e executada pelas equipas. EQUIPAS DE APOIO À FAMÍLIA Com as atuais Equipas de Apoio à Família (EAF), criadas em 2012, procurou-se dar continuidade a este tipo de respostas de âmbito específico, numa perspetiva de promoção e proteção dos direitos das crianças e jovens e das respetivas famílias, procurando manter a criança em meio natural de vida, proporcionando as condições adequadas de forma a garantir o seu bem-estar e de-

senvolvimento integral. O principal enfoque das equipas situa-se nas necessidades de desenvolvimento da criança/jovem e na interligação entre as competências parentais e fatores familiares, nas implicações destas duas dimensões e na forma como são satisfeitas essas necessidades. É neste contexto que se torna indispensável a criação de outras respostas onde o processo de intervenção, em matéria de promoção e proteção, apresente um caráter preventivo, com programas de natureza individualizada, grupal, terapêutica, reparadora, educativa, social, ou mesmo alargados à comunidade. Deste modo, pretende-se que o centro da atenção seja a família, ainda que por via da criança, assumindo-se a verdadeira finalidade da intervenção: o apoio à família com crianças e jovens em situação de risco. Nesta medida, urge criar um forte investimento na capacidade de conceber respostas adaptadas, personalizadas e inovadoras, promotoras de

autonomia e plena cidadania, concebendo-as por forma a promover uma nova abordagem que possibilite as condições necessárias ao desenvolvimento de uma intervenção sistemática. Defende-se um modelo centrado e orientado para a família de natureza multidisciplinar, em que diferentes prismas se complementem e flexibilizem, o que se traduz na estruturação de atuações partilhadas e complementares, de caráter preventivo. O seu cumprimento implica, inevitavelmente, uma metodologia de intervenção em que o enfoque passa pelo desenvolvimento individual e familiar, prevenindo o aparecimento de dificuldades futuras e diminuindo os fatores de risco/ /perigo a que as crianças/jovens estão expostas, e pelo aumento dos fatores protetores, evitando consecutivas ruturas que possam levar à institucionalização. A intervenção desenvolvida pelas Equipas de Apoio à Família incide maioritariamente sobre as famílias socialmente vulneráveis e multiproblemáticas. Falamos daquelas que apresentam fragilidades diversas, ao nível da sua integração social, que se revelam isoladas ou que exibem dificuldades, cumulativamente nos seguintes aspetos: cívico, educativo, económico, social, cultural, pessoal e interpessoal/relacional. Esta situação de fratura ou risco social em que se encontram algumas famílias traduz-se frequentemente num potencial aumento das situações de perigo no que diz respeito às crianças e jovens (HELANDAR, 2008).

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desenvolvimento intelectual e, consequentemente, para a formação do cidadão e conceção de um sujeito de direitos, habilitado para o pleno exercício da cidadania numa perspetiva individual, familiar e comunitária.

BIBLIOGRAFIA AUSLOOS, G. (1996). A Competências das Famílias – Tempo, Caos, Processo. Lisboa: Climepsi Editores

Assim, a intervenção das Equipas de Apoio à Família focaliza-se em minimizar os fatores de perigo e, consequentemente, os impactes sobre o desenvolvimento da criança/jovem. Deste modo, muitas vezes deixa de haver espaço para uma intervenção de caráter preventivo, uma vez que, em primeira instância, a avaliação de uma potencial situação de perigo exige uma intervenção célere, cujas exigências passam pela proteção da criança. Nesta medida, urge outro tipo de resposta numa abordagem emergente, cujo critério de diferenciação das atuais Equipas de Apoio à Família passa por uma intervenção de caráter essencialmente preventivo. Por outro lado, aposta-se num trabalho centrado na família. É neste sistema que se deverá criar a estrutura protetora, na qual a criança se desenvolverá, sendo uma das principais determinantes que sustém todo o processo. O sistema familiar é entendido simultaneamente como agente e catalisador da mudança, estrutura onde se criam as condições necessárias ao desenvolvimento integral da criança.

Com efeito, pretende-se que as crianças adquiram capacidades e competências para definir e identificar as suas necessidades e interesses, para tomar decisões informadas e responsáveis. A perspetiva é a de que seja assegurada uma intervenção de proteção em duas dimensões: proteção reparadora, de promoção dos seus direitos, e proteção ambiental, atuando sobre os fatores de perigo que a circundam, constituindo-se como uma garantia suplementar do respeito pelo direito à cidadania da criança e do jovem (CLEMENTE, s.d.). Confere à criança um verdadeiro estatuto de cidadão de pleno direito, designadamente o direito a ser ouvida e ser tida em consideração a sua opinião nas decisões que lhe dizem respeito, salvaguardando-se, no entanto, os condicionamentos relacionados com a sua faixa etária e a sua capacidade de entender o objeto da intervenção (DELGADO, 2006). Recai sobre os pais/cuidadores a grande responsabilidade no desenvolvimento pessoal e social das crianças, na promoção de processos de aprendizagem, condição essencial para o

(Coleção Sistemas, Famílias e Terapias). CLEMENTE, Rosa. Inovação e Modernidade no Direito de Menores – A Perspectiva da Lei de Promoção de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Coimbra: Coimbra Editora. CRUCHINHO, C.; SILVA, C.; LENCASTRE, E.; CAMACHO, L.; SIMÕES, R.; RODRIGUES, S.; JUDICE, S. (2010). Gestão Financeira: Avaliação e Intervenção na Dimensão – Situação Económica do Domínio – Fatores Familiares. Comunidades de Prática, Direção de Ação Social Local Norte, SCML. DELGADO, João Paulo Ferreira (2006). Os Direitos das Crianças. Da Participação à Responsabilidade. Propedições, Lda. GAMEIRO, J. (1998). Quem Sai aos Seus…. Porto: Edição Afrontamento, 2.ª ed. HELANDER, Einar (2008). “Children and Violence – The World of the Defenceless”. Basingstoke, United Kingdom, Macmillan. SILVA, C.; RASQUILHO, J.; ZUZARTE, M. & RIBEIRO, T. S. (2012). Manual de Procedimentos EAF, SCML. SOUSA, L.; HESPANHA, P.; RODRIGUES, S. & GRILO, P. (2007). Famílias Pobres: Desafios à Intervenção Social. Lisboa: Climepsi.

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PROGRAMA INTERGERAÇÕES Intersituações de Exclusão e Vulnerabilidade Social Texto de João Marrana, João Firme, João Gonçalves e Carla Rosa [COORDENADOR E TÉCNICOS DO PROGRAMA INTERGERAÇÕES | INTERSITUAÇÕES_SCML]

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A condição de sem-abrigo é um fenómeno complexo e de difícil análise. Face à ausência de dados concretos e atualizados sobre esta população, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estruturou uma intervenção com o objetivo da identificação, sinalização e diagnóstico dos sem-abrigo da cidade. Ser sem-abrigo Enquanto tinha dinheiro, tinha amigo O desemprego foi o motivo pelo qual me tornei sem-abrigo Neste momento não me integro na sociedade O sistema não me dá oportunidade Aprende-se muito na rua Por mais comida que me deem Ninguém me mata a fome Vivo um dia de cada vez Não quero ser ajudado Sinto-me mais próximo da miséria Quem dorme na rua Precisa de ter cuidado Temos que dar a volta à crise Posso baixar a cabeça, mas nunca os braços Se não conseguir jogar na primeira divisão, jogo na quarta Sinto falta é de conversar com alguém Julgo que a minha mãe ainda está viva Gostava de ver a minha filha antes de morrer Tenho o sonho de ter um quarto Um prato todos os dias, compreensão e amizade Poema composto por João Firme (a partir de frases de sem-abrigo de Lisboa), julho de 2013

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OPERAÇÃO DA EQUIPA do programa Intergerações/ /Intersituações junto da população sem-abrigo, em Lisboa

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existência de pessoas em condição de sem-abrigo é a evidência mais visível dos processos de exclusão social que a cidade produz quotidianamente. A mesma cidade que, plena de contrastes, se orgulha de ser o espaço de cultura, liberdade e cidadania, de conforto e qualidade de vida, que a colocam nos lugares cimeiros dos rankings mundiais. Bem sabemos que a cidade gera um conjunto de vivências e de condições que propiciam este fenómeno que, associado a outras problemáticas – como as patologias e as dependências –, torna a existência de sem-abrigo uma quase inevitabilidade. A este fator devemos, nos dias de hoje, acrescentar as novas configurações sociais das populações em risco de exclusão e vulnerabilidade social que transformam a realidade dos sem-abrigo num fenómeno heterogéneo e muito complexo, de difícil análise e de delicada observação. Uma situação que só pode ser contrariada se os organismos públicos e privados concertarem estratégias e definirem uma intervenção cuidada e continuada, avaliada de forma crítica e com uma definição clara de objetivos e prioridades. As pessoas que se encontram nesta situação estão, desde logo, privadas de exercer os seus direitos básicos de cidadania, como o direito à morada e, como tal, à sua própria existência enquanto cidadãos. Estão afastados do acesso aos sistemas de informação de apoio e ao conjunto das respostas sociais formais. Sabemos que, regra geral, os sem-abrigo não se dirigem aos serviços e, quando o fazem, chocam com a rigidez dos mecanismos de distanciamento, dos procedimentos e das regras que são criadas e impostas pelas necessidades funcionais e interesses dos serviços e dos seus profissionais. Esta forma de acolher representa uma barreira quase intransponível. Um obstáculo perante o qual a maioria desiste. Mas, quem são estas pessoas? Quantos são aqueles que vivem nas ruas da nossa cidade? A ausência de números concretos e dados atualizados e credíveis sobre estes nossos concidadãos (também pelo facto de ser um fenómeno em constante mutação) levou a que fosse estruturada uma intervenção que nos permitisse encontrar as respostas a estas e outras questões, importantes e indispensáveis para podermos agir com rigor e assertividade.

É importante ir ao encontro do outro, penetrar no seu espaço e no seu mundo e deixarmo-nos ir. Só assim é possível alcançar o que está por detrás de cada gesto e atitude, perceber a linguagem do outro e conhecer a sua capacidade de compreender aquilo que comunicamos como verdades absolutas. Nessa altura ganhamos a confiança e estabelecemos o elo necessário que nos permite estar presente e observar como cada um, à sua maneira e por sua iniciativa, vai desenhando o seu caminho e definindo o seu percurso. Entendemos este nosso trabalho como uma missão. Predispusemo-nos a ouvir e a criar cumplicidades. Desejamos que todos possam usufruir deste estudo da realidade dos sem-abrigo de Lisboa e nele encontrem um contributo positivo. Dignidade não é apenas garantir o acesso a bens e serviços. É também denunciar publicamente as situações encontradas, dar voz e protagonismo aos sem-abrigo, incentivar neles a vontade de participar e proporcionar as condições para que possam decidir sobre as suas vidas. Só através do esforço que cada um de nós está predisposto a fazer e da capacidade de conhecer com profundidade a realidade em que estas pessoas vivem e dos que com ela se relacionam é que estaremos à altura de efetivar uma intervenção realista e qualificada, consistente e produtiva. CONHECER A REALIDADE O programa Intergerações/Intersituações de Exclusão e Vulnerabilidade Social visou então, numa primeira mão, a identificação, a sinalização e o diagnóstico dos sem-abrigo da cidade de Lisboa. Porém, outros objetivos foram sendo traçados ao longo do

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trabalho desenvolvido. Pretendemos também ficar a conhecer e identificar as situações de vulnerabilidade social das pessoas que recorrem à distribuição alimentar realizada pelas “carrinhas”. Desejámos ainda conhecer e identificar todas as instituições que prestam apoio à população sem-abrigo, bem como perceber os hábitos de higiene e alimentares desta população. Todos estes desafios só foram possíveis de concretizar uma vez que acompanhámos as rotinas de diferentes pessoas sem-abrigo, durante um período de 24 horas seguidas, para melhor conhecer esta realidade. Procurámos, assim, saber quantas e quem são estas pessoas que vivem na rua. Onde vivem e porquê? Quais as suas redes de apoio? Quais as suas fontes de rendimentos? Quais os seus problemas de saúde? E quais são as suas expectativas face ao futuro? Os seus sonhos e objetivos… METODOLOGIA DE TRABALHO Com o intuito de fazer um diagnóstico holístico de cada pessoa abordada, foram constituídas equipas multidisciplinares, compostas por profissionais das áreas de enfermagem, psicologia, serviço social, reabilitação e inserção social. As equipas percorreram as ruas de Lisboa, segundo uma divisão estruturada em sete eixos geográficos. O eixo 1 corresponde à zona oriental da cidade, atravessando toda a zona situada entre Xabregas e o Aeroporto de Lisboa, incluindo os Olivais e o Parque das Nações. O eixo 2 abrange toda a zona de beira-rio oriental, de Santa Apolónia ao Campo das Cebolas. A zona central e histórica da cidade (eixo 3) inclui a Baixa-Chiado, Avenida da Liberdade e zonas circundantes, Parque Eduardo VII e Campolide. Todos os locais entre o Cais do Sodré e Santos pertencem ao eixo 4. A zona de Alcântara e Belém corresponde ao eixo 5. O eixo 6 corresponde às zonas de Benfica / Campo Grande / Sete Rios / Lumiar / Areeiro / Picoas. Por fim, o eixo 7 diz respeito à zona de Martim Moniz / Avenida Almirante Reis / Arroios. Um traço caraterístico do nosso trabalho foi, desde cedo, procurar a colaboração das mais diversificadas entidades da cidade de Lisboa, com o intuito de criar forças sinérgicas na prossecução do nosso objetivo. Assim, contámos com o apoio de entidades oficiais, nomeadamente da Câmara Municipal

de Lisboa, na qual se destaca a parceria importantíssima da Divisão de Higiene Urbana na identificação dos locais de pernoita, pois são os funcionários que compõem esta divisão que melhor conhecem

IDENTIFICAR, DIAGNOSTICAR E SINALIZAR Com a aplicação do questionário às pessoas sem-abrigo, não foi só possível identificar e diagnosticar esta população mas, nalguns casos, efetuar uma sinalização ou identificação de situações específicas à Direção de Emergência e Apoio à Inserção (atual Unidade de Emergência), durante o horário normal de expediente, ou à Comunidade Vida e Paz no horário noturno, de acordo com o protocolo que foi previamente estabelecido com esta entidade. Tendo em conta que a condição de sem-abrigo é, por si só, uma situação de risco e vulnerabilidade, o programa Intergerações | Intersituações sentiu a necessidade de definir os seguintes critérios de sinalização/identificação de casos: • indivíduos em situação de sem-abrigo recente, sem historial prévio; • jovens-adultos e seniores (maiores de 65 anos) em situação de sem-abrigo; • indivíduos sem acesso a cuidados de saúde ou com cuidados deficitários; • solicitação de serviços de apoio (atendimento social, desabituação de substâncias psicoativas, centro de acolhimento temporário, etc.); • solicitação de cartão de cidadão; • solicitação de atendimento na Direção de Emergência e Apoio à Inserção; • solicitação de regresso ao país de origem. Foi possível constatar que a maior percentagem de sinalizações (73%) prende-se com a solicitação de serviços de apoio, especificamente de atendimento social, desabituação de substâncias psicoativas e respostas habitacionais, assim como encaminhamentos para a antiga Direção de Emergência e Apoio à Inserção. Outro dado que se destaca é a significativa percentagem de pessoas que deseja regressar ao seu país de origem (13%). Encontrámos 8% de indivíduos que preenchiam os critérios para sinalização, mas que não desejaram ser ajudados. Por fim, com prevalências da ordem dos 3%, identificámos duas categorias distintas: por um lado, indivíduos sem acesso a cuidados de saúde ou com cuidados deficitários, por outro, indivíduos que pretendiam renovar/ /solicitar o cartão de cidadão.

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dades romenas na cidade de Lisboa, com especial atenção àquelas que vivem em situação de sem-abrigo, a equipa do programa sentiu a necessidade de traduzir o questionário para a língua romena, para uma melhor aplicação nas situações em que a comunicação em português era impossível.

MAPA DA OPERAÇÃO de contagem única da população sem-abrigo realizada pela Misericórdia de Lisboa

todas as ruas, becos e arcadas da nossa cidade. Ainda ao nível das entidades oficiais, contámos com o apoio das juntas de freguesia e da Polícia de Segurança Pública. As instituições de solidariedade social que prestam apoio à pessoa sem-abrigo revelaram-se igualmente uma importante fonte de informação, tendo-nos auxiliado prontamente na identificação de locais. Por último, mas não menos importante, realçamos o apoio das empresas privadas de segurança, dos agrupamentos de escuteiros, das associações de moradores e paróquias, de estabelecimentos de ensino, do comércio local e dos moradores, bem como de diversas empresas, nomeadamente a ANA – Aeroportos de Portugal, o Metropolitano de Lisboa, a Refer e a Transtejo. Com vista ao levantamento aprofundado de informações do ponto de vista pessoal, familiar, socioeconómico e de saúde, foi elaborado um questionário de heterorresposta com um conjunto de itens que abrange todas as áreas acima mencionadas. Tendo em conta a crescente evolução das comuni-

CONTAGEM TOTAL E ÚNICA DOS SEM-ABRIGO NA CIDADE DE LISBOA De forma a obter um número exato de pessoas sem-abrigo, o programa Intergerações | Intersituações preconizou uma contagem de todos os sem-abrigo que, no dia 12 de dezembro de 2013, se encontravam a pernoitar nas sete mil ruas da cidade de Lisboa. Este método, utilizado internacionalmente para a contagem dos sem-abrigo, tem-se revelado extremamente eficaz nas diferentes cidades e países onde é utilizado. Por outro lado, este modelo de ação conta ainda com um vasto leque de benefícios. É uma ação que sensibiliza toda a comunidade envolvente para a condição de sem-abrigo e, por consequência, a todos mobiliza na procura de soluções para dar resposta a este fenómeno. A contagem total e única permite ainda obter informações fidedignas e atuais acerca dos pontos de referência de pernoita, informações que nem sempre é possível recolher de forma exata. Por fim, é um método prático que não

GUIÃO DE ABORDAGEM DIRETA AOS SEM-ABRIGO A abordagem direta a indivíduos em situação de vulnerabilidade e exclusão social é uma tarefa delicada e sensível. Como tal, considerámos pertinente a elaboração de um documento de apoio que servisse de guia a todos aqueles que trabalham com esta população. Deste modo, foi elaborado um instrumento de abordagem direta à população sem-abrigo da cidade de Lisboa. Constituem parâmetros desse guião aspetos relacionados com a apresentação inicial, postura, comunicação verbal e não-verbal, responsabilidades dos entrevistadores e procedimentos gerais a ter em conta neste tipo de trabalho.

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necessita de muitos recursos para a sua realização. Não obstante, é importante igualmente apontar algumas limitações a este método. Dizem respeito às condições climáticas, à falta de preparação do grupo de voluntários envolvidos, à extensão da área geográfica a percorrer e à própria limitação dos dados recolhidos, pois só nos indicam um local de pernoita das pessoas observadas. No sentido de agilizar o planeamento desta grande iniciativa, optou-se por dividir o território da cidade de Lisboa tendo por base a recente reorganização das freguesias. Foram assim constituídos diversos grupos, organizados por freguesia, grupos esses que percorreram as ruas do território que lhes fora atribuído, entre as 21h30 e as 00h30, identificando todas as pessoas sem-abrigo (género e idade) e o local onde foram encontradas. A realização da contagem total e única contou com o apoio das juntas de freguesia, mas também de todas as associações/entidades/particulares que quiseram colaborar com o programa, nomeadamente agrupamentos de escuteiros, associações de moradores, instituições particulares de solidariedade social, instituições de ensino, entre outras. O número total de voluntários ultrapassou oitocentas pessoas. O CONTACTO COM A REALIDADE Entre as várias caraterísticas dos sem-abrigo, um traço comum é o da quebra dos laços que ligam as pessoas estáveis a um conjunto de estruturas sociais inter-relacionadas, reforçando a importância do conceito de desvinculação, visto como o enfraquecimento ou ausência de vinculações. Ao

longo de todo este trabalho, percebemos que são várias as causas que concorrem para esta condição de sem-abrigo, nomeadamente os conflitos familiares e relacionais, a doença mental ou física, o desemprego, a perda de rendimentos ou mesmo o desajuste face à estrutura social definida pelos grupos sociais maioritários. O que distingue a pessoa sem-abrigo acaba por ser a forma como cada indivíduo experiencia esta condição. O percurso que faz e as consequências que se vão revelando pelo caminho (o alcoolismo, a toxicodependência, as doenças físicas e mentais, a dificuldade de relação com o outro), são espelho das várias casualidades que o empurraram para a rua. Mais do que uma situação de vulnerabilidade – que implica a privação e a falta de recursos – e de exclusão social – que nos remete para um problema de cidadania, pela impossibilidade de acesso aos sistemas sociais básicos –, a situação de sem-abrigo é uma situação de rutura. No entanto, o diagnóstico realizado é promissor no que toca a esta mesma situação de rutura. Constatámos que, na maior parte das situações, ainda é possível recuperar a vinculação das pessoas em situação de sem-abrigo à sua rede social de suporte. Para o sucesso dessa recuperação, podem cooperar diversos fatores, nomeadamente o tempo de permanência de rua, a existência de laços familiares e as habilitações literárias.

VESTÍGIOS de ocupação por sem-abrigo na Avenida Infante D. Henrique, em Lisboa

DIFERENTES SITUAÇÕES… DIFERENTES LOCAIS A proximidade e o contacto regular que a equipa Intergerações manteve com esta realidade permitiu que fossem identificados diferentes situações e locais associados à população sem-abrigo da cidade de Lisboa, permitindo uma abordagem também ela distinta. Constatámos a existência, por um lado, de algumas comunidades de sem-abrigo que, devido ao conjunto de caraterísticas e traços comuns inerentes ao processo de exclusão e vulnerabilidade social de que são alvo, acabam por criar laços de amizade entre si. Estes laços amenizam a situação de rutura e facilitam a sobrevivência na rua, fortalecendo o espírito de entreajuda e cooperação. Uma reflexão 43

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interessante acerca destas comunidades diz respeito à necessidade demonstrada pelas pessoas que as compõem de encontrar um sentimento de identidade. Dessa forma, foi possível verificar que as comunidades diferem consoante as caraterísticas individuais das pessoas que as compõem, como, por exemplo, os hábitos de consumo de substâncias psicoativas, a iliteracia e a própria postura face à resolução dos seus problemas – maior ou menor proatividade. Por outro lado, este contacto com a realidade e com as rotinas diárias das pessoas sem-abrigo permitiu ao programa Intergerações identificar diferentes locais onde encontramos indivíduos nesta situação. Os locais de pernoita são espaços que os sem-abrigo escolhem para passar a noite. São selecionados em função da necessidade de segurança, de conforto e de companhia que cada um perceciona individualmente. Nesta categoria, encontramos casos como os do viaduto de Pedrouços, da arcada de um prédio ou de um banco de um jardim. Já os locais de passagem referem-se aos espaços de paragem das várias carrinhas de distribuição alimentar, onde encontramos, todas as noites, uma longa fila de sem-abrigo e pessoas em situação de vulnerabilidade social a aguardar pela sua vez para receber um saco com uma refeição. Por fim, os locais de mendicidade são aqueles onde os sem-abrigo conseguem amealhar algum dinheiro, como é o caso das entradas de supermercados, escadarias de igrejas e zonas de estacionamento para automóveis. OS ACAMPAMENTOS DE ROMENOS O programa Intergerações visitou ainda comunidades romenas, nas quais foi bem recebido. Na maioria dos casos, estas comunidades são compostas por indivíduos que se concentram em grande número, organizados em famílias numerosas e com menores, debaixo de viadutos e em prédios devolutos. O motivo pelo qual estas pessoas estão em condição de sem-abrigo difere dos casos que mencionámos anteriormente, tendo em conta que estas pessoas emigraram para Portugal à procura de melhores condições de vida e encontraram na mendicidade e no convívio com os seus a melhor alternativa para subsistir e sobreviver em Portugal.

VETERANOS DE GUERRA DAS EX-COLÓNIAS A realidade de Portugal é significativamente diferente da dos Estados Unidos da América, onde a percentagem de veteranos de guerra em situação de sem-abrigo é problemática (estimativas apontam que cerca de 40% da população sem-abrigo nos EUA seja composta por veteranos de guerra), levando mesmo à criação de programas específicos para esta subpopulação. Ainda assim, o programa Intergerações encontrou em Lisboa alguns veteranos das guerras nas ex-colónias ultramarinas que se encontram em situação de sem-abrigo. São homens com idades na ordem dos 60 anos, frequentemente com problemas de alcoolismo e que tendem a estar em situação de sem-abrigo de forma crónica (vários anos de rua), com maiores problemas de rutura de ligações à rede familiar e de suporte. Muitas vezes, por detrás destas situações escondem-se doenças psiquiátricas, como a perturbação de pós-stress traumático, resultado dos acontecimentos traumáticos que vivenciaram em situações de guerra.

Em todos os acampamentos desta comunidade foram observadas deficientes condições higiénico-sanitárias e ausência de água potável, recorrendo os ciganos romenos às fontes de água pública mais próximas, transportando depois a água em contentores (garrafões e alguidares). Verificou-se ainda que as comunidades confecionam a sua própria alimentação no local, fazendo fogueiras para o efeito. Normalmente, abrigam-se em pequenas barracas improvisadas de cartão e/ou madeira. No que concerne ao seu estilo de vida, durante o dia esta população recorre à mendicidade, pede dinheiro e estaciona carros em pontos espalhados pela cidade de Lisboa, utilizando depois esse dinheiro para comprar bens alimentares que confeciona no local onde pernoita. Verifica-se um certo rigor e organização na forma como é executada essa mendicidade: as pessoas escolhidas abandonam o acampamento de madrugada, algumas acompa-

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ACAMPAMENTO da comunidade romena em Lisboa

nhadas de crianças, deslocam-se aos locais já previamente estabelecidos (portas de igrejas, supermercados, centros comerciais), onde passam o dia, voltando ao acampamento ao final do dia. Existe uma grande disparidade de idades no seio das comunidades romenas visitadas pela equipa do programa, tendo sido encontrados menores, bebés inclusive, bem como mulheres grávidas. Simultaneamente, encontram-se pessoas com mais de 65 anos. Apesar de termos sido bem recebidos, existiram barreiras comunicacionais – mesmo com a versão do inquérito traduzida –, pois algumas das pessoas revelaram não saber ler. Verificou-se também a existência de hierarquias na estrutura social do acampamento, sendo que, regra geral, os mais novos e as mulheres seguem as indicações de pessoas de mais idade do sexo masculino. DUAS VIDAS NA CIDADE Nome: “Manuel”; Idade: 58 anos De uma forma geral, “Manuel” passa o seu dia na estação de comboios e áreas circundantes. No que diz respeito à alimentação, “Manuel” recorre ao apoio fornecido pelas carrinhas de distribuição alimentar. Realiza apenas uma refeição completa, ao jantar, distribuída por uma das instituições que se desloca à estação de comboios. Durante o dia vai comendo bolos e empadas. Não bebe água, ingerindo apenas café (entre três e quatro) durante o dia. Não tem consumos etílicos. Relativamente aos cuidados de higiene, “Manuel”

O PROGRAMA INTERGERAÇÕES/ /INTERSITUAÇÕES DE EXCLUSÃO E VULNERABILIDADE SOCIAL VISOU ENTÃO, NUMA PRIMEIRA MÃO, A IDENTIFICAÇÃO, A SINALIZAÇÃO E O DIAGNÓSTICO DOS SEM-ABRIGO DA CIDADE DE LISBOA realiza-os nas instalações sanitárias da estação de comboios. Durante o período em que o acompanhámos não tomou banho, tendo desfeito apenas a barba. De salientar que “Manuel” tem cuidado com a sua imagem pois, antes de sair da estação de comboios, pela madrugada, tem o cuidado de se pentear. Para realizar as suas necessidades fisiológicas, utiliza também os sanitários da estação ferroviária. No que concerne à interação social, “Manuel” é bastante comunicativo. Interage com os funcionários da estação de comboios, com transeuntes e com outras pessoas em situação de sem-abrigo com quem se vai cruzando ao longo do dia. Gosta de se manter ocupado. Diariamente, durante o período da manhã, vai dar pão seco e duro às gaivotas junto à beira-rio. Faz um passeio diário pela área circundante, regressando por volta das 10h00 ao jardim da zona ribeirinha da cidade, onde permanece o res45

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CARRINHAS DE DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR – LOCAIS DE CONCENTRAÇÃO EQUIPA DO INTERGERAÇÕES / INTERSITUAÇÕES na Avenida da Liberdade, em Lisboa

Podemos identificar 16 locais na cidade de Lisboa que constituem os pontos de passagem com maior afluência de pessoas que aí acorrem com o objetivo de recolha de alimentação. • Jardim D. Luís I • Rua D. Luís I • Campo das Cebolas • Praça José Fontana • Praça Duque de Saldanha • Sete Rios – Estação CP • Praça de Londres – Café Mexicana • Igreja Nossa Senhora de Fátima • Gare do Oriente • Estação de Santa Apolónia – Largo do Museu Militar • Restauradores – Antiga Loja do Cidadão • Rossio – Teatro D. Maria II • Largo de Alcântara • Meia-Laranja • Praça da Figueira • Cais do Sodré – Estação CP De uma forma geral, estes locais coincidem com as zonas com uma maior incidência de população sem-abrigo da cidade de Lisboa. Porém, convém frisar que são pessoas com teto as que mais recorrem a este serviço de distribuição alimentar. O que carateriza estes locais? Geralmente, são locais estratégicos em termos de mobilidade para as pessoas, pois situam-se junto dos transportes e são centrais, tendo em conta as zonas de habitação, de locais de mendicidade e de maior fluxo de pessoas. Maioritariamente, as pessoas que recorrem a este tipo de apoio são homens e a faixa etária mais representativa é a compreendida entre os 30 e os 50 anos. Porém, observam-se também menores a acompanhar os seus familiares, nomeadamente em locais como o Teatro D. Maria II e a Praça Duque de Saldanha. As instituições com serviço de distribuição alimentar mais presentes são a Comunidade Vida e Paz e o Cen-

tro de Apoio ao Sem-abrigo, possivelmente por serem as únicas instituições que prestam este serviço com maior regularidade. No entanto, outras instituições e particulares percorrem alguns destes pontos – e outros locais aqui não representados –, como é o caso dos centros paroquiais, agrupamentos de escuteiros, particulares, grupos de funcionários de empresas privadas, entre outros. Ainda há uma outra realidade que gostaríamos de traçar. De facto, são várias as situações de vulnerabilidade social com que nos fomos deparando e que, de certa forma, nos suscitaram a atenção para desenvolver este trabalho. Uma destas situações é a observada, diariamente, na entrada principal de um supermercado situado no centro de Lisboa, aquando do fecho deste estabelecimento. Por volta das 21h00, quando esta superfície comercial encerra, junta-se um grupo numeroso de pessoas que vão à procura de alimentos nos contentores do lixo do supermercado, nomeadamente produtos frescos que já não podem ser comercializados no dia seguinte ou ainda produtos que terminaram a data de validade naquele mesmo dia e que, por isso, não podem estar nas prateleiras para venda ao público. O grupo, heterogéneo na idade e no género, já está provido de sacos de plástico, carrinhos de transporte de compras ou ainda veículos motorizados, de forma a recolher rapidamente os produtos e transportá-los para as suas casas. Todo este processo é feito de forma muito rápida e sem dar nas vistas, pois depreende-se claramente que são casos de “pobreza envergonhada”.

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PERSPETIVAS FUTURAS Após este diagnóstico e face às necessidades transmitidas pela população sem-abrigo procurámos apresentar propostas concretas e inovadoras: • Equipa de Ligação: Uma equipa multidisciplinar que pretende ser o elo de ligação entre a pessoa sem-abrigo e o conjunto das respostas sociais existentes. • Centro de Recuperação de Competências Psicossociais: Porque a pessoa sem-abrigo é sem-abrigo 24 horas por dia, é necessário um espaço que acolha e potencie a plena inserção social do indivíduo. • Centro de Alojamento de Transição: Será um alojamento com o conforto de uma casa mas com as regras da rua e onde as pessoas sem-abrigo possam recuperar hábitos de higiene, de responsabilidade, de organização e de relacionamento interpessoal.

PERFIS

PERFIL DO SEM-ABRIGO • Sobretudo homens • Idades entre 35 e 64 anos • Solteiros e divorciados/separados • Com o ensino primário e ensino secundário • Rendimento obtido através de biscates e mendicidade

LIGAÇÕES

Nome: “António”; Idade: 48 anos De uma forma geral, “António” passa o seu dia no mercado e áreas circundantes. No que diz respeito à alimentação, “António”, além de recorrer ao apoio fornecido pelas carrinhas de distribuição alimentar, nomeadamente a da Comunidade Vida e Paz, recebe apoio de alguns comerciantes do mercado. Normalmente realiza apenas uma refeição completa, para a qual compra no mercado alguns ingredientes e que pede a um dos cafés da redondeza para confecionar. Não ingere líquidos durante o dia. Relativamente aos cuidados de higiene, “António” refere deslocar-se aos balneários públicos existentes na Alameda a fim de os realizar e tomar banho. Porém, durante as 24 horas em que o acompanhámos, não realizou qualquer cuidado de higiene. Utiliza, por norma, as instalações sanitárias do mercado para satisfazer as suas necessidades fisiológicas. No que concerne à interação social, “António” é bastante comunicativo. Interage com os funcionários do mercado, com transeuntes e com outras pessoas com quem se vai cruzando ao longo do dia. Gosta de se manter ocupado. Diariamente, a partir das 6h00, colabora com os comerciantes do mercado a descarregar as carrinhas, a distribuir produtos pelos comerciantes da zona e na limpeza do mercado após o fecho do mesmo. Devido a esta prestação de serviços, os comerciantes dão-lhe algum dinheiro e apoiam-no com a doação de géneros alimentares. A sua família desconhece que se encontra nesta

situação. No entanto, contacta diária e telefonicamente a sua filha e aos domingos vai passear com ela para um jardim público. Refere que gostaria de ter um espaço condigno para poder receber a filha, que está entregue aos cuidados da mãe. É notável o gosto em falar da família, principalmente da filha. Finalmente, em termos de estado emocional e comportamento geral, ao longo do dia “António” apresenta-se sempre bem-disposto, sem oscilações de humor e com uma postura adequada. Acorda entre as 4h00 e as 5h00 da manhã, arrumando os seus pertences numa carrinha abandonada que se encontra em frente do mercado.

• Maioritariamente há menos de 6 anos na rua, com grande peso dos que estão há menos de 1 ano • Maioritariamente com filhos • Mantém com filhos um contacto regular • Minoria tem contacto com outros familiares de forma regular

APOIOS

to do dia. Neste local, dedica-se à leitura de livros e à escrita de poemas. O aspeto mais marcante de “Manuel” é efetivamente o seu gosto pela poesia. Publicou um livro com a sua poesia, com apoio de uma Fundação. De frisar ainda que “Manuel” mantém contactos regulares com a filha, via telemóvel. Por fim, em termos de estado emocional e comportamento geral, “Manuel” apresenta-se bem-disposto, sem oscilações de humor e com uma postura adequada. Acorda todos os dias com o seu despertador, por volta das 5h00 da manhã. Mostra-se bastante organizado, arrumando as suas coisas de forma cuidadosa. “Manuel” anda todo o dia com os seus pertences, deixando apenas o papelão junto às escadas de acesso à estação de comboios.

• Maioritariamente com apoio de alimentação • Apoio de saúde quase inexistente • Apenas cerca de 1/3 já dormiu num albergue • Maioria sem passado de institucionalização

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AS NOVAS VIDAS DA

QUINTA ALEGRE Na Quinta do Marquês de Alegrete, propriedade da Santa Casa situada na Charneca do Lumiar, em Lisboa, vai nascer uma iniciativa sem par no país. A intervenção, já em curso, dá vida a duas fortes apostas da Misericórdia de Lisboa: a intergeracionalidade na promoção do envelhecimento ativo e a valorização, rentabilização e recuperação do património da instituição, permitindo novas vivências.

Texto de Helena Canto Lucas [DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE GESTÃO IMOBILIÁRIA E PATRIMÓNIO_SCML]

N

a Quinta do Marquês de Alegrete, em plena Charneca do Lumiar, onde gerações de fidalgos da capital passavam primaveras e verões, vai nascer um projeto intergeracional único no nosso país. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), atual proprietária desta quinta mais conhecida pelo nome de Quinta Alegre, vai reabilitar o palácio e o jardim envolvente e edificar dois espaços com valências funcionais diferentes, apesar de complementares: um lar de idosos e uma unidade residencial para jovens universitários. O Palácio do Marquês de Alegrete, expoente do romantismo português, irá também abrir-se à cidade e ao público em geral, com uma sala de chá, um restaurante e uma esplanada e como espaço de lazer e cultura. Com o projeto de reabilitação e a dinamização da Quinta Alegre, a administração

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e o provedor da Santa Casa, Pedro Santana Lopes, cruzam duas das suas principais linhas de ação: apostar no paradigma da intergeracionalidade para promover um envelhecimento mais ativo e valorizar, rentabilizar e recuperar o seu património, permitindo novas vivências. Assim, neste novo espaço, pretende-se fomentar uma relação intergeracional entre idosos e jovens, criando zonas comuns de encontro e reunião, garantindo uma interação constante e evitando o isolamento e a exclusão, recorrentes na terceira idade. Em simultâneo, serão abertas as portas do palácio, edifício classificado como Imóvel de Interesse Público, permitindo o seu usufruto em eventos de natureza cultural, com espaços com funções lúdico-recreativas abertas à comunidade exterior. O processo da reabilitação do palácio e do jardim está já em curso e as restantes unidades em fase de estudo.

DE QUINTA DE VERANEIO A PROPRIEDADE DA SANTA CASA Em inícios do século xviii, Manuel Telles da Silva, 1º marquês de Alegrete e 2º conde de Vilar Maior, decidiu construir o seu solar de veraneio, com palácio e jardim, bem como uma quinta de produção agrícola, na fronteira entre os concelhos de Lisboa e de Loures. Aí, na Charneca do Lumiar, aglomeravam-se pequenas aldeias, distantes da cidade. No horizonte, hoje com vista privilegiada sobre o Mar da Palha, o aeroporto e o crescimento da capital, viam-se outras quintas, ligadas por azinhagas e estradas rurais. De Sintra a Vila Franca de Xira e até ao Sul do Tejo, no território à volta da capital, multiplicavam-se quintas de recreio e lazer, verdadeiros retiros bucólicos para repouso e diversão da nobreza e da fidalguia lisboeta, destinados também à produção agrícola, com pomares, hortas e prados para o gado. 49

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A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA VAI REABILITAR O PALÁCIO E O JARDIM ENVOLVENTE DA QUINTA ALEGRE E EDIFICAR DOIS ESPAÇOS COM VALÊNCIAS FUNCIONAIS DIFERENTES, APESAR DE COMPLEMENTARES: UM LAR DE IDOSOS E UMA UNIDADE RESIDENCIAL PARA JOVENS UNIVERSITÁRIOS” A Quinta Alegre é um dos melhores exemplos de propriedade do romantismo aristocrático lisboeta que modelou a paisagem. O edifício do solar sintetiza a arquitetura habitacional do século xviii, na erudição da solução espacial, no conforto, na elegância, na decoração, nos espaços interiores com motivos naturalistas e paisagens idílicas, no pátio de aparato, no átrio, protegido da intempérie, onde se aguardava pela charrete. O palácio, de arquitetura simples em estilo tardobarroco, planta retangular e dois pisos, começa a ser construído na primeira metade do século. Do período joanino, podem ainda identificar-se elementos originários nos azulejos barrocos do pátio e do jardim. Em pleno período pombalino, na segunda metade do século xviii, terá ocorrido uma fase posterior de ampliação da quinta e do seu programa decorativo. No século xix, dá-se uma nova reformulação. Até finais do século xx, outras sobreposições decorativas, alterações de uso, causas naturais, variações térmicas e climáticas, vandalismo, poluição atmosférica, levam ao desgaste do edifício. A quinta degrada-se e só não fica devoluta porque a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a resolve comprar, em 1983. Temporariamente, a instituição instalou na quinta o Centro de Promoção Social da Charneca,

chegando a ser elaborado um projeto de reabilitação e adaptação do palácio para acolher o Museu dos Jogos, iniciativa que acabou por não avançar. REABILITAÇÃO POR UNIDADES Apesar do estado de degradação em que se encontra a Quinta Alegre, hoje, quem entra pelo portão de ferro forjado que dá acesso ao pátio, com moldura de cantaria e pináculos, consegue ter ainda uma visão do que a quinta foi noutros tempos. No acesso ao pátio, com muros revestidos de azulejos azuis e brancos e figuras recortadas com interessante efeito cenográfico, podemos observar quer a fachada lateral deste solar joanino-pombalino quer um conjunto de dependências de serviço situadas no edifício térreo. A quinta apresenta uma planta retangular irregular. Tem um palácio, junto à estrada a noroeste, de construção sólida, com capacidades física e funcional, qualidade arquitetónica, belíssimos azulejos e frescos de valor; um pátio retangular delimitado pela fachada principal do palácio. A sudoeste situam-se as antigas cavalariças, em ruínas. A sudeste, localiza-se um muro de acesso à propriedade e um outro de ligação ao jardim e à quinta, com pavimento em calçada à portuguesa; um jardim com um lago artificial e um poço, cobertos por vegetação densa, e três pavilhões

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sala de convívio. A segunda fase inclui ainda a construção de um espaço residencial, unidade residencial com apartamentos para sessenta pessoas, que serão destinados a jovens e a idosos independentes.

pré-fabricados junto à fachada lateral direita. Para a reabilitação da Quinta Alegre propõem-se três unidades de ação. Numa primeira fase será executada a reabilitação do palácio e do jardim romântico, que irá acolher a unidade social, com cerca de cinco mil metros quadrados. Aí existirão espaços lúdicos e de diversas atividades, abrindo o palácio à comunidade e servindo de apoio ao lar de idosos e à zona residencial. Atendendo à opção de “restauro puro” do edifício, respeitando o traçado original, a harmonia e a unidade formal do conjunto com o exterior, designadamente com o jardim, serão mantidas. Neste sentido, a intervenção obedecerá a critérios que garantam os melhores resultados e a integridade dos elementos construtivos e artísticos a intervencionar, respeitando os materiais originais. São assim diversas as artes construtivas e decorativas que vão ser postas em prática, destacando-se a importância dos estuques, pintura mural, pinturas decorativas, azulejaria, marcenarias, alvenarias, cantarias, carpintarias e jardins. Numa segunda fase, na área poente, onde agora se encontram ruínas de edifícios ligados à atividade agrícola, avançará a construção de um lar de idosos, unidade assistida com cerca de 1850 metros quadrados. Esta unidade terá capacidade para sessenta pessoas, espaço para a administração e serviços e ainda para um restaurante e

REABILITAR DE PESSOAS PARA PESSOAS A reabilitação da Quinta Alegre é um dos mais emblemáticos projetos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O programa Reabilitar tem como objetivo prioritário intensificar o investimento na recuperação do património da instituição, ampliando a oferta de arrendamento no mercado e gerando, desta forma, mais receitas para apoiar causas sociais. A intenção é fazer reverter os proveitos da gestão imobiliária para as pessoas e para as “boas causas”. Paralelamente à reabilitação orientada para o arrendamento urbano, serão desenvolvidos também alguns projetos com conceitos e vivências inovadoras. Assim, além da intervenção na Quinta Alegre, serão realizados novos projetos na área da saúde, nomeadamente no Centro do Alcoitão e no Hospital Ortopédico de Sant’Ana, que será ampliado. Quanto ao património cultural, será construída uma galeria de exposições temporárias no Museu de São Roque. Importa ainda mencionar que o Palácio de São Roque, o Palácio Marquês de Tomar e o Convento de São Pedro de Alcântara serão objeto de projetos de reabilitação, que têm a finalidade de dar uma nova vivência ao Bairro Alto, rejuvenescendo o Largo Trindade Coelho e a Rua de São Pedro de Alcântara. Finalmente, no Complexo de São Roque, onde estão instalados os serviços centrais da Misericórdia de Lisboa, será construído um auditório. A preservação do património é uma responsabilidade que a Santa Casa foi assumindo, desde 1498, à medida que o seu património crescia, sobretudo devido a doações, legados e heranças de beneméritos, mas igualmente em resultado de aquisições importantes, como foi o caso da Quinta Alegre. Constitui, por isso, um dever intemporal desta instituição – hoje uma das maiores proprietárias da capital, detendo também património imobiliário por todo o país. Na Santa Casa do século xxi, queremos que a reabilitação permita conjugar o legado do passado com as necessidades do presente e uma maior confiança no futuro. 51

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A UNIDADE DE EMERGÊNCIA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA Novo modelo de atendimento e intervenção social

O novo modelo de atendimento social da Unidade de Emergência da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pressupõe um novo paradigma de atuação que, ao consensualizar a resposta, potencia os recursos existentes, evitando a duplicação ou sobreposição de respostas e aumentando a sua qualidade e eficiência. Procura-se que esta intervenção possibilite a prevenção das situações de sem-abrigo e promova a integração social de todos. Texto de Celeste Brissos1 e Ana Sofia Branco2 [1. DIRETORA DA UNIDADE DE EMERGÊNCIA_SCML; 2. DIRETORA DO CENTRO DE APOIO SOCIAL DOS ANJOS DA UNIDADE DE EMERGÊNCIA_SCML]

A TRIAGEM E O ACOMPANHAMENTO SOCIAL Unidade de Emergência implementou, desde outubro de 2013, um novo modelo de atendimento e intervenção social para a população a que se dirige: “a pessoa (em situação) sem-abrigo que, independentemente da sua nacionalidade, idade, sexo, condição socioeconómica e condição de saúde

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física e mental, se encontre: sem teto, vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário; sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito” (ESTRATÉGIA, 2009:16), ou a viver uma situação de emergência social. O novo modelo da Unidade de Emergência visa promover a acessibilidade imediata e sem marca-

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ção ao atendimento social, através da constituição de equipas de triagem, compostas por um técnico superior de serviço social e um psicólogo. Quando recorrem ao atendimento social na Unidade de Emergência, na maior parte dos casos, as pessoas não têm asseguradas as suas necessidades de subsistência, encontrando-se numa situação que poderá ser caraterizada como de crise individual e social. Assim, é necessário serem atendidas de imediato, procurando a equipa construir um pré-diagnóstico mais qualificado, que permita uma análise da situação social vivida pela pessoa e/ou família e, em simultâneo, elencar e acionar os recursos necessários para interromper a situação de vulnerabilidade mais emergente diagnosticada. Esta intervenção

INTERIORES da Casa de Apoio Maria Lamas, equipamento de acolhimento a mulheres vítimas de violência

é sustentada por um apoio psicossocial que visa o restabelecimento do equilíbrio emocional do indivíduo e/ou família, necessário para que este possa aderir a um plano de inserção (PAYNE, 1995:138). A Unidade de Emergência responde às pessoas em situação de sem-abrigo ou de emergência social na cidade de Lisboa. De salientar que, nas situações de emergência, a pessoa e/ou família são sempre atendidas pela equipa de triagem e avaliadas. É feita a reconstrução, dentro do possível, das trajetórias de vida da pessoa, apurando-se as ligações com todas

as redes formais e informais, de forma a evitar processos de desafiliação social com as estruturas das comunidades de origem. No atendimento, privilegia-se a articulação com as redes locais, com recurso a metodologias de mediação social, promovendo a ligação com os serviços sociais locais, para que a pessoa possa ter atendimento social assegurado nos serviços da sua comunidade de origem aquando do encaminhamento. Assegurar as necessidades básicas das pessoas atendidas é a primeira intervenção realizada 53

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INSTALAÇÕES da Casa de Transição, estrutura residencial de utilização temporária para o apoio da população ex-reclusa em processo de reinserção social

O NOVO MODELO VISA PROMOVER A ACESSIBILIDADE IMEDIATA E SEM MARCAÇÃO AO ATENDIMENTO SOCIAL, ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO DE EQUIPAS DE TRIAGEM pela equipa de triagem. Proporcionar ao sujeito as condições mínimas de segurança contribui para a promoção de sentimentos mais securizantes. Neste sentido, a resolução dos problemas específicos possibilita ao utente a diminuição de sentimentos de tensão e ansiedade. No novo modelo de atendimento e intervenção social, o enfoque é a pessoa e o conjunto de problemas que apresenta – falta de alojamento, problemas familiares, sociais, económicos, de desemprego ou doença mental –, procurando uma estratégia de intervenção integrada. Assim, numa primeira fase, o utente vê de imediato as suas necessidades de subsistência asseguradas – através do recurso a respostas de emergência. Num segundo momento, em reunião de equipa alargada, são avaliadas e discutidas todas as situações atendidas no decorrer da semana, de forma a ser atribuído o gestor de caso para cada pessoa, de acordo com a problemática predominante identificada

(dependência; saúde mental; empregabilidade; ilegais; famílias, idosos e saúde física). Sabendo que a vulnerabilidade social das pessoas é, muitas vezes, multiproblemática, na reunião semanal de atribuição e estudo de caso deverá ser determinado qual o problema dominante de cada indivíduo atendido, com vista ao encaminhamento e acompanhamento adequado. Após a atribuição de um gestor de caso, este técnico deverá aprofundar o diagnóstico efetuado. Para tal, deve marcar o atendimento do utente o mais rápido possível e efetuar todas as diligências necessárias ao acompanhamento da situação, identificando os recursos a acionar para preparação do plano individual de inserção. O novo modelo de atendimento e intervenção social aplica-se a todos os casos que sejam atendidos na Unidade de Emergência e que requeiram intervenção especializada. O novo modelo é aplicado durante o tempo necessário, até que seja encontrada e promovida a autonomização.

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COZINHA do refeitório do Centro de Apoio Social de São Bento

A QUALIDADE DA INTERVENÇÃO E A MULTIDIMENSIONALIDADE ASSOCIADA À SITUAÇÃO DA PESSOA SEM-ABRIGO A qualidade de intervenção está diretamente relacionada com a formação dos técnicos envolvidos. A multidimensionalidade dos problemas associados à situação de sem-abrigo requer um domínio de conhecimentos específicos e um tipo de abordagem próprio. Neste sentido, o novo modelo de atendimento e intervenção social partiu de um reconhecimento conjunto da complexidade dos processos e situações que afetam as pessoas sem-abrigo, identificando necessidades, oportunidades e obstáculos, de natureza transversal ou específica, a que urge responder de forma concertada (ESTRATÉGIA, 2009:9). A população a que a Unidade de Emergência responde encontra-se numa situação de fragilidade social, que se traduz em más condições de vida, podendo as mesmas coexistir há vários anos ou assumirem uma vivência recente. Na maioria dos casos, trata-se de uma população que vive uma situação de “privação múltipla, isto é, em diversos domínios das necessidades básicas: alimentação, vestuário, condições habitacionais, transportes,

comunicações, condições de trabalho, saúde e cuidados de saúde, educação, formação profissional, cultural, participação na vida social e política, etc.” (COSTA, 1998:27). Não raras vezes, face à multiplicidade destas carências, constata-se que a privação num destes domínios pode originar o agravamento da situação social vivida. Assim, assiste-se ao que Robert Castel chama de desafiliação, conceito proposto pelo autor para se referir a novas situações de exclusão social, entendida na necessidade de conjugação de dois eixos: o eixo correspondente ao “aumento do desemprego e da precariedade do trabalho que pode transformar-se em ‘inempregabilidade’ permanente” e o eixo que diz respeito à “fragilização dos suportes tradicionais, das formas tradicionais de socialização, conducentes muitas vezes ao isolamento social” (CASTEL, 2000:26). Segundo este autor, ao utilizar o termo excluídos “corre-se [...] o risco de esquecer que a sociedade continua a ter um centro e que é a partir deste centro que se produz a exclusão” (CASTEL, 2000:33). O conceito de desafiliação designa o processo em que os utentes, nos seus percursos de vida, verificam perdas sucessivas e ruturas face 55

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à sociedade. Estão aqui contempladas as populações atendidas na Unidade de Emergência que, não inseridas no mercado de trabalho, vivem uma situação de falta de recursos e perderam também o suporte das redes sociais e familiares. Vivem não só numa situação de pobreza como também de desafiliação, ou seja, quebraram os vínculos com a sociedade. Recorrem ao atendimento quando as suas capacidades para responder às exigências diárias estão esgotadas e a resolução dos seus problemas parece-lhes inatingível, faltando-lhes motivação e meios para fazer face às adversidades do seu quotidiano.

são um espelho fiel da desorganização relacional e da amálgama emocional em que vivem os seus elementos” (ALARCÃO, 2000:325). Esta sociabilização reflete-se nos modos de vida destas pessoas, através de comportamentos de grande instabilidade afetiva que se manifestam na relação que estabelecem com o meio social envolvente. As relações familiares “escondem muitas vezes socializações conturbadas [...] cujo período de socialização primária – desde a infância até à entrada na vida adulta – foi passada em contextos desfavorecidos [...], quer em termos de capital económico, como ao nível dos capitais simbólico,

A MULTIDIMENSIONALIDADE DOS PROBLEMAS ASSOCIADOS À SITUAÇÃO DE SEM-ABRIGO REQUER UM DOMÍNIO DE CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS E UM TIPO DE ABORDAGEM PRÓPRIO Os públicos que recorrem à Unidade de Emergência vivem um processo de desqualificação social, entendido como um movimento de espiral negativa que diz respeito à perda progressiva de uma identidade positiva. Este processo pode levar as pessoas, em último caso, à rutura com a sociedade em geral (PAUGAM, 2000). Partindo da conceção de que a exclusão está relacionada com a ausência de ligações à sociedade, esta deve ser entendida na relação dialética com o seu oposto: a inclusão/inserção/integração. Neste sentido, reverter a exclusão social passa necessariamente pelo exercício da cidadania, que implica o acesso aos sistemas sociais básicos (social, económico, institucional, territorial e o das referências simbólicas) (COSTA, 1998:13). O PERFIL DA PESSOA SEM-ABRIGO – VARIÁVEL E HETEROGÉNEO Em termos de percursos de vida, no perfil dos públicos atendidos na Unidade de Emergência, destaca-se que a maioria destes indivíduos viveu num sistema familiar multiproblemático. “A miséria e a precariedade em que vive a maioria destas famílias

cultural e social” (PEREIRA e SILVA, 1999:19). Esta cadeia de negatividade acaba por se traduzir nos percursos de vida e, nalguns casos, pode culminar em situações de utentes identificados com perturbações mentais ou patologias psiquiátricas. Na população atendida na Unidade de Emergência encontramos ainda pessoas que apresentam comportamentos aditivos (álcool e estupefacientes), sendo principalmente notórios o consumo excessivo e a dependência do álcool, os comportamentos de fuga e evitamento, os comportamentos de alienação e “anestesia” do confronto com o seu sofrimento interior, com as suas perdas, com as frustrações decorrentes do seu percurso de vida. Comportamentos que revelam a baixa autoestima, a falta de autoconfiança, a elevada insegurança sentida no mundo (interior e exterior). Como consequência, desenvolvem sentimentos de hostilidade, sentimentos de desconfiança e suspeição na relação com o outro. A estes grupos somam-se os “novos” sem-abrigo, cuja emergência surge associada às novas questões sociais, desencadeadas por fenómenos recentes que resultam em profundas transforma-

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PRODUTOS realizados pelos utentes do Centro de Apoio Social de São Bento

ções económicas, sociais e familiares. Os efeitos sociais que a crise económica e financeira tem originado são o fenómeno do desemprego maciço, a falta de perspetivas de emprego para os jovens que desejam entrar na vida ativa – e não encontram oportunidades de emprego adequado às respetivas qualificações –, a precariedade dos vínculos laborais e, de modo geral, a desvalorização do trabalho humano, a que acresce a diminuição dos rendimentos do trabalho, o agravamento das desigualdades e a acentuação da pobreza. QUALIFICAR A INTERVENÇÃO – VANTAGENS DA ESPECIALIZAÇÃO Mas intervir junto de um dos públicos mais vulneráveis, os sem-abrigo, passa por entender que não se é sem-abrigo. Não é um estado de vida, é uma situação que decorre de um processo que se assume muito heterogéneo nas suas origens. Podemos referir que existe uma multiplicidade de situações que conduzem uma pessoa a estar sem-abrigo. Entender os processos de exclusão como dinâmicos é pensar que a intervenção concertada e acessível a todos pode contribuir para se contrariar e reverter

a situação de exclusão social a que estas pessoas ficaram sujeitas. Assim, a metodologia de intervenção e acompanhamento integrado às pessoas sem-abrigo pressupõe a articulação entre os diferentes serviços locais, rentabilizando os recursos existentes na comunidade com base no estabelecimento de relações formais e informais privilegiadas. A especialização da intervenção por problemáticas (dependência; saúde mental; empregabilidade; ilegais; famílias, idosos e saúde física) permite, a cada equipa de técnicos que assegura o atendimento, o estabelecimento de parcerias e contactos privilegiados com as redes e estruturas públicas e privadas locais, fomentando a mobilização de recursos em prol do utente. O gestor de caso defende os interesses do utente em todas as situações, preparando em conjunto com a pessoa as ações a serem desenvolvidas no âmbito do seu processo de inserção. A criação da figura do gestor de caso é considerada uma das grandes inovações do novo modelo de intervenção integrada, permitindo explorar a possibilidade de beneficiar a população com um acompanhamento 57

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ATIVIDADE partilhada entre equipamentos organizada e realizada no Centro de Apoio Social dos Anjos

mais personalizado em função das necessidades (ESTRATÉGIA, 2009). Entendeu-se que o sucesso das intervenções é viável face à prestação de um serviço baseado em princípios humanistas, com uma componente técnica reconhecida – ao nível teórico e operacional –, que confira confiança e promova a adesão dos utentes aos seus projetos de intervenção. A qualidade da intervenção e a adequação às necessidades estão associadas a um diagnóstico psicossocial do utente, encarado como um todo e com necessidades diversas que carecem de uma resposta multidimensional e de uma abordagem integrada. Procurou-se fomentar as sinergias locais facilitadoras do sucesso do processo em curso, mediando a relação entre o utente e os sistemas sociais envolvidos. No âmbito do novo modelo de intervenção social foi constituída uma equipa multidisciplinar, composta por um assistente social da Unidade de Emergência e um enfermeiro da Unidade de Acompanhamento Terapêutico. Esta equipa realiza a avaliação e encaminhamento de situações vulneráveis, em termos sociais e de saúde, garantindo a complementaridade, rentabilidade e ade-

quação às necessidades dos indivíduos em situação de risco social grave. Neste sentido, o objetivo da intervenção junto desta população contém em si a prevenção ou o restabelecimento do equilíbrio funcional. Assim, a intervenção da Unidade de Emergência da Direção de Intervenção com os Públicos Vulneráveis da SCML mobiliza recursos e serviços em ordem das necessidades destes indivíduos, de forma a evitar situações de rutura, procurando que as pessoas afetadas por problemas sociais se possam enquadrar e participar na vida em sociedade, exercendo uma cidadania plena. OS EQUIPAMENTOS SOCIAIS – QUALIFICAR E AJUSTAR AOS PROBLEMAS EMERGENTES A Unidade de Emergência coloca ao dispor dos públicos mais vulneráveis um conjunto de equipamentos sociais que dependem diretamente desta Unidade. Ao longo dos tempos, a SCML procurou qualificar a intervenção destas respostas sociais – Centro de Alojamento Temporário Mãe d´Água e Extensão; Casa de Apoio Maria Lamas; Centro de Apoio Social dos Anjos; Centro de Apoio Social de São Bento; Casa de Transição

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e Centro de Apoio Social de Lisboa –, criando e reformulando os objetivos de algumas e ajustando-os às necessidades dos públicos junto dos quais intervém. Centro de Alojamento Temporário Mãe d´Água e Extensão O Centro de Alojamento Temporário Mãe d’Água (CATMA) tem capacidade para acolher 36 utentes, seis em alojamento de emergência (três homens e três mulheres) e os restantes trinta utentes em alojamento temporário (21 homens e nove mulheres). O CATMA - Extensão tem capacidade para acolher 16 utentes, num total de seis famílias, cinco das quais em alojamento temporário e uma em alojamento de emergência. No total, o CATMA tem capacidade para acolher 52 pessoas. Desde 2012, a equipa técnica do CATMA assumiu a gestão e acompanhamento dos casos que acolhe, constituindo-se como gestores de caso. Junto dos seus utentes, a equipa desenvolve um trabalho de promoção, integração, formação e desenvolvimento pessoal, na perspectiva da melhoria da qualidade de vida e da inserção integral nos diversos sistemas sociais, conduzindo a um exercício pleno de cidadania. Assim, é promovida a aquisição de competências pessoais e sociais, dinamizando-se ações com vista à autonomia dos seus utentes.

proteção física e psicológica das vítimas. Na CAML é promovida a aquisição de competências pessoais, profissionais e sociais, com vista à criação das condições necessárias para a reorganização das vidas das utentes acolhidas, através da integração familiar, social, profissional e habitacional. No seguimento do trabalho iniciado em 2012 – com a reestruturação do modelo de intervenção, que passou a ser sustentado na transdisciplinaridade, isto é, na responsabilidade partilhada de todos os elementos da equipa, quer na tomada de decisão quer na avaliação dos resultados –, a CAML criou/implementou novas metodologias e instrumentos de trabalho. Centro de Apoio Social dos Anjos O Centro de Apoio Social dos Anjos (CASA) assegura aos seus utilizadores as seguintes respostas sociais: o apoio alimentar à população mais carenciada da cidade de Lisboa (Refeitório Social); o ateliê e o Espaço de Inclusão Digital (ambos estruturados em atividades ocupacionais e terapêuticas dedicadas à população em situação de exclusão social grave); a prestação de cuidados de higiene (balneário, lavandaria e banco de roupa) e o acolhimento residencial de pessoas sem-abrigo em processo de acompanhamento social. Com o objetivo de reorganizar e melhorar os processos internos e externos, foram concretizadas várias ações ao longo do ano de 2012.

O CONCEITO DE DESAFILIAÇÃO DESIGNA O PROCESSO EM QUE OS UTENTES, NOS SEUS PERCURSOS DE VIDA, VERIFICAM PERDAS SUCESSIVAS E RUTURAS FACE À SOCIEDADE Casa de Acolhimento a Mulheres Vítimas de Violência A Casa de Apoio Maria Lamas (CAML) visa proporcionar acolhimento temporário e/ou de emergência a mulheres vítimas de violência doméstica, com ou sem filhos, que se encontrem numa situação de vitimação e de risco. Este estabelecimento, que acolhe oito mulheres e 14 crianças, assegura a

No que respeita ao refeitório – e no sentido de se responder ao aumento dos utentes que recorreram ao atendimento social da SCML a necessitar e que necessitam de apoio alimentar –, foi proposto o acréscimo do número de refeições fornecidas diariamente pelo CASA, o que foi autorizado na Deliberação de Mesa nº 1218, de 1 de junho de 2012. O Centro de Acolhimento do CASA dá resposta a 59

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de suporte efetivo, enquanto resposta social facilitadora da sua reintegração e permitindo uma transição apoiada do meio prisional para o meio livre. No segundo trimestre do ano de 2012, reestruturou-se a resposta, passando a existir dois espaços habitacionais distintos, que denominámos de Casa I e Casa II. A Casa I acolhe oito indivíduos do sexo masculino, em condições de poder beneficiar de

A CANTORA Alexandra no Centro de Apoio Social de Lisboa, antiga Mitra, no âmbito do projeto Encontros com Vida

A CASA DE TRANSIÇÃO É UMA ESTRUTURA RESIDENCIAL, DE UTILIZAÇÃO TEMPORÁRIA, DESTINADA A ACOLHER UTENTES EM PROCESSO DE REINSERÇÃO SOCIAL 15 pessoas. Tendo em conta as necessidades sociais mais prementes, passou a funcionar 24 horas/dia, 365 dias/ano, constituindo-se como uma resposta mais centrada no processo de acompanhamento de utentes que apresentam necessidades de apoio e supervisão, quer noturna quer diurna, na satisfação das necessidades alimentares, de higiene e de conforto e no acesso e garantia do acesso a cuidados de saúde. No que respeita à gestão e acompanhamento dos processos sociais dos utentes do Centro de Alojamento do CASA, cumpre referir que a equipa multidisciplinar do CASA passou a assumir a função de gestor de caso, tendo-se procedido à transferência dos processos sociais para a assistente social do CASA. Esta situação permitiu desenvolver uma intervenção mais ajustada às necessidades individuais dos utentes, com um acompanhamento mais sistemático. Casa de Transição A Casa de Transição é uma estrutura residencial, de utilização temporária, destinada a acolher utentes em processo de reinserção social. Desenvolve um apoio efetivo aos seus residentes, promovendo o seu potencial de autonomia, valorizando o desenvolvimento das suas competências pessoais, sociais e profissionais, de acordo com os planos individuais de inserção definidos, com vista à sua integração social. Durante o ano de 2013 pretendeu manter-se uma estrutura residencial para o apoio de população ex-reclusa, sem enquadramento habitacional nem rede

liberdade condicional e em termo de pena. Acolhe preferencialmente os ex-reclusos provenientes dos Estabelecimentos Prisionais da área da Grande Lisboa, que não tenham enquadramento residencial nem sociofamiliar e que, no período anterior à detenção, tenham residido na cidade de Lisboa ou aí queiram residir após o cumprimento da pena. A Casa II acolhe nove indivíduos do sexo masculino, jovens dos 18 aos 25 anos, com um percurso longo de institucionalização – preferencialmente em lares residenciais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Acolhe jovens que se encontrem em situação de vulnerabilidade socioeconómica, de exclusão social e de ausência de rede de suporte efetivo e, eventualmente, em situação de marginalidade e rutura com os apoios já anteriormente disponibilizados. Centro de Apoio Social de São Bento A metodologia de intervenção adotada pelo Centro de Apoio Social de São Bento (CASSB) centra-se no indivíduo, sendo orientada para o desenvolvimento de aspetos relacionais/ocupacionais, através de uma abordagem multidisciplinar, integrada e articulada de forma sistemática com entidades/serviços da comunidade envolvente. Nos três ateliês existentes são desenvolvidas atividades ocupacionais, estruturadas de acordo com os objetivos delineados para cada utente, segundo o projeto de vida definido com o mesmo. Neste sentido, são desenvolvidas atividades de vida diária, trabalhos e atividades produtivas, prestação de serviços à comunidade, atividades complementares (for-

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| SOCIAL |

mação social e humana; atividades socioculturais, recreativas e de lazer; banco de roupa e biblioteca), e reuniões semanais, por ateliê, de avaliação, estudo de casos e planeamento das atividades. Alargou-se o âmbito de intervenção do CASSB no refeitório existente – que respondia exclusivamente ao utentes internos do ateliê –, que passou a constituir-se como uma resposta às situações mais vulneráveis da Unidade de Emergência, que necessitam de uma resposta alimentar num espaço mais contentor e protetor. Centro de Apoio Social de Lisboa Em janeiro de 2011, o Centro de Apoio Social de Lisboa (CASL) foi integrado na SCML através do regime legal de cedência dos estabelecimentos integrados do Instituto de Segurança Social, IP, como consta do Decreto-Lei nº 16/ 2011 de 25 de janeiro. O CASL procura honrar os compromissos assumidos na missão da Santa Casa, promovendo a melhoria da qualidade de vida dos idosos residentes, respeitando os valores de compromisso, ética, rigor e integridade. Foi criado o grupo de trabalho Amigos e Críticos da Mitra, que visa validar vários projetos absolutamente inovadores.

de de organização setorial que estruture a diversidade de instituições, adotando os princípios comuns e respeitando a identidade e culturas institucionais, assim como as boas práticas já existentes, reconhecidas como mais-valias fundamentais. Partindo do pressuposto de que, por um lado, as sinergias resultantes da integração do trabalho interinstitucional representarão um benefício maior do que a mera soma das suas intervenções fragmentadas e, por outro lado, que aquilo que se faz bem ao nível da intervenção deve ser conservado, através da sua inscrição formal, no modelo de intervenção integrada a ser contratualizado.

BIBLIOGRAFIA ALARCÃO, Madalena – (Des)equilíbrios Familiares – Uma visão sistémica. Coimbra: Quarteto, 2000. ALMEIDA, João Ferreira; CAPUCHA, Luís; COSTA, António Firmino da; MACHADO, Fernando Luís; NICOLAU, Isabel; REIS, Elisabeth – Exclusão Social – Factores e Tipos de Pobreza em Portugal. Oeiras: Celta, 1992. CANAVARRO, Maria Cristina Sousa – Relações Afectivas e Saúde Mental. Coimbra: Quarteto, 1999. CASTEL, Robert – As Metamorfoses da Questão Social

NÚCLEOS DE PLANEAMENTO E INTERVENÇÃO SEM-ABRIGO (NPISA) Todas estas mudanças que têm vindo a ocorrer na Unidade de Emergência assentam nos pressupostos para aplicação do modelo de intervenção integrada, previstos na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015) (ENIPSA). Estas transformações permitem a preparação para o desafio que nos propomos assumir, em conjunto com os parceiros que intervêm na cidade de Lisboa com a pessoa sem-abrigo. Um desafio que passa pela constituição do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), no âmbito da Rede Social de Lisboa. Nessa medida, a Santa Casa da Misericórdia assinou um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa, que cedeu um espaço no Cais do Sodré onde irá funcionar a nova Unidade de Atendimento. O NPISA é constituído por uma rede de parceiros que alocam recursos e que, trabalhando em conjunto de forma integrada, respondem a uma necessida-

– Uma Crónica do Salário. Petrópolis: Vozes, 1999. CASTEL, Robert (2000) – “A Precariedade: transformações históricas e tratamento social”. In Da não-integração. Coimbra: Quarteto, pp. 21-38. COSTA, Alfredo Bruto da – Exclusões Sociais. Lisboa: Gradiva Publicações, 1998. ENIPSA – Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (2009-2015). 2009 PAUGAM, Serge – “O Enfraquecimento e a Ruptura dos Vínculos Sociais – Uma dimensão essencial do processo de desqualificação social”. In As Armadilhas da Exclusão – Análise Psicossocial e Ética da Desigualdade Social. Petrópolis: Vozes, 1999, pp. 67-86. PAUGAM, Serge – “A Desqualificação Social”. In Da não-integração. Coimbra: Quarteto, 2000, pp. 107-135. PAYNE, Malcolm – Teorías Contemporáneas del Trabajo Social – Una Introducción Crítica. Barcelona: Paidos, 1995. PEREIRA, Álvaro Pires; SILVA, Delta Sousa – Estudo sobre os Sem-Abrigo da Cidade de Lisboa. Lisboa: Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 1999.

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| VIH/SIDA |

APOIO DOMICILIÁRIO A

PESSOAS COM VIH/SIDA:

A experiência da Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar Texto de Conceição de Andrade1, Alcina Monteiro2 e Hélder Vicente3 [1. TERAPEUTA OCUPACIONAL; 2. ENFERMEIRA; 3. ASSISTENTE SOCIAL_SCML]

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| SOCIAL |

O apoio domiciliário a pessoas com VIH/Sida na Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar da Misericórdia de Lisboa promove o desenvolvimento de competências pessoais para a adesão terapêutica, através da intervenção de uma equipa multidisciplinar. INTRODUÇÃO pós 24 anos de intervenção da Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar (DIAIBE) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) com a população afetada e infetada por VIH/Sida na cidade de Lisboa, fazemos uma análise retrospetiva do trabalho desenvolvido. Verificámos que a aposta num apoio domiciliário com caraterísticas específicas (ver figura 1) confirma ser a resposta eficaz à hospitalização prolongada, promovendo altas precoces (ANDRÉ, 1998) e mantendo os doentes no seu meio natural de vida, com reflexos na qualidade de vida e bem-estar (REIS, 2003). A DIAIBE é um serviço da Santa Casa que teve início em 1989, com a criação do projeto Solidariedade, na Residência Santa Rita de Cássia (Casa Amarela), apoiando utentes infetados pelo VIH, a nível residencial, na área de Lisboa. Em 1992, na Residência Santa Rita de Cássia, é criado o Centro de Dia e, posteriormente, o Apoio Ambulatório (1994). Publicado em Diário da República (nº 277, II Série, 29 de novembro de 1996), o apoio domiciliário (AD) foi criado na sequência de

A

um protocolo de acordo entre a Comissão Nacional de Luta contra a Sida e a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, tendo em vista o alargamento de apoio domiciliário a seropositivos e doentes com sida a partir do projeto Solidariedade. Em 1998 foi criada a Residência Madre Teresa de Calcutá, uma referência nos cuidados paliativos a indivíduos com sida. Desde 2005, o Centro de Santa Maria Madalena passou a coordenar todas as valências elencadas, exceto o apoio residencial. A gestão do apoio domiciliário na cidade de Lisboa é coordenada por uma equipa técnica, com sede no Centro de Santa Maria Madalena, que avalia e define

as estratégias de intervenção, bem como orienta as ajudantes familiares na prestação de cuidados – relativamente às necessidades humanas básicas, ao processo de adesão terapêutica, ao acompanhamento nos atos clínicos e à organização do contexto doméstico (ANDRÉ, 1998). Associado ao projeto Solidariedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa esteve sempre a professora doutora Odete Santos Ferreira. Como coordenadora da Comissão Nacional de Luta contra a Sida, no período de 1992-2000, prestou significativos contributos a este projeto, principalmente na criação da rede de cuidados extra-

AUTONOMIA

FIGURA 1. Caraterísticas específicas do apoio domiciliário

DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS

APOIO DOMICILIÁRIO

ADESÃO TERAPÊUTICA

VIGILÂNCIA TERAPÊUTICA

INCLUSÃO SOCIAL

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| VIH/SIDA |

-hospitalares para infeção VIH/ /Sida na SCML. Neste âmbito, são de destacar os contributos para: o apoio domiciliário do projeto Solidariedade; a construção da segunda residência para apoio de doentes com sida, em situação precária; a criação da primeira Unidade de Cuidados Paliativos para indivíduos com VIH/Sida na cidade de Lisboa – Residência Madre Teresa de Calcutá; a reestruturação da primeira residência tendo em vista a sua transformação em residência temporária para famílias monoparentais afetadas pelo VIH/Sida – Residência Santa Rita de Cássia. Tem sido uma colaboradora ativa de todos os cursos de formação/atualização dirigidos aos funcionários, reali-

mo de bem-estar. Para atingir estes objetivos, foi necessário criar um conjunto de serviços e reunir pessoal treinado e disponível para prestar os cuidados domiciliários. Este projeto surgiu da constatação da inexistência de estruturas de retaguarda no apoio a pessoas infetadas e afetadas pelo VIH/Sida; da hospitalização prolongada por falta de suporte em casa; do isolamento social dos doentes sem suporte familiar, em que uma resposta paliativa não era a resposta mais eficaz (SANTOS FERREIRA, REIS & MARTINHO, 1995). Em 2011, foi concretizada a passagem do projeto Solidariedade a uma direção de serviços, abreviadamente designada

Apoio Domiciliário e Residências), consoante a fase de evolução da doença. Destaque-se que esta doença é caraterizada pela “perda gradual de autonomia e a consequente necessidade de um terceiro para satisfazer as necessidades humanas básicas, em simultâneo com as novas perspetivas de prolongamento de seropositividade” (REIS, 1998). Com vista à integração e inclusão social, os utentes são motivados a participar em todas as atividades dos serviços, dentro ou fora da instituição. Fazem parte da DIAIBE os seguintes estabelecimentos: Residência Madre Teresa de Calcutá, Residência Santa Rita de Cássia e Centro Santa Maria Madale-

A EVOLUÇÃO NO CAMPO DA TERAPÊUTICA TEM CONTRIBUÍDO PARA O AUMENTO DA ESPERANÇA DE VIDA, DESDE QUE HAJA CONTINUIDADE DE TRATAMENTO A LONGO PRAZO zados anualmente, desde 1993 até à presente data, pelo projeto Solidariedade da SCML. Em 1995, três mulheres de áreas profissionais distintas – investigação, enfermagem e serviço social – desenvolveram o projeto Manter a Esperança, dirigido a doentes infetados pelo VIH, dependentes nas necessidades básicas, nas tarefas domésticas e no acompanhamento às deslocações fora de casa. Tinha por missão proporcionar uma vida tanto quanto possível normal e com o máxi-

por DIAIBE, tendo por objetivo a promoção da qualidade de vida e a integração na comunidade de pessoas com necessidades de acompanhamento terapêutico, que se encontrem em situação social, familiar e económica precária (artigo 13º do Regulamento Orgânico do Departamento de Ação Social e Saúde). Uma caraterística dominante desta direção de serviços é a flexibilidade de mobilidade dos utentes entre os diferentes serviços (Apoio Ambulatório,

na. A direção dispõe do Espaço de Inclusão Digital, que visa a inclusão digital, possibilitando a aquisição de competências básicas em informática. De referir ainda o domínio de atuação na área de formação, desde o início da DIAIBE, para melhorar os conhecimentos técnico-científicos e as competências das equipas de intervenção, com o objetivo de capacitar para a prestação de cuidados, apoiando e encaminhando com mais qualidade e dignidade os utentes infetados e afetados pela doença.

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| SOCIAL |

Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar

Formação

Centro São José

Apartamentos Terapêuticos Assistidos

Espaço de Inclusão Digital

Centro Maria Madalena

Centro de Dia

Apoio Domiciliário

Residência Madre Teresa de Calcutá

Acompanhamento e Vigilância Terapêutica

Residência Santa Rita de Cássia

Apoio Residencial

Apoio Residencial

Adesão Terapêutica

Adesão Terapêutica

Toma Observada

Toma Observada

Em 2013 é criado o Centro São José com objetivos de: • gestão dos apartamentos terapeuticamente assistidos, centro de dia e ateliers de atividades; • vigilância e adesão terapêutica para a população que utiliza este Centro; • apoio nas questões relacionadas com cidadania; • manutenção do banco de roupa e atelier de costura. A preocupação em satisfazer as necessidades básicas do utente levou, desde o início do serviço, à criação do banco de roupa, para servir os utentes das diferentes estruturas da DIAIBE.

FIGURA 2. Organograma

reflexos nos diferentes tipos de intervenção e valências. (1) Acompanhamento na adesão terapêutica O número de utentes diferentes e o número de atendimentos foi bastante elevado no terceiro trimestre de 2012, o que nos permite afirmar que, no último trimestre do mesmo ano, este

número foi provavelmente superior relativamente aos anos anteriores (gráfico 2). (2) Toma observada O gráfico 3 mostra um aumento progressivo de utentes, desde 2009 até ao terceiro trimestre de 2012. (3) Apartamentos terapeuticamente assistidos

GRÁFICO 1. Evolução do número de utentes entre 1991 e 2012 (3º trimestre)

400 310

237 192

200

300 303

291 240 250

173

221

208 205

160 170

154

142

157 130 100

PROBLEMÁTICA De acordo com os dados fornecidos pela execução, desde 1991 até à atualidade, o número de utentes que usufruem da prestação de cuidados da DIAIBE tem aumentado (gráfico 1), com

42 5

23

0

UTENTES 1991

1996

2001

2006

2011

1992 1993 1994 1995

1997 1998 1999 2000

2002 2003 2004 2005

2007 2008 2009 2010

3º Trimestre de 2012

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| VIH/SIDA |

NA POPULAÇÃO PORTUGUESA, CERCA DE 10% DAS NOVAS INFEÇÕES PELO VIH OCORREM NAS PESSOAS COM MAIS DE 50 ANOS 6000 GRÁFICO 2. Evolução do número de utentes diferentes e do número de atendimentos no acompanhamento na adesão terapêutica entre 1 de janeiro de 2009 e o 3º trimestre de 2012

4886

5000

2009

4872 4383

4000

3406

2011

2000 1000

841

757

779

585

3º trimestre 2012

0 Nº de utentes diferentes

Nº de atendimentos

2009

20000 GRÁFICO 3. Evolução do número de utentes diferentes e do número de atendimentos na valência Toma observada entre 1 de Janeiro de 2009 e o 3º trimestre de 2012

2010

3000

14706

15000

13257

2010

8956

10000

8014

2011

5000 1000

41

50

78

Nº de utentes diferentes

Através do gráfico 4 é possível observar que, no mesmo período de tempo, embora a capacidade tenha aumentado, esta não se ajusta ao número de utentes diferentes. Se analisarmos a evolução dos utentes com apoio domiciliário desde 2010, verifica-se que a evolução é positiva (gráfico 5). De referir que os dados de 2013 são relativos ao 3º trimestre. A leitura do gráfico permite-nos afirmar que: • Em 2011, o número de ajudantes familiares foi mais elevado e, em 2013, foi o mais reduzido,

3º trimestre 2012

85

Nº de atendimentos

comparativamente aos outros anos. • Em 2011, o número de utentes diferentes, o número médio e os números de admitidos e saídos foram os mais elevados dos últimos três anos. • Em 2012 parece haver uma estabilização dos utentes, o que pode ser justificado por uma maior adesão terapêutica. • Os dados referentes aos três primeiros trimestres de 2013 não permitem fazer a comparação com os dados refrentes aos anos anteriores. A infeção VIH/Sida surgiu

como um problema de saúde e rapidamente foram reconhecidos os fatores sociais da epidemia, no indivíduo e na comunidade. A evolução no campo da terapêutica tem contribuído para o aumento da esperança de vida, desde que haja continuidade de tratamento a longo prazo. A partir do congresso de Vancouver (1996), o tratamento do VIH/ /Sida passou a utilizar uma combinação de diferentes famílias de antirretrovirais, designada por HAART, terapêutica antirretroviral de elevada eficácia. Na sequência desta terapêuti-

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ca, têm-se verificado melhorias no estado de saúde e na qualidade de vida do indivíduo, nomeadamente na diminuição da incidência de infeções e neoplasias oportunistas e no decréscimo de hospitalizações. A decisão clínica de iniciar o processo terapêutico HAART exige uma abordagem

sistémica da problemática do VIH/Sida, induzindo uma perspetiva mais ampla da doença, na qual os fatores clínicos e psicossociais se correlacionam com relações interpessoais (ANDRÉ, 2005). De facto, a adesão à terapêutica antirretroviral garante a eficá-

cia do tratamento, verificando-se que uma adesão de 80% consegue manter vivas muitas pessoas com mais de 60 anos e com uma esperança de vida semelhante à da população seronegativa. O sucesso terapêutico depende não só da adesão terapêutica individual, mas também de fa-

90 81

80 70

80

GRÁFICO 4. Evolução do número de utentes diferentes e da capacidade dos apartamentos terapeuticamente assistidos entre 1 de janeiro de 2009 e o 3º trimestre de 2012

65 60

60

55

53

50

55

2009

44

40

2010

30 2011

20 10 0

3º trimestre 2012 Nº de utentes diferentes

Capacidade

Capacidade

Ajudantes familiares

Utentes diferentes

Nº médio de utentes

Nº admitidos

Nº saídos

Lista de espera

GRÁFICO 5. Evolução do movimento anual de utentes no apoio domiciliário no período de 2010-2013 (3º trimestre)

2013

60

15

99

87

23

12

0

2012

60

21

110

95

58

30

0

2011

60

25

197

136

74

45

0

2010

60

24

153

95

70

26

0

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tores como: a inclusão social do indivíduo; a promoção do desenvolvimento pessoal, cognitivo e psicossocial através da aquisição de competências para lidar com a doença; a participação ativa; o desenvolvimento da metacomunicação sobre as dificuldades do processo de adesão; intervenções multidisciplinares e respostas comunitárias integradas (ANDRÉ, 2005). Atualmente, a comunidade científica tende a caraterizar a infeção VIH/Sida como uma doença crónica, mas a carga simbólica negativa persiste, continuando a existir grande dificuldade na gestão social da sida (REIS, 2008), gerando situações de exclusão social em todas as

nuído o período de internamento, com impacte na vida familiar. Em Portugal, as pessoas com esta problemática sofrem de disfunção ocupacional e social, porque se mantém a discriminação e o estigma, dificultando o acesso aos serviços sociais e de saúde, a nível de apoio domiciliário, lares e de cuidados continuados (REIS, 2008). EQUIPA MULTIDISCIPLINAR A intervenção de profissionais multidisciplinares surge como resposta às situações de doença em contexto domiciliário, capacitando o utente para a autonomia. Neste sentido, a equipa do apoio domiciliário engloba um coordenador, que pode ser de uma das

para o sucesso da rede de cuidados continuados integrados. Revelando-se a sida uma doença crónica de evolução lenta, é fundamental desenvolver e alargar um conjunto de prestações necessárias à manutenção do doente no seu domicílio. Neste sentido, é fundamental formar agentes que irão agir no terreno, ou seja, ajudantes familiares aptos a intervir com esta situação específica. A formação das ajudantes familiares deverá ser complementada com um estágio na Residência Madre Teresa de Calcutá, para um melhor conhecimento prático da especialidade dos cuidados a prestar a estes doentes. Com o aumento da epidemia da sida, a necessidade de

A INTERVENÇÃO DE PROFISSIONAIS MULTIDISCIPLINARES SURGE COMO RESPOSTA ÀS SITUAÇÕES DE DOENÇA EM CONTEXTO DOMICILIÁRIO, CAPACITANDO O UTENTE PARA A AUTONOMIA áreas de vida pessoal, familiar e laboral das pessoas infetadas. Na população portuguesa, verifica-se um aumento do número de novas infeções nas pessoas mais velhas. Cerca de 10% das novas infeções pelo VIH ocorrem nas pessoas com mais de 50 anos (DOROANA, 2013). A comorbilidade é visível nas questões da saúde física, como nas questões da saúde mental. Este fenómeno afeta a qualidade de vida do utente, tornando-o vulnerável e a necessitar de mais cuidados diários e alargados. A evolução dos cuidados de saúde tem dimi-

áreas profissionais que intervêm no terreno: serviço social, enfermagem e terapia ocupacional. Estes profissionais garantem as visitas hospitalares e/ou domiciliares e planificam a prestação de serviços domiciliários, realizados pelas ajudantes familiares. O apoio domiciliário é uma resposta integrada, através de ações organizadas no domicílio – desde tarefas domésticas diárias até cuidados diretos ao doente nos domínios físico e psicossocial –, contribuindo para a prestação de cuidados básicos e de qualidade em contexto informal e familiar e

intervir em contexto domiciliário exige preparação e treino dos agentes que irão para o terreno prestar cuidados a pessoas dependentes, cuidados esses que não possam ser garantidos pela família. Pretende-se que o apoio domiciliário promova a articulação entre as várias instituições com intervenção nesta área, a fim de criar condições de bem-estar para esta população no seio das respetivas famílias e da comunidade em que vivem. A intervenção técnica no apoio domiciliário acompanha o indivíduo na família, sendo o assistente

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social um dos intervenientes cuja abordagem se baseia na aplicação do modelo sistémico/holístico, preparando os indivíduos infetados/afetados e respetivas famílias a encontrar as respostas à sua situação social. De um modo geral, a intervenção desenvolve-se no domicílio, tendo como objetivos: 1. conhecer as rotinas, hábitos, história, cultura e a informada convivência com o diagnóstico VIH; 2. estabelecer laços com a família ou parentes próximos, quando existem; 3. ajudar na desmistificação de preconceitos que possam existir na população infetada e afetada, construindo “pontes” entre todos os intervenientes. Este tipo de atuação exige uma intervenção sistémica, em que a capacitação do indivíduo para o seu crescimento pessoal seja alvo de um diagnóstico e avaliação contínua da prática, implicando a utilização de estratégias de rentabilização dos recursos, do trabalho em parceria com os diferentes agentes económicos, políticos e sociais. A implementação do desenvolvimento de competências promove o poder individual dos cidadãos na gestão das próprias vidas. Através da integração com os parceiros internos na SCML – nomeadamente as direções de ação social locais (DIASL), parceiros privilegiados na sinalização e acompanhamento de situações – é possível incentivar a partilha de responsabilidades e de recursos, com reflexos na qualidade dos serviços prestados. Na nossa prática, temos cons-

Prestação de cuidados de higiene e conforto ao indivíduo doente

FIGURA 3. Tarefas das ajudantes familiares

Apoio na alimentação e na toma dos medicamentos

Ajuda nas tarefas domésticas, como por exemplo: higiene e limpeza da habitação, tratamento de roupas, assistência na aquisição e confeção dos alimentos

Acompanhamento aos diversos serviços, para análises, consultas e tratamentos

Acompanhamento nas férias e atividades de lazer

tatado o aumento do número de pessoas dependentes por falta de competências necessárias para a realização do seu desempenho ocupacional diário, quer a nível dos autocuidados quer da organização do contexto e gestão doméstica. A intervenção de profissionais de saúde, nomeadamente do enfermeiro e do terapeuta ocupacional, surge como resposta às situações de doença, facilitando a evolução para uma melhor qualidade de vida/bem-estar. De entre as respostas em contexto domiciliário, destaque-se a monitorização dos sintomas, a vigilância terapêutica e dos efeitos secundários da terapêutica, a capacitação para a autonomia, a promoção do conforto e bem-estar, o proporcionar um envolvimento ativo em ocupações significativas diárias. A prestação de cuidados de enfermagem no apoio domiciliário é feita após o diagnóstico do problema sociofamiliar do utente, através da

avaliação realizada nas visitas hospitalares e domiciliárias. O enfermeiro ajuda a pessoa a identificar as suas necessidades, tal como as formas de as ultrapassar, orientando-a para a resolução dos seus problemas. Esta ajuda baseia-se em três pontos-chave: a verdadeira escuta, para perceber as necessidades expressas verbalmente ou não; a empatia, para compreender o outro e manter a distância que permite a relação terapêutica; e a congruência, que implica a autenticidade do enfermeiro (SARAIVA, 2008). O enfermeiro tem o papel de orientar e encaminhar o utente para os recursos comunitários disponíveis; monitorizar a vigilância terapêutica; estimular a adesão terapêutica; supervisionar os cuidados prestados aos utentes nas atividades da vida diária; assegurar o acompanhamento clínico dos utentes às consultas e tratamentos; e prestar apoio psicossocial ao utente e respetiva família. Cuidar, em 69

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enfermagem, pressupõe um cuidar científico-profissional, baseado na disciplina da enfermagem e orientado para o que é feito com ou em nome da pessoa, e menos para o que é feito a ou para essa pessoa. Por isso, o cuidar poderá ser considerado um verdadeiro encontro com o outro, um estar disponível para o outro, numa relação de proximidade e de ajuda, que se evidencia por abertura, compreensão e confiança (MONIZ, 2003).

personalizados para aliviar a dor, prevenir deformidades, compensar a função, de modo a evitar as limitações e restrições no envolvimento ocupacional diário. Um dos objetivos da intervenção do terapeuta ocupacional é a manutenção e promoção da autonomia, facilitando ou promovendo contextos favoráveis à manutenção e reabilitação das competências motora, cognitiva, emocional. A autonomia nas várias áreas de desempenho ocupa-

é fundamental na intervenção do terapeuta ocupacional no suporte à família e aos cuidadores, através de orientações que facilitem a comunicação entre o utente, cuidador e restantes elementos do agregado familiar. O terapeuta ocupacional fornece informações que promovam a capacitação dos cuidadores para o apoio ao utente, em segurança, constituindo a família e/ou cuidador um elemento fundamental para complemento do plano individual

UM DOS OBJETIVOS DA INTERVENÇÃO DO TERAPEUTA OCUPACIONAL É A MANUTENÇÃO E PROMOÇÃO DA AUTONOMIA DO UTENTE O terapeuta ocupacional avalia as competências individuais a nível do desempenho ocupacional, identificando as tarefas significativas para o utente e o contexto onde elas ocorrem. A análise desta interação pessoa/ ocupação/contexto (KIELHOFNER, 1997) permite delinear um tipo de intervenção personalizado e adequado a cada utente, tendo em conta tanto as ocupações significativas como os contextos familiar, comunitário e habitacional. O que é uma oportunidade para determinada pessoa pode ser um constrangimento para outra, nomeadamente para uma pessoa com deficiência (KIELHOFNER, 2002). O equilíbrio dinâmico na relação entre pessoa, ambiente e ocupação pode ser promovido por um desempenho ocupacional competente (HAGEDORN, 2000), adaptando e/ou confecionando produtos de apoio

cional pode ser um fator facilitador de integração familiar e social. A maioria dos utentes do apoio domiciliário apresenta disfunção ocupacional, que se reflete nas rotinas de vida e na organização dos contextos físico e social. O terapeuta ocupacional apoia o utente e a família a encontrar estratégias para lidar com a situação de dependência e a identificar ocupações que sejam significativas e que possam contribuir para o reforço e manutenção das competências. A contribuição do terapeuta ocupacional na formação prática dos ajudantes familiares permite dotá-los de competências para prevenir as incapacidades e promover a autonomia do indivíduo (AGOSTO, 1999). O cuidador precisa de orientação para lidar com a evolução da doença do utente, para que possa prestar cuidados de qualidade em parceria com a equipa. Assim,

de cuidados de que o utente necessita. A articulação com as estruturas da comunidade permite minimizar os riscos de maior pobreza e prevenir ainda a agudização das situações, para garantir a qualidade de vida no sentido mais lato do conceito. Para assegurar a intervenção na área geográfica de Lisboa, o apoio domiciliário mantém parcerias com as estruturas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e protocolos com outras entidades, nomeadamente a Comissão Nacional de Luta contra a Sida (CNLCS), a Universidade Católica Portuguesa (Faculdade de Ciências da Saúde), a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (Centro de Patogénese Molecular – Unidade de retrovírus), a Universidade Lusófona (Área de psicologia criminal e comportamentos desviantes). No âmbito das questões ge-

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radas pelo VIH/Sida, uma das principais dificuldades para o sistema de saúde é a gestão dos problemas sociais. Neste sentido, perante famílias em que o falecimento a prazo da mãe é acompanhado de situação semelhante do pai, a prestação de apoio no contexto familiar torna-se impossível. Tendo em consideração a necessidade de apoiar a criança e família afetadas pelo VIH/Sida, o Hospital de Dona Estefânia e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa acordaram uma resposta estruturada, contínua e eficiente no âmbito do apoio de retaguarda e domiciliário às crianças e famílias infetadas pelo VIH (protocolo entre HDE e SCML, 2000). Perante estas respostas tão complexas é essencial a intervenção de uma equipa multidisciplinar em todas as dimensões de vida física, emocional e espiritual do cuidador. O estabelecimento de uma boa relação entre a equipa e o cuidador é um fator facilitador em todas as etapas do ciclo de vida.

nal, para promover a participação e o envolvimento individual nas ocupações significativas, pode

ser uma via para a saúde e bem-estar do indivíduo.

BIBLIOGRAFIA AGOSTO, C.S. – Informação sida e outras doenças sexualmente transmissíveis. JAS FARMA [comunicação], 14:6, 1999. ANDRÉ, M.R. – Apoio domiciliário na cidade de Lisboa. Informação sida e outras doenças sexualmente transmissíveis. JAS FARMA [comunicação], 6:10-11, 1998. ANDRÉ, M.R. – Apoio domiciliário a indivíduos infetados pelo VIH. Manual de Formação para Ajudantes Familiares. Ed. Projeto Solidariedade, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: 1998. ANDRÉ, M.R. – Adesão à terapêutica em pessoas infetadas pelo VIH/Sida. Estudo exploratório em sujeitos do centro de convívio e do apoio ambulatório de um serviço da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 2005. Documentos internos da Direção de Apoio à Inserção e Bem-Estar (2009-2012). DOROANA, M. – Quase seis décadas de história no tratamento de patologias infeciosas. Hospital de Santa Maria, CHLN, EPE. Sida especial. A experiência de sete serviços de referência. 2013. Disponível em newsfarma@newsfarma.pt. HAGEDORN, R. – Tools for Practice in Occupational Therapy: A Structured Approach to Core Skills and Processes. Londres: Churchill Livingstone, 2000. KIELHOFNER, G. – Conceptual foundations of occupational therapy. Philadelphia: F.A. Davis, 1997. KIELHOFNER, G. – Model of human-occupation-theory. Filadélfia: Lippincott Williams & Wilkins, 2002. MONIZ, J.M.N. – A enfermagem e a pessoa idosa. Loures: Lusociência, 2003.

EM SÍNTESE O apoio domiciliário na DIAIBE é uma resposta que garante o desenvolvimento de competências pessoais para a adesão terapêutica, através da intervenção de uma equipa multidisciplinar. O enfoque na partilha de objetivos e a participação ativa de todos os elementos da equipa tem reflexos positivos na autonomia e capacitação para a gestão do projeto de vida dos utentes. Associar ao modelo de apoio domiciliário – com foco na prestação de cuidados – a componente ocupacio-

Protocolo de acordo entre o Hospital de Dona Estefânia e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Apoio Domiciliário a Crianças Infetadas pelo VIH. 2000. SANTOS FERREIRA, M.O. – Prefácio. In Apoio Domiciliário a indivíduos infetados pelo VIH. Manual de Formação para Ajudantes Familiares. Lisboa: Projeto Solidariedade – Santa da Misericórdia de Lisboa, 1998. SANTOS FERREIRA, M.O. – Curriculum Vitae. 2006. SARAIVA, D.M.R.F. – Refletir o cuidar em enfermagem. Nursing. 2008, 230(2),14-20. REIS, A.C. – Apoio Residencial. Informação sida e outras doenças sexualmente transmissíveis. JAS FARMA [comunicação], 8: 28-29, 1998. REIS, A.C. – New experiences of out-of-hospital care in Lisbon: Therapeutic flats and domiciliar support to AIDS patients. Comunicação no VII Congresso Internazionale AIDS e assistenza domiciliare. Le Nuove Sfide. Milano, 2003. REIS, A.C. – Sida, Pobreza e Desenvolvimento Humano. In Revista Cidade Solidária. Lisboa: SCML, 20:52-55, 2008.

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Criação, ações e perspetivas futuras

PLATAFORMA PARA A ÁREA DO ENVELHECIMENTO A Plataforma para a Área do Envelhecimento da Rede Social de Lisboa está determinada em promover a melhoria da qualidade de vida da população sénior da cidade. As 18 entidades que a constituem têm a missão de implementar um plano de intervenção estruturado em torno de três eixos: conhecimento, sensibilização e educação; (re)qualificação das respostas e serviços; e inovação da intervenção. Texto de Nuno Cravo Félix [COORDENADOR DA PLATAFORMA PARA A ÁREA DO ENVELHECIMENTO DA REDE SOCIAL DE LISBOA_SCML]

C

omposta por 18 entidades com intervenção na área do envelhecimento no território da cidade, a Plataforma para a Área do Envelhecimento (PAE) da Rede Social de Lisboa tem como missão implementar o Plano de Intervenção para a Área do Envelhecimento (PIAE). Aprovado no plenário do Conselho Local de Ação Social (CLAS) de Lisboa a 28 de novembro de 2012, este plano visa a “prossecução de uma ação territorializada que envolva e mobilize os parceiros locais para que todos, de uma forma sustentada, unam esforços e combinem iniciativas que acrescentem valor na área do envelhecimento”. Numa primeira reunião, levada a cabo pela Plataforma para a Área do Envelhecimento a 19 de abril

de 2013 com vista à preparação da sua constituição, estiveram representadas as 16 entidades previstas no PIAE. Recordado o plano aos presentes, estes foram sensibilizados para a adesão a esta plataforma da Rede Social de Lisboa, no sentido de contribuir para os objetivos de trabalho definidos e aprovados pelo CLAS. Mais recentemente, a 21 de fevereiro de 2014, foi aprovada a adesão de dois novos parceiros, perfazendo atualmente uma totalidade de 18 entidades envolvidas (ver caixa). No sentido de facilitar o trabalho, assumir tarefas executivas e impulsionar a dinâmica da ação do grupo alargado, definiu-se, desde logo, avançar para a criação de um núcleo operacional da PAE. Este é constituído pela Câmara Municipal de Lisboa

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(CML), pelo Instituto da Segurança Social de Lisboa, IP – Centro Distrital de Lisboa (ISS, IP-CDL), pela Rede Europeia Antipobreza (EAPN) / Portugal – Núcleo Distrital de Lisboa e pelos coordenadores dos quatro Núcleos Executivos da Rede Social de Lisboa. Destaca-se o passado 28 de junho de 2013 como o dia da primeira reunião efetiva de trabalho da PAE, na qual fizeram questão de marcar presença o diretor de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa (SCML), Mário Rui André, a diretora do Departamento de Desenvolvimento Social da CML, Susana Ramos, e a chefe de setor territorial Amadora/Lis-

boa do Centro Distrital de Lisboa, Susana Nogueira. Estes dirigentes partilharam conteúdos relativos à intervenção de cada uma das suas entidades na área do envelhecimento. Nesta reunião consensualizou-se ainda o regulamento interno, o plano operacional para o ano de 2013 e definiu-se também a constituição de subgrupos de trabalho para diferentes eixos estratégicos do PIAE. É relevante sublinhar que o PIAE surge no culminar de um trabalho de diagnóstico participado, de reflexão sobre a temática do envelhecimento com técnicos, dirigentes, idosos, e de pesquisa bibliográfica sobre literatura científica especializada. 73

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O próprio documento do Plano de Intervenção para a Área do Envelhecimento incorpora a proposta de um plano de ação com definição de objetivos estratégicos e específicos, ações, cronograma, resultados e produtos. O PIAE está estruturado em torno de três eixos: 1. Conhecimento, sensibilização e educação; 2. (Re)qualificação das respostas e serviços; 3. Inovação da intervenção. A implementação do plano perspetiva-se numa lógica de transversalidade, privilegiando a sua apropriação pelas Comissões Sociais de Freguesia (CSF) e pelos grupos de trabalho ligados ao envelhecimento. Preconiza ainda a criação de Equipas Técnicas Territoriais (ETT), constituídas por proximidade de zona geográfica. Pretende-se assim potenciar a intervenção, conseguir ganhos em termos de economia e rentabilização de recursos, estabelecer articulações em territórios contíguos, facilitar

a divulgação e circulação de informação, permitir a partilha de experiências e a criação de sinergias de trabalho. Concomitantemente, a reflexão setorial sobre o envelhecimento pode constituir-se como facilitador de um elevado potencial em termos de conteúdos de trabalho e permitir um maior conhecimento da realidade de cada território. Em setembro de 2013 deu-se início ao processo de constituição das equipas (ETT), tendo-se revelado lento e difícil o arranque deste processo, uma vez que coincidiu com a reorganização administrativa da cidade. Após um início hesitante, atualmente encontram-se em pleno funcionamento três ETT: zona norte, zona centro-ocidental e zona sul. Pesem embora algumas discrepâncias no que concerne a níveis de participação, apraz-nos constatar que se contam já cerca de 70 entidades envolvidas no trabalho das mencionadas equipas.

AÇÕES DESENVOLVIDAS PELA PLATAFORMA PARA A ÁREA DO ENVELHECIMENTO EIXO 1

Conhecimento, sensibilização e educação

1.1. Objetivo estratégico

Disponibilizar maior conhecimento sobre a realidade do envelhecimento em cada zona territorial da cidade.

Objetivo específico

Aprofundar o conhecimento sobre as necessidades do fenómeno do envelhecimento ao nível local / zonas territoriais da Rede Social.

Ação

Identificação de indicadores.

Metodologia

Para a prossecução deste objetivo foi criado um subgrupo de trabalho, coordenado pela EAPN / Portugal. Este subgrupo definiu um conjunto preliminar de indicadores que, com os contributos de outros parceiros da PAE, já foi validado.

Entidade responsável

EAPN / Portugal.

Parceiros envolvidos

Parceiros do subgrupo do objetivo estratégico 1.1: CML Comando Metropolitano Lisboa – PSP Coordenadores dos Núcleos Executivos Cruz Vermelha Portuguesa Deco EAPN / Portugal ISS, IP / Centro Distrital de Lisboa Junta de Freguesia da Ajuda Junta de Freguesia dos Olivais SCML

Resultado

Está identificada uma bateria de indicadores para definição do diagnóstico. Paralelamente, foram disponibilizados por parte do Observatório da Luta contra a Pobreza na cidade de Lisboa dados sistematizados sobre a área do envelhecimento em Lisboa, mediante apresentação efetuada na reunião do subgrupo da PAE e nas quatro zonas territoriais.

Avaliação

A ação foi executada, tendo sido apresentada uma bateria de indicadores quer na reunião da PAE quer nas quatro zonas territoriais. Este conjunto preliminar de indicadores sobre o fenómeno do envelhecimento será ainda trabalhado pelo Observatório da Luta contra a Pobreza na cidade de Lisboa em parceria com as ETT.

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EIXO 1

Conhecimento, sensibilização e educação

1.1 Objetivo estratégico

Disponibilizar maior conhecimento sobre a realidade do envelhecimento em cada zona territorial da cidade.

Objetivo específico

Aprofundar o conhecimento sobre as necessidades do fenómeno do envelhecimento ao nível local / zonas territoriais da Rede Social.

Ação

Desenvolver processos que assegurem o envolvimento da população, dos profissionais e dos dirigentes.

Metodologia

Foram calendarizadas várias reuniões territoriais para constituição das ETT. Numa fase de teste, estão a ser aplicados questionários a uma amostra de idosos, tendo em vista a construção de um questionário mais completo e de aplicação mais abrangente, permitindo apurar a perspetiva da população com 65 e mais anos sobre a autoimagem, preocupações, necessidades e expectativas relativamente à intervenção dos serviços e respostas da comunidade.

Entidade responsável

Coordenadores das ETT e ISS, IP/Centro Distrital de Lisboa.

Parceiros envolvidos

Parceiros da Rede Social envolvidos nas reuniões das ETT.

Resultado

Participaram nas reuniões das ETT setenta entidades diferentes. Foram identificadas metodologias de ativação da participação de idosos, nomeadamente o Fórum Sénior, além de outras atividades da Comissão Social da Freguesia de Santos-o-Velho, do Grupo Interinstitucional de Apoio a Idosos (GIAI) da Alta de Lisboa e de Academias e Universidades Seniores.

Avaliação

A ação foi executada, uma vez que têm vindo a ser identificados no âmbito das ETT experiências interessantes onde são utilizadas metodologias que valorizam o papel do idoso na definição de necessidades, interesses e propostas de intervenção que lhes digam respeito, tal como na conceção, planeamento e dinamização de ações.

EIXO 1

Conhecimento, sensibilização e educação

1.1. Objetivo estratégico

Disponibilizar maior conhecimento sobre a realidade do envelhecimento em cada zona territorial da cidade.

Objetivo específico

Aprofundar o conhecimento sobre as necessidades do fenómeno do envelhecimento ao nível local / zonas territoriais da Rede Social.

Ação

Disponibilizar informação atualizada.

Metodologia

Cada núcleo executivo ficou responsável pelo levantamento dos grupos de trabalho de idosos no seu território.

Entidade responsável

Coordenadores das ETT e EAPN / Portugal.

Parceiros envolvidos

Parceiros da Rede Social, Comissões Sociais de Freguesia e Núcleos Executivos.

Resultado

Estão caraterizados todos os grupos de trabalho de idosos das CSF e outros. Além desta informação, tem vindo a ser feito um levantamento de necessidades e recursos em cada zona territorial.

Avaliação

O objetivo foi alcançado. Trata-se de uma ação que se vai manter em execução, para atualização permanente de informação.

EIXO 1

Conhecimento, sensibilização e educação

1.2. Objetivo estratégico

Aumentar as imagens positivas acerca dos idosos.

Objetivo específico

Promover campanhas de sensibilização e educação sobre saúde, segurança e participação.

Ação

Identificar e divulgar campanhas de sensibilização e educação.

Metodologia

Criação de um subgrupo de trabalho com o objetivo do levantamento das campanhas de educação e sensibilização sobre temáticas ligadas ao envelhecimento. A PAE está a compilar informação relativa às ações de sensibilização e educação desenvolvidas pelos parceiros, no sentido de as divulgar junto de todos os parceiros da Rede Social de Lisboa.

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Entidade responsável

CML

Parceiros envolvidos

Associação Nacional das Farmácias Associação Portuguesa de Alzheimer Comando Metropolitano Lisboa – PSP Cruz Vermelha Portuguesa Deco EAPN / Portugal ISS, IP / Centro Distrital de Lisboa SCML

Resultado

Identificação de ações de sensibilização e iniciativas que foram divulgadas pelos parceiros.

Avaliação

O objetivo foi alcançado, apesar de a solicitação do envio de informação sobre as ações que estão a ser realizadas ter obtido uma baixa taxa de retorno. De destacar a atividade da PSP, que realizou ações de sensibilização nos diversos territórios no âmbito da prevenção de furtos e burlas, bem como das medidas de segurança preventivas. A CML participou no evento Portugal Maior-2013, organizado pela Associação Industrial Portuguesa (AIP), através da exposição de trabalhos realizados pela população idosa, com o objetivo de combater os mitos e estereótipos sobre o envelhecimento. Trata-se de uma ação que se manterá em execução para atualização permanente de informação.

Eixo 2

(Re)qualificação das respostas e serviços

2.1. Objetivo estratégico

Promover a (re)qualificação das respostas e dos serviços, potenciando competências técnicas na intervenção.

Objetivo específico

Aumentar as competências profissionais dos diferentes agentes.

Ação

Efetuar um levantamento das necessidades e expectativas de formação dos diferentes agentes.

Metodologia

Constituiu-se um subgrupo de trabalho que se debruçou sobre um modelo de auscultação de dirigentes e técnicos com o objetivo de elaborar um diagnóstico de necessidades formativas.

Entidade responsável

SCML

Parceiros envolvidos

Associação Nacional das Farmácias Associação Portuguesa de Alzheimer Cruz Vermelha Portuguesa Deco Federação das Instituições de Terceira Idade ISS, IP / Centro Distrital de Lisboa SCML

Resultado

Está em curso a identificação de necessidades de formação para dirigentes, técnicos, cuidadores formais e informais e voluntários, no âmbito das ETT.

Avaliação

Num primeiro momento, alvitrou-se a hipótese de se construir um inquérito sobre necessidades de formação a enviar a todas as entidades com intervenção no envelhecimento. Contudo, face à experiência de outros questionários lançados pela Rede Social cuja percentagem de devoluções se revelou muito baixa, esta hipótese foi abandonada. Deste modo, considerou-se que as necessidades de formação poderiam ser aferidas no desenrolar do trabalho das ETT, ficando este grupo com a responsabilidade de sistematizar a informação e de trabalhá-la no sentido de esboçar um diagnóstico de necessidades de formação.

Eixo 3

Inovação da intervenção

3.1. Objetivo estratégico

Influenciar as políticas de envelhecimento na cidade.

Objetivo específico

Aprofundar o conhecimento sobre as necessidades do fenómeno do envelhecimento ao nível local / zonas territoriais da Rede Social.

Ações

Proceder à identificação de parcerias e promover a reflexão e discussão em torno das questões do envelhecimento.

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Entidade responsável

Elementos da PAE.

Parceiros envolvidos

Parceiros da PAE e ETT.

Metodologia

Reuniões de grupos de trabalho e reuniões das ETT.

Resultado

As ETT estão a desenvolver ações concertadas com os parceiros, de acordo com planos de ação próprios decorrentes das prioridades identificadas. Estão planeados workshops técnicos a realizar no segundo semestre de 2014.

Avaliação

Tem-se verificado a consolidação de parcerias, o aumento do trabalho de articulação, o acréscimo da reflexão conjunta e a definição de planos de ação comuns. O resultado pretendido face ao objetivo estratégico será uma prioridade da PAE para o ano de 2015.

Eixo 3

Inovação da intervenção

3.2. Objetivo estratégico

Identificar novas respostas para a cidade.

Objetivo específico

Identificar metodologias, práticas inovadoras e novas respostas de intervenção social.

Ações

Levantamento de práticas inovadoras / novas respostas na área do envelhecimento e divulgação das mesmas.

Metodologia

O levantamento de práticas inovadoras é feito nas reuniões das ETT e da PAE. O objetivo é encontrar pontos comuns de atuação, preocupações transversais à cidade e promover uma partilha de experiências, com vista à possível replicabilidade das mesmas. Foi enviado a cada uma das entidades responsáveis o pedido de sistematização sumária de informação.

Entidade responsável

Coordenadores das ETT e EAPN / Portugal.

Parceiros envolvidos

Parceiros da PAE e ETT.

Resultado

Foi iniciado o trabalho de levantamento de práticas inovadoras e de novas respostas na área do envelhecimento, trabalho esse que irá ser aprofundado em 2014. De forma preliminar, identificaram-se nove experiências de trabalho/ /projetos desenvolvidos em diferentes locais da cidade, cuja metodologia, objetivos e resultados interessa caraterizar.

Avaliação

Estão a ser identificadas boas práticas ou experiências inovadoras passíveis de serem divulgadas.

A PAE NA IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL A PAE surge com responsabilidades diretas em duas ações da agenda estratégica do Plano de Desenvolvimento Social (PDS), correspondentes aos desafios 1 e 5, a seguir descritos. Desafio 1 – “Lisboa Território da Cidadania Organizacional” Ação: Definição de modelos simplex para idosos. Organização de respostas locais que simplifiquem o processo para aproximação dos serviços aos idosos. Ponto comum das respostas desenvolvidas nos diferentes territórios é o enfoque na agilização dos processos de avaliação e encaminhamento das situações de idosos vulneráveis. Está estabelecido como objetivo de diferentes grupos de trabalho a

necessidade de facilitar processos de resolução de situações num tempo de intervenção o mais reduzido possível. Seja a nível de respostas institucionais, como acontece na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Sinalização de Idosos Vulneráveis) ou na Câmara Municipal de Lisboa (Programa Municipal Ajuda Lisboa), têm sido criadas redes de parceria local entre diversos intervenientes que permitem agir e desbloquear situações – numa lógica de intervenção articulada –, de forma concertada e com ganhos de eficiência assinaláveis. O problema da solidão e do isolamento dos idosos é transversal à cidade, tendo sido identificado como uma área prioritária de intervenção das CSF, sendo que a maioria das comissões existentes tem em funcionamento grupos de trabalho para responder às necessidades da população sénior. A PAE, no âmbito do trabalho realizado com as 77

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FORAM IDENTIFICADAS METODOLOGIAS DE ATIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DE IDOSOS, NOMEADAMENTE O FÓRUM SÉNIOR, ALÉM DE OUTRAS ATIVIDADES DA COMISSÃO SOCIAL DA FREGUESIA DE SANTOS-O-VELHO, DO GRUPO INTERINSTITUCIONAL DA ALTA DE LISBOA (GIAI) E DE ACADEMIAS E UNIVERSIDADES SENIORES” ETT, reconheceu diversos projetos/respostas locais que simplificam processos para aproximação dos serviços aos idosos. Existem projetos que surgem no seio das CSF e de outras estruturas ou grupos de parceria localmente existentes que se consideram passíveis de replicabilidade. Para além do Transporte Solidário – iniciado pela então Comissão Social Interfreguesias Santa Maria de Belém e São Francisco Xavier e que continua a ser disseminado por várias áreas da cidade – têm vindo a ser referenciadas outras boas práticas na área do envelhecimento com potencial de replicação. A título exemplificativo, enunciam-se algumas: o projeto NAIS – Núcleo de Apoio e Intervenção com Seniores, desenvolvido pelo Grupo de Trabalho de Intervenção com Seniores da CSF da Estrela; o projeto Vassouras e Companhia, implementado pela ex-Junta de Freguesia de São José em parceria com outras entidades locais, e o projeto Mais Proximidade, Melhor Vida, desenvolvido pelo Centro Social e Paroquial de São Nicolau. Destaca-se ainda a CSF da Ajuda, com os projetos elaborados pelo Grupo de Trabalho da Comunidade e pelo Grupo de Trabalho dos Idosos. No primeiro caso, partindo da problemática identificada junto da população carenciada e idosa, foi dinamizado o projeto Oficina Domiciliária, que consiste na realização de pequenas reparações no interior das habitações, envolvendo 11 parceiros do território. Em 2013, na freguesia da Ajuda, foi também replicado o serviço

de transporte solidário, sendo que, nos três primeiros meses de implementação desta resposta, 20 idosos usufruíram da mesma. Já o Grupo de Trabalho dos Idosos da CSF de Marvila organizou-se para facilitar a resolução de situações de idosos em vulnerabilidade, criando uma parceria técnica interinstitucional, agilizando a avaliação e encaminhamento das situações sinalizadas, rentabilizando recursos e promovendo uma intervenção integrada em parceria. O Grupo de Trabalho dos Idosos da CSF do Beato também concorre para este desafio, na medida em que assenta grande parte dos seus objetivos na dinamização de redes solidárias de proximidade. O objetivo é o de que estas redes permitam agilizar a intervenção e responder às necessidades dos idosos, através das instituições do território, com recurso a um conjunto de voluntários para apoio na monitorização das situações de vulnerabilidade e isolamento. Na zona norte, uma das referências importantes é o trabalho desenvolvido pelo Grupo Interinstitucional de Apoio a Idosos (GIAI) da Alta de Lisboa. Este esforço tem permitido uma intervenção em parceria na área dos idosos, estruturado com o propósito de rentabilizar respostas, articular a intervenção e promover uma visão integrada do fenómeno do envelhecimento no território. A par do GIAI, de referir o Grupo Solidariedade Gerações Carnide, que desenvolve ações de reflexão e intervenção na temática da população sénior. Transversalmente, considera-se que a ação da PSP – através do Modelo Integrado de Policiamento de Proximidade-Apoio 65 – constituiu-se como uma mais-valia da cidade no âmbito da intervenção nas questões do envelhecimento, contribuindo muito positivamente para o aumento do sentimento de segurança da população desta faixa etária. De assinalar também o projeto designado Ferro de Soldar, levado a cabo pela Fundação São João de Deus, com o objetivo de dar resposta a lacunas importantes na vida diária e decisivas para o bem-estar da população idosa. Globalmente, a PAE pretende mapear estas e outras experiências, sistematizá-las, promover a sua visibilidade, realizando a partilha de informação e eventual compilação de metodologias e recomendações.

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| SOCIAL |

Desafio 5 – “Lisboa, Cidade das Redes de Inovação Social” Ação: Elaboração de planos de formação para diferentes agentes: pessoa sem abrigo (PSA), envelhecimento e crianças. Esta ação conjuga-se com o eixo 2 do PIAE – (Re)qualificação de Respostas e Serviços. Mediante o trabalho desenvolvido é notória uma preocupação, verbalizada por todos os intervenientes, no sentido da qualificação dos recursos humanos ligados à intervenção na área do envelhecimento. Esta é uma reflexão que será aprofundada e sistematizada em 2014, através do elenco de necessidades de formação a diferentes níveis. Têm sido referidas várias pistas e propostas de formação e apontadas necessidades de qualificação dos agentes intervenientes no tema do envelhecimento. Está constituído um grupo de trabalho que irá avançar neste sentido. Por outro lado, está a iniciar-se um trabalho com a Deco, com vista à divulgação dos direitos dos utentes de serviços de apoio a idosos, promovendo desta forma o espírito crítico e a exigência dos utilizadores como forma indireta de melhorar a qualidade dos serviços prestados. CONSIDERAÇÕES FINAIS A divulgação do PIAE, bem como a visibilidade que se pretende para a PAE, começou a ter impacte nas reuniões territoriais e na própria dinâmica social da cidade. Como resultado do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, a PAE teve duas solicitações recentes por parte de instituições que desejam integrar a Plataforma – a Fundação São João de Deus e a Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!). Paralelamente, verifica-se a adesão crescente de parceiros às ETT e o seu envolvimento no trabalho em curso. Face às fases de implementação programadas, considerou-se que os períodos previstos no PIAE foram genericamente estabelecidos, de forma orientadora, mas não se coadunaram com a realidade atual da parceria na cidade de Lisboa e com a organicidade que a estruturação da PAE e das ETT implicam. Mantém-se o referencial ideal do cronograma inicialmente indicado, mas recomendou-se uma leitura ajustada, flexível e contextualizada do mesmo.

QUEM COMPÕE A PAE? • Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!) • Associação Nacional das Farmácias • Associação Portuguesa de Apoio à Vítima • Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer • Administração Regional de Saúde de Lisboa • Câmara Municipal de Lisboa • Comando Metropolitano de Lisboa – Polícia de Segurança Pública • Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação de Lisboa • Deco – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor • Federação das Instituições de Terceira Idade (FITI) • Fundação São João de Deus • Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital de Lisboa (ISS, IP-CDL) • Junta de Freguesia da Ajuda • Junta de Freguesia de Benfica • Junta de Freguesia de Arroios • Junta de Freguesia dos Olivais • Rede Europeia Anti-Pobreza / Portugal (EAPN) – Núcleo Distrital de Lisboa • Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) Face ao exposto, e tendo em conta a existência de duas ações da agenda estratégica do PDS da responsabilidade da PAE e o período de vigência do PDS de 2013-2015, propôs-se que a vigência do PIAE coincida com a do PDS, ou seja, que a PAE tenha como prazo para prosseguir o seu trabalho o final de 2015. Como tal, considerou-se que o ano de 2013 se constituiu como a fase de arranque do PIAE, tendo sido fundamental criar as condições para levar a cabo as ações que concorrem para os objetivos previstos. A PAE está empenhada na prossecução dos seus objetivos, encontra-se disponível para integrar contributos que se possam constituir como um benefício para o seu trabalho e está determinada em promover um impacte direto na melhoria da qualidade de vida da população sénior da cidade de Lisboa. 79

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| AUTONOMIA |

ADAPTAR

UMA ABORDAGEM PELA DIFERENÇA A análise do atual universo de crianças e jovens a exigirem respostas diferenciadas em regime de acolhimento institucional na Misericórdia de Lisboa serve de ponto de partida para uma reflexão urgente: quais as possibilidades de autonomização desta população numa vivência institucional, que se prevê para a vida? Texto de Maria João Goldschmidt Gonçalves1 e Carla Teixeira Oliveira2 [1.PSICÓLOGA, DIRETORA DA CASA DOS LAÇOS; 2. PSICÓLOGA, DIRETORA DO LAR DA LUZ_SCML]

PREÂMBULO incidência de crianças e jovens com caraterísticas especiais e a exigirem respostas diferenciadas integradas em regime de acolhimento institucional é uma realidade que tem vindo a ser objeto de reflexão por parte dos técnicos da Direção de Infância e Juventude (DIIJ) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com intervenção nesta área. O apetrechamento teórico e reflexivo que estas situações exigem com particular urgência tem associada uma questão fundamental e premente: quais as possibilidades de autonomização numa vivência institucional, que se prevê para a vida? Este aparente paradoxo revela-se determinante num grupo que, maioritariamente, ou não dispõe de rede familiar ou esta, pela sua vulnerabilidade, não se constitui como garante dos direitos destes cidadãos, em termos da sua independência, responsabilidade

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pessoal e social. Neste sentido, no ano de 2013 foi realizada uma categorização de todas as crianças e jovens acolhidos identificados neste âmbito. INTRODUÇÃO Este estudo exploratório, realizado a partir do conhecimento das crianças e jovens com caraterísticas especiais acolhidas nos estabelecimentos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), permitiu a identificação de grupos tipo. Estes grupos têm na sua base critérios de funcionalidade/ /adaptabilidade, bem como o desenho de respostas complementares, assentes numa agilização e flexibilização de soluções institucionais. A existência, ou não, de recursos instrumentais adequados e correntes, ilustra como podem ser promovidas ou inibidas as funcionalidades pelo contexto externo, conduzindo a uma maior ou menor participação do indivíduo.

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I. BREVE ABORDAGEM TEÓRICA Os movimentos sociais e a valorização da responsabilidade coletiva pelos direitos humanos que caraterizaram o final do século XX, associados ao conceito de uma sociedade para todos, conduziram ao questionamento dos modelos tradicionais vigentes em todas as dimensões do sistema social. Consequentemente, as questões referentes à deficiência e a representação associada à sua discriminação passam a ser comummente elencadas. Por outro lado, do ponto de vista do conhecimento académico, era constatada a ineficácia das intervenções desenvolvidas nos tradicionais modelos especializados. Assim, desde o final do século XX, o direito a diferentes respostas para diferentes necessidades, a valorização das capacidades individuais e os requisitos adaptativos, instrumentais ou funcionais que viabilizassem a sua expressão, passam a constituir as referências para a abordagem da problemática de populações com caraterísticas especiais.

renciação da deficiência surge não como categoria em si mesma, mas como um contínuo de funcionalidades, resultante da interação entre os problemas de saúde, os fatores contextuais (ambientais) e os pessoais. Desta forma, as dificuldades dos sujeitos são situadas em algumas ou em todas as três áreas funcionais consignadas na CIF, a saber: as alterações das estruturas e funções corporais, as limitações e as restrições à participação. III. A DIVERSIDADE NA DEFICIÊNCIA A visão estereotipada da deficiência não aceita as suas diferentes expressões, considerando-a de um modo homogéneo. A sua representação social enfatiza, apesar de tudo, as deficiências motoras, a cegueira e a surdez, em detrimento de outras problemáticas. Na verdade, também no quadro das populações especiais, as desigualdades entre os indivíduos deste universo são marcantes. Aqueles que apre-

NO PRESENTE, O DETERMINISMO ASSOCIADO AO CONCEITO DE DEFICIÊNCIA É REEQUACIONADO NUM PARADIGMA FUNCIONAL. NA ATUAL PERSPETIVA, A POSSIBILIDADE DO EXERCÍCIO EM PLENO DA AUTONOMIA E DA CIDADANIA É O CRITÉRIO POR EXCELÊNCIA II. DO MODELO MÉDICO AO MODELO ECOLÓGICO O quadro concetual da Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens da Organização Mundial da Saúde e a CIF – Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde traduzem, numa perspetiva integrada dos termos e das problemáticas comummente associadas ao termo deficiência, uma ótica biopsicossocial, à luz do modelo ecológico de Broffenbrenner. No presente, o determinismo associado ao conceito de deficiência é reequacionado num paradigma funcional. Na atual perspetiva, a possibilidade do exercício em pleno da autonomia e da cidadania é o critério por excelência. Assim, e em conformidade com o World Report Disability (2011), a refe-

sentam algum tipo de dificuldade intelectual ou sensorial estão, normalmente, em desvantagem relativamente àqueles que apresentam algum handicap físico. Este facto reflete-se nos percursos que conseguem concretizar e alcançar em termos educativos e, consequentemente, na integração em mercado de trabalho, sendo estes dois aspetos determinantes do seu estatuto socioeconómico. IV. LINHAS ORIENTADORAS Historicamente – e dependendo da abordagem à deficiência – as políticas sociais têm operacionalizado diferentes tipos de respostas educativas, residenciais/habitacionais e de enquadramento ocupacional e profissional, oscilando entre políticas segregacionistas e políticas inclusivas. 81

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É neste enquadramento de funcionalidade versus incapacidade que continua a perspetivar-se os contextos vivenciais e profissionais dos indivíduos, que podem ser potencialmente facilitadores ou inibidores. Assim, toda e qualquer política de inclusão deverá refletir a maior ou menor capacidade funcional do indivíduo, ao invés de “ter ou não ter capacidade para”. A problemática do “diferente”, centrada na dificuldade, remete para a identificação das áreas fortes, com a avaliação das capacidades (funcionais) do sujeito perante as exigências dos contextos, de forma a promover e potenciar os seus comportamentos adaptativos. Estes comportamentos deverão ser entendidos como “o conjunto de habilidades aprendidas ou adquiridas para desempenhar com sucesso aspetos e tarefas, no âmbito da independência, responsabilidade pessoal e social, que através de ajustamentos vários procura a adaptação às expectativas socioculturais e etárias vigentes e que implicam o assumir do papel de membro ativo na

V. CARATERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO ACOLHIDA NA DIIJ DE ACORDO COM O DIAGNÓSTICO CLÍNICO E FUNCIONALIDADE DOS INDIVÍDUOS De acordo com os dados apurados pelas equipas da Direção de Infância e Juventude (DIIJ) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em agosto/setembro de 2013, foram identificados 50 indivíduos – no universo de 389 crianças e jovens acolhidos nesta Direção – com alguma problemática no âmbito da deficiência/incapacidade, a necessitar de respostas específicas, correspondendo a 14,7% do total da população acolhida. Destes 50 indivíduos, 38 são do sexo masculino, o que corresponde a 76% do total, sendo as raparigas cerca de um quarto das crianças e jovens identificados. Ainda numa abordagem global, e no que respeita à distribuição por faixa etária, foi possível verificar que a maior frequência de indivíduos se situa entre os 6 e os 11 anos (30%) e entre os 12 e os 18 anos (36%).

TODA E QUALQUER POLÍTICA DE INCLUSÃO DEVERÁ REFLETIR A MAIOR OU MENOR CAPACIDADE FUNCIONAL DO INDIVÍDUO, AO INVÉS DE ‘TER OU NÃO TER CAPACIDADE PARA’

FIGURA 1. Distribuição por faixa etária

comunidade onde o indivíduo se insere” (SANTOS & MORATO, 2012). Sublinha-se, no que respeita à “deficiência mental/intelectual”, que o diagnóstico desta problemática passa a ter como referência a relação sistemática e permanente da capacidade adaptativa do sujeito ao meio envolvente, nomeadamente no que respeita às skills práticas, cognitivas e sociais (como por exemplo: orientar-se no espaço/deslocar-se, orientar-se no tempo/sequenciar ações e hierarquizá-las, capacidade de ajustamento dos comportamentos aos contextos, modelagem de comportamentos tipo para ajustamento aos contextos, etc.). Desta forma, as limitações ao nível do funcionamento intelectual passaram a ser enquadradas na tipologia “dificuldade intelectual e desenvolvimental” (MORATO & SANTOS, 2007).

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tutela confiança e guarda maioridade acolhimento instituição confiança adoção FIGURA 2. Distribuição por situação jurídica

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Grupo 1

Grupo 2

Grupo 3

FIGURA 3. Distribuição por grupos tipo

No que respeita ao total deste grupo, e quanto à situação jurídica dos indivíduos, este distribui-se por várias tipologias, destacando-se a medida de acolhimento em instituição (54%) e a medida de confiança com vista à futura adoção (26%). Da análise dos dados, e tendo como critério as capacidades adaptativas elencadas à data, optou-se pelo agrupamento dos sujeitos em três grandes grupos, que se distribuem da seguinte forma:

GRUPO 1 – Grandes dependentes que carecem de apoio total e permanente de terceiros Indivíduos que, pela sua multiproblemática (orgânica com repercussões graves ao nível da funcionalidade básica – alimentação, expressão verbal, locomoção, higiene), carecem de apoio permanente e de alta intensidade ao longo de toda a vida e que exigem acompanhamento especializado em permanência. Correspondem a 12 sujeitos (oito do género masculino). Representam 24% de cinquenta crianças e jovens identificados, abrangendo atualmente uma faixa etária situada entre os 2 e os 12 anos de idade. GRUPO 2 – Dependentes de apoio moderado de terceiros Indivíduos que, na sua maioria, apresentam dificuldades intelectuais e desenvolvimentais, com impacte na sua autonomia, interações e aprendizagens. Os elementos deste grupo revelam competências inferiores ao esperado para a sua idade cronológica, demonstrando capacidades funcionais que lhes permitem executar (algumas) tarefas do quotidiano sem suporte de terceiros, nomeadamente as atividades de vida diária. É neste grupo que se regista a maior diversidade funcional, com implicações diversas nos respetivos graus de adaptabilidade. Este grupo corresponde a 25 sujeitos, ou seja, 50% do total, com uma predominância do género masculino, representado por 17 indivíduos. Relativamente a este grupo, perspetiva-se a necessidade de apoio institucional ao longo da vida, com apoio permanente de terceiros, ainda que de baixa intensidade. GRUPO 3 – Problemáticas de saúde mental Neste enquadramento, e de acordo com os dados disponíveis à data, são referenciados 14 indivíduos do género masculino, nos quais a psicopatologia é prevalente sobre problemáticas de natureza intelectual e desenvolvimental, não se verificando a existência de diagnósticos de deficiência. Nestes sujeitos, com idades situadas entre os 8 e os 19 anos, registam-se incapacidades psicossociais e instabilidade clínica, com repercussões graves nas suas capacidades adaptativas diárias – quer no contexto institucional quer noutros –, que comprometem e dificultam as suas vivências num contexto institucional não terapêutico. 83

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VI. APRECIAÇÕES GLOBAIS E PROPOSTAS Conclui-se que as crianças e jovens acolhidos nas respostas da DIIJ que integram o grupo de populações especiais são maioritariamente do sexo masculino, com idades situadas entre os 6 e os 18 anos. Perspetiva-se que grande parte destas crianças e jovens permanecerão em contexto institucional até à maioridade e ao longo da vida. Desta forma, urge identificar respostas de caráter o menos restritivo possível e que garantam o bem-estar dos indivíduos por tempo indeterminado. De entre outras, salientam-se as seguintes respostas:

2. Outras respostas residenciais a) Residências “autónomas” As residências “autónomas” deverão ser apartamentos de tipologia T2 ou T3. A transição dos jovens para estes espaços residenciais deverá ocorrer a partir dos 18 anos, considerando-se as capacidades funcionais de cada um dos envolvidos. O critério de admissão deverá ter em conta o perfil relacional dos sujeitos e a identificação de competências adaptativas que lhes permitam desenvolver uma atividade profissional, ainda que protegida, assim como atividades de socialização e de formação

EQUACIONAM-SE UNIDADES RESIDENCIAIS DE APOIO PERMANENTE E ALTAMENTE ESPECIALIZADO, DE ÂMBITO TERAPÊUTICO, COM O OBJETIVO DE PROPORCIONAR CUIDADOS QUE PREVINAM E RETARDEM O AGRAVAMENTO DA SITUAÇÃO DE DEPENDÊNCIA E DE INCAPACIDADE PSICOSSOCIAL 1. Acolhimento com exigências adaptativas para crianças e jovens Considera-se que, em resposta às necessidades das crianças e jovens com diagnósticos de deficiência motora/sensorial e/ ou dificuldades intelectuais e desenvolvimentais – à exceção daquelas que apresentam situação de grande dependência –, os lares de crianças e jovens continuarão a ser a resposta institucional mais adequada, posto que os contextos normativos e os modelos comportamentais e relacionais aí disponíveis são promotores do seu potencial de desenvolvimento, nas diferentes áreas. No entanto, as equipas dos lares de crianças e jovens deverão beneficiar de um trabalho de sensibilização/formação nesta área. Em paralelo, identifica-se a necessidade de estabelecimento de um ratio adulto/criança ou jovem capaz de garantir a qualidade da resposta institucional, o que poderá implicar a redução do número de residentes em cada estabelecimento e/ou o aumento do número de unidades de pessoal.

profissional. Estas residências exigem uma estrutura organizada, face à qual os residentes se balizem nas suas atividades diárias, e que lhes permita exercitar e manter rotinas diárias como, por exemplo, de gestão do tempo (semanal, em função das tarefas domésticas e a sua sequência, deslocações, etc.), de aquisição de alimentos e confeção de refeições, de higiene do espaço, de identificação das tarefas prioritárias ou de gestão do dinheiro. As residências deverão ser direcionadas para sujeitos com comprometimento cognitivo, sem suporte familiar e para os quais não se identifica resposta social que potencie as suas capacidades, nas dimensões de independência, responsabilidade pessoal e social. b) Estruturas modulares de “apoio máximo” Entendem-se por estruturas modulares de “apoio máximo” estruturas físicas de tipo residencial, enquadradas por unidades de saúde especializada, mental ou outras. Preconizam-se para problemáticas com elevado grau de incapacidade psicossocial e/ou de dependência permanente em que não se identifiquem ganhos num enquadramento norma-

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tivo, associado a necessidades de apoio permanente e intensivo na área da saúde física e ou mental. Assim, equacionam-se unidades residenciais de apoio permanente e altamente especializado, de âmbito terapêutico, com o objetivo de proporcionar cuidados que previnam e retardem o agravamento da situação de dependência e de incapacidade psicossocial. Estas estruturas deverão ser organizadas em função das idades cronológicas dos sujeitos e/ou do tipo de apoio de que estes necessitam, num enquadramento residencial que traduzirá uma resposta institucional mais próxima do ambiente familiar, com a integração em estabelecimentos de ensino e/ou afetação de outras abordagens terapêuticas ou socio-ocupacionais, consideradas pertinentes. Considera-se que as estruturas modulares direcionadas para os grandes dependentes possibilitam um enquadramento residencial mais próximo de um ambiente familiar, revelando-se assim mais contentoras e organizadoras do que as respostas convencionais existentes nesta área. No que se refere à problemática da saúde mental, importa considerar os decretos-leis nº 8/2010, de 28 de janeiro, e nº 22/2011, de 10 de fevereiro, tal como as orientações programáticas do Programa Nacional para a Saúde Mental, documentos que fornecem alguns indicadores neste âmbito, mais concretamente no que concerne às tipologias residenciais para crianças e adolescentes com perturbações da personalidade.

cimento de protocolos, se traduziriam num leque de respostas mais diferenciadas para uma população diversificada e com caraterísticas especiais. Em paralelo, identificámos a necessidade de criação e implementação de unidades técnicas – unidades de emprego apoiado –, direcionadas para a colocação em postos de trabalho de jovens adultos, residentes em estabelecimentos da SCML, cuja análise de rotinas e de funções viabilize a integração de pessoas com as caraterísticas identificadas. Ainda que este tipo de resposta possa ser considerado um “enclausuramento” no perímetro da instituição, a sua diversidade em termos de serviços, o número de unidades de pessoal e as dinâmicas que estão associadas a organizações de grande dimensão e com grande dispersão convertem esta resposta na oportunidade que representam em contextos promotores do exercício de um direito destes cidadãos. Retomando a questão inicial… Que possibilidades de autonomização numa vivência institucional que se prevê para a vida? Este é o ponto de partida para um novo desafio que se coloca a esta instituição secular.

BIBLIOGRAFIA Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade e Saúde (2004), OMS/DGS.

3. Respostas de apoio à inserção na comunidade Unidades de emprego apoiado A escassez de resposta que se verifica em termos do mercado empresarial para esta população específica e as dificuldades em corresponder ao perfil exigido – no que se refere ao tempo de realização das tarefas e à multiplicidade e diversidade das solicitações em simultâneo – constituem fatores frequentemente identificados pelas entidades empregadoras na escusa de uma integração contratual, com repercussões evidentes nos projetos profissionais destes potenciais trabalhadores. É nesta medida que se identifica o potencial da diversidade e multiplicidade de serviços disponíveis na Misericórdia de Lisboa e a eventual extensão a outras organizações que, mediante estabele-

Convenção Internacional sobre os Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência (1975), ONU. Declaração de Direitos das Pessoas Deficientes (1975), ONU. Declaração de Salamanca (1994), ONU. Decreto-Lei nº 290/2009, de 12 de outubro. Decreto-Lei nº 131/2013, de 11 de setembro. Decreto-Lei nº 8/2010, de 28 de janeiro. Decreto- Lei nº 22/2011, de 10 de fevereiro. Despacho Normativo nº 18/2010, de 29 de junho. Lei nº 24/2011, de 16 de junho. Plano de ação para a integração das pessoas com deficiências ou incapacidade, Resolução do Conselho de Ministros nº 120/2006 de 21 de setembro. Portaria nº 149/2011, de 8 de abril. SANTOS & MORATO, S. (2004) – Escala de Comportamento Adaptativo (ECAP) [versão portuguesa]. World Report Disability (2011), WHO.

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Modelo de intencionalidade terapêutica

PISTAS DE REFLEXÃO PARA UMA MUDANÇA DE PARADIGMA Para muitos jovens, o acolhimento institucional é a última malha de oportunidade entre um mundo de exclusão e uma vida com dignidade. Mas não é possível responder aos desafios de hoje com as respostas de ontem. É necessária uma mudança de paradigma, de um modelo institucional para um modelo especializado e terapêutico. Texto de António Santinha1, João Bicho2, Rui Godinho3 e Victor Silva4 [1. CENTRO DE ACOLHIMENTO DE EMERGÊNCIA CASA DA FONTE; 2. CENTRO DE ACOLHIMENTO DE EMERGÊNCIA CASA DO LAGO; 3. CENTRO DE ACOLHIMENTO DE EMERGÊNCIA CASA DA ALAMEDA; 4. CENTRO DE ACOLHIMENTO DE EMERGÊNCIA CASA DA BOAVISTA_SCML]

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ENQUADRAMENTO HISTÓRICO m Portugal, a primeira lei de proteção à infância é aprovada em 1911, na madrugada da República, com a constituição de um tribunal coletivo especial, essencialmente de equidade. Tinha por objetivo defender ou proteger as crianças em perigo moral, desamparadas ou delinquentes, sob a divisa: educação e trabalho. Em 20 de abril de 1962 é aprovado o Decreto-Lei nº 44288, que instaura uma organização tutelar de crianças. Deste modo, a intervenção do tribunal passa a ser estruturada em nome da proteção e a “bem das crianças”. O processo era extremamente rudimentar e informal, sendo inclusive permitido aos lares de acolhimento institucional a admissão de crianças e jovens apenas por força de um pedido de ajuda dos pais. A Lei nº 147/99, de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), aprovada a 1 de setembro, e que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2001, constituiu um salto qualitativo exponencial na proteção e promoção dos direitos das crianças e jovens. Na sequência do regulamentado nesta legislação, o enfoque da intervenção é colocado no superior interesse da criança. Antes da LPCJP, as crianças e jovens acolhidos eram genericamente organizados nas seguintes tipologias, segundo o motivo de acolhimento:

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A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para a frente. Soren Kierkegaard

Buscando sem saber bem o quê Perdido como quem não vê Calado como quem não tem resposta para quem o chama Desesperado, como quem por ter medo da desilusão não ama. Jorge Palma

• situações de carência económica, nomeadamente de famílias muito numerosas; • situações de orfandade (daí ainda existirem lares com nomes como, por exemplo, casa dos órfãos); • situações em que a institucionalização era a única oportunidade para poder continuar a estudar, existindo muitos lares com o nome de oficina, casa de trabalho, etc. MUDANÇA DE PARADIGMA Com a nova lei há uma mudança abrupta do perfil de crianças e jovens acolhidos. A admissão em instituição só pode acontecer mediante uma medida de acolhimento institucional decretada pelo tribunal ou por uma Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), nos casos identificados de uma situação de perigo e apenas como último recurso. De forma genérica, podemos definir as seguintes “novas” tipologias de crianças e jovens acolhidos: • crianças / jovens vítimas de maus-tratos (abuso sexual, humilhação psicológica, negligência, etc.); • crianças / jovens com psicopatologia; • crianças / jovens com comportamentos “desviantes” (em alguns casos, pré-delinquência ou mesmo delinquência, mas sem moldura legal para a Lei Tutelar Educativa); • crianças / jovens estrangeiros não acompanhados pelos pais ou desenraizados culturalmente; 87

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A LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO, QUE ENTROU EM VIGOR A 1 DE JANEIRO DE 2001, CONSTITUIU UM SALTO QUALITATIVO EXPONENCIAL NA PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E JOVENS” • crianças / jovens sem limites

Quadro 1. Número de crianças e jovens acolhidos (2004-2012) Fonte: Plano de Intervenção Imediata (2004-2010) e CASA (2011 e 2013)

internos e que os pais se assumem impotentes para lidar com a situação; • crianças / jovens com debilidade ligeira ou moderada. As instituições não estavam preparadas para esta mudança. Muitas ainda funcionavam segundo o modelo de acolhimento institucional, caraterizado, de forma sintética, por: • espaços físicos muito grandes e desadequados, com lotações bastante elevadas (em 2006, em média, os lares de infância e juventude tinham 44 crianças e jovens); • instituições fechadas (dentro da própria instituição existia

escola, refeitório, campo de futebol, etc.); • profissionais muito pouco qualificados e em número insuficiente; • a instrução e a monitorização confunde-se com a educação; • perspetiva assistencialista e caritativa; • intervenção muito limitada às necessidades básicas; • tempo de acolhimento muito prolongado; • pouco ou nenhum contacto com as famílias. Entretanto, foi percorrido um caminho, no qual se destaca o impulso provocado pelo plano DOM – Desafios, Oportunidades e Mudanças. Tendo em

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Crianças e jovens

2007 11362

2008 9956

2009 9563

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2011 8938

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vista a qualificação dos lares de infância e juventude, resultou na qualificação da intervenção e dos interventores (com reforço da equipa técnica, formação e supervisão), conferindo-lhe uma dinâmica mais próxima de um modelo familiar. Resumidamente, este modelo familiar carateriza-se por: • instituições de pequena dimensão e com poucas crianças ou jovens (máximo de 15 utentes por unidade); • utilização dos recursos da comunidade (escola, campo de futebol, serviços médicos, formação profissional, etc.), adotando um modelo normalizador; • profissionais qualificados; • educação integral de desenvolvimento biopsicossocial; • modelo de intervenção profissional; • instituição de portas permanentemente abertas à família, sendo estimulada a sua participação; • dinamização efetiva e sistemática dos projetos de vida das crianças e jovens (adoção, reunificação familiar, promoção da autonomia). Em resultado do conhecimento cada vez mais aprofundado da realidade das crianças e jovens acolhidos (desde 2004 que é realizada a caraterização desta população), tem sido possível observar algumas tendências que se têm revelado consistentes: • Uma redução muito significativa dos números de crianças e jovens acolhidos institucionalmente, de 15 118 em 2004 para 8557 em 2012 (ver quadro 1).

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• A idade das crianças e jovens acolhidos tem aumentado significativamente. Em 2012, 67,3% das crianças e jovens acolhidos têm 12 anos ou mais (ver quadro 2). Esta realidade não tem correspondência no que se refere aos lares que, no que toca às idades de admissão, em regra não aceitam jovens com mais de 12 anos. • As crianças e jovens acolhidos têm problemáticas específicas cada vez mais complexas (ver quadro 3), com destaque para o facto de 22,8% ter problemas de comportamento graves. Resumindo, a consequência das três tendências acima identificadas será existirem cada vez menos crianças e jovens acolhidos, sendo que os que integrem um acolhimento serão mais velhos e com caraterísticas multiproblemáticas. Não podemos responder aos

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desafios de hoje com as respostas de ontem! Para dar resposta a esta realidade é necessária uma mudança de paradigma, de um modelo institucional para um modelo especializado e terapêutico. ACOLHIMENTO TERAPÊUTICO O acolhimento terapêutico centra a sua intervenção na trans-

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formação interna e não no comportamento – como sucedia no modelo institucional –, respeitando a individualidade e a valorização da diversidade. Neste modelo, o enfoque do acolhimento está simultaneamente na reconstrução da narrativa pessoal, na reparação dos maus-tratos infringidos e na dinamização do projeto de vida.

Quadro 2. Idades das crianças e jovens em situação de acolhimento (% prevalência) Fonte: Plano de Intervenção Imediata (2005-2010) e CASA (2011-2013) Quadro 3. Problemáticas específicas das crianças e jovens acolhidos Fonte: Plano de Intervenção Imediata (2009 e 2010) e CASA (2011-2013)

Problemas de comportamento graves

Toxicodependências e consumos de drogas

Saúde mental

Debilidade mental

Deficiência mental

Deficiência física

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NOS ÚLTIMOS ANOS, REGISTOU-SE UMA REDUÇÃO MUITO SIGNIFICATIVA DOS NÚMEROS DE CRIANÇAS E JOVENS ACOLHIDOS INSTITUCIONALMENTE” Muitos dos jovens acolhidos tiveram privações significativas ao nível da relação primária e, ao longo do seu crescimento, não tiveram uma base educativa securizante. Por esse motivo, o acolhimento pode simultaneamente proporcionar a segurança da relação individual primária e a vivência grupal alargada aos pares e cuidadores. Consideram-se funções fundamentais do modelo de acolhimento terapêutico as seguintes: • Função α Capacidade de transformar a matéria mais primitiva, os elementos de natureza protomental, que não se presta à função de pensar. É função principal na ação do cuidador (educador) ajudar o jovem neste processo transformativo, possibilitando a capacidade reflexiva do ego, tal como a aptidão de pensar, de fazer síntese, de abstrair, de simbolizar, de sonhar… de ter esperança. Pretende-se que, ao longo do acolhimento, seja possível ao jovem reparar os processos internos potenciadores de sofrimento psíquico e as consequentes dificuldades na relação com a realidade. • Função continente Capacidade do cuidador (educador) em “conter” as angústias

e necessidades do jovem. Esta condição de disponibilidade para receber do outro um “conteúdo” à espera de ser contido, de tolerar uma carga negativa, é um processo ativo em que o cuidador participa intensivamente, acolhedo, contendo, descodificando, transformando, significando, nomeando e devolvendo de forma desintoxicada tudo aquilo que nele foi projetado. • Reorganização das dinâmicas vivenciais, regras, limites, espaços e papéis As rotinas estruturantes, a definição de papéis, a clareza das regras e do discurso são vitais para jovens que viveram em ambientes desestruturados, com difusão dos papéis e sem margens definidas. • Função superegoica O educador é a mão que dá a forma ao barro, não de forma autoritária mas sim com amor firme. Quando aumentam as notícias sobre delinquência, logo as vozes dos educadores de bancada (à imagem do futebol, onde todos se julgam treinadores) dão a receita: mais punição. É verdade que a contenção é importante, mas a contenção emocional, onde o adulto desempenha a função continente

e ajuda a criança a pensar para que os seus pensamentos tenham significado. Importa não confundir um modelo compreensivo com um modelo permissivo. A disciplina (que é fundamental para a estruturação do jovem) deve ser trabalhada através de medidas reparadoras e não da punição. Num modelo punitivo, o adulto funciona como um superego externo que condiciona, mas não promove o crescimento interno e que fomenta a dependência. Estes modelos punitivos (geradores de dependência) são muito responsáveis pela replicação da história institucional, de geração para geração, dentro da família. • Transmissão de valores e desenvolvimento moral O desenvolvimento moral processa-se através da internalização de um conjunto de princípios éticos ou normas a partir dos quais é avaliada a conformidade de vários sentimentos, pensamentos ou ações. A maturidade moral implica uma capacidade e uma disposição para se sujeitar às normas morais internalizadas, mesmo quando não estejam presentes figuras de autoridade que recompensem a conduta moral ou punam as transgressões. • Transmissão de confiança e esperança Na generalidade, os adolescentes acolhidos institucionalmente tiveram vínculos inseguros e patológicos, pautados por sucessivos abandonos,

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desenvolvendo por isso uma desconfiança estrutural em relação ao outro. Não suportam pensar o passado, clivando e adoecendo psiquicamente, vivendo presos no presente, incapazes de perspetivar o futuro. Quando entram numa instituição, os jovens encaram os cuidadores como protagonistas de mais um potencial abandono. De forma inconsciente, vão atacando o vínculo que se vai estabelecendo, por não suportarem a inquietude, procurando assim confirmar a sua ideia original de que serão novamente abandonados. É muito importante que os cuidadores tenham consciência deste movimento (que não é mais do que um mecanismo de defesa), de forma a tolerarem este ataque ao vínculo e conseguirem criar uma relação baseada na confiança. Esta relação tem de ser autêntica, fundada na aptidão de sentir a dor mental do outro e na capacidade de ter prazer no estar em relação, pois só isso permite alimentar a possibilidade de olhar para o futuro com esperança. • Promoção de oportunidades de reparação sempre que haja uma crise ou um acting out Para muitas instituições, o grande objetivo é que não existam problemas e que os jovens se portem ”bem”. Em contexto terapêutico, a ideia não é que os jovens internalizem e reprimam o seu sofrimento e angústia, mas sim que expressem a sua dor mental, a fim de ser elaborada.

PRETENDE-SE QUE, AO LONGO DA INSTITUCIONALIZAÇÃO, SEJA POSSÍVEL AO JOVEM REPARAR OS PROCESSOS INTERNOS POTENCIADORES DE SOFRIMENTO PSÍQUICO E AS CONSEQUENTES DIFICULDADES NA RELAÇÃO COM A REALIDADE” • Promoção da autonomia Toda a intervenção, desde o primeiro dia, deve ser orientada para a promoção da autonomia, quer ao nível das dimensões funcionais quer ao nível emocional. A participação efetiva dos jovens em todas as dimensões da sua vida é um fator crítico, sendo que a autonomia, para ser um processo de desenvolvimento, tem de ser uma conquista, um risco e um ganho maturativo, que implica o sentido e o exercício da responsabilidade. O processo de autonomização não pode ser levado a cabo em modo de pronto-a-vestir, tem de ser desenvolvido em modo de alfaiate, ou seja, feito à medida de cada um. Só assim se conquista um equilíbrio entre as capacidades e necessidades de cada jovem, numa relação direta entre a liberdade e a responsabilidade. • Promoção cultural (acesso ao mundo simbólico) A cultura é importante na vida do ser humano, quer quando este é influenciado pela cultura quer quando as suas transformações são contribuições para a produção da cultura.

A cultura promove a assimilação, o desenvolvimento e a adequação do ser. Possibilita a existência de estímulos para transformar aquilo que é a sua narrativa pessoal, nos diferentes períodos de desenvolvimento. Permite também uma melhor integração em grupos com valores diferentes e a correspondente oportunidade de mobilidade social. • Educação para uma cidadania ativa Tem como objetivo central proporcionar a construção da identidade e o desenvolvimento da consciência cívica dos adolescentes. Mas a cidadania não se deve resumir a uma soma de direitos ou deveres. Pelo contrário, deve promover a implicação pessoal na construção da sociedade. Muitos dos jovens acolhidos são provenientes de famílias que vivem em ciclos de exclusão social, numa relação de dependência de serviços e apoios sociais, como protegidos da polis. O que se pretende é permitir a estes jovens o acesso a uma cidadania ativa, plena de direitos e responsabilidades, 91

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| ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL |

NA GENERALIDADE, OS ADOLESCENTES ACOLHIDOS INSTITUCIONALMENTE TIVERAM VÍNCULOS INSEGUROS E PATOLÓGICOS, PAUTADOS POR SUCESSIVOS ABANDONOS, DESENVOLVENDO POR ISSO UMA DESCONFIANÇA ESTRUTURAL EM RELAÇÃO AO OUTRO” com consciência cívica e política, ou seja, possibilitar que estes se afirmem como cidadãos da polis. NOTA FINAL Todas as crianças e jovens têm direito a uma família, pelo que o objetivo primário do acolhimento institucional é ser instrumental na concretização dos projetos de vida em contexto familiar (biológica, alargada, confiança a pessoa idónea, adoção, apadrinhamento civil, ou qualquer outra modalidade legal que venha a ser desenvolvida). Considerando a institucionalização sem critério um maltrato, cada dia passado em acolhimento institucional sem necessidade é uma violência para a criança ou jovem, que devemos combater com toda a nossa capacidade. Assim sendo, um dos indicadores de uma intervenção de qualidade deve ser o tempo que a criança se encontra acolhida. No entanto, nem todas as crianças ou jovens (sobretudo a partir dos 12 anos) têm condições que permitam o acesso a uma família. Esse facto implica

que, quando se esgotam todas as possibilidades de a criança concretizar o seu projeto de vida em contexto familiar, esta deve ter acesso a uma resposta residencial promotora de autonomia, para que um dia mais tarde tenha capacidade para poder viver de forma adequada, autonomamente, e para poder constituir a sua própria família, se for esse o seu desejo. Neste caso, o tempo de permanência em resposta de acolhimento residencial não pode ser um critério de qualidade. Nestas situações, devem ser avaliadas as competências pessoais, sociais e de autonomia com que o jovem se emancipa, quebrando um ciclo de exclusão e dependência, podendo viver uma vida plena de cidadania e dignidade. Não se pode somar a uma vida de abandonos mais uma rutura, provocada por uma mudança de instituição, promovida por um sistema de acolhimento desajustado e que se recusa a ajustar-se às necessidades reais destes jovens. A população que acolhemos é de adolescentes que, em regra, têm multiproblemáticas associadas

(consumo de substâncias psicoativas, absentismo escolar estrutural, psicopatologia, práticas de ilícitos, comportamentos violentos, falta de limites, padrões morais pervertidos, etc.) e ainda uma patologia do vínculo. Por isso não confiam no outro (desconfiança primária), muito menos em adultos que pretendem uma intervenção que permita o desenvolvimento de “arranjos carateriais”. A primeira fase da nossa intervenção é a contenção emocional (e, em muitas situações, física), que é bastante difícil e violenta. Nesta etapa, os jovens procuram reafirmar a sua convicção de que estes adultos também vão desistir deles ou ser incapazes de tolerar (que mais não é do que um mecanismo de defesa). Quando conseguimos aguentar o embate, começa um período de ambivalência, no qual os jovens confiam no adulto e procuram relação em alguns momentos e noutros não confiam e atacam o vínculo. Esta fase da ambivalência é crítica, porque os jovens não suportam a inquietude e promovem o ataque ao vínculo, de forma a confirmar a sua ideia de que os adultos vão desistir deles. Por fim, quando conseguimos desenvolver uma relação baseada na confiança, podemos finalmente promover a transformação interna – e o crescimento mental –, alicerçada numa motivação real do jovem e alimentada pela esperança promovida pela relação. Porém, em norma, é

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nesta fase que conseguimos o encaminhamento institucional [no caso dos jovens para os quais não existem condições de (re)integração familiar]. Em regra, esta mudança é desastrosa no equilíbrio emocional dos jovens, porque, na prática, vem reafirmar o enunciado anterior: estes adultos também vão desistir de mim! Para muitos jovens, o acolhimento institucional é a última malha de oportunidade entre um mundo de exclusão e uma vida com dignidade. O acolhimento institucional de adolescentes é muito complexo e, em todas as sociedades, é um fator crítico, sendo que não existe um livro de receitas. Trata-se de uma questão muito violenta também para as instituições e para os seus profissionais porque serão inevitavelmente o recetáculo do sofrimento psíquico destes jovens. Esta dificuldade deve constituir um estímulo para todos nos desafiarmos a procurar soluções. Desejamos que as pistas enunciadas neste artigo possam contribuir positivamente para a reflexão sobre o acolhimento institucional e seus modelos.

COM A EDUCAÇÃO PARA UMA CIDADANIA ATIVA, PRETENDE-SE PERMITIR A ESTES JOVENS O ACESSO A UMA CIDADANIA PLENA DE DIREITOS E RESPONSABILIDADES, COM CONSCIÊNCIA CÍVICA E POLÍTICA”

BIBLIOGRAFIA BION, W.R. – O Aprender com a Experiência. Imago Editora, 1991. BION, W.R. – Experiences in Groups and Other Papers. Londres: Tavistock publications, 1961. BION, W.R. – Transformações – Do aprendizado ao crescimento. Imago Editora, 2004. CASA PIA DE LISBOA – Acolhimento Terapêutico – Pistas de intervenção para profissionais. Lisboa: Casa Pia de Lisboa, 2011. CYRULNIK, B. – Resiliência – Essa inaudita capacidade de construção humana. Instituto Piaget, 2001 (Horizontes Pedagógicos). CYRULNIK, B. – Uma Infelicidade Maravilhosa – Vencer os fracassos da infância. 2001. DIAS, C.A. – Costurando as Linhas da Psicopatologia Borderland. Climepsi Editores, 2004. FERREIRA, T. – Em Defesa da Criança – Teoria e prática psicanalítica da infância. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. FLEMING, M. – Dor sem Nome – Pensar o sofrimento. Edições Afrontamento, 2003. FLEMING, M. – Entre o Medo e o Desejo de Crescer – Psicologia da adolescência. Edições Afrontamento, 2005. MATOS, A.C. – Adolescência. Lisboa: Climepsi Editores, 2002. MATOS, A.C. – O Desespero. Lisboa: Climepsi Editores, 2002. “Podemos Falar – Reflexões sobre a promoção e proteção de crianças e jovens em perigo” [online]. Lisboa: Casa da Alameda, 2006 (nº 1). Disponível em http://casaalamedapodemosfalar.blogspot.pt/. “Podemos Falar – Reflexões sobre a promoção e proteção de crianças e jovens em perigo” [online]. Lisboa: Casa da Alameda, 2007 (nº 2). Disponível em http://casaalamedapodemosfalar.blogspot.pt/. “Podemos Falar – Reflexões sobre a promoção e proteção de crianças e jovens em perigo” [online]. Lisboa: Casa da Alameda, 2009 (nº 5). Disponível em http://casaalamedapodemosfalar.blogspot.pt/. STRECHT, P. – Preciso de Ti – Perturbações psicossociais em crianças e adolescentes. Lisboa: Assírio & Alvim, 1999. ZIMERMAN, D.E. – Bion – Da teoria à prática clínica. Artmed Editora, 2004.

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LISBOA

UMA CIDADE PARA AS CRIANÇAS A infância carateriza-se por uma dupla exclusão, que se revela na sua invisibilidade no âmbito das políticas públicas e no facto de a sua voz e vez estarem ausentes dos espaços públicos de decisão da vida coletiva. O Grupo de Trabalho para a Área das Crianças na Cidade de Lisboa (GTAC) foi constituído com o objetivo de estabelecer as bases promotoras da divulgação dos Direitos da Criança e a sua participação na vida pública no âmbito municipal. Texto de Catarina Tomás, Clara Castilho, Cristina Gonçalves, Jaime Santos, Maria João Malho, Margarida Medina Martins [MEMBROS DO GRUPO DE TRABALHO PARA A ÁREA DAS CRIANÇAS NA CIDADE DE LISBOA_REDE SOCIAL DE LISBOA]

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APRESENTAÇÃO Carta Estratégica para as Crianças (CEC) – aprovada a 12 de março de 2014 em reunião plenária da Rede Social de Lisboa – é um documento que contratualiza e afirma políticas para as crianças, na tentativa de criar condições na “consensualização de princípios, normas e procedimentos”1 para a efetivação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) de acordo com a Carta para a Intervenção Social na cidade.

A

HISTÓRIA Em abril de 2009 foi criado um grupo alargado de trabalho, constituído por 21 instituições públicas e privadas, com intervenção direta ou indireta junto das crianças e jovens. Deste, surgiu o Grupo de Trabalho para a Área das Crianças (GTAC), agora mais reduzido e com a responsabilidade de elaborar uma proposta estratégica de cidade para as crianças em Lisboa. Reunindo periodicamente ao longo de três anos, o grupo começou por debater a terminologia a adotar no grupo, no sentido de harmonizar o/s significado/s da mesma e a adoptar/construir uma linguagem comum, tendo sido produzido um glossário. A necessidade desta primeira fase de trabalho deveu-se ao facto de quer as entidades quer os profissionais abordarem a criança

de uma forma fragmentada, devido às suas diferentes áreas de intervenção/especialidade. Esta visão estratégica de cidade procura considerar as crianças na sua globalidade, ultrapassando conceções fraturadas. O GTAC entende o lugar e papel das crianças a partir de todas as suas dimensões: individuais, políticas, sociais, educativas, jurídicas e culturais. Para a efetivação deste trabalho houve necessidade de subdividir o grupo em subgrupos temáticos, distribuídos por áreas de conhecimento, de forma a promover espaços de debate e discussão sob diferentes ângulos de visão e evitar assim conceções divergentes, mantendo a criança sempre no centro da reflexão.

tize na cidade, de acordo com a realidade e com os critérios de pertinência e exequibilidade da sua efetivação. MEDIDAS OPERACIONAIS Para a efetivação da componente prática e operacional da Carta Estratégica para as Crianças prevê-se um conjunto de ações, agregadas em quatro eixos de trabalho: a) Eixo da sensibilização e divulgação dos Direitos das Crianças e dos Jovens, articulando um “Plano de Sensibilização dos Direitos da Criança” e práticas de “Vida Saudável”; b) Eixo da educação e formação para “Animadores de Recreio” e funcionários/as em espaços escolares, para o desenvolvimento de mecanismos de participação

O GRUPO DE TRABALHO PARA A ÁREA DAS CRIANÇAS NA CIDADE DE LISBOA ENTENDE O LUGAR E PAPEL DAS CRIANÇAS A PARTIR DE TODAS AS SUAS DIMENSÕES: INDIVIDUAIS, POLÍTICAS, SOCIAIS, EDUCATIVAS, JURÍDICAS E CULTURAIS” MISSÃO A proposta, agora aprovada em sede do Conselho Local de Ação Social de Lisboa (CLAS-Lx), contempla a constituição de um grupo de missão que terá a tarefa de coordenar, criar espaços de debate e produzir propostas e recomendações para que a CDC se afirme e concre-

no âmbito da “Mediação Escolar”, para um “Programa de Apoio às Competências Parentais” e para reforçar a importância de conhecer e efetivar os Direitos da Criança no âmbito da “Proteção na Cidade”; c) Eixo da participação na vida da cidade, promovendo o “Direito ao tempo a ser criança

1. Cf. Perspetivas para 2014/Plano de Ação 2014.

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O GRUPO DE MISSÃO TERÁ A TAREFA DE COORDENAR, CRIAR ESPAÇOS DE DEBATE E PRODUZIR PROPOSTAS E RECOMENDAÇÕES PARA QUE A CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA SE AFIRME E CONCRETIZE NA CIDADE DE LISBOA” DIREITO a brincar

REABILITAR e dar mais utilização aos espaços municipais

em Lisboa”, transformando a “Escola como Espaço Aberto” e reabilitando espaços municipais em “Espaço Jovem”; d) Eixo da investigação, avaliação e monitorização, com vista à criação da “Plataforma de Conhecimento dos Direitos da Criança e do Jovem da Cidade de Lisboa”, assim como ao conhecimento da visão das crianças e jovens sobre os seus direitos, desenvolvendo a ação designada: “Os direitos das crianças e dos jovens sentidos por eles próprios”. O Grupo de Trabalho para a Área das Crianças na Cidade de Lisboa congratula-se com o facto de a Rede Social de Lisboa ter apoiado, ao longo dos anos, a elaboração da Carta Estratégica para as Crianças, agora espelhada na aprovação em plenário deste documento que, apesar do tempo que levou a concretizar, não deixa de manifestar a importância do debate necessário em torno do futuro, do bem-estar e da cidadania plena da infância.

BIBLIOGRAFIA SARMENTO, Manuel; FERNANDES, Natália; TOMÁS, Catarina – “Políticas Públicas e Participação Infantil”. Revista Educação, Sociedade & Culturas. Cidadanias, género e infância. Abordagens pluridisciplinares. ISSN 0872-7643. Vol. 25 (2007), pp. 183-206.

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AS ARTES CIRCENSES promovem a INCLUSÃO SOCIAL Texto da equipa do Chapitô [CRIAÇÃO COLETIVA, PERMANENTEMENTE INSPIRADA NA VIDA E NA OBRA DE TERESA RICOU E DAS(OS) QUE COM ELA TÊM PARTILHADO UMA VISÃO DE MUNDO MAIS JUSTO E SOLIDÁRIO ATRAVÉS DAS ARTES, NUMA TENTATIVA DE CONTRIBUIR PARA UMA SOCIEDADE MAIS EQUITATIVA]

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Detentor de um know-how único no campo da ação socioeducativa (inclusão social através das artes circenses) e da formação, o Chapitô trabalha para alargar a criação de valor social e cultural. O projeto denominado “Mala Mágica” é um exemplo desse esforço.

Portuguesa das ONGD). Pela obra desenvolvida, o Chapitô é declarado de “Manifesto Interesse Cultural”, pela Secretaria de Estado da Cultura, desde 1987, e de “Superior Interesse Social” pelos Ministérios das Finanças e do Trabalho e Solidariedade Social, desde 2000. Constitui-se ainda como instituição enquadrada pela lei do mecenato social e cultural. É uma das instituições que mais se destaca no novo paradigma de contrato social emergente, tendo recebido o prémio Cooperação e Solidariedade de Economia Social em 2012, atribuído pela CASES (Cooperativa António Sérgio para a Economia Social) e, em 2009, o prémio Gulbenkian de Beneficência. O Chapitô constituiu uma rede de parcerias vastas e diversificadas que incluem o Estado (Ministério da Justiça, Ministério da Educação, Secretaria de Estado da Cultura, Ministério da Solidariedade

S

ituado na Costa do Castelo, em Lisboa, o Chapitô é um espaço e um projeto transdisciplinar onde se desenvolvem atividades em três áreas distintas em permanente articulação: ação social, formação e cultura. Com uma trajetória institucional de mais de trinta anos, o Chapitô perfila-se como uma instituição relevante na história da cidade e do país, convocando os cidadãos para uma participação cívica esclarecida sustentada nas artes (e nas artes circenses como matriz) e firmemente comprometida com os princípios da inclusão, da solidariedade, da justiça e da equidade social. Neste artigo desenvolve-se a abordagem da inclusão pela arte enquanto campus epistémico e matricial de toda a ação do Chapitô. Refere-se o projeto “Mala Mágica” (recentemente selecionado pelo Programa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão, da Fundação Calouste Gulbenkian) como exemplo paradigmático desse sentido primeiro e permanente. O CHAPITÔ E A SUA MISSÃO O Chapitô, enquanto modelo organizacional, tem o estatuto de IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social), desde 1987, e é uma ONGD (Organização Não Governamental para o Desenvolvimento), desde 1991 (pertencente à Plataforma

Social, Ministério da Defesa Nacional – Marinha); organizações internacionais (FIC – Federação Iberoamericana de Circo, FEDEC – Federação Europeia das Escolas de Circo); as autarquias (Câmara Municipal de Lisboa, Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Junta de Freguesia de Campolide); a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa; a Real Embaixada da Noruega; organismos e plataformas (EPIS – Empresários para a Inclusão Social, CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género); associações (Entrajuda, Entremundos) e fundações (Fundação Calouste Gulbenkian). O modelo de economia social que o Chapitô prossegue reivindica esta matriz de parcerias com o Estado, com a sociedade civil, com os empresários,

Alunos do Chapitô numa intervenção de animação com idosos

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com as forças vivas, empoderando e dando sentido a uma política de responsabilidade social. A rede de parcerias decorre também das candidaturas a projetos e programas: • Projeto “Denominadores Comuns” – Programa Cidadania Ativa – Fundação Calouste Gulbenkian e EEA Grants • Projeto “Mala Mágica” – Programa PARTIS – Fundação Calouste Gulbenkian • Projeto “Artes para a Inclusão Social” – Fundos Bilaterais – EEA Grants • Projeto “Oficinas Comunitárias” – Programa BIPZIP – Câmara Municipal de Lisboa • Projeto “Comunidades” – Programa BIPZIP – Câmara Municipal de Lisboa • Projeto “Rosa dos Ventos: 1ª viagem” – DGARTES e EEA Grants • Fundo de Emergência Social da Câmara Municipal de Lisboa • Projeto “Trampolim” – EDP Solidária 2014 • CEPSA – Valor Social 2014 • Banco de Inovação Social – Santa Casa da Misericórdia de Lisboa • Fundo de Socorro Social – Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social • Prémio Maria José Nogueira Pinto em Responsabilidade Social 2014 • Prémio Mulher Ativa 2014 • Prémio Manuel da Mota Detentor de um know-how único no campo da ação socioeducativa (inclusão social através das artes circenses) e da formação, o Chapitô trabalha para alargar a criação de valor social e cultural, sendo esta conjugação que explica a persistente longevidade do projeto e que o torna um exemplo único de referência nacional e europeia. O Chapitô é, eventualmente, mais conhecido pela sua ação no campo das artes do espetáculo e menos divulgado na área social – compreende-se esta situação por um conjunto de variáveis que decorrem da própria natureza da intervenção e dos sujeitos-alvo, exigindo parcimónia e bom senso para proteger o direito à privacidade e negar o sensacionalismo informativo. Mas a justiça social e o compromisso com os mais deserdados (económica, cultural e social100 6 098-105.indd 100

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O MODELO DE ECONOMIA SOCIAL QUE O CHAPITÔ PROSSEGUE REIVINDICA ESTA MATRIZ DE PARCERIAS COM O ESTADO, COM A SOCIEDADE CIVIL, COM OS EMPRESÁRIOS, COM AS FORÇAS VIVAS, EMPODERANDO E DANDO SENTIDO A UMA POLÍTICA DE RESPONSABILIDADE SOCIAL mente) fazem parte do código genético do Chapitô. Falamos de uma missão social fundadora, que já vem da pré-história do Chapitô. É uma proposta humanista e centrada nas artes como instrumento de desenvolvimento pessoal e social. Invocamos um novo paradigma de intervenção sustentado e projetado em quatro princípios estruturantes: • Toda a atenção e total dedicação são centradas em pessoas muito especiais. Especiais porque incomuns e marcadas pelo estigma da fragilidade da relação de pertença com o mundo e com o outro. Com estas pessoas, construímos narrativas de positividade, conjugando horizontes onde antes só muros se erguiam. • O projeto Chapitô tem um caráter transgeracional, alternativo, cosmopolita, inovador, integrado, inclusivo. É a condição da sua sustentabilidade e pertinência política, invocando novas formas de fazer e de pensar a cidade, os cidadãos e a cidadania. O diálogo intergeracional é a base da democracia e da sustentabilidade política e social. No Chapitô, mais do que um objetivo, esse diálogo e essa prática de cooperação entre gerações fecunda e projeta todo o nosso trabalho. • Toda a nossa inteligência e energia se direcionam para inventar maneiras de enganar destinos (mal)“marcados”, melhorar a sorte de cidadãos em exclusão e intervir no campo da ação social, cultural e educativa (educação pela arte), através da animação e da formação. Acreditamos que o desenvolvimento de capacidades de expressão e comunicação contribui para reduzir a marginalidade e potenciar a 101 6 098-105.indd 101

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ACREDITAMOS QUE O DESENVOLVIMENTO DE CAPACIDADES DE EXPRESSÃO E COMUNICAÇÃO CONTRIBUI PARA REDUZIR A MARGINALIDADE E POTENCIAR A VONTADE DOS SUJEITOS PARA PROCURAREM NOVOS RUMOS SOCIAIS COM SENTIDO PESSOAL”

vontade dos sujeitos para procurarem novos rumos sociais com sentido pessoal. • Somos um recurso educativo e socioafetivo. Desenvolvemos uma praxis de vinculação, na educação, na ação social, nas artes, baseada e fecundada pelo diálogo, pela negociação, pela significância pessoal dos percursos e pela dimensão social das

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AS ARTES E OS ARTISTAS PUXAM-NOS SEMPRE PARA ESSE LUGAR DE INQUIETUDE QUE É O ESPAÇO DO PARADOXAL, DO IMPREVISTO, DA ZONA DE ‘NÃO CONFORTO’” marca de sustentabilidade; lugares de construção social que convocam falas diferentes e confrontam visões distintas; designs ousados para a produção de objetos culturais que questionam o mundo; e um tempo que quer instituir uma outra medida para o (com)viver que elege a solidariedade e a cooperação como parâmetros de uma nova cidadania.

vivências. É esta dimensão do vínculo, da pertença, de nos sentirmos acolhidos e comuns, que convoca a participação e induz a inclusão. Estes princípios sustentam uma intervenção social, cultural, artística e cívica inovadora, reivindicando uma outra “ecologia” e uma outra “economia” para a criação: espaços de invenção com uma

DAS ARTES COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO As artes constituem os melhores recursos de que nós, a humanidade, dispomos. E de entre as artes, as artes e ofícios do espetáculo são, por excelência, as artes comunicativas, interativas, muitas vezes chamadas “artes vivas” (consequentemente “efémeras”). São artes de ação comunicacional e de intervenção. Em particular as artes circenses, porque são ancestrais e as suas linguagens são múltiplas e universais. O clímax circense é propício a aberturas de espírito e de sensibilidade. É um desafio à corporalidade e às emoções em conjunção com o intelecto. As artes e os artistas puxam-nos sempre para esse lugar de inquietude que é o espaço do paradoxal, do imprevisto, da zona de “não conforto”. Surpreendem-nos, desafiam-nos, fazem-nos sonhar e imaginar, fazem-nos desejar, convocam-nos para a alteridade. As artes são uma espécie de “elixir mágico”, percebidas muitas vezes como uma coisa “meio divina”. A experiência da fruição artística reivindica uma tensão dialógica que exige muito rigor e criatividade, muita inteligência relacional para construir vínculos, pertenças e linguagens comuns, ainda que múltiplas. No Chapitô sempre nos construímos e crescemos com esta fecunda ambiguidade. E desconstruímos, em permanência, o vedetismo e o hermetismo que, por vezes, distanciam as artes do mundo. No Chapitô, 103

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ESSA CONDIÇÃO ‘SALVÍFICA’ DAS ARTES TEM PROPORCIONADO A MUITOS JOVENS EM PERCURSOS DE RISCO E DE EXCLUSÃO A POSSIBILIDADE DE REINVENTAREM DESTINOS E MELHORAREM A CIDADANIA” a arte e o espetáculo são palcos de muitos atores e autores. E essa condição “salvífica” das artes tem proporcionado a muitos jovens em percursos de risco e de exclusão a possibilidade de reinventarem destinos e melhorarem a cidadania. A arte é um bem que tem de manter acesso aberto a todos e deverá estar ao serviço da inclusão social. Por isso mesmo, nem por um momento descuramos esta missão de acordar a sociedade para a dimensão (re)generadora e geradora das artes. Para a seriedade de revelar “luminosidades” em muitas vidas marcadas pela sombra. Neste processo o tempo não se mede em meses e anos. Aqui o tempo mede-se em humanidade. O PROJETO “MALA MÁGICA” O projeto Chapitô, na sua vertente de ação e reinserção social, foi candidato ao Programa PARTIS – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, da responsabilidade da Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido um dos 17 finalistas selecionados para financiamento, num universo de mais de duas centenas de candidaturas. O projeto que o Chapitô candidatou – e que o Júri da Fundação Calouste Gulbenkian selecionou – denominado “Mala Mágica – Artes Circenses para a Cidadania”, assume a força educativa e terapêutica do circo como arte transdisciplinar e inclusiva, emergente e comunicacional, rigorosa e desafiadora. O circo que convoca para a superação e para o risco socialmente reconhecido. O circo como espetáculo total reivindicando familiaridades. O circo como espaço dialógico instituindo em permanência uma heteronomia acolhedora. O projeto “Mala Mágica” desenvolve-se com os jovens a cumprirem medidas tutelares educativas

em dois centros do Ministério da Justiça: Centro Educativo da Bela Vista e Centro Educativo Navarro de Paiva. Estes jovens são identificados e reconhecem-se na dimensão da sombra: incapacidades, insucessos, associabilidades. Deste território de anomia e dependências queremos fazer com eles o percurso da autonomia. Para isso, fazemos com eles aprendizagens novas: o circo é um currículo de banda larga onde podemos sempre ter sucesso. Este empowerment é virtuoso: é um revelador de luminosidades. Desoculta faces, convoca positividades, descobre competências. O projeto “Mala Mágica” assegura, com o grupo-alvo, uma rotina permanente, através de ateliers onde se desenvolvem competências técnicas, artísticas, expressivas e comunicacionais, sustentadas na matriz das artes circenses. São exercícios de recriação de mundos e de cada um no mundo, num ambiente lúdico mas rigoroso, mágico mas possível, intenso mas (con)sentido, íntimo mas plural. E sempre partilhado por muitos palcos (bairros, centros de dia, centros sociais, escolas) para poder ser circo. Por isso, o Chapitô instituiu uma rede de parcerias onde os jovens dos centros educativos têm a

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Teresa Ricou, mentora e diretora do projeto Chapitô

oportunidade de construir relações sociais marcadas pela integridade do encontro humano, partilhando as competências técnicas e artísticas que adquirem nos ateliers do projeto e assumindo papéis que lhes proporcionam e reforçam vivências cívicas de qualidade. As artes e a cultura, as mundivivências fecundas, a comunicação e a socialização, o compromisso solidário e a responsabilidade ética e cívica, percursos experienciados pelos jovens que participam no “Mala Mágica”, podem nem sempre ser suficientes para contrariar histórias de vida com tanta “sombra” precoce, mas constroem narrativas nessas histórias de vida que são janelas de esperança e, sobretudo, instrumentos para afrontar e vencer os medos e os obstáculos. ESPREITANDO FUTUROS NAS ESQUINAS DO PRESENTE A relação do Chapitô com o futuro é obtusa. O Chapitô sempre andou muito envolvido no presente e nos seus sarilhos. Sempre tratou o presente como base das pontes para o futuro. Anda de volta de um futuro que está incorporado no presente. Andamos a ver como havemos de engendrar os futuros

mais avançados. Aceitamos ajudas e contributos. Somos uma casa de cultura onde todos têm livre acesso, porque entendemos que as artes são um bem que a todos deve servir. E é evidente que numa casa destas, com tal profusão, na nossa tensão entre sermos instituição e, simultaneamente, sermos projeto em construção, temos horizontes para novas etapas, nomeadamente na extensão das nossas sinergias com a Justiça e no desencadeamento de um novo polo do Chapitô, visando a formação em artes circenses de nível superior, para ilustrar dois exemplos do visionamento desse futuro desejável, ainda não concretizado e a requerer a continuidade dos nossos esforços. E, como em todas as instituições, o futuro também passa por treinarmos uma nova geração de dirigentes e de mentores. Uma organização como o Chapitô só pode ser inventada e reinventada por gente fora de série. E ao longo dos anos, nós temos sido uma oficina e um laboratório de gente fora de série. E o treino é um princípio sagrado nesta casa – estamos sempre a ensaiar outros possíveis modelos. Já agora, se futuro for entendido como destino, é bom lembrar que o Chapitô mora no lugar do Fado. 105

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PARTILHA DE SABERES SABORES

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Texto da equipa do projeto “Partilha de Saberes e Sabores” [scml_centro de acolhimento infantil do bairro da boavista]

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ÁSCOA O processo de aprendizagem e conhecimento é um processo dinâmico, que se constrói ao longo de toda a vida. A família é o espaço privilegiado para o desenvolvimento da personalidade e da afetividade da criança, como repositório de valores essenciais, sendo um veículo transmissor de cultura. Em nosso entender, devemos cooperar, apoiar e estimular o envolvimento pleno das funções específicas das famílias. Dado que a família é um contexto de socialização por excelência, queremos que o nosso trabalho contribua, positivamente, na formação de uma comunidade educativa, empenhada em maximizar as potencialidades das crianças. É nossa intenção continuar a assegurar a articulação entre o estabelecimento educativo e as famílias, no sentido de encontrar, diariamente, respostas mais adequadas. Neste contexto, o Centro de Acolhimento Infantil (CAI) do Bairro da Boavista assume, no trabalho desenvolvido, uma filosofia de partilha com as famílias. Como resultado, são planeadas frequentemente atividades conjuntas, de modo a promover e adequar as competências parentais das famílias. Ao longo desses momentos de convívio foram realizados vários lanches partilhados, em que se verificou que as famílias recorrem, sistematicamente, ao consumo de produtos alimentares já confecionados, que se revelam mais dispendiosos e de menor qualidade nutritiva. Constatou-se que, para além de algumas famílias não saberem cozinhar, também, culturalmente, não estão sensibilizadas para gastar parte do seu tempo em atividades de culinária. É-lhes mais fácil ir comprar produtos já confecionados do que cozinharem a sua alimentação. “Participei em quatro dos cinco dias de Atelier de Culinária, ficando muito agradada com a primeira experiência (1º dia). Gostei muito de participar. Para além de partilhar conhecimentos, a convivência com as mães foi muito agradável e gratificante. Aprendi até algumas técnicas culinárias que não conhecia e já tive a oportunidade de as pôr em prática! Experiência com certeza a repetir quando houver oportunidade!” Sara Carvalho, mãe do Diogo – sala dos 3 anos

Assim surge no CAI do Bairro da Boavista o projeto “Partilha de Saberes e Sabores”, que tem como objetivo valorizar as capacidades e a autoestima das famílias através da partilha de experiências e saberes, maximizando a qualidade das interações entre as famílias e o estabelecimento.

As iguarias confecionadas nos ateliers

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Com as mãos na massa…

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“Eu participei nos ateliers que o CAI da Boavista propôs para mães e pais e gostei muito, até porque deu para conviver com outros pais e com as educadoras. Aprendemos a fazer receitas e técnicas que, se calhar, não sabíamos fazer. A meu ver, é uma iniciativa que se deveria voltar a repetir, pela experiência e também porque, como estou desempregada, é uma forma de passar o tempo e de me distrair.” Andreia Gonçalves, mãe da Núria Nunes – sala dos 2 anos 107

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A equipa do CAI programou a ementa (doces, salgados e bebidas) e facultou as receitas a todos os participantes. As famílias, entusiasmadas, também quiseram trazer receitas, surgindo assim uma partilha espontânea de saberes e sabores.

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Trabalho e diversão nos ateliers de culinária

Arte na culinária

Foi escolhida a época da Páscoa para iniciar a primeira atividade do projeto, porque esta data é uma festa que nos leva à reflexão e ao significado do renascimento, à renovação. Pretende-se assim contribuir para uma melhor estruturação familiar, passando pela consciencialização da importância da confeção dos alimentos em casa. Durante uma semana, as famílias foram convidadas, com inscrição prévia, a participarem em ateliers de culinária para confeção de iguarias a serem partilhadas no lanche realizado a 22 de março. “A semana de Atelier de Culinária foi muito didática para os pais e para as educadoras. Foi um convívio para todos os pais que, no meu ponto de vista, se divertiram muito e interagimos uns com os outros. Eu, pessoalmente, de certa maneira aprendi com todas as mães e trocámos ideias sobre todas as receitas elaboradas. O dia da primavera foi muito giro para todas as crianças e eu também gostei.” Noémia Lourenço, mãe do Hélder – sala dos 2 anos

“A minha experiência do Atelier de Culinária marcou-me muito pela positiva, porque houve muita partilha entre as mães e educadoras. Trocaram-se receitas e formas de confecionar bolos e salgados, além do próprio convívio. A festa da primavera foi muito divertida. Pudemos partilhar com todas as famílias as nossas iguarias e dá-las a provar aos nossos filhos. Considero muito importante estes ateliers, pela partilha e convívio.” Pauliana Silvestre, mãe do Santiago – sala dos 12 meses A semana de atelier contou com um elevado número de participantes e resultou num convívio muito saudável e educativo, tendo as famílias manifestado interesse em dar continuidade a estas ações. “Gostei de participar no Atelier de Culinária e de poder contribuir para a realização do lanche dos meninos. Gostava que houvesse mais, para poder aprender mais receitas e tirar ideias.” Cátia Chenque, mãe da Leonor – sala dos 2 anos Na continuidade deste projeto, foi lançada a proposta de confecionar um lanche saudável e divertido no Dia Mundial da Criança.

Colaboradoras do projeto “Partilha de Saberes e Sabores”: Maria Alice Amorim, Ana Maria Rocha, Maria José Alves, Marta Campos, Maria João Furtado, Maria José Cerieiro, Madalena Gomes, Paula Correia, Patrícia Frutuoso, Ana Paula Figueiredo, Maria Emília Brás, Lucelinda Costa, Mónica Oliveira, Helena Gonçalves.

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Prémios Santa Casa Neurociências

Distinções são “oportunidade única” e “mais-valia”

Ana Cristina Rego e António Salgado são os rostos das equipas vencedoras dos Prémios Santa Casa Neurociências. Foram distinguidos, respetivamente, com o Prémio Mantero Belard – atribuído pela Misericórdia de Lisboa a projetos de investigação na área das doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento – e com o Prémio Melo e Castro – concedido a investigações no domínio das lesões vertebromedulares. Os investigadores falam sobre os projetos premiados e refletem acerca do panorama nacional e internacional da investigação e desenvolvimento em ciência. [ENTREVISTA REALIZADA PELO GABINETE DE NEUROCIÊNCIAS_SCML]

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eceberam recentemente os Prémios Santa Casa Neurociências. Qual o objetivo final, impacte e perspetivas dos projetos premiados? Ana Cristina Rego (A.C.R.) – O grupo de investigação que coordeno no Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra tem vindo a explorar os processos através dos quais as células nervosas morrem em situações de toxicidade associadas às doenças neurodegenerativas. Para tal, utilizamos modelos celulares e animais das doenças de Alzheimer, Parkinson e Huntington, e células sanguíneas humanas, em estreita colaboração com o Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra. O projeto premiado tem uma forte componente translacional e reúne uma equipa multidisciplinar do CNC e do ICNAS/IBILI (ambos da Universidade de Coimbra). O projeto pretende ajudar a esclarecer os mecanismos bioquímicos que estão na base de uma importante doença genética neurodegenerativa: a doença de Huntington. Os doentes apresentam alterações motoras involuntárias. Anteriormente, a doença era conhecida como “Coreia de Huntington”, em que “coreia” significa bailado ou dança e “Huntington” provém do nome George Huntington, o médico que descreveu esta doença pela primeira vez, de forma mais completa. Infelizmente, a doença de Huntington não tem cura e, atualmente, há apenas alguns tratamentos sintomáticos.

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| SAÚDE |

ANTERO J. ABRUNHOSA (Equipa de Ana Cristina Rego)

Vários processos patológicos têm sido propostos para a morte das células nervosas na doença de Huntington, incluindo o stress oxidativo (associado à produção de radicais livres) e a disfunção da mitocôndria (um organelo importante porque produz grande parte da energia a nível celular). Este projeto utiliza um novo composto radiofármaco usado em PET (tomografia de emissão de positrões) para análise in vivo do stress oxidativo em cérebros de murganhos transgénicos para a doença de Huntington e em doentes de Huntington pré-sintomáticos e sintomáticos, de modo a clarificar o papel do stress oxidativo associado à disfunção mitocondrial em fases precoces desta doença neurodegenerativa. Atualmente, encontramo-nos a produzir o radiofármaco (no ICNAS) e iniciámos a análise do stress oxidativo no murganho transgénico para a doença de Huntington (no CNC). Esperamos que os resultados obtidos com o desenvolvimento do projeto nos forneçam novas pistas para uma melhor compreensão da doença e que permitam apontar caminhos para uma nova abordagem terapêutica no futuro. Por outro lado, no futuro, o novo radiofármaco poderá ser aplicado a outras doenças neurode-

generativas altamente associadas ao processo de envelhecimento, uma vez que tanto a formação de radicais livres como a disfunção mitocondrial contribuem para a morte neuronal noutras patologias do cérebro. Assim, a investigação realizada no âmbito do presente projeto servirá de base para o estudo destes processos nas doenças de Parkinson e de Alzheimer. António Salgado (A.S.) – O meu grupo de trabalho está focado no desenvolvimento de novas terapias para aplicações em doenças/lesões do sistema nervoso central. Para isso, utilizamos uma abordagem multidisciplinar que envolve o uso de células estaminais e o seu secretoma, matrizes biodegradáveis e ambientes dinâmicos para a cultura de células. O projeto que recebeu o Prémio Melo e Castro está enquadrado nesta estratégia. Tem por objetivo o desenvolvimento de novos paradigmas de regeneração em lesões vertebromedulares (LVM). Lesões deste tipo são extremamente complexas, pelo que, na nossa opinião, só com uma abordagem multidisciplinar, onde várias áreas do conhecimento são utilizadas, poder-se-ão conseguir avanços significativos. 111

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| INVESTIGAÇÃO |

ANTÓNIO SALGADO e ANA CRISTINA REGO

No caso deste projeto em particular, estamos a propor o estudo de uma terapia combinatória, que foque os principais aspetos associados à de-

A.S. – Considero que a atribuição de uma distinção com o prestígio do Prémio Melo e Castro é extremamente importante para o nosso grupo de trabalho. É um prémio para uma equipa de 14 investigadores – da qual eu sou a face mais visível – e que contou com contribuições importantes do Professor Nuno Sousa e do Doutor Nuno Silva. É, sem dúvida, uma mais-valia e, no nosso entender, simultaneamente um reconhecimento, quer pelo trabalho que temos vindo a efetuar nesta área nos últimos anos, assim

O PROJETO DISTINGUIDO COM O PRÉMIO MANTERO BELARD PRETENDE AJUDAR A ESCLARECER OS MECANISMOS BIOQUÍMICOS QUE ESTÃO NA BASE DE UMA IMPORTANTE DOENÇA GENÉTICA NEURODEGENERATIVA: A DOENÇA DE HUNTINGTON generação e futura regeneração do tecido nervoso e das células associadas a este. Esta terapia foca-se na utilização de agentes neuroprotetores nos estágios iniciais da lesão, combinados com células estaminais adultas e matrizes biodegradáveis. O objetivo é proteger ao máximo o tecido afetado através dos agentes neuroprotetores, enquanto as matrizes biodegradáveis combinadas com células estaminais adultas estimulam a regeneração. Numa primeira fase, vamos estudar esta metodologia em laboratório para, de seguida, a aplicar em modelos animais de LVM. Em que medida é que terem recebido um dos Prémios Santa Casa Neurociências, atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, influenciará os projetos? A.C.R. – A atribuição deste prémio permite que continuemos a desenvolver trabalho no âmbito da doença de Huntington. Sem este apoio, o projeto submetido ao prémio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) não poderia ser desenvolvido a curto prazo, uma vez que implica uma abordagem multidisciplinar, desde a química, com passagem pelos modelos animais e final aplicação clínica em doentes de Huntington. Trata-se de uma abordagem complexa, que requer recursos financeiros elevados.

como pelos conceitos apresentados no projeto que foi submetido. O envelope financeiro associado a este prémio vai-nos permitir explorar estratégias que consideramos inovadoras no campo das LVM e que poderão vir a estar na base de novas metodologias terapêuticas que possam vir a ser utilizadas na regeneração de lesões vertebromedulares. Qual a importância da atribuição destes prémios para a investigação científica? A.C.R. – O Prémio Mantero Belard é uma oportunidade única para os investigadores unirem esforços e formarem equipas multidisciplinares, de modo a contribuírem de forma inequívoca para o avanço científico de uma área que assume cada vez maior importância na atualidade: as doenças neurodegenerativas. Este prémio é um estímulo importante para encorajar a investigação biomédica que se realiza em Portugal, reconhecendo o trabalho desenvolvido e colmatando a falta de financiamento em áreas científicas mais específicas, como são as patologias neurológicas. A.S. – Com a criação dos Prémios Santa Casa Neurociências – e à semelhança do que acontece já em outros países –, Portugal passa a ter financiamento específico na área das neurociências. Isto é, sem dú-

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vida, uma excelente notícia para a comunidade científica portuguesa, pelas razões que passo a explicar. Em primeiro lugar, os prémios são focados em duas áreas – doenças neurodegenerativas e LVM – nas quais os progressos ao nível das terapias têm sido limitados quando se tem em conta as necessidades gerais dos pacientes afetados por elas. Deste modo, a sua atribuição poderá permitir, no futuro, não só um melhor conhecimento deste tipo de doenças (ex: doença de Parkinson, doença de Alzheimer, etc.) ou lesões (LVM), mas também o estabelecimento de terapias alternativas às que hoje se usam na clínica. Em segundo lugar, numa altura em que tem havido fortes cortes nas verbas destinadas a investigação e desenvolvimento (I&D), o estabelecimento destes prémios representa uma importante fonte alternativa de financiamento para os diferentes grupos de trabalho que estudam doenças neurodegenerativas ou LVM. Por fim, penso que, no caso particular do Prémio Melo e Castro, este galardão vai permitir a criação de mais grupos de investigação portugueses a estudar LVM de futuro, permitindo deste modo um aumento da massa crítica nesta área em Portugal.

Referiram os cortes nas verbas destinadas à investigação científica. Como analisam os cortes das bolsas atribuídas pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia efetuados no concurso de 2013? A.C.R. – Tenho pena que alunos de doutoramento e jovens doutorados com grande capacidade criativa, potencial intelectual e experiência laboratorial não tenham a possibilidade de fazer investigação e tenham de enveredar por outras áreas profissionais. Muitos têm família, e ser-lhes-á muito difícil esperar mais um ano até terem bolsas concedidas ou mesmo irem para o estrangeiro. Por outro lado, os valores financiados a nível dos projetos de investigação são relativamente baixos para a realização de projetos na área da biomedicina/clínica, o que limita a inclusão de bolsas de doutoramento ou pós-doutoramento. A.S. – Vejo com muita preocupação todos os cortes que estão a ser feitos em I&D. Uma das áreas em que mais se apostou foi na formação de mais investigadores doutorados – através da atribuição de bolsas de doutoramento –, assim como numa maior diferenciação dos que já tinham obtido o seu doutoramento – através de bolsas de pós-doutoramento. 113

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Estes cortes estão a levar a que os jovens licenciados/mestres procurem outros países para fazer o seu doutoramento. A curto prazo, isto poderá não ter muito impacte, mas a longo prazo, a situação será diferente, uma vez que a probabilidade de estes jovens investigadores regressarem é diminuta, o que poderá provocar um défice de massa crítica no país.

com equipas estrangeiras é sempre vantajosa pela partilha de conhecimento. AS - Nos últimos vinte anos houve um forte investimento na ciência em Portugal, não só ao nível da formação, mas também das infraestruturas e financiamento de projetos de investigação. Apesar de ainda estarmos atrás da média europeia no que

NUMA ALTURA EM QUE TEM HAVIDO FORTES CORTES NAS VERBAS DESTINADAS A INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, O ESTABELECIMENTO DESTES PRÉMIOS REPRESENTA UMA IMPORTANTE FONTE ALTERNATIVA DE FINANCIAMENTO [ANTÓNIO SALGADO] O mesmo acontece com os jovens doutorados e a redução nas bolsas de pós-doutoramento. Considero este caso ainda mais grave, uma vez que o país apostou na sua formação durante quatro anos, não tirando agora dividendos disso. Muitos destes jovens doutorados estão agora a emigrar para países com mais financiamento para I&D do que Portugal e que, no fundo, vão aproveitar o investimento que nós, enquanto país, fizemos neles. Na minha opinião, este tipo de estratégia não é, de todo, o mais correto e deverá ser alterado o mais rápido possível. Consideram ser necessário sair de Portugal para trabalhar em ciência ou há condições para desenvolver bom trabalho científico no país? A.C.R. – Atualmente existem em Portugal vários centros de investigação com infraestruturas atualizadas e que agregam nas suas equipas investigadores de diferentes nacionalidades, com diferentes especializações. Nalgumas áreas desenvolve-se trabalho científico altamente competitivo, não havendo necessidade de se sair de Portugal para se realizar trabalho de excelência. Noutras áreas, contudo, o equipamento e as instalações estão desatualizados e as equipas não possuem o knowhow suficiente para poderem avançar, de forma competitiva, numa determinada área de investigação, tendo necessidade de sair de Portugal para utilizar metodologias ou equipamentos que não existem cá. De qualquer forma, a colaboração

toca ao investimento feito em I&D, a verdade é que, com essa política, foi possível criar e nuclear diversas áreas de investigação de excelente qualidade. Deste modo, considero que há condições em Portugal para desenvolver trabalho científico de excelente qualidade. Contudo, vejo com muita preocupação os recentes cortes efetuados nas verbas destinadas a I&D, que poderão pôr em causa todo este esforço. Um desinvestimento nesta altura vai provocar, sem qualquer dúvida, um enorme retrocesso nos progressos efetuados nas duas últimas décadas. Como é cotada a investigação científica nacional no estrangeiro? A.C.R. – Depende muito das áreas. Na área das neurociências, que conheço melhor, há grupos de investigação com grande impacte no estrangeiro, o que se traduz pela aceitação e citação dos trabalhos científicos realizados integralmente em laboratórios nacionais, e convite de cientistas portugueses como palestrantes de encontros científicos realizados no estrangeiro. A.S. – Obviamente pode variar consoante as áreas mas, de forma geral, a investigação científica nacional tem uma excelente reputação internacional. Que importância tem a investigação na área das neurociências em Portugal? Em que nível é que

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esta se encontra no panorama da investigação internacional? A.C.R. – O centro de investigação em que trabalho, o CNC – criado pelo Prof. Doutor Arsélio Pato de Carvalho – foi pioneiro em Portugal como centro dedicado à área das neurociências, mantendo uma forte ligação com a clínica. Para além do CNC, outros centros têm, atualmente, vários grupos que trabalham em neurociências e programas doutorais nesta área, incentivando desta forma jovens cientistas a enveredarem por esta área de investigação. A.S. – Considero que as neurociências são umas das áreas de referência da ciência portuguesa. De facto, existem diversos laboratórios em Portugal com excelente reputação internacional, sendo inclusive líderes nas suas áreas de trabalho. Um desses exemplos é o domínio de investigação em neurociências do Instituto de Investigação para as Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho, e membro do laboratório associado ICVS/3B’s, local onde desenvolvo o meu trabalho e do qual fazem parte os 14 membros que compõem a equipa do projeto distinguido pelo Prémio Melo e Castro. Quais as principais dificuldades que têm encontrado como investigadores? A.C.R. – A investigação em Portugal padece de um grande mal: o financiamento. Este é sempre limitado, tendo em conta o elevado custo dos reagentes e modelos utilizados nos laboratórios de investigação científica na área da biomedicina. Manter um grupo de investigação ativo, com membros dinâmicos, empenhados e remunerados (nomeadamente através de bolsas), e que possam realizar os seus projetos de forma competitiva, requer uma preocupação constante em escrever projetos científicos inovadores e competitivos, capazes de angariar o financiamento necessário para a sua execução. No estado atual do financiamento da ciência em Portugal, tal não é fácil, mesmo para grupos de investigação como o nosso, que produz e publica de forma regular em revistas internacionais indexadas. A.S. – Em vez de dificuldades, gosto de falar de desafios. Quando um jovem investigador tenta esta-

belecer o seu grupo de trabalho, os desafios iniciais passam sempre por conseguir o primeiro financiamento – que pode vir de um projeto ou prémio de investigação – e recrutar alunos de pós-graduação. Os desafios seguintes vêm na sequência destes, ou seja, a manutenção dos níveis de financiamento, recrutamento de investigadores mais diferenciados e afirmação da qualidade do seu trabalho no panorama nacional e internacional. No caso particular de Portugal, neste momento, estes desafios são ainda maiores, nomeadamente devido aos fortes cortes que têm vindo a ser efetuados nas verbas atribuídas a I&D. Aliado a isto, a falta de estabilidade com que muitos dos jovens investigadores portugueses se deparam é o maior desafio de todos. No meu caso, todos estes desafios têm sido ultrapassados, com maior ou menor dificuldade. Para isso tenho contado com o empenho do meu grupo de trabalho, assim como com o apoio da instituição onde desenvolvo os meus trabalhos de investigação: o Instituto de Investigação para as Ciências da Vida e da Saúde (ICVS) da Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho que, simultaneamente, também é membro do laboratório associado ICVS/3B’s. Que conselhos dariam a quem pensa seguir a área da ciência em Portugal? A.C.R. – Antes de mais, é preciso ter grande motivação para o trabalho em ciência e ter ideias inovadoras. Para se fazer ciência é necessário grande criatividade e uma constante dedicação. Por isso, é importante ter uma grande dose de perseverança, grande capacidade de trabalho para múltiplas funções e capacidade de adaptação a condições de trabalho que, em muitos casos, são bastante diferentes das encontradas em laboratórios no estrangeiro. A.S. – Existem alguns conselhos gerais que dou sempre: aprender com os erros, perseguir sempre os objetivos e nunca desistir de uma boa ideia. É também essencial ir “construindo” uma boa rede de colaborações (incluindo no setor privado), ter grande disponibilidade para o trabalho, uma estratégia bem definida e capacidade de planeamento a médio/longo prazo, espírito de sacrifício e, acima de tudo, um grande gosto pela ciência e investigação. 115

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| ORTOPEDIA |

Hospital de Sant’Ana

REFERÊNCIA NO TRATAMENTO DA ESCOLIOSE IDIOPÁTICA Texto de Rui C. Domingos1, João Sarafana1, Luís Cardoso2, Estanqueiro Guarda2, J. Gomes Peres3 [1. INTERNO DO INTERNATO COMPLEMENTAR DE ORTOPEDIA E TRAUMATOLOGIA; 2. ASSISTENTE GRADUADO; 3. DIRETOR DO SERVIÇO E DIRETOR CLÍNICO_HOSPITAL ORTOPÉDICO DE SANT’ANA_SCML)

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A escoliose idiopática corresponde a uma deformidade da coluna vertebral que ocorre durante o período de crescimento e maturação do indivíduo. Embora frequente, sobretudo nas idades pediátricas, a sua etiologia é ainda incerta. A ausência de diagnóstico e tratamento atempado acarreta consequências potencialmente graves. É fundamental a sensibilização para um diagnóstico precoce.

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Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA) constitui há várias décadas uma referência nacional no tratamento da escoliose idiopática (EI), tendo acompanhado a progressiva evolução técnica e científica na sua abordagem. Para além de uma descrição geral da patologia, dos seus métodos de diagnóstico e tratamento, é objetivo dos autores demonstrar a experiência cirúrgica do Hospital Ortopédico de Sant’Ana no tratamento desta entidade clínica. A escoliose é uma doença antiga mas ainda apenas parcialmente compreendida, apesar dos grandes progressos técnico-científicos. As primeiras referências bibliográficas a deformidades da coluna datam de cerca de 4000 a.C. Em 400 a.C. Hipócrates, considerado o pai da medicina, faz uma primeira referência a esta patologia: “Há muitas variedades de curvatura da coluna, mesmo em pessoas que estão de boa saúde, pois estas acontecem por conformação natural e resultante do hábito.” Desde então, muitos foram os interessados no estudo da doença, o que levou a grandes avanços na sua definição, diagnóstico e tratamento. 117

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| ORTOPEDIA |

TENDO POR BASE A IDADE DE APRESENTAÇÃO E DE DIAGNÓSTICO DA CURVATURA, A ESCOLIOSE IDIOPÁTICA PODE SER CLASSIFICADA EM TRÊS SUBGRUPOS: INFANTIL, JUVENIL E DO ADOLESCENTE”

ESCOLIOSE corrigida por abordagem posterior

A escoliose representa uma deformidade morfológica tridimensional da coluna vertebral, definindo-se, por convenção, como uma curvatura vertebral superior a 100 (ângulo de Cobb) no plano coronal, acompanhada de diferentes graus de rotação. A escoliose apresenta uma etiologia multifatorial. Pode ser expressão de uma doença neurológica ou muscular (ex.: neurofibromatose, paralisia cerebral, distrofia muscular), resultar de uma malformação congénita (ex.: hemivértebra, espinha bífida) ou ainda corresponder a uma manifestação sindromática (ex.: síndrome de Marfan). No entanto, a grande maioria dos doentes (> 80%) apresenta escoliose de origem indeterminada, atribuindo-se a estes casos a designação de escoliose idiopática (EI). Apesar de não se ter ainda estabelecido relações causa-efeito conclusivas, os defeitos no

metabolismo da fibrilina com afeção da formação das fibras elásticas e as concentrações elevadas de calmodulina, resultando em alterações da contractibilidade do músculo-esquelético, têm sido apontados como possíveis fatores desencadeantes da EI. Vários estudos, nomeadamente os realizados em gémeos, descrevem uma possível transmissão genética, associada ao cromossoma X (90% de concordância genética em gémeos monozigóticos e mais de 60% em gémeos dizigóticos). Tendo por base a idade de apresentação e de diagnóstico da curvatura, a escoliose idiopática pode ser classificada em três subgrupos, com caraterísticas e graus de gravidade diferentes: • Escoliose idiopática infantil – subgrupo que corresponde a menos de 5% do total das escolioses idiopáticas, sendo estas diagnosticadas até aos 3 anos de idade. Em aproximadamente 90% dos casos, correspondem a curvaturas flexíveis, com grande grau de correção apenas com eliminação do foco causal, tendendo para resolução completa da sintomatologia. As restantes, que se consideram escolioses idiopáticas infantis progressivas, afetam sobretudo o sexo masculino, apresentando uma curvatura torácica esquerda predominante. Apresentam um grande potencial evolutivo, atingindo curvaturas com grandes amplitudes em idades ainda muito precoces. • Escoliose idiopática juvenil – subgrupo que abrange as escolioses idiopáticas diagnosticadas entre os 3 e os 10 anos de idade. Corresponde a aproximadamente 15% de todas as escolioses idiopáticas. Abaixo dos 6 anos afeta principalmente crianças do sexo masculino e a curvatura é sobretudo torácica esquerda com grande margem de progressão. Já a partir dos 6 anos, a maior incidência verifica-se no sexo feminino, com apresentação torácica direita e menor grau de progressão da deformidade. • Escoliose idiopática do adolescente – a grande maioria das escolioses diagnosticadas (> 80%) insere-se neste subgrupo. Dados recentes apontam para uma prevalência na população que ronda os 3%, sobretudo entre os 12 e os 14 anos. Considerando testes de rastreio precoces, a sua incidência é igual em ambos os sexos; no

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| SAÚDE |

GRAU DE entanto, o risco de progressão CURVATURA da curvatura e posterior neces(ÂNGULO sidade de tratamento cirúrgico DE COBB) é aproximadamente dez vezes < 20o superior no sexo feminino. 20o - 30o Uma avaliação clínica e ima30o - 60o giológica rigorosa é fundamental > 60o para a deteção precoce da patologia. Por outro lado, a amplitude da curvatura escoliótica e o grau de maturidade do esqueleto são determinantes na decisão terapêutica da escoliose, que tem como principal objetivo evitar a progressão da curvatura vertebral. A EI é uma entidade subdiagnosticada em fase precoce. Muitos são os casos que se apresentam perante o clínico em fases avançadas de deformidade. Este facto relaciona-se com a frequente ausência de dor ou alterações neurológicas. Além disso, o efeito compressivo sobre órgãos vitais – tais como o coração e os pulmões –, bem como efeitos major – tais como a diminuição da compliance pulmonar –, não ocorrem normalmente na EI do adolescente, ao contrário do que acontece, por exemplo, nas escolioses de natureza neuromuscular. Desta forma, é fundamental a sensibilização de todos os profissionais de saúde e de outros profissionais que lidam diretamente com crianças (ex.: professores de ginástica), para a realização de um rastreio precoce da escoliose. Vários são os sinais que objetivamente podem alertar para a presença desta patologia. Assimetrias ao nível dos ombros, da linha mamilar e da bacia podem ser identificadas numa observação rotineira do doente. A realização do teste de Adams é essencial no diagnóstico da escoliose e a sua simplicidade de execução e análise permite que seja efetuado mesmo por profissionais não clínicos. Nesta manobra semiológica, o doente curva-se anteriormente com os braços para a frente, com as palmas das mãos viradas uma para a outra e de pés juntos. O observador, colocado posteriormente ao doente, obtendo uma visão tangencial do dorso, pode constatar a presença da gibosidade torácica. Esta corresponde à rotação vertebral fixa e estruturada da coluna vertebral dorsal e da grelha costal para o lado da convexidade da curvatura.

PROBABILIDADE DE EVOLUÇÃO DOS 10 AOS 12 ANOS

PROBABILIDADE DE EVOLUÇÃO DOS 13 AOS 15 ANOS

PROBABILIDADE DE EVOLUÇÃO ACIMA DOS 16 ANOS

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10%

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60%

40%

10%

90%

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30%

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90%

70%

Uma avaliação radiológica deve ser efetuada em todos os doentes com suspeita de escoliose idiopática. Uma simples radiografia, o RX extralongo da coluna, realizado em dois planos diferentes, permite detetar a presença das curvaturas vertebrais, sendo que radiografias realizadas em inclinações laterais permitem identificar o grau de estruturação das referidas curvas. Isso torna-se importante, uma vez que é necessário identificar as curvaturas principais e secundárias (ou compensadoras), dado relevante para a decisão terapêutica. Dependendo da localização da curvatura ou das curvaturas vertebrais, a escoliose pode ser definida como: cervicotorácica, torácica, dupla torácica, toracolombar ou lombar. A medição da curvatura vertebral é efetuada pelo método de Cobb. Neste método, é determinado o ângulo formado pelas linhas perpendiculares ao prato superior da vértebra limite proximal e prato inferior da vértebra limite distal. A amplitude da curvatura, relacionada com a idade do doente, e o seu estádio de maturação óssea e sexual são determinantes na decisão terapêutica. Das várias formas de avaliar o grau de maturidade ósseo, o que é mais frequentemente utilizado é o sinal de Risser (0-5). Nele é avaliado o

TABELA 1 Probabilidade de evolução da EI de acordo com a gravidade da curvatura e idade de apresentação

A AMPLITUDE DA CURVATURA, RELACIONADA COM A IDADE DO DOENTE, E O SEU ESTÁDIO DE MATURAÇÃO ÓSSEA E SEXUAL SÃO DETERMINANTES NA DECISÃO TERAPÊUTICA” 119

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| ORTOPEDIA |

O TRATAMENTO DA ESCOLIOSE IDIOPÁTICA ASSENTA EM TRÊS PRINCÍPIOS BÁSICOS: OBSERVAÇÃO, CORREÇÃO COM ORTÓTESE E TRATAMENTO CIRÚRGICO” 5%

GRÁFICO 1 Número de cirurgias realizadas no HOSA entre 1990 e 2013

11% 7%

77% (190)

Escoliose idiopática Escoliose paralítica Escoliose congénita Escoliose secundária N = 246

GRÁFICO 2 Distribuição por género das cirurgias reabilitadas no HOSA entre 1990 e 2013 (N = 246)

Feminino 186

Masculino 60

aparecimento da apófise de crescimento da crista ilíaca posterior, tendo boa correlação com o grau de desenvolvimento da coluna vertebral. Assim, nos estádios 1, 2 e 3 considera-se imaturidade óssea e, consequentemente, grande potencial de crescimento. Já nos estádios 4 e 5 é de esperar baixo potencial de crescimento.

A decisão terapêutica deve ter sempre por base o potencial de crescimento da curvatura vertebral. Dados gerais apresentados pela Scoliosis Research Society apontam para um risco de progressão da curvatura escoliótica relacionada com a idade de diagnóstico, de acordo com a tabela 1. Os primeiros métodos de tratamento da escoliose remontam ao tempo de Hipócrates e eram baseados em manipulação vertebral e tração esquelética. Muito mais tarde, começaram a ser desenvolvidas as primeiras ortóteses para a correção da deformidade vertebral, que serviram de base àquelas que são usadas nos dias de hoje para o tratamento da EI. Apenas por volta do ano 1900 foram levadas a cabo as primeiras intervenções cirúrgicas da escoliose, baseadas na fusão da curvatura vertebral, com o intuito de evitar a progressão da curvatura vertebral. Uns anos mais tarde, Harrington revolucionou o tratamento cirúrgico da escoliose, introduzindo o conceito de instrumentação da coluna vertebral associada à fusão da mesma. As técnicas de instrumentação cirúrgica evoluíram cada vez mais, permitindo obter melhores correções da curvatura vertebral. A instrumentação cirúrgica com a utilização predominante de parafusos pediculares constitui, nos dias de hoje, a técnica cirúrgica mais utilizada, permitindo correções de mais de 50% da curvatura escoliótica. De uma forma geral, o tratamento da EI assenta em três princípios básicos: observação, correção com ortótese e tratamento cirúrgico. O objetivo principal passa por manter a curvatura vertebral abaixo de 500 à idade adulta. Assim, na presença de adolescentes com curvaturas entre 100 e 300 e ainda com imaturidade óssea, o tratamento passa por observações periódicas semestrais e pelo encorajamento da prática desportiva, nomeadamente de natação e exercícios de correção postural. A utilização de ortóteses (ex.: colete milwaukee) está preconizada para adolescentes com esqueleto imaturo e com curvaturas progressivas entre os 300 e os 500. O objetivo essencial da utilização destas ortóteses é evitar a progressão da deformidade para estádios com necessidade de correção cirúrgica. A decisão cirúrgica fica então reservada para adolescentes imaturos com curvaturas su-

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| SAÚDE |

periores a 450 e para jovens já com maturidade óssea e curvaturas acima de 500 com caráter progressivo. O tratamento cirúrgico visa dois aspetos principais: prevenir a progressão da curvatura e obter a melhor correção possível da deformidade, com normalização do balanço vertebral e pélvico. Atualmente, as forças de correção são conseguidas através de uma instrumentação híbrida (combinação de parafusos, barras, ganchos, clamps), suplementadas por uma fusão óssea conseguida à base de autoenxerto ósseo. A via de abordagem posterior (incisão extensa ao nível da linha média dorso-lombar) é a utilizada na maioria das correções cirúrgicas de EI do adolescente, permitindo corrigir todo o tipo de curvaturas. O período de internamento pós-operatório ronda, em média, cinco a sete dias, sendo rara a necessidade de utilização de ortótese pós-cirúrgica. Já o período de convalescença pós-operatório é moroso e progressivo. No entanto, às três semanas após a cirurgia, está indicado o regresso às atividades diárias regulares. HOSA – UMA REFERÊNCIA NO TRATAMENTO DA ESCOLIOSE IDIOPÁTICA DO ADOLESCENTE Sendo reconhecido como uma referência no tratamento da patologia ortopédica em idade pediátrica, o Hospital de Sant’Ana acompanhou ao longo da sua história toda a evolução no tratamento da escoliose idiopática. Até aos dias de hoje, vários milhares de crianças com esta patologia foram acompanhados em consulta hospitalar. Desde as técnicas de imobilização prolongada em mesas de tração esquelética, passando pelos gessos corretivos, até às diferentes técnicas de correção cirúrgica, várias foram as opções terapêuticas utilizadas no tratamento da escoliose idiopática. Os autores apresentam a casuística operatória do Hospital Ortopédico de Sant’Ana, no período compreendido entre 1990 e 2013, no que respeita à cirurgia da escoliose, apresentando o resultado clínico obtido em alguns dos procedimentos cirúrgicos.

O TRATAMENTO CIRÚRGICO VISA PREVENIR A PROGRESSÃO DA CURVATURA E OBTER A MELHOR CORREÇÃO POSSÍVEL DA DEFORMIDADE, COM NORMALIZAÇÃO DO BALANÇO VERTEBRAL E PÉLVICO”

ESCOLIOSE idiopática dorso-lombar – pré e pós-cirúrgico

ESCOLIOSE idiopática torácica direita – pré e pós-cirúrgico

BIBLIOGRAFIA GOTFRYD A.O., FRANZIN F.J. – Surgical treatment of adolescent idiopathic scoliosis using pedicle screws: analysis of clinical and radiographic results. Columna, 2011; 10(2): 91-6. JANICKI J.A.; ALMAN B. et al. – Scoliosis: Review and diagnosis and treatment. Paediatr Child Health, 2007; 12(9): 771-776. MARUYAMA T., Takeshita K. – Surgical treatment of scoliosis: a review of techniques currently applied. Scoliosis 2008, 3-6. Scoultanis K., Payatakes A. – Rare causes of scoliosis and spine deformity: experience and particular features. Scoliosis 2007; 2:15 Scoliosis Research Society (SRS) – www.scoliosis.org

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| SEXUALIDADE |

O ensino das

POSTURAS SEXUAIS Após uma artroplastia total da anca por via posterior1 Texto de Bruno Fernandes, Filipe Ascenção e Sílvia Fernandes [ENFERMEIROS ESPECIALISTAS EM ENFERMAGEM DE REABILITAÇÃO_SCML, HOSPITAL ORTOPÉDICO DE SANT’ANA]

1. Comunicação livre apresentada no Simpósio de Enfermagem de Ortotraumatologia, realizado a 8 e 9 de maio de 2009, na cidade do Porto, tendo obtido o primeiro lugar no concurso de melhor comunicação livre.

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| SAÚDE |

Tendo em conta a nossa prática clínica, constatámos que os enfermeiros raramente abordam a temática da sexualidade. Como tal, considerámos pertinente desenvolver um trabalho que pudesse contribuir para a sensibilização dos enfermeiros para a importância que esta temática tem no utente submetido a artroplastia total da anca por via posterior.

A

oferta de novos cuidados de enfermagem exige do enfermeiro competências para ajudar as pessoas a manter ou recuperar padrões de sexualidade, de acordo com o conceito de saúde sexual da Organização Mundial da Saúde. Essas competências estão pouco desenvolvidas, devendo ser objeto da formação inicial e permanente dos enfermeiros. De acordo com os diferentes modelos ou quadros de referência que influenciam a prática dos cuidados de enfermagem, o foco de intervenção da enfermagem localiza-se na resposta humana aos problemas de saúde/doença, no sentido de satisfazer a realização das necessidades humanas básicas de uma forma integrada ou holística. Desde sempre, nas escolas de enfermagem, quando o tema das necessidades humanas básicas é focado, “a sexualidade é sempre a última a ser abordada, e quando o é, é realizada de forma aligeirada, não raras vezes com alguns estereótipos à mistura” (SUBTIL, 1992: 8). A falta de informação específica na área da sexualidade, no-

meadamente no utente submetido a artroplastia total da anca (ATA) por via posterior, constituiu um desafio na realização de um trabalho direcionado para esta temática. Como enfermeiros a exercer funções num serviço de ortopedia, constatámos que temas como: apanhar objetos do chão, sentar/ levantar/deitar, higiene, entre outros, são ensinos frequentemente realizados pelos enfermeiros do nosso serviço. No entanto, a temática das posturas sexuais no processo de enfermagem não está assinalada como sendo realizada, facto este verificado através do tratamento de dados dos registos de enfermagem. O que vai de encontro ao referido por Subtil (1992), quando afirma que os enfermeiros raramente abordam os aspetos da sexualidade na colheita de dados para a história clínica e subsequente diagnóstico de enfermagem. Tendo em conta que esta ausência poderia dever-se apenas a um esquecimento ao nível do registo, considerámos pertinente realizar um estudo através do qual pretendíamos averiguar se, na realidade, os ensinos acerca das posturas sexuais eram efe-

tuados aos utentes submetidos a ATA por via posterior. Assim, este trabalho teve como objetivos: constatar se o ensino acerca das posturas sexuais era efetuado aos utentes submetidos a ATA por via posterior; e alertar os enfermeiros do serviço para a necessidade de incluir as posturas sexuais aos utentes submetidos a ATA por via posterior nos ensinos por si realizados. METODOLOGIA Este estudo é quantitativo, exploratório e descritivo, com uma amostra probabilística constituída por 15 enfermeiros a exercerem funções na prestação direta de cuidados num serviço do Hospital Ortopédico de Sant’Ana, que decorreu entre fevereiro e março de 2009. O questionário utilizado para a colheita de dados foi elaborado por nós, dado não existir nenhum instrumento de colheita de dados que desse resposta às questões que se pretendiam ver esclarecidas. O tratamento de dados das questões fechadas foi realizado através da análise estatística e as questões abertas foram sujeitas a análise de conteúdo. 123

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| SEXUALIDADE |

GRÁFICO 1 Ensinos realizados aos utentes submetidos a ATA

Sexualidade

4 6

Exercícios respiratórios Exercícios de fortalecimento muscular Entrar e sair do carro

10 10

Apanhar objetos do chão

12 15

Sentar/Levantar/Deitar Subir/Descer escadas

7

Marcha com canadianas

9

Higiene

14

Alimentação

4 0

2

4

6

8

OS ENFERMEIROS RARAMENTE ABORDAM OS ASPETOS DA SEXUALIDADE NA COLHEITA DE DADOS PARA A HISTÓRIA CLÍNICA E SUBSEQUENTE DIAGNÓSTICO DE ENFERMAGEM” RESULTADOS E DISCUSSÃO No decorrer deste ponto serão abordados a caraterização da nossa amostra e os resultados encontrados para as questões que constituíram o nosso questionário. Serão ainda confrontadas opiniões de autores consultados com os resultados, de modo a possibilitar uma melhor compreensão e contextualização do fenómeno em estudo, descrito e agrupado em quatro questões centrais. Caraterização da amostra A amostra é constituída por seis enfermeiros e nove enfermeiras, com idades compreendidas entre os 24 e os 57 anos. 1. Dos assuntos apresentados (sexualidade, exercícios respiratórios, exercícios de fortalecimento muscular, entrar e sair do

carro, apanhar objetos do chão, sentar/ levantar/ deitar, subir/ descer escadas, marcha com canadianas, higiene, alimentação) assinale os que são transmitidos por si nos ensinos que realiza aos utentes submetidos a artroplastia total da anca. Relativamente às várias temáticas do ensino que é realizado pela nossa amostra aos utentes submetidos a ATA, surge-nos o tema sentar/levantar/deitar como sendo o mais abordado (15 enfermeiros), seguido dos temas higiene (14 enfermeiros), apanhar objetos do chão (12 enfermeiros), exercícios de fortalecimento muscular e entrar e sair do carro (10 enfermeiros). Os temas menos abordados foram a sexualidade e a alimentação (quatro enfermeiros).

10

12

14

16

2. Caso tenha assinalado o ensino relativamente à sexualidade, indique de forma sucinta os conteúdos por si mencionados: Dos quatro enfermeiros que assinalaram a sexualidade como ensino realizado aos utentes submetidos a ATA, as posturas sexuais foram os conteúdos por eles mencionados. 3. Caso não tenha assinalado o ensino relativamente à sexualidade, indique o motivo pelo qual não o faz: Dos enfermeiros que não referiram a sexualidade nos ensinos realizados aos utentes submetidos a ATA, 45,5% não o fizeram por considerarem um tema difícil de abordar. O que vai de encontro ao que refere Rosa: “Os enfermeiros podem não se sentir preparados para fazer este ensino […], muitos são recém-formados e, portanto, ainda não tem confiança e maturidade para abordarem assuntos mais íntimos” (ROSA, 1998: 30). Já 81,8% não o fizeram por esquecimento/falta de oportunidade, tal como Subtil constatou: “Quer nos centros de saúde quer nos hospitais os enfermei-

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| SAÚDE |

ros raramente abordam os aspetos da sexualidade” (SUBTIL, 1992: 8). Houve ainda 18,2% que consideraram não possuírem a formação adequada, como defende Subtil: “A oferta de novos cuidados de enfermagem exige do enfermeiro competências para ajudar as pessoas a manter ou recuperar padrões de sexualidade de acordo com o conceito de saúde sexual da OMS. Essas competências estão pouco desenvolvidas, devendo ser objeto da formação inicial e permanente dos enfermeiros” (SUBTIL, 1992: 8). Por último, 9,9% consideraram que a abordagem deste tema não era pertinente, ao contrário do que Rosa afirma: “A informação sobre a atividade sexual deverá ser dada a todos os doentes, independentemente de serem solteiros, casados, viúvos, divorciados ou homossexuais; há que saber escolher com ponderação a que doentes deverão ser feitos os ensinos e que ensinos deverão ser feitos” (ROSA, 1998: 31). 4. Considera pertinente o ensino das posturas sexuais ao doente submetido a artroplastia total da anca? A totalidade da nossa amostra considerou pertinente o ensino das posturas sexuais nos ensinos realizados aos utentes submetidos a ATA por via posterior. Com estes resultados considerámos pertinente realizar pesquisa bibliográfica no sentido de obter informação acerca das posturas sexuais aconselhadas e não aconselhadas aos utentes submetidos a ATA por via posterior,

DOS ENFERMEIROS QUE NÃO REFERIRAM A SEXUALIDADE NOS ENSINOS REALIZADOS AOS UTENTES SUBMETIDOS A ARTROPLASTIA TOTAL DA ANCA, 45,5% NÃO O FIZERAM POR CONSIDERAREM UM TEMA DIFÍCIL DE ABORDAR” com o objetivo de realizar formação em serviço, para posterior divulgação junto dos utentes. CONCLUSÃO Apesar de o tema da sexualidade ser ainda assunto tabu entre os enfermeiros, todos eles consideraram a sua abordagem pertinente, pelo que consideramos que a formação contínua dos enfermeiros no âmbito da sexualidade e posteriores sessões de educação para a saúde aos

utentes submetidos a ATA por via posterior têm um papel fundamental para a recuperação total da sua sexualidade com maior segurança. Reforçando esta linha de pensamento, Subtil refere que “os enfermeiros devem desenvolver projetos de investigação no domínio da sexualidade como forma de melhorar o seu corpo de conhecimentos e consequente qualidade de cuidados de enfermagem” (SUBTIL, 1992: 11).

BIBLIOGRAFIA MAGNUSSON, Jim; MAXEY, Lisa – Reabilitação pós-cirúrgica para o paciente ortopédico. 1.ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. ISBN: 85-2770791-8. REDFERN, Sarah – “Sexualidade e artrite”. In Nursing. Nº 60 (janeiro 1993), pp. 30-32. ISSN 0871-6196. ROSA, Isabel Maria Ferreira da – “Optimizar o ensino sobre a actividade sexual ao doente coronário”. In Nursing. Nº 124 (jul./ago. 1998), pp. 30-32. ISSN 0871-6196. SUBTIL, Carlos Lousada – “A sexualidade como necessidade humana básica”. In Nursing. Nº 50 (março 1992), pp. 8-11. ISSN 0871-6196. Sites consultados [28/03/2009]: http:// aboutjoints.com/ patientinfo/ topics/sexualconcerns/ sexualconcerns.html http://www.springerlink.com/content/ 72q6xm 4v72r2hdxl/fulltext.pdf http://www.totaljoints.info/women_THR.htm http:// orthodoc.aaos.org /WilliamOThompsonMD/postop%20hip%20 sex%20positions.pdf http://www.ranawatorthopaedics.com/faq-hip.html

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| EDUCAÇÃO |

ASSISTÊNCIA ÀS ÓRFÃS NO BAIRRO ALTO O RECOLHIMENTO DA RUA DA ROSA Texto de Luísa Colen [Historiadora_SCML, Direção da Cultura]

Fundado no início do século xix, o Recolhimento da Rua da Rosa, no Bairro Alto, em Lisboa, tinha por objetivo “receber, e educar principalmente meninas pobres, e formar dellas boas mãis de famílias”. O secular estabelecimento foi extinto em 1941.

N

a Idade Moderna os recolhimentos de órfãs funcionaram como auxílio das meninas que ficavam sem o amparo familiar natural – o do pai, por morte ou ausência, ou de ambos os progenitores. À criança ou jovem donzela eram ministrados os valores e instrução própria do seu sexo, em total reclusão, só saindo depois de terminada a sua educação ou a pedido da família, para se casar ou exercer um ofício. A FUNDAÇÃO DO RECOLHIMENTO O Recolhimento do Santíssimo Sacramento terá surgido por iniciativa particular de Ana Vicência de Oliveira, com recurso a financiamento particular, seu e de sua irmã, Maria Rita de Oliveira1.

1. Ana Vicência de Oliveira, fundadora do Recolhimento, foi a regente do estabelecimento até ao seu falecimento, a 2 de novembro de 1841. Ver Recolhimentos da Capital. Relatório apresentado a Sua Excellencia o Ministro e Secretario de Estado dos Negócios do Reino, pelo Adjunto servindo de Provedor Domingos Pedro Rezende de Castro Constâncio. Gerencia do anno de 1889-1890. Projeto de reorganização de alguns dos Recolhimentos – Lisboa: Imprensa Moderna, 1890, p. 13.

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| HISTÓRIA E CULTURA |

OS OBJETIVOS O estabelecimento teria sido fundado com o objetivo de “receber, e educar principalmente meninas pobres, e formar dellas boas mãis de famílias”5, sendo destinado a “abrigo de meninas absolutamente pobres, e de desamparada orphandade, que não excêdão nove annos de idade, ao tempo da sua admissão”6.

A SUSTENTAÇÃO FINANCEIRA Sendo mantido inicialmente pelos rendimentos da fundadora e por outros donativos particulares, cedo o Recolhimento se viu em dificuldades financeiras. D. João VI colocou-o sob a sua proteção, dotando o estabelecimento de um fundo permanente em julho de 18227 e mandando, meses depois, conceder um subsídio de 3.000$000 réis anuais para a sua manutenção8. Além do subsídio anual do Tesouro Público e do rendimento proveniente dos juros de Inscrições que possuía, o Recolhimento era mantido por esmolas concedidas pelos monarcas, donativos de particulares, pelas mesadas das porcionistas e pelo produto de obras de lavores. Em 1859 beneficiou ainda, juntamente com o Colégio do Calvário, do legado de Maria Joana Baldaia, que se destinava à manutenção de 12 educandas em cada um dos Recolhimentos e ainda comparticipava para as despesas da

1828

1885

Localizava-se inicialmente em Belém, tendo sido “fundado na calamitosa época da invasão dos inimigos deste reino, para abrigo de inumeráveis crianças desamparadas e abandonadas nas ruas desta capital”2. Não se conhece exatamente a data da fundação do Recolhimento, sabe-se apenas que, em 18123, a fundadora obteve a concessão por empréstimo de umas casas localizadas na Rua da Rosa das Partilhas, que em 1823 lhe foram doadas, para instalação da casa de educação que regia4.

21,9%

68,4%

53,4%

8,8%

39,7%

0,2 0,7 5,3% 0,8% 0,8% Erário régio

Juros de Apólices

Juros de inscrições

Renda de uma Loja

Pensões

Trigo da Casa do Infantando

Diversos

Subsídio do Tesouro

Mesadas das

Público

Casa do Lavor

GRÁFICO 1. Receita do Colégio da Rua da Rosa em 1828 e 1885. Fonte: 1828 - SCML, Fundo PRC, Contas da receita e despesa dos Recolhimentos, 18281911, Cap01, Mappa da receita e despesa do Recolhimento da Rua da Rosa em 1828 (182902-26); 1885 - SCML, Fundo PRC, Orçamentos da receita e despesa dos Recolhimentos, 18411913, Cx01, Orçamento da receita e despeza para o anno economico de 1885-1886 (1884-10-06)

Porcionistas 2. Decreto de 14 de julho de 1826. Refere-se ao período das invasões francesas, em que Lisboa se viu a braços com vagas de refugiados vindos da província, entre os quais se contavam inúmeros órfãos de ambos os sexos, aos quais foi necessário arranjar alojamento, alimentação e ocupação. 3. Portaria de 18 de junho de 1812. 4. Carta Régia de 30 de abril de 1823. 5. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções Provisionaes para a direcção, economia, e regímen dos recolhimentos, ou casas de educação, denominadas do Santissimo Sacramento, na rua da Rosa, e Santissimo Sacramento, e Assumpção, no Calvário, § 1. 6. Decreto de 14 de julho de 1826. Regulamento, art. 1º, transcrito em SCML, Fundo da PRC, Correspondência, Caixa 01, Cap 08 (1865), ofício de 28 de outubro de 1865 (minuta). 7. Decreto de 24 de julho de 1822. 8. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 21

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| EDUCAÇÃO |

capela do da Rua da Rosa, através do auxílio na despesa com a celebração de uma novena anual ao Menino Jesus dos Atribulados que se ali se costumava realizar9. Os gastos do Recolhimento diziam respeito ao pagamento de salários dos funcionários de educação e de apoio, despesas de alimentação, medicamentos e assistência de médico e cirurgião, da capela e missas, e em despesas extraordinárias como vestuário e calçado, lavagem de roupa, lenha, velas e utensílios de cozinha e mesa10. A ADMINISTRAÇÃO Segundo as Instruções de 182211, a direção dos Recolhimentos da Rua da Rosa e do Calvário ficaria entregue a um diretor, nomeado pelo mo-

narca, recebendo ordens directamente da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino. O regime interno de cada um dos estabelecimentos de ensino estava confiado a uma regente, nomeada também pelo soberano, sob proposta do diretor. A escrituração e contabilidade dos estabelecimentos ficariam a cargo do escrivão da Receita e Despesa da Casa Pia de Lisboa. Os recebimentos e pagamentos estavam a cargo de um tesoureiro e de um procurador. Em 185112 centralizou-se a administração dos dez recolhimentos existentes na cidade de Lisboa que dependiam financeiramente do Estado. Os Recolhimentos do Calvário, Rua da Rosa, Grilo, Lázaro Leitão, Passadiço, São Cristóvão, Rego, Encarnação e Carmo, Senhora da Lapa e Desagravo13

CERTIDÃO do testamento de Maria Joana Baldaia, 1859 (extrato). [AHSCML – Testamentos, Maço 6, Proc. 61]

9. SCML, Testamentos, Maço 6, Proc. 16 - Certidão do testamento de Maria Joana Baldaia (Codicilo de 1859-07-03, abertura em 1859-10-03). 10. As educandas pensionistas do Estado deviam, com a sua entrada, trazer um enxoval de que constava, além de panos para a confeção das suas roupas (camisas, saias, calças, coletes, vestidos, véu para a missa, etc.) também a mobília de quarto (leito, colchão e baú ou cómoda e uma cadeira) e roupas de cama e toalhas. Em casos de extrema pobreza, o enxoval não era exigido. Ver SCML, Fundo da PRC, Correspondência recebida e expedida, Relação dos objectos do enxoval que as educandas pensionistas do estado costumam fornecer na ocasião da sua entrada no estabelecimento, documento anexo à Portaria do Ministério do Reino de 22 de junho de 1867, Cx02, Cap01. 11. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 2, 3 e 5. 12. Decreto de 26 de novembro de 1851. 13. Estes últimos quatro recolhimentos mantiveram sempre administrações separadas da Provedoria dos Recolhimentos da Capital – Ver Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 7.

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| HISTÓRIA E CULTURA |

1828

2,5% 1,6%

1885 9,4%

14,3% 20,3% 22,9% 9% 8,2% 63,7% 48,2%

Sustentação

Extraordinária

Alimentação

Ordenados e pensões

Outras

Ordenados

Outras de sustentação

Administração geral

Capela

eram geridos pela Provedoria dos Recolhimentos da Capital, sob a suprema direção do Conselho Geral de Beneficência, criado em 183514. Pelo decreto de 4 de outubro de 1899, o Conselho Geral de Beneficência foi integrado na Direção-Geral de Saúde e Beneficência que viria a ser reorganizada e regulamentada em 190115, e extinta por decreto de 9 de fevereiro de 1911, criando-se a Direção-Geral da Assistência. Em 1928 alguns dos estabelecimentos de assistência subordinados à Direção-Geral da Assistência Pública, como o Pensionato da Rua da Rosa, passam para a administração da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa16. AS INSTALAÇÕES Como referido, Ana Vicência de Oliveira recebeu em 1812 o empréstimo das casas da Rua da Rosa das Partilhas17, que tinham pertencido à família Leitão de Andrade e que estavam na posse do Estado, casas que lhe foram doadas em 1823. Em 1827, depois do falecimento da 8ª marquesa de Minas, D. Joana Bernarda de Noronha

GRÁFICO 2. Despesa do Colégio da Rua da Rosa em 1828 e 1885. Fonte: 1828 - SCML, Fundo PRC, Contas da receita e despesa dos Recolhimentos, 1828-1911, Cap01, Mappa da receita e despesa do Recolhimento da Rua da Rosa em 1828 (1829-02-26); 1885 - SCML, Fundo PRC, Orçamentos da receita e despesa dos Recolhimentos, 1841-1913, Cx01, Orçamento da receita e despeza para o anno economico de 1885-1886 (1884-10-06)

Diversas

EM 1851 CENTRALIZOU-SE A ADMINISTRAÇÃO DOS DEZ RECOLHIMENTOS EXISTENTES NA CIDADE DE LISBOA QUE DEPENDIAM FINANCEIRAMENTE DO ESTADO” e Lencastre, que em vida tinha protegido e auxiliado com esmolas as órfãs, é entregue para uso do Recolhimento o edifício contíguo, o Palácio Marqueses das Minas, que a benemérita senhora, sem descendência direta, lega no seu testamento. Durante o século xix são realizadas as obras que ligam os dois edifícios, para melhor comodidade do estabelecimento18. No relatório decorrente da inspeção realizada pelo comissário dos Estudos do Distrito de Lisboa, Mariano Ghira, no ano letivo de 1863-1864, o Colégio da Rua da Rosa mereceu uma opinião favorável, mencionando este que as “condições higiénicas parecem boas, pois tem ventilação

14. Decreto de 6 de abril de 1835. 15. Decretos de 12 de junho e 24 de dezembro de 1901. 16. Decreto nº 15778, de 23 de julho de 1928. 17. Rua da Rosa das Partilhas é, atualmente, a Rua da Rosa, no Bairro Alto. 18. Neste conjunto edificado funciona hoje em dia o Lar de Nossa Senhora do Amparo, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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| EDUCAÇÃO |

AS CONDIÇÕES DO RECOLHIMENTO NÃO DEVIAM SER AS MELHORES JÁ QUE, EM 1879, AS RECOLHIDAS PASSAM PARA UMA CASA ARRENDADA, DEVIDO AO ESTADO DE DEGRADAÇÃO DO EDIFÍCIO”

FACHADA do edifício onde funcionou o Recolhimento da Rua da Rosa (1812-1941)

nos dormitórios e aulas, aceio e acomodações suficientes; um pateo e um pequeno jardim”19. Mas não era esta a opinião da Administração dos Recolhimentos da Capital, como se infere de um relatório de 1867 do então Provedor, António Cabral de Sá Nogueira, que dizia acerca do estabelecimento: “Uma das providências mais necessárias, para que esta instituição possa

19. Relatorio sobre a visita de inspecção extraordinaria às escólas do Districto de Lisboa…, 1866, p. 131. de Nossa Senhora do Amparo, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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prosperar e estender os seus benefícios a maior número de desvalidos, seria transferi-lo para um edifício muito mais espaçoso, que tivesse uma boa cerca”20. As condições não deviam ser as melhores já que, em 1879, as recolhidas passam para uma casa arrendada, devido ao estado de degradação do edifício, mandando-se realizar as reparações necessárias, utilizando para tal os fundos existentes no Cofre do Recolhimento21. Todavia, apesar das obras realizadas, as instalações continuaram a não ser consideradas adequadas para o colégio. O facultativo do Recolhimento, consultado pela Administração dos Recolhimentos da Capital acerca das medidas higiénicas a serem tomadas para melhorar as condições do edifício, responde que “o estabelecimento em que está o collegio é mau, não só porque não tem a menor qualidade de salubridade, começando pelos dormitórios, como pelo ponto da cidade em que se acha collocado, onde a população se acha acumulada”22. Apesar de as várias administrações terem tratado de melhorar as condições do edifício, em 1890 as más condições do mesmo continuavam a constituir uma preocupação e o próprio adjunto da Administração dos Recolhimentos da Capital descreve desta forma o edifício onde está instalado o Colégio: “O edifício onde está estabelecido este Recolhimento é formado por dois prédios comunicados interiormente, mas cujos pavimentos são em diferentes planos, de forma que há um sem numero de escadas, que, só por si, são suficientes para o tornarem improprio para o fim a que foi destinado. As aulas são acanhadas em relação ao número de alunas; o refeitório é no pavimento térreo, triste e sombrio; alguns dos dormitórios são nos sótãos do edifício, que para esse fim foram adaptados; tem péssimas acomodações para a regente e mais pessoal de

EM 1928 ALGUNS DOS ESTABELECIMENTOS DE ASSISTÊNCIA SUBORDINADOS À DIREÇÃO-GERAL DA ASSISTÊNCIA PÚBLICA, COMO O PENSIONATO DA RUA DA ROSA, PASSAM PARA A ADMINISTRAÇÃO DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA” administração; a casa de banho é insuficiente; a enfermaria não tem as condições necessárias; e o pátio é de dimensões mui limitadas para que as crianças possam correr e fazer exercícios próprios da idade.”23 Neste mesmo relatório propõe Castro Constâncio a reorganização dos dois Recolhimentos da Rua da Rosa e do Calvário que, em 1892, é legislada. Assim, é determinado que o estabelecimento da Rua da Rosa fique destinado às órfãs em absoluto desamparo e pobreza que, tendo terminado a sua educação no Colégio do Calvário e chegadas à idade de saída, não tivessem proteção ou destino imediato. Servia ainda como asilo destinado ao pessoal de administração e ensino dos dois estabelecimentos que ficasse em condições de ser aposentado24. As alunas e pessoal de educação ativo são então transferidos para as instalações do Colégio do Calvário. AS EDUCANDAS Inicialmente, as educandas pensionistas, ou seja, aquelas que eram mantidas à custa do Estado, deveriam, para ser admitidas, ser pobres e desamparadas, gozar de boa saúde física e ter entre 7 e 11 anos de idade completos, não podendo permanecer no Recolhimento depois dos 14 anos25. Com o Regulamento de 1826, a idade de

20. Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 15. 21. SCML, Fundo da PRC, Portarias, 1879, ofício do Ministério do Reino de 18 de janeiro de 1879. 22. Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 15. 23. Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 15. 24. Decreto de 14 de novembro de 1892. 25. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 9.

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AS EDUCANDAS PORCIONISTAS, QUE PAGAVAM PELA SUA ESTADA NO RECOLHIMENTO, DEVERIAM ENTREGAR ADIANTADA A QUANTIA MENSAL DE 9$600 RÉIS, SENDO A SUA ESCOLHA DA RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR” admissão não podia exceder os 9 anos26 e a idade limite para a permanência das pensionistas no Recolhimento foi alterado para os 20 anos27. Os lugares vagos no Recolhimento deviam ser tornados públicos pelo diretor por meio de edital e a seleção seria feita por concurso, verificadas as condições necessárias para a admissão de cada uma das concorrentes, cabendo ao diretor propor ao monarca o seu preenchimento28. As educandas porcionistas, que pagavam pela sua estada no Recolhimento, deveriam entregar adiantada a quantia mensal de 9$600 réis, sendo a sua escolha da responsabilidade do Provedor29. O número de educandas a serem admitidas no Colégio foi determinado não ultrapassar as sessenta, tendo o seu número variado pouco ao longo do século xix. Em 1837 existiam 58 educandas, pensionistas do Estado e porcionistas e ainda 18 mestras e respetivas ajudantes30. Em 1866 foi apresentado um Projeto de Re-

gulamento31 para a admissão e conservação das educandas dos dois Recolhimentos do Calvário e Rua da Rosa. Deste projeto e das retificações propostas pelo Provedor, limitou-se a idade de admissão para os 12 anos e a de permanência para os 16 anos, permitindo-se que, em casos excecionais, as educandas pudessem permanecer até à idade de 18 anos32. O QUOTIDIANO NO COLÉGIO Da organização do quotidiano no Colégio da Rua da Rosa temos apenas uma informação, incompleta, relativa a 1873, em que se descreve um dia de inverno33 entre as seis horas da manhã e as quatro horas da tarde. O toque de levantar devia soar antes das seis da manhã, hora a que as educandas se deveriam levantar, dar “Graças a Deus”, arejar as camas, lavar a cara, limpar as casas, pentear, visitar o coro e missa e depois iriam fazer as camas, devendo as mais velhas ajudar as mais novas. O almoço era às oito horas da manhã e, às oito e meia, as educandas fariam revisões das lições, iniciando-se as aulas às nove horas. O período de aulas da manhã terminava ao meio-dia, com um intervalo para recreio e ventilação das aulas entre as dez e meia e as 10h45m. Depois das aulas havia novo período de recreio, entre o meio-dia e o meio-dia e meia, devendo as educandas proceder à limpeza pessoal antes da hora de jantar, que ocorria às 12h30m. Depois do jantar e até às duas e meia da tarde era hora de recreio, retomando-se as aulas a essa hora e terminando às quatro horas da tarde34. Além das tarefas descritas, as educandas deviam ajudar rotativamente durante uma semana

26. Decreto de 14 de julho de 1826. Regulamento, art. 1º, transcrito em SCML, Fundo da PRC, Correspondência, Caixa 01, Cap08 (1865), minuta do ofício de 28 de outubro de 1865. 27. Ibidem, art.º 8º. 28. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 11. 29. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 7. 30. SCML, Fundo da PRC, Portarias, 1837, Rascunho de uma informação de abril de 1837. 31. O Projeto, apresentado em 6 de abril de 1865 pelo ministro do Reino, foi enviado para parecer e análise do Provedor dos Recolhimentos da Capital. Ver SCML, Fundo da PRC, Correspondência recebida e expedida, 1865 e 1866. 32. Portaria de 3 de agosto de 1867. 33. A “época de inverno” no Colégio da Rua da Rosa decorria entre 20 de setembro e 21 de março, segundo nota no verso de um documento de 31 de dezembro de 1873. Ver SCML, Fundo 34. SCML, Fundo da PRC, Movimento de educandas pensionistas e porcionistas, 1873. da PRC, Movimento de educandas pensionistas e porcionistas, 1873.

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DIAS

ALMOÇO

JANTAR

CEIA

Domingo

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de cevadinha, carne assada com batatas, salada, vinho e sobremesa

Chá e pão com manteiga

Segunda-feira

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de arroz, carne cozida com hortaliça e grão-de-bico

Chá e pão com manteiga

Terça-feira

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de pão com hortaliça, carne guisada com batatas, vinho

Chá e pão com manteiga

Quarta-feira

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de massa, carne cozida com hortaliça, arroz enxuto

Chá e pão com manteiga

Quinta-feira

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de pão com hortaliça e grão-de-bico, carne guisada com batatas

Chá e pão com manteiga

Sexta-feira

Café com leite e pão com manteiga

Feijão branco com hortaliça, bacalhau cozido com batatas, Chá e pão com manteiga vinho

Sábado

Café com leite e pão com manteiga

Sopa de massa, carne cozida, feijão encarnado

Chá e pão com manteiga

QUADRO 1. Distribuição das refeições por dias da semana – 1884 Fonte: Recolhimentos da Capital. Relatório apresentado a sua excelência o Ministro e Secretario de estado dos Negocios do Reino, pelo Adjunto servindo de Provedor Domingos Pedro Rezende de Castro Constâncio. – Lisboa: Imprensa Moderna, 1890, p. 70, doc. n.º 26.

no refeitório, na portaria, na enfermaria e na sacristia. Algumas das mais velhas estavam também incumbidas de prestar serviço na despensa35. De acordo com as Instruções para o Refeitório do Recolhimento da Rua da Rosa36, todas as recolhidas que não estivessem doentes deviam, sem exceção, comer no refeitório, para onde se deviam dirigir assim que ouvissem o toque de sineta, tendo um intervalo de cinco minutos para se lavar e alinhar, indo sentar-se à mesa acompanhadas pelas suas mestras quando tocasse novamente a sineta. Quatro das educandas mais velhas serviriam, diária ou semanalmente, às mesas. À mesa não era permitido falar alto, “maldizer o próximo” ou queixar-se do serviço. As senhoras que presidissem às mesas deveriam ensinar às meninas o modo de estar à mesa, de usar os talheres e de “comer com gravidade”. Acabada a refeição, a Regente, que deveria estar sempre

À MESA NÃO ERA PERMITIDO FALAR ALTO, “MALDIZER O PRÓXIMO” OU QUEIXAR-SE DO SERVIÇO” presente às refeições, entoaria uma curta oração de “Graças a Deus”, que as recolhidas sentadas à mesa deveriam acompanhar37. No referido relatório de 1866, Mariano Ghira avaliava a alimentação no Recolhimento da Rua da Rosa da seguinte forma: “A comida é abundante e de boa qualidade. As que pagam [as porcionistas] têm chá com leite, pão e manteiga, sopa, vaca, arroz, sobremesa, merenda e ceia de carne; nos dias de magro, peixe fresco ou bacalhau. As gratuitas [pensionistas do Estado] não têm sobremesa, nem leite ao almoço.”38

35. SCML, Fundo da PRC, Correspondência recebida e expedida, 1868, “Relação dos encargos confiados às Senhoras Professoras e mais empregadas do Collegio da Rua da Rosa” (1868-05-12). 36. SCML, Fundo da PRC, Correspondência recebida e expedida, 1875, “Refeitório do Recolhimento da Rua da Rosa. Instrucções.” (sem data), p. 1. 37. Ibidem, p. 2. 38. Relatorio sobre a visita de inspecção extraordinaria às escólas do Districto de Lisboa…, 1866, p. 132.

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| EDUCAÇÃO |

A ESCOLHA DAS MESTRAS ERA REALIZADA PELA REGENTE E APROVADA PELO DIRETOR, DEVENDO ADMITIR-SE, DE PREFERÊNCIA, AS QUE TIVESSEM SIDO EDUCADAS NA CASA, DESDE QUE POSSUÍSSEM AS QUALIDADES REQUERIDAS PARA O CARGO” As refeições deveriam constar dos alimentos determinados nas tabelas estabelecidas pelos facultativos ao serviço do Recolhimento. Em 1884 tinham sido melhoradas as tabelas alimentícias do Colégio, estando estabelecida a quantidade de géneros para cada pessoa em cada refeição39. As educandas tinham ainda direito a uma merenda, que constava apenas de pão. Ao jantar era ainda distribuída uma peça de fruta por pessoa, se fossem peras, laranjas ou maçãs ou, na falta de fruta, a sobremesa deveria constar de queijo nacional, sendo distribuídas cerca de 25 gramas por educanda. O bacalhau podia ser substituído por peixe fresco, desde que não aumentasse consideravelmente a despesa prevista. As refeições dos dias de jejum deviam ser idênticas às das sextas-feiras. No dia de Natal, as educandas podiam ainda comer broas, na Páscoa amêndoas e no Entrudo carne de porco frita. O ENSINO Se a regente tinha a seu cargo a direção da educação, ensino e trabalho das educandas40, às mestras e suas ajudantes estava incumbido o ensino no Colégio, que consistia em “ler, escrever, coser, bordar, desenhar e mais trabalhos próprios das educandas”41. A escolha das mestras era realiza-

da pela regente e aprovada pelo diretor, devendo admitir-se, de preferência, as que tivessem sido educadas na casa, desde que possuíssem as qualidades requeridas para o cargo42. No ano letivo de 1863-1864, dizia Marianno Ghira no seu relatório, comparando o estado do ensino nos dois Recolhimentos, do Calvário e da Rua da Rosa: “Havia [no da Rua da Rosa] menos adiantamento em gramática portuguesa do que no outro Recolhimento [do Calvário]; porém no sistema métrico, e nas prendas de flores e música (piano) estavam as alunas mais adiantadas. Nas outras disciplinas de instrução primária regulavam ambos os estabelecimentos pelo mesmo estado.”43 Em relação às professoras, observava ainda o comissário que estas não possuíam “títulos de capacidade, e todas ou quasi todas foram educadas no Recolhimento”44. Só a partir de 1865, com a contratação de uma professora primária externa, que era também professora da Escola Pública da Freguesia das Mercês, Maria José da Silva Canuto, o programa e método de ensino melhoram, sendo as alunas divididas em três classes, cada uma delas sob a orientação de uma monitora, aluna numa classe mais adiantada. Adotou-se no Colégio da Rua da Rosa o “método de leitura repentina” de António Feliciano de Castilho, também conhecido por “método português”, que esta educadora já seguia fielmente no ensino público do sexo feminino e nas aulas de adultos que ministrava à noite, na “sua” escola, localizada também no Bairro Alto. As educandas passam a ser então ensinadas e avaliadas nas matérias de Leitura, Escrita, Ditado, Caligrafia, Contas, Gramática, Análise e Doutrina, História, Corografia, Sistema Métrico, Desenho, Costura, Bordados, Crochet, Flores, Piano e Canto. Em 1868 existiam duas mestras de instrução primária, duas de costura, uma de flores, uma de

39. Ver também em Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 71, doc. 27. 40. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 13. 41. SCML, Fundo da PRC, Portarias, 1837, Portaria de 1837-04-17 e rascunho dos esclarecimentos prestados pela regente do Colégio da Rua da Rosa em abril de 1837. 42. Decreto de 15 de outubro de 1822, Instrucções…, § 4. 43. Relatorio sobre a visita de inspecção extraordinaria às escólas do Districto de Lisboa…, 1866, p. 132. 44. Ibidem, p. 132.

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| HISTÓRIA E CULTURA |

HORAS

CLASSES

2.ª FEIRA

3.ª FEIRA

4.ª FEIRA

5.ª FEIRA

6.ª FEIRA

1.ª

Escrita

Cálculo prático

Escrita

Cálculo Prático

Escrita

2.ª

Leitura

Sistema métrico e aritmética

Leitura

Sistema métrico e problemas

Leitura

1.ª

Leitura

Leitura

Leitura

Leitura e Gramática

Leitura e lição sobre objetos

2.ª

Ortografia e cópia

Caligrafia e desenho

Ortografia e cópia

Caligrafia e desenho

Ortografia e cópia

1.ª

Cálculo mental

Escrita e cópia

Cálculo mental

Escrita e cópia

Cálculo mental

2.ª

Gramática

Leitura explicada

Gramática

Leitura explicada

Gramática

1.ª

Lição educativa

Moral e doutrina

Desenho

Moral e doutrina

Lição educativa

2.ª

Cálculo prático

Cálculo prático

Moral e doutrina

Cálculo Prático

Lição educativa

3.ª a

Problemas

Gramática

Leitura e lição sobre objetos

Desenho

Leitura e análise

3.ª b

Aritmética e sistema métrico

Ortografia

Redacção

Leitura explicada

Ortografia

3.ª a

Ortografia

Caligrafia e cópia

Gramática

Aritmética e sistema métrico

Caligrafia e cópia

3.ª b

Problemas

Leitura e análise

Ortografia

Caligrafia

Leitura e gramática

3.ª a

Leitura explicada

Leitura

Caligrafia e cópia

Ortografia

Moral e doutrina

3.ª b

Redacção

Moral e doutrina

Leitura e análise

Gramática

Aritmética e sistema métrico

3.ª a

Caligrafia e cópia

Aritmética e sistema métrico

Moral e doutrina

Leitura explicada

Problemas

3.ª b

Leitura e análise

História e Corografia

Aritmética e sistema métrico

História e Corografia

Desenho

9.00 - 9.30

9.30 - 10.15

10.30 - 11.15

11.15 - 12.00

14.00 - 14.30

14.30 - 15.15

15.15 - 16.15

16.15 - 17.00

QUADRO 2. Aulas de Instrução Primária em 1884 As aulas de costura e lavores funcionam às mesmas horas em classes alternadas. A aula de francês funciona às segundas, quartas e sábados A aula de música e piano funciona todos os dias A aula de flores todos os dias para as alunas que tenham obtido aprovação no exame ao Liceu A aula de desenho linear funciona às quintas-feiras Fonte: Recolhimentos da Capital. Relatório apresentado a sua excelência o Ministro e Secretario de estado dos Negocios do Reino, pelo Adjunto servindo de Provedor Domingos Pedro Rezende de Castro Constâncio. - Lisboa: Imprensa Moderna, 1890, p. 70, doc. n.º 26.

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| EDUCAÇÃO |

QUADRO 3. Escolaridade das educandas entradas no Pensionato entre 1875 e 1893 Fonte: SCML, Fundo PRR, Registo de admissão de educandas no Recolhimento da Rua da Rosa, Livro 1 (1875-1926)

SAÍRAM COM APROVAÇÃO ANO DE ENTRADA

Nº ALUNAS ENTRADAS

1875

1

1

1876

6

5

Ensino elementar

1877

2

1

1878

4

1

1879

3

1880

11

1881

6

Ensino complementar

SAÍRAM SEM TERMINAR A SUA EDUCAÇÃO A pedido da família, por doença ou falecimento

Transferidas

1 1

3

1

2

1

5

5

5

1

1882

5

1

4

1883

4

1

2

1

1884

3

2

1

1885

12

8

3

1886

4

3

1

2

1

1887

8

1888

4

4

1

1

1

2

1

1889

8

2

2

2

2

1890

11

1

3

1891

11

3

1892

7

5

2

1893

8

3

5

TOTAIS

118

10

61 71

SÓ A PARTIR DE 1865, COM A CONTRATAÇÃO DE UMA PROFESSORA PRIMÁRIA EXTERNA, O PROGRAMA E MÉTODO DE ENSINO DO RECOLHIMENTO MELHORAM” música, que leciona piano e canto, e uma mestra, coadjuvada por uma ajudante, para o ensino de bordado. O ensino da língua francesa existia já em 1873, com o recurso a uma professora externa.

7 5

3

25

22 47

Também foi contratado um professor para ensinar às alunas do Recolhimento, uma vez por semana, desenho linear. Às alunas do Colégio era apenas ministrado o ensino primário, indo efetuar os exames de aprovação do ensino elementar (1º grau do ensino primário) nas escolas municipais e os exames do ensino complementar (2º grau) ao Liceu. Note-se que nesta altura não existia ainda um único liceu feminino em Portugal45, tendo as meninas de frequentar aulas externas e propor-se a exame, que era realizado num liceu masculino. Do já referido relatório de 189046, apura-se que existiam no Recolhimento da Rua da Rosa um

45. O primeiro liceu feminino em Lisboa – o Liceu Maria Pia – foi fundado apenas em 1906, tendo sido inicialmente criado como escola pública em 1885, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa. 46. Recolhimentos da Capital. Relatório…, 1890, p. 15

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| HISTÓRIA E CULTURA |

CURSO

ESTABELECIMENTO DE ENSINO

Instrução Primária

Pensionato da Rua da Rosa

Geral do Liceu

Maria Amália Vaz de Carvalho

Preparatório / Com- Escola Preparatória Rodrigues plementar Sampaio e Instituto Comercial do Comércio de Lisboa

FREQUENTARAM

Contabilidade

Instituto Comercial de Lisboa

Desenho

Escola de Arte Aplicada

Magistério Primário

Escola Normal de Lisboa

Enfermagem

Escola Profissional de Enfermagem

Superior de Piano

Conservatório Nacional de Música

CONCLUÍRAM

TOTAL

7

7

39

13

52

4

16

20

1

1

1

3

2

2

9

11

5

5

2 2

Não refere

2

Saídas / tranferidas

32

TOTAL

135

total de 14 empregadas, das quais oito eram as professoras e ajudantes, para cinquenta alunas. As aulas de instrução primária continuaram a ser regidas por uma professora externa pertencente à escola pública do sexo feminino da freguesia das Mercês, devidamente habilitada, mas as restantes mestras, na sua maior parte, tinham sido educadas no estabelecimento, não possuindo as habilitações para o exercício do cargo e algumas eram já de idade avançada. Com a reorganização dos dois estabelecimentos – Colégios da Rua da Rosa e Colégio do Calvário –, as educandas e o pessoal docente do Colégio da Rua da Rosa são transferidas para o Recolhimento do Calvário, extinguindo-se o ensino no da Rua da Rosa47. Em 1908 regressa o ensino ao Pensionato da Rua da Rosa48, continuando a ser ministrado apenas o ensino primário. As educandas que pretendiam continuar os estudos eram matriculadas nas escolas da comunidade, conforme as vocações, continuando internadas no estabelecimento, permanecendo no Pensionato até completar a sua educação, com idades entre os 18 e os 21 anos.

QUADRO 4. Escolaridade das educandas entradas no Pensionato - 1912 a 1940 Fonte: SCML, Fundo PRR, Registo de educandas do Pensionato, 1912-1940

AS EDUCANDAS PASSAM A SER ENTÃO ENSINADAS E AVALIADAS NAS MATÉRIAS DE LEITURA, ESCRITA, DITADO, CALIGRAFIA, CONTAS, GRAMÁTICA, ANÁLISE E DOUTRINA, HISTÓRIA, COROGRAFIA, SISTEMA MÉTRICO, DESENHO, COSTURA, BORDADOS, CROCHET, FLORES, PIANO E CANTO” Entre os estabelecimentos de ensino externos que as pensionistas frequentavam, aparecem com mais frequência as referências ao Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, à Escola Preparatória Rodrigues Sampaio, ao Instituto Comercial de Lisboa, à Escola Profissional de Enfermagem e algumas ao Conservatório Nacional de Música e a Escola de Arte Aplicada de Lisboa49.

47. Decreto de 14 de novembro de 1892. 48. SCML, Fundo do PRR, Registo de admissão de educandas no Recolhimento da Rua da Rosa, Livro 1 (1875-1926). 49. A Escola de Arte Aplicada de Lisboa, fundada em 1919, é atualmente a Escola Secundária António Arroio.

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| EDUCAÇÃO |

GRÁFICO 3. Crianças entradas no Pensionato – da integração na SCML, em 1928, a 1940. Fonte: SCML, Fundo PRR, Registo de educandas do Pensionato, Livro 1 (1912-1940).

Número de Entradas 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1

EM 1941 É AUTORIZADA A EXTINÇÃO DO PENSIONATO DA RUA DA ROSA POR PROPOSTA DO ADJUNTO, A SERVIR DE PROVEDOR” Embora não saibamos os destinos profissionais da maioria das educandas50, temos ainda notícia pela mesma fonte de que algumas continuaram a estudar depois de sair do Pensionato, surgindo referências a terem passado, frequentado ou estando matriculadas em cursos superiores no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, na Faculdade de Ciências, na Escola de Belas-Artes ou tendo concluído “os preparatórios do Curso de Medicina”51.

1940

1939

1938

1937

1936

1937

1935

1934

1933

1932

1931

1930

1929

0

Em 192752 é novamente extinto o ensino no Pensionato, transferindo-se, em janeiro do ano seguinte, as educandas com idades compreendidas entre os 7 e os 12 anos que ainda não tinham finalizado a instrução primária, para o Instituto José Estêvão Coelho de Magalhães53. Por sua vez, deste Instituto transferem-se para o Pensionato da Rua da Rosa 16 alunas que frequentavam cursos externos. Nos termos de entrada no Pensionato da Rua da Rosa, posteriores a 1928, menciona-se que a educanda “sairá no fim de terminada a sua educação ou quando a Administração lho ordenar, seja por falta de saúde, por mau comportamento, por falta de aplicação nos estudos ou por qualquer outro motivo”54. Em 1928, quando o Pensionato da Rua da Rosa passa para a administração da Santa Casa da Mi-

50. SCML, Fundo do PRR, Registo de educandas do Pensionato, Livro 1 (1912-1940): dos 135 registos de educandas no período de 1912 a 1940, sabemos apenas o destino profissional de dez educandas: 1 vigilante na Escola Maternal do Alto do Pina, 1 vigilante enfermeira no Sanatório do Outão, 1 empregada na Companhia de Gás e Eletricidade e 7 das que concluíram o Curso de Enfermagem ficaram como enfermeiras nos Hospitais Civis de Lisboa (5 educandas) e no Instituto Médico Central da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (2 educandas). 51. SCML, Fundo do PRR, Registo de educandas do Pensionato, Livro 1 (1912-1940). 52. Decreto n.º 13614, de 17 de maio de 1927. 53. Este estabelecimento situava-se na Rua do Sol ao Rato, nº 6, em Lisboa. 54. SCML, Fundo do PRR, Termos de entrada no Pensionato, Livro 1 (1914-1936), nº 27 de 1928, f. 8.

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sericórdia de Lisboa55, estavam no Pensionato 26 educandas que frequentavam escolas externas (complementares e superiores) e dez senhoras inabilitadas56. Em 194157 é autorizada a extinção do Pensionato da Rua da Rosa por proposta do adjunto, a servir de Provedor58. Diz o despacho do subsecretário de Estado da Assistência Social, Diniz da Fonseca: “A frequência de escolas pela forma como estava sendo feita não é de recomendar, como modalida-

de de assistência e pode com todas as vantagens, e sobretudo no melhor espírito de cooperação com as famílias, ser substituída pelo subsídio para estudo na forma proposta na informação que poderá ser adoptada para as actuais internadas que se verifique dele carecerem e merecê-lo”.59 A Mesa da Santa Casa resolveu então constituir, nos edifícios da Rua da Rosa, o Centro Social nº 1, conservando uma parte das instalações para recolhimento de senhoras60.

BIBLIOGRAFIA Impressas Relatorio sobre a visita de inspecção extraordinaria às escólas do Districto de Lisboa feita no anno lectivo de 1863-1864 e Estatística das mesmas escolas no anno de 1861-1863 pelo Commissario dos Estudos do Districto Marianno Ghira – Lisboa: Typographia da Gazeta de Portugal, 1866. Recolhimentos da Capital. Relatório apresentado a Sua Excellencia o Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Reino, pelo Adjunto servindo de Provedor Domingos Pedro Rezende de Castro Constâncio. Gerencia do anno de 1889-1890. Projecto de reorganização de alguns dos Recolhimentos – Lisboa: Imprensa Moderna, 1890. Manuscritas Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Fundo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) Testamentos, Maço 6, Proc. 16. Correspondência, Caixa 35, Proc. 718 (Pensionato da Rua da Rosa). Fundo do Pensionato da Rua da Rosa (PRR) Mapas do movimento das educandas do Recolhimento da Rua da Rosa, 1890-1893. Matrícula das educandas na Escola Complementar, 1875-1892. Matrícula das educandas na Escola Elementar, 1880-1893. Matrículas dos empregados e educandas, 1857-1865 Registo de admissão de educandas no Recolhimento da Rua da Rosa, 1875-1926. Registo de educandas do Pensionato, 1912-1940. Termos de entrada das pensionistas do estado e porcionistas particulares, 1852-1891. Fundo da Provedoria dos Recolhimentos da Capital (PRC) Contas da receita e despesa dos recolhimentos, 1828-1911. Copiador de ofícios expedidos, 1905-1924. Correspondência recebida e expedida, 1858-1908. Movimento de educandas pensionistas e porcionistas, 1864-1890. Orçamentos da receita e despesa dos recolhimentos, 1841-1913. Portarias, 1821-1908.

55. Decreto nº 15778, de 23 de julho de 1928. 56. SCML, Correspondência, Cx35, Proc.718, informação de 23 de abril de 1928. 57. Ibidem, Despacho de 26 de abril de 1941. 58. Ibidem, Deliberação nº 1 da sessão de Mesa de 30 de abril de 1941. 59. Ibidem, Despacho de 26 de abril de 1941. 60. Ibidem, Informação para despacho de 4 de janeiro de 1944 e deliberação de Mesa de 30 de dezembro de 1943.

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AS CARTAS

DE JOGAR

E OS EXPOSTOS

da Misericórdia de Lisboa Texto de Fernanda Frazão [INVESTIGADORA DE HISTÓRIA DOS JOGOS EM PORTUGAL]

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Mariana, Maria José, Antónia, Caetano, Amada, Ernesto, Constantino, Josefa Henriqueta, Alfredo, Maria e Tecla. Onze crianças nascidas entre 1805 e 1863. A maioria nem um ano viveu. No entanto, carregavam consigo sinais e recados cheios de esperança de um regresso a casa. Deixadas na roda dos expostos, estas onze crianças tiveram em comum cartas de um qualquer baralho, presas aos cueiros. Apensos identificativos para reconhecimento futuro, marcas1 simples com caprichosos recortes.

C

artas batidas, muito manuseadas. O abuso do jogo era muito comum nesta época, como nos mostra a literatura dos séculos xviii e xix, através de Tomás Pinto Brandão, Nicolau Tolentino ou José Daniel Rodrigues da Costa, entre outros. Este último, que compôs mais de cinquenta obras que são um manancial de referências a múltiplos jogos, inicia o seu longo poema Espelho de Jogadores, para correcção dos que por este vício se perdem a si, seus bens e suas famílias com estas estrofes: A experiência que tenho de alguns anos, Em que o jogo me pôs em precipício, A todos os que jogam por ofício, Me faz hoje pregar mil desenganos. É um vício infernal, vício de jogo, É vício que faz tolo o mais agudo; Depois que a gente dá cabo de tudo, Toma o ser pregador por desafogo2. […]

É, pois, para o mundo das cartas de jogar que estas onze crianças nos remetem. Tal como todos os outros países onde as cartas de jogar se introduziram a partir de meados do século xiv, Portugal teve um baralho com um desenho nacional, que foi utilizado até finais do século xix. Este chegou-nos em finais do século xv. Ainda hoje, ninguém sabe onde foi criado nem quem o desenhou, apresentando-se a Itália (Roma ou Sicília) e a Espanha como as hipóteses de origem mais credíveis. A referência mais antiga aos jogos de cartas em Portugal – 23 de dezembro de 1481 – está contida nas Vereações da Câmara Municipal do Funchal: século xv, onde se conta que Martim Leme – filho da família portuguesa do abastado mercador flamengo de Bruges Maerten Lem – foi apanhado a jogar às cartas, num tempo em que esta distração era legalmente proibida3. O baralho português faz parte do tipo de cartas designadas latinas, que inclui também as italianas e as espanholas. Entre nós, era nomeado apenas como “cartas portuguesas”. Afortunadamente, no

1. A catalogação das marcas dos expostos na roda, existentes na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, foi efetuada já há alguns anos. Até ao momento, algumas dessas marcas estiveram patentes ao público em duas exposições, uma em 1987 e a outra em 2001. 2. COSTA, José Daniel Rodrigues da, Espelho de Jogadores, para correcção dos que por este vício se perdem a si, seus bens e suas famílias. Introdução e notas de Fernanda Frazão. Lisboa: Apenas Livros, 2011, p. 5. 3. LEME, Margarida Ortigão Ramos Paes, “Os Lemes – um percurso familiar de Bruges a Malaca”. In Sapiens: História, Património e Arqueologia. [Em linha]. Nº 0 (dezembro 2008), pp. 51-83. Disponível em www.revistasapiens.org/Biblioteca/numero0/oslemes.pdf.

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século passado, Sylvia Mann – colecionadora, investigadora e fundadora de The International Playing Card Society (IPCS), sediada no Reino Unido, uma associação de investigadores e colecionadores de cartas e dos jogos que se foram praticando ao longo dos séculos – apaixonou-se pelo baralho português e pela sua história, espalhada pelo mundo. The Dragons of Portugal é o título do seu livro, publicado em 1973 conjuntamente com Virginia Wayland, uma edição atual da IPCS. Porquê “Os Dragões de Portugal”? Na verdade, este baralho português teve uma caraterística especial que o diferenciava de todos os outros: cada ás tinha o desenho de um dragão, com respetiva pinta na boca: uma espada, uma moca, uma taça e uma moeda. Esse “baralho do dragão” zarpou para o Oriente e para o Brasil, nos bolsos dos marinheiros das armadas de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral4 e, no século XVI, era manufaturado no Japão, onde ainda nos nossos dias se joga com os seus “sucessores”. O rasto do “baralho do dragão” e dos jogos que com ele se praticavam pode vislumbrar-se também na língua de vários grupos étnicos, do Índico ao Pacífico, para não falar, evidentemente, do óbvio Brasil. A designação das cartas, dos jogos e dos passes de jogo pode seguir-se, em português, desde a costa oriental da África, passando pela Índia, Malaca, Celebes, Sri Lanka, Camboja, até chegarmos ao Japão. Vejam-se alguns exemplos dados por Thierry Depaulis5. Na costa oriental de África, «em suaíli, o nome correto das cartas de jogar é karata, os nomes dos naipes são kopa = copas; pao = paus; shupaza = espadas; uru = ouros […]. Existem outros estrangeirismos portugueses óbvios como seti para sete (em jogos de cartas), ulitima para “o último trunfo num jogo de cartas”, kapa para quando se perde um jogo sem marcar qualquer pontuação (em português capa) ou pata para “um empate num jogo de cartas”».

Em Goa, «foram apenas preservadas palavras na língua local, o concani, tais como os nomes dos naipes (copam, ispád, pau), das figuras (rey, kond, sot) e outros termos como bârálh, “baralho de cartas”, káp, “empate”, vâj, “truque” (em português “vasa”), trúmph, espâdilh, manilh… mas não existem nomes de jogos de cartas». No Ceilão (Sri Lanka), persiste um jogo que lembra a Quadrilha e que «usa palavras como rapoor (reporu), que em português se diz “repor”, kudjito (ou kujîdu), quase certamente do português “codilho”, e solo […]. Tarumpu [lembra] o português “trunfo”». Em Malaca, «a comunidade Kristang manteve um vocabulário português para os jogos de cartas – kopas, spada, pau, oru, sota “dama”, trumfu, etc. […]. Um jogo de cartas popular na Malásia no século XIX (com naipes franceses) foi chamado Pakau […] e é possivelmente um jogo de apostas português, o Pacau». No Camboja, «a palavra khmer krâdas, “papel” ou “carta de jogar”, derivou da palavra portuguesa “carta”». Por fim, no Japão, «a terminologia japonesa tradicional dos jogos de cartas é portuguesa: os quatro naipes são chamados ôru, koppu, pau e isu (abreviatura de isupada, em português espada); as figuras são chamadas rei, kaba, sôta; para não mencionar karuta, derivado do português carta». O baralho de cartas foi criado algures no Oriente, há mais de mil anos. Adotado e adaptado na Europa há cerca de seiscentos anos, encerra em si mesmo um complexo simbólico-cultural que atravessa várias eras desde o período tardo-neolítico, que criou as sociedades guerreiras6, até aos nossos dias. Na literatura portuguesa, muitas são as obras que fazem referência a cartas de jogar. Ao longo dos mais de quinhentos anos de prática deste jogo, poesia, anedotários e sermonários contam-nos histórias como a de D. Sebastião a aprender a jogar às cartas ou a do milagre de São Francisco Xavier, nos mares

4. FRAZÃO, Fernanda, História das Cartas de Jogar em Portugal e da Real Fábrica de Cartas de Lisboa, do Séc. XV até à Actualidade. Lisboa: Apenas Livros, 2010. 5. DEPAULIS, Thierry, De Lisboa a Macáçar: um capítulo desconhecido das cartas portuguesas na Ásia. [De Lisbonne à Macassar: un chapitre méconnu des cartes portugaises en Asie]. Lisboa: Apenas Livros, 2008; e programa da Convenção de Lisboa das Associações The international Playing-Card Society e Asociación Española de Coleccionismo e Investigación del Naipe, “Sailing and Gaming around de Indian Ocean with the Portuguese”. Lisboa, 2010, pp. 33-45 (inclui também o texto em português). 6. BENNOZZO, Francesco, Radici celtiche tardo-neolitiche della cavalleria medievale. In Quaderni di Semantica 28, 2007, pp. 461-486. Disponível em www.continuitas.org (acedido em 2013-09-22, 2013-11-25).

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do Oriente, a ajudar um marinheiro a sair de apuros devido ao jogo. Este milagre, por exemplo, é relatado por muitos, entre os quais o Pe. António Vieira, no Sermão V, O Jogo7. No entanto, o baralho teve também muitas outras utilizações que constituem “os traços da história, abandonados sobre as cartas”8. O desenho e as caraterísticas técnicas das cartas de jogar são um testemunho do gosto, do estilo e do fabrico da sua época; os usos dados às cartas, um testemunho do seu último utilizador. Desde o século xvi, pelo me-

Em Portugal, até ao momento, conhecem-se escassos exemplos de reutilização de cartas, para além das que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) possui e que são o objeto deste estudo. Um dos exemplos mais antigos de aproveitamento de cartas de jogar é constituído por pedaços de cartas alemãs que serviram de consolidação a uma encadernação – segundo informação do alfarrabista que as vendeu – e que, atualmente, pertencem ao espólio do Professor Egas Moniz (Casa-Museu, Avanca, Estarreja) e à coleção de Manuel Capucho.

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NA LITERATURA PORTUGUESA, MUITAS SÃO AS OBRAS QUE FAZEM REFERÊNCIA A CARTAS DE JOGAR. AO LONGO DOS MAIS DE QUINHENTOS ANOS DE PRÁTICA DESTE JOGO, POESIA, ANEDOTÁRIOS E SERMONÁRIOS CONTAM-NOS HISTÓRIAS COMO A DE D. SEBASTIÃO A APRENDER A JOGAR ÀS CARTAS OU A DO MILAGRE DE S. FRANCISCO XAVIER, NOS MARES DO ORIENTE, A AJUDAR UM MARINHEIRO A SAIR DE APUROS DEVIDO AO JOGO nos – segundo Gesus van Diggele, colecionador e investigador nesta área –, alguém as aproveitou para escrever bilhetes de amor, recados diversos, notas de música, truques de magia, reconhecimento de dívidas, ilustrações eróticas, convites de casamento e de baile, etc. E chegaram a ser, oficialmente, utilizadas como dinheiro, mesmo entre nós. Como nota o investigador Gesus van Diggele9, “a maior parte das cartas foi reutilizada por pessoas ricas ou remediadas”. Era gente de uma certa camada social instruída, que sabia escrever e que demonstrava ter alguma posição nas áreas dos negócios, da administração ou da arte. “Para reconhecer e compreender este fenómeno de reutilização das cartas de jogar, é necessário tomar consciência da vida social e dos costumes de uma certa época”10.

Antes de 1516, Garcia de Resende escreveu 48 trovas sobre um baralho – as cartas portuguesas não continham o 10 –, por encomenda de D. Manuel, para divertir um sarau palaciano, e cujos textos constam do Cancioneiro Geral (1516): “em cada carta sua trova escrita e são vinte e quatro das damas e vinte e quatro d’homens. São doze de louvor e doze de deslouvor”11. Em 1709, um “livro mágico”, manuscrito, intitulado Jardim de Vários Segredos e Jogos de Mãos – pertencente ao ilusionista e bibliófilo António Ribeiro –, inclui alguns exemplares do baralho mais antigo que até hoje se conhece em Portugal, proveniente do contratador-geral do Estanco das Cartas de Jogar e Solimão, Alexandre Pimentel (1693-1699).

7. Publicado inicialmente em VIEIRA, Pe. António, Xavier dormindo e Xavier acordado, dormindo. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1694, transcrito, tal como as outras histórias citadas, in FRAZÃO, Fernanda, Fontes para a História dos Jogos em Portugal. Lisboa: Apenas Livros, 2012. 8. DIGGELE, Gesus van, Petites Cartes, Grandes Histoires. Rijndijk, Fondation “Wist jij dat?”, 2005, p.15. 9. Idem, ibidem, p.15. 10. Idem, ibidem, p.18. 11. FRAZÃO, Fernanda, No Tempo em que Jogar às Cartas Era Proibido. Lisboa: Apenas Livros, 2004.

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Em 1797, em Moçambique, durante um breve espaço de tempo, as cartas de jogar foram dinheiro em circulação. “Num contexto de quebra do tráfego comercial e de aumento das despesas com a defesa, em 1797, foi criada a dívida pública pela emissão de inusitados assinados feitos com cartas de jogar, o que provocou uma enorme inflação.”12 Por fim, dois exemplos de museus portugueses.

em mãos de privados – e ajudar a sustentar a recém-criada Impressão Régia14. Ora, as cartas destes expostos são, por si mesmas, um pequeno tesouro, dado que o Arquivo Histórico da Imprensa Nacional/Casa da Moeda, onde se encontra o que resta do valioso património da Real Fábrica, não possui um único exemplar dos baralhos que fabricou.

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EM PORTUGAL, ATÉ AO MOMENTO, CONHECEM-SE ESCASSOS EXEMPLOS DE REUTILIZAÇÃO DE CARTAS, PARA ALÉM DAS QUE A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA POSSUI E QUE SÃO O OBJETO DESTE ESTUDO Uma mesa do século xix, do Museu Nacional de Arte Antiga, incluiu, no tampo, duas cartas de tipo espanhol mas de fabrico português. No Museu de Arte Popular existia, no final da década de noventa do século xx, um cone truncado feito com cartas de jogar e destinado a auxiliar a feitura de canos de meia. Desconhece-se, entretanto, se ainda se mantém no acervo do museu. Como tem sido referido várias vezes13, a SCML possui no seu Arquivo Histórico uma coleção, de valor inestimável, de sinais que acompanharam algumas crianças abandonadas/entregues aos cuidados desta instituição. Entre eles, cartas de jogar. Algumas são identificáveis: pertencem à Real Fábrica de Cartas de Jogar de Lisboa, que teve o monopólio do fabrico e venda de cartas de jogar entre 1769 e 1832. Esta manufatura de cartas de jogar foi criada pelo marquês de Pombal, por alvará de 31 de julho de 1769. Teve duas finalidades: passar para a administração do Reino o Contrato do Estanco das Cartas de Jogar – que se encontrava, pelo menos desde 1600,

Porém, antes de falarmos sobre este espólio específico da SCML, é necessário fazer-se uma pequena contextualização histórica acerca do abandono de velhos, doentes e crianças. Ao longo dos tempos, a sobrevivência da espécie humana, em especial do adulto saudável, obrigou a práticas que hoje parecem cruéis. Nos grupos humanos de caçadores/ recoletores, os velhos incapazes de recolher o seu alimento ou de acompanhar o andamento devido a doença, afastavam-se para morrer (eram disso exemplo as velhas esquimós). Na antiga Lusitânia, segundo Estrabão, havia o costume de expor os doentes numa encruzilhada, para serem tratados, eventualmente, por algum transeunte que soubesse como fazê-lo15. Na tradição popular portuguesa restam memórias de velhos atirados pelos filhos a um poço ou a um barranco e, também, de “abafadeiras”16, que sufocavam doentes terminais. O mesmo se passava com as crianças. As mulheres às quais eram entregues os recém-nascidosindesejados,designavam-se“tecedeirasdeanjos”17.

12. RODRIGUES, Eugénia, Antropónimos, SOUSA, D. Diogo de (1755-1829). Disponível em www.fcsh.unl.pt/cham/eve/content. php?printconceito=1111 (acedido em 2013-08-28). 13. Ver bibliografia. 14. Ver nota 3. 15. SOARES, José Maria, Memórias para a História da Medicina Lusitana. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1821, p. 5. 16. ALVES, Francisco Manuel, abade de Baçal, “Os Judeus no Distrito de Bragança”. In Bragança: Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. s. l.: Câmara Municipal de Bragança/Instituto Português de Museus – Museu do Abade de Baçal, 2000, t. V; VASCONCELOS, José Leite de, Etnografia Portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1967, vol. 4; SCHWARZ, Samuel, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século xx. Lisboa: Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, 1993. Creio que não terá sido apenas uma prática judaica. 17. QUEIRÓS, Eça de, O Crime do Padre Amaro, cap. XXIII. Disponível em http://pt.wikisource.org/wiki/O_Crime_do_Padre_Amaro/XXIII (acedido em 2013-10-06).

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A história do infanticídio e do abandono legal de crianças é conhecida e tida como fenómeno banal no Ocidente desde a Antiguidade18. Em Portugal, na Idade Média e até à criação dos hospitais de expostos, no século xvi, as crianças enjeitadas eram confiadas por lei às câmaras municipais, que as entregavam a amas pagas por fundos concelhios. Em 1543 – 45 anos depois da criação da Misericórdia de Lisboa – a responsabilidade pelas crianças abandonadas passou para esta instituição, à qual foi entregue, em 1564, o Hospital de Todos-os-Santos, onde existia uma roda de expostos19. As razões do abandono destas crianças eram diversas. A entrega de algumas crianças não teria intenção definitiva, como é referenciado em muitas das notas que as acompanhavam20. Por isso, nestes casos, além das notas que, por vezes, forneciam dados como o nome, o batismo, os nomes próprios dos pais, o estatuto social, etc., os progenitores acrescentavam objetos através dos quais as crianças pudessem ser identificadas: as chamadas marcas dos expostos. É este o caso das cartas de jogar e, também, de bilhetes de lotaria e de um dado. Não nos é possível conhecer as intenções subjacentes a estas marcas. Talvez quisessem significar o aleatório da vida ou tivessem que ver com as razões para o abandono, já que o jogo foi um flagelo social, em especial durante os séculos xvii a xix. OS ONZE EXPOSTOS E AS “SUAS” CARTAS DE JOGAR 1805 LIVRO 44, ENTRADA Nº 266 – MARIANA. Batizada na Real Casa dos Expostos (RCE), foi entregue na roda a 25 de fevereiro, pelas nove horas e meia da noite. Vestia “camisa, um cueiro de baeta roxa, atada com uma liga de lã encarnada e, na cabeça, um pano branco; tudo velho”. Faleceu a 23 de junho desse ano.

SINAL Nº 266 de 1805

Carta: 5 de ouros. Tipo de costas desconhecido. É, com toda a probabilidade, da Real Fábrica de Cartas de Jogar de Lisboa (RFCJL).

SINAL Nº 391 de 1814

1814 LIVRO 64, ENTRADA Nº 391 – MARIA JOSÉ, FILHA DE ANTº. Batizada na RCE, entrou na roda a 19 de março, pelas quatro horas e um quarto da tarde. Trazia “camisa de

18. SÁ, Isabel dos Guimarães, “Prefácio”. In Inventário da Criação dos Expostos do Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Lisboa: [SCML], 1998, pp. IX-XXXII. 19. Idem, ibidem e MANOEL, Francisco d’Orey; MORNA, Teresa Freitas, “Os Expostos da roda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Uma exposição com catálogo”. In Cidade Solidária. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, nº 7, Ano IV, 2001, pp. 108-115; DIAS, Ana Rita Botelho Moniz, O abandono de crianças na roda dos expostos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no século xviii e xix. Dissertação de mestrado em Psicologia Clínica e Psicopatologia, 2007. Disponível em http://hdl.handle.net/10400.12/482. 20. MANOEL, Francisco d’Orey, “A voz dos sinais”. In Cidade Solidária. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Ano IX, 2006, pp. 76-85.

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bretanha com tira e punhos de cassa, um cueiro de baeta encarnada, e outro de baeta amarela debruado à roda de chita branca e amarela, volvedouro de algodão, touca de cassa bordada, cinto um ourelo de baeta azul e traz ao pescoço uns fios de retrós preto, tudo velho, e vem doente dos olhos”. Faleceu a 10 de abril desse ano. Carta: recortada onduladamente, aparentando ser o 8 ou o 9 de copas, com cinco copas. Costas da RFCJL.

SINAL Nº 273 de 1816

SINAL Nº 1354 de 1816

SINAL Nº 1229 de 1835

1816 LIVRO 68, ENTRADA Nº 273 – ANTÓNIA. Batizada na RCE, foi entregue na roda a 18 de fevereiro, pelas sete horas e um quarto da noite. “Traz vestida camisa de bretanha sem tira, dois cueiros de baeta, um azul ferrete e o de cima amarelo, roupinhas de algodão de pelo branco, na cabeça lenço de três pontas de algodão, tudo usado, exceto o cueiro amarelo, que é novo.” Faleceu a 4 de julho desse ano. Carta: metade de uma carta do naipe de copas, com cinco símbolos, e um laço de retrós verde. A disposição dos sinais é incomum, pelo que não é fácil identificar a proveniência. Nesta data funcionava ainda o sistema monopolista da RFCJL, mas, apesar disso, fabricavam-se clandestinamente e entravam pelas fronteiras cartas de outras proveniências, designadas genericamente “de contrabando”. 1816 LIVRO 69, ENTRADA Nº 1354 – CAETANO. Batizado na RCE, foi entregue na roda a 8 de outubro, às dez horas e meia da manhã. Vestia “camisa de algodão sem tira; volvedouro do mesmo; dois cueiros de pano pardo; saia de chita azul ferrete com salpicos brancos; roupinhas de chita verde com lavor de cores; na cabeça lenço de cassa; por mantilha um cueiro de droguete pardo, com um bocado de chita irmão da saia; cinto, uma fita de linha cor-de-rosa tudo velho”. Faleceu na ama a 19 de maio de 1821. Carta: carta de copas, com costas da RFCJL. Será o 7 ou o 8 de copas e vinha “pregado no peito, com um bocado de fora”. 1835 LIVRO 107, ENTRADA Nº 1229 – AMADA. Batizada na RCE, foi entregue na roda a 4 de julho, às dez horas e três quartos da manhã. Trazia “camisa de paninho, um cueiro de cobertor e debruado, vestido de riscado encarnado e verde, touca de cassa bordada,

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tudo velho”. Morreu na ama a 1 de outubro desse ano. Carta: conde (antiga designação do valete) de espadas, recortado em ziguezague. Calcogravura, pintada à mão, de proveniência desconhecida. Em 1832 foi liberalizado o fabrico e comércio de cartas. 1836 LIVRO 109, ENTRADA Nº 1318 – ERNESTO. Batizado na RCE com nome indicado no bilhete que o acompanhava; foi entregue na roda a 18 de agosto, às sete horas e três quartos da tarde. Vestia “camisa de algodão e linho, cueiro de baeta branca, vestido de riscadinho amarelo, na cabeça um meio lenço de cassa, tudo velho e não traz a touca em que fala [‘touca de bobinete com uma fita azul clara’]”. Faleceu na ama a 25 de setembro desse ano. Carta: rei de copas, recortado em ziguezague. Calcogravura, pintada à mão, de proveniência desconhecida.

SINAL Nº 54 de 1841

SINAL Nº 1318 de 1836

SINAL Nº 1858 de 1841

1841 LIVRO 114, ENTRADA Nº 54 – CONSTANTINO. Batizado na RCE com nome indicado na nota que o acompanhava; foi entregue na roda a 9 de janeiro, às dez horas e meia da manhã. Vestia “camisa e fralda de algodão; cueiro de pano de quadros encarnados e pretos; volvedouro de baetilha branca; roupinhas de flanela; touca de cassa bordada, com fita de seda verde; tudo velho exceto o volvedouro que é novo”. Na nota que o acompanhava, diz-se que é filho legítimo e pede-se que se mande anunciar a entrada no próximo Diário do Governo, ass. J. Coelho. Carta: conde de copas (baralho reversível), recortado em ziguezague. Calcogravura, pintada à mão, de proveniência desconhecida. Nas costas, tem a informação de que o menino nasceu naquele dia, às quatro da manhã. 1841 LIVRO 115, ENTRADA Nº 1858 – JOSEFA HENRIQUETA. Batizada na RCE com o nome indicado na nota que a acompanhava; foi entregue na roda a 2 de dezembro, às oito horas e meia da noite, já com 2 anos e meio. Trazia “camisa e calças de algodão; vestido e saia de baetilha branca, no cinto uma fita, nova, de linha branca; meias brancas de algodão e sapatos de sarja de seda branca com bicos de polimento e botões amarelos; na cabeça um lenço branco com pintas encarnadas, tudo mais velho”. Na nota infor-

ma-se que a menina foi entregue por falta de meios e que irão buscá-la “a todo o tempo que haja meios”. Carta: meia carta de ouros (um 9 ou um 10), recortada em ziguezague. Costas sem pintas. Proveniência desconhecida. 1845 LIVRO 119, ENTRADA Nº 264 – ALFREDO. Batizado na RCE com o nome indicado na nota que o acompanhava, foi entregue na roda a 7 de fevereiro, às onze horas e meia da manhã. Tinha nascido no 147

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SINAL Nº 264 de 1845

SINAL Nº 97 de 1863 SINAL Nº 437 de 1855

do baralho comemorativo da Convenção de Évora Monte, isto é, da capitulação dos miguelistas em 1334, que pôs termo ao período das Lutas Liberais. O percurso público deste baralho começou em fevereiro de 1837.

dia anterior. Vestia “camisa e volvedouro de algodão; fralda de paninho; dois cueiros de baetilha branca; vestido de chita roxa com raminhos encarnados e cor de café; cinto, uma fita de linha branca; na cabeça, um lenço branco com risca encarnada; vinha embrulhado em meio xaile de baetilha roxa; tudo novo, excepto a fralda e o xaile, que são velhos”. Faleceu na ama a 16 de maio desse ano. Carta: meia carta do 8 de copas, recortada onduladamente, ao alto. Tem inscrita a data de nascimento do menino. A nota informa ser uma carta do “baralho azul”. Trata-se, com quase total certeza,

1855 LIVRO 134, ENTRADA Nº 437 – MARIA. Batizada na RCE com o nome indicado na nota que a acompanhava; foi entregue na roda a 2 de março, às oito horas e um quarto da noite. Além da carta, trazia “três vinténs de prata, pendentes de uma fitinha verde e branca”. Vestia “camisa e fralda de algodão, dois cueiros de baeta, um amarelo-escuro e outro verde, volvedouro de baetilha branca, vestido de chita encarnada e branca, dois meios lenços brancos, um no pescoço e outro na cabeça, vinha envolvida em um xaile de algodão riscado”. Faleceu na ama a 23 de abril desse ano. Carta: 7 de ouros; carta inteira. Costas com pintas vermelhas. Proveniência desconhecida. Nas costas diz-se que, quando se reclamar a criança, será pago o que for preciso. 1863 LIVRO DE ENTRADAS E BATISMOS DE 1863, REG. DE BATISMO Nº 97 (que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, cota IAN/ /TT/SGU/2652) – Registada com o nome de Tecla

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(e não Guilhermina Maria, nome que vinha inscrito no sinal). Segundo a nota que a acompanhava, entrou na Santa Casa pelas oito da noite de 12 de janeiro. Vestia “camisa de paninho, fralda e envolvedouro de pano de linho, dois cueiros de baeta branca, vestido de chita roxa, um barretinho de algodão, touca de bobi-

nete com fitas brancas; orelhas passadas com retrós preto”, ou seja, furadas e com linha preta. Faleceu na ama a 31 de julho desse ano. Carta: duas meias cartas recortadas – rei de paus e rei de espadas. Cartas reversíveis; calcogravura, pintada à mão. Costas desconhecidas. Proveniência desconhecida.

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AS ESCOLAS MATERNAIS DE

Ilda de Bulhão Pato

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Texto de Maria Honrado [TÉCNICA SUPERIOR_CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA/DEPARTAMENTO DE MARCA E COMUNICAÇÃO]

1. Dissertação do mestrado em Estudos sobre as Mulheres, As Mulheres na Sociedade e na Cultura, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, defendida em 12 de outubro de 2012 pela autora.

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Ilda Adelina Jorge de Bulhão Pato afirmou-se como educadora, feminista e republicana. Interveio social e politicamente. Idealizou uma Escola Maternal e pôs de pé o Jardim de Infância da Ajuda. Importa lembrar o que a tornou grande, uma memória que já só permanece praticamente em família.

“A

li encontrava brincando, muitas crianças pobres, andrajosas, sem irem à escola, e isto comovia-me. Comecei a falar com elas e então soube a desdita de muitas, algumas não iam à escola porque não tinham fatos limpos e nem tinham que comer; na rua desta maneira andavam e até comida recebiam de algumas senhoras. Estas tristes narrações apoquentavam-me, mas também me iam fortalecendo. Comparava as nossas vidas, julgava-as bem mais infelizes do que eu e assim fui melhorando. “No próprio Jardim da Estrela, encontrei tanta criança desditosa”2. Assim tudo começou. Consequência de uma recuperação lenta de saúde, Ilda Adelina Jorge começou a olhar em volta. Descobriu no Jardim da Estrela crianças soltas – a meio caminho da delinquência, muito próximas de se perderem – por causa das condições de pobreza extrema de muitos lisboetas. Filhos e filhas das mulheres e dos homens que Cesário Verde3 tão bem descreve. As linhas atrás transcritas, são da autoria de Ilda Jorge, contando o que sentiu pelos anos de 1905-06. Ilda nasceu no último quartel do século xix, em Lisboa, a mais velha de três irmãos. O pai,

Francisco José Jorge, escultor e entalhador de madeira, trabalhou com Leandro Braga4 no restauro de importantes palácios e igrejas de Lisboa, como a Ajuda ou a da Madre de Deus. Da mãe, Custódia Maria da Conceição Jorge, Ilda recebeu amizade, companheirismo, apoio para os sonhos de realização pessoal e profissional. Desde muito cedo, quando a acompanhava ao Liceu dos Loios, o apoio ao primeiro namoro, as conferências que queriam ouvir e tantos episódios mais. É a convicção que fica a quem a escuta ao longo do seu Pedaços da Minha Vida, escrito aos 88 anos, a pedido dos filhos e a eles dirigido, onde se constata uma memória quase intacta e uma lucidez enorme na avaliação do passado. Embora os irmãos, João e Deolinda, tenham construído as suas vidas com alegrias e tropeços, a amizade profunda e generosa entre os três foi uma realidade. Filha de um homem de espírito aberto, quando comparado com a maioria dos pais do seu tempo no que diz respeito à instrução das mulheres – atente-se aos censos datados de três anos antes de Ilda completar a instrução primária5 –, mas não tão aberto que lhe permitisse facilmente continuar a estudar.

ILDA ADELINA JORGE de Bulhão Pato e filhos, Nuno (à esquerda) e Rafael (à direita), Lisboa, 1945. Arquivo privado da família Bulhão Pato

2. BULHÃO PATO, Ilda Adelina Jorge de – Pedaços da Minha Vida. Lourenço Marques: 1971. Manuscrito (inédito). Arquivo privado da família Bulhão Pato. 3. Poeta de Lisboa, nascido em 1855 e que viria a falecer em 1886, vítima de tuberculose. Deixou trabalho de altíssima qualidade disperso por várias publicações que o amigo Silva Pinto reuniu n’O Livro de Cesário Verde. Recorda-se sempre o poema intitulado O sentimento de um ocidental, havendo evidentemente outros que também exprimem esta realidade. 4. Leonel, no original. No entanto, é suposto tratar-se de Leandro Braga pelas intervenções mencionadas no manuscrito. 5. Pela leitura do quadro dos Censos de 1890, apresentado no trabalho dirigido por António Candeias Alfabetização e Escola em Portugal nos Séculos XIX e XX. Os Censos e as Estatísticas, editado pelo Serviço de Educação e Bolsas da Fundação Calouste Gulbenkian, na sua 2ª edição (2007), a percentagem do total da população alfabeta de idade igual ou superior a 10 anos era de 24%, sendo que esta para o total masculino era de 32% e o total feminino de 16%.

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ESTE SÉCULO XIX EM QUE ILDA ADELINA JORGE NASCE, HÁ BASTANTE MAIS DE CEM ANOS, FOI UM TEMPO TURBULENTO, RICO EM IDEIAS, GENEROSO, PROGRESSISTA, POSITIVISTA, REVOLUCIONÁRIO. AS IDEIAS NOVAS CHEGAM A PORTUGAL COM ATRASO, MAS CHEGAM FORMAÇÃO E INFLUÊNCIAS Este século xix em que Ilda Adelina Jorge nasce, há bastante mais de cem anos, foi um tempo turbulento, rico em ideias, generoso, progressista, positivista, revolucionário. As ideias novas chegam a Portugal com atraso, mas chegam. Assim se foram implantando os ideais da Revolução Francesa – para alguns entendidos, desdobramentos da caridade trazida por Cristo – as doutrinas liberais, socialistas, republicanas, anarquistas e feministas. E contrárias como o integralismo lusitano, o comunismo, o fascismo ou nazismo, estas últimas já no século xx. São aqui referidas porque a vida longa de Ilda permite lembrá-las a todas. Se para a formação de Ilda Adelina Jorge se consideram relevantes todas as doutrinas e ideias do século xix, porque contribuição importante, não menos são as que viveu. As armas que a sua formação lhe proporcionou permitiram-lhe ao longo de 90 anos ser mulher e cidadã, plenamente. Ao ler o seu Pedaços da Minha Vida, encontram-se os primeiros traços da personalidade de Ilda Adelina Jorge, logo que termina a escola primária, aos 10 anos. A vontade forte e a sede grande de aprender são fundamentais, bem como a capacidade de argumentar e convencer. Desde o Liceu dos Loios – que abandona pelas dificuldades de acesso – à Escola Industrial do Príncipe Real, onde faz a sua formação secundária, até se formar professora primária pelo Método João de Deus. Foi uma verdadeira luta convencer o pai a deixá-la estudar. Este queria-a em casa – dentro do espírito da época. Crê-se que Ilda aprendeu por esta altura a força da argumentação, a persistência e a coerência que se encontra ao longo do seu percurso. Tudo porque tinha fome verdadeira de aprender tudo quanto pudesse e vontade de transmitir conhecimentos. Terminada a instrução primária, Ilda vai convencendo o pai a deixá-la continuar os estudos e, ao

mesmo tempo, começa a ensinar alunas na sua casa. Umas pagavam, outras não. Tinha 11, 12 anos, e já o futuro se adivinhava: ensinar. As crianças soltas do Jardim da Estrela foram a mola do sonho – que acompanhá-la-ia para sempre – do que queria fazer da sua vida e pelas crianças da sua cidade. Soube que a família João de Deus preparava professores pelo método que recebeu o mesmo nome. Candidatou-se, foi aceite, completou a formação e começou a dar aulas. Assim, em 1907, Ilda Adelina Jorge vai para Setúbal à frente da 193ª Missão Escolar. Dedicar-se-á ao ensino dos filhos dos pescadores durante o dia; à noite, instruindo mulheres das fábricas, a pedido destas. Também à noite, ensinará o Método João de Deus – habilita futuros formadores que depois receberão das mãos de D. Guilhermina Battaglia Ramos o diploma – a oficiais e sargentos da unidade militar de Setúbal. Estes darão início ao que mais tarde se chamou Escolas Regimentais. Releve-se que as aulas noturnas às operárias, como aos militares, foram voluntárias. Ilda não recebeu pagamento. Esta passagem pela cidade de Setúbal, esta experiência de ensino, permanecerá na sua memória como um tempo, uma cidade e pessoas que a fizeram muito feliz. Período em que se sentiu plenamente realizada, útil e devidamente apreciada pelo trabalho que realizou. Na verdade, Ilda foi acolhida pela família João de Deus, principalmente por D. Guilhermina Battaglia Ramos e o filho, João de Deus Ramos, com quem conviveu de perto e criou laços que nem a morte desapertou. Deste convívio estreito acabou por integrar a intelectualidade republicana, a militância republicana e feminista. Sublinhem-se as relações de amizade e profissionais com a elite republicana que, imbuída de espírito messiânico, pretendeu mudar e construir um Portugal com melhor escola,

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melhor sentido cívico. Era, de facto, portadora dum espírito novo. Ilda acreditava que as grandes obras, e as pequenas, se conseguem pelo trabalho conjunto, pelo associativismo e, principalmente, pela escola, porque tudo começa na escola! Data destes anos do fim da monarquia o início das relações de amizade e de admiração mútua com Ana de Castro Osório. É através dela que Ilda Adelina Jorge publica o seu primeiro artigo, que escrevera no Jardim da Estrela quando concluiu que não bastava lamentar verdadeiramente essas crianças; era preciso salvá-las, reunir ajuda. Por isso, “Aos Amigos das Crianças” é o título do seu primeiro artigo. Foi publicado n’A Vanguarda, a 30 de dezembro de 1906, jornal dirigido então pelo grande republicano e maçon Sebastião de Magalhães Lima, recomendado por Ana de Castro Osório. Fundamental para a mulher que Ilda Adelina Jorge de Bulhão Pato viria a ser, além da família de origem, foi a do poeta João de Deus. Através dela tomou contacto com a educação, o feminismo, o republicanismo e as vertentes de cada um destes conceitos. Enuncie-se, brevemente, António José de Almeida, Teófilo Braga, Bernardino Machado, Elzira Dantas Machado e a filha, Teixeira Gomes, António Aurélio da Costa Ferreira6, e tantos mais, representativos da elite que Ilda Adelina Jorge integrou tão verdadeira e autenticamente. A correspondência na posse da família Bulhão Pato revela bem o grau elevado de amizade, consideração e respeito que lhe dedicavam. REPUBLICANA E FEMINISTA Do republicanismo de Ilda, julga-se poder afirmar que acreditou até ao fim que este regime era o meio mais justo e eficaz de chegar ao progresso do país e dos seus habitantes. Nas suas palavras, escritas ou ditas em família – os netos Nuno e Amélia ainda hoje as lembram –, lutou tanto quanto pôde pela querida República. Neste tanto quanto pôde, além das ações de caráter sigiloso – é bom lembrar as ações policiais de vigilância e repressão da monarquia à atividade republicana – que terá tido, e de que não existirão documentos, deve mencionar-se a atividade na Associação das Escolas Móveis pelo Método João

ILDA ADELINA JORGE, Lisboa, ca.1908. Oferecida a Nuno de Bulhão Pato. Arquivo privado da família Bulhão Pato

de Deus, na Liga Nacional de Instrução, a participação no plebiscito feito às mulheres republicanas, e a militância na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, de que o jornal O Mundo, entre outros, dava conta. Do seu feminismo, tem de se recorrer aos Pedaços da Minha Vida para lhe conhecer a génese e o sentido que lhe deu. Encontra-se uma Ilda Adelina Jorge profundamente tocada pela falta de meios de todo o tipo que impediam as mulheres de potenciar o seu valor, de cumprir a sua missão de seres humanos; do mais básico, como a falta de instrução, apoios à maternidade e à educação dos filhos. Não poderia haver progresso enquanto as mulheres não soubessem ler, escrever, regras básicas de higiene, alimentação e saúde, e tanto mais. Demonstram bem os Censos, ao longo do século xix e muito pelo xx dentro, a constância da desproporção entre população alfabetizada e não alfabetizada. As implicações económicas de tal situação foram graves. Um país com uma mão-de-obra tão rudimentar, de salários muito baixos, não poderia deixar de ser um país de produção fraca,

6. António Aurélio da Costa Ferreira (Funchal, 1879-1922, Lourenço Marques). Primeiro diretor da Casa Pia de Lisboa após a implantação da República. Licenciado em Medicina em 1905 pela Universidade de Coimbra, foi um importante pedagogo e antropólogo, deputado e ministro do Fomento. Brito Camacho, enquanto alto-comissário em Moçambique, convida-o para uma missão de estudos antropológicos naquele território. Foi padrinho de casamento de Ilda Adelina Jorge de Bulhão Pato.

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ILDA ADELINA JORGE e Nuno de Bulhão Pato, Lisboa, ca. 1912. Arquivo privado da família Bulhão Pato

em quantidade e em qualidade; de consumo interno baixíssimo. Nesta sociedade tradicional, as mulheres desempenham um papel fundamental, pilar da economia familiar, mesmo com o seu trabalho fora de casa. Os custos económicos e sociais da falta de preparação são enormes. A incapacidade para gerir os meios de que dispõem tem sinais imediatos: mortalidade infantil e juvenil, doença, criminalidade e, claro, agravamento da pobreza. Sinais que Ilda identificou muito cedo, testemunhou ao longo da vida, e que quis, muito cedo também, apagar. Quanto à sua conceção de educação, educar crianças, cuidar delas, não pode ser desligada da militância republicana e da feminista. Porque do contacto com estas duas doutrinas lhe chegaram os meios para a formar. Quando compara uma criança “a uma plantinha, que precisa de ser alimentada, regada, podada, para que um dia possa vir a ser uma árvore frondosa onde as pessoas se possam abrigar”7, assume a ligação ao Culto da Árvore, da Festa da Árvore8, tão cara ao republicanismo. Como o olhar dirigido às crianças pobres, não pode desligar-

-se da situação abominável das mulheres do povo, mais mal pagas do que os homens, trabalhando fora de casa sem a plena maternidade, não saberem defender-se porque não instruídas, e muito mais. Enfim, não pode desligar-se do olhar novo que o feminismo traz à outra metade da humanidade. Será mais um ponto de rutura entre republicanas e monárquicas que se destacaram na segunda metade do século xix: aquelas sentiam ser tempo, sentiam necessário dar às mulheres a possibilidade de sair do papel tradicional, de seguir uma profissão. Para muitas, como Ana de Castro Osório, era tão-somente possibilitar a escolha. Assim, devia instruir-se a mulher e, escolhendo trabalhar ou dedicar-se exclusivamente à família, que fosse eficaz e competente. Escolha é autonomia, é cidadania. Estas três caraterísticas – educação, feminismo e republicanismo – são marcas essenciais de Ilda de Bulhão Pato ao atender-se à sua ação no espaço público, fora do âmbito do privado, no exercício pleno da sua cidadania. Afirma-se que foi herdeira espiritual de Guilhermina Battaglia Ramos e de Ana de Castro Osório, mas há em Ilda Adelina Jorge algo que a distingue, enquanto feminista. Considerava importantíssima – pelo abandono a que as crianças eram votadas – a educação das mulheres do povo. Ensinando as mães, protegia-se melhor as crianças. É importante lembrar que se estava numa fase do feminismo português, convicto de que cabia às mulheres o papel de educadoras e de responsáveis exclusivas da harmonia do lar. O território tradicionalmente feminino mantinha-se, no entender destas primeiras feministas, exclusivamente feminino. O SONHO DA ESCOLA MATERNAL Em Ilda Adelina Jorge, afirma-se que do desejo verdadeiro de ajudar e das leituras do que se fazia na Europa – trazidas por João de Deus Ramos, em con-

7. Discurso que fez no Belém-Clube, na festa organizada pelo jornal Comércio da Ajuda, em 30 de maio de 1936, festa de apoio e angariação de fundos para instituir o Jardim de Infância da Ajuda, organizado pela associação com o mesmo nome, fundada em 1937, mas com trabalho realizado por uma comissão organizadora desde o fim do ano de 1934. Arquivo privado da família Bulhão Pato. 8. Dos últimos anos da monarquia data a primeira Festa da Árvore, iniciativa da Liga Nacional de Instrução, que se realizou no Seixal em 26 de maio de 1907. A partir desta altura, pelas escolas de todo o país festeja-se a Festa da Árvore, com solenidades várias, como a defesa e apologia da proteção, a plantação de árvores, entre outras. Consequência de um processo de desarborização ocorrido ao longo do século XIX, no princípio do século seguinte foi estabelecido o regime florestal, que permitiu ao Estado dar início a um processo de reflorestação do país. Em 1908, a promoção da Festa da Árvore passa para a alçada da Direção-Geral da Instrução, tendo sido a Liga a sua principal dinamizadora, presidida por Bernardino Machado. Mais tarde, sucede-lhe neste papel o jornal O Século Agrícola. Com a Grande Guerra, a Festa da Árvore perdeu importância e impacte. Não se pode desligar o culto da árvore do republicanismo, pois foi desde logo uma manifestação abraçada pelos mais ilustres republicanos e sofreu grande oposição, tanto de monárquicos como de católicos.

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sequência de uma viagem recente – idealizou a sua Escola Maternal e foi este o seu sonho! Trabalhou ativamente na Associação das Escolas Móveis pelo Método João de Deus, empenhou-se na fundação dos Jardins Escolas João de Deus, fundou a Associação das Escolas Maternais, militou nas várias associações republicanas feministas, integrada na elite republicana. Estava apta em 1911, a convite do grande educador republicano António Aurélio da Costa Ferreira, paradigma da instrução laica e positivista, a dirigir em Almada o Antigo Recolhimento do Calvário. Entra para a Provedoria Central da Assistência de Lisboa. O convite surge depois de dois outros, de João de Deus Ramos. Ir para o estrangeiro aprender as novas teorias e práticas de educação de crianças. Obrigada a recusar por

meios para o primeiro embate. Tão importante era O Mealheiro que, com o fim da Escola Maternal, Ilda de Bulhão Pato o entregou à guarda da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O tempo em que se dividiu entre família, Escola do Grémio Republicano de Alcântara, aulas particulares e uma passagem breve por Paço d’Arcos, lembrá-lo-á como de muito trabalho e muito compensador. Dá uma conferência sobre mutualidade infantil – publicada depois em opúsculo, com prefácio de Teófilo Braga – em Paço d’Arcos, no Núcleo da Liga Nacional de Instrução, e é convidada a levar a exame de instrução primária um grupo de rapazinhos sem professor que iriam perder o ano. Aceitou e deu-lhe muito prazer. Dirigiu o Antigo Recolhimento do Calvário de 1911

EM 1907, ILDA ADELINA JORGE VAI PARA SETÚBAL À FRENTE DA 193ª MISSÃO ESCOLAR. DEDICAR-SE-Á AO ENSINO DOS FILHOS DOS PESCADORES DURANTE O DIA; À NOITE, INSTRUINDO MULHERES DAS FÁBRICAS, A PEDIDO DESTAS oposição do pai, o mesmo aconteceu com o convite para Coimbra, aprender com uma professora estrangeira e dirigir o primeiro Jardim Escola João de Deus. Nas suas memórias, aos 88 anos, a mágoa era ainda enorme. Ilda não conseguiu dobrar a vontade do pai, não venceu a luta contra conceitos sociais e familiares, de raízes fundas também em si. Ficou por Lisboa. Jamais esqueceu a oportunidade perdida! Ensinará, então, na escola que o Grémio Republicano de Alcântara inaugurou e porá em prática, pela primeira vez em Lisboa – ao que se julga –, o mutualismo infantil9. Com estatutos e dirigido pelos alunos, sob sua supervisão, a finalidade era conseguir meios para passeios e doces, tão raros e desejados por estas crianças! Depois, na Escola Maternal da Ajuda, funda outra associação mutualista, O Mealheiro, com um objetivo muito mais importante: o de permitir aos jovens um fundo de início de vida. Atingida a maioridade e obrigados a deixar a escola, era fundamental que pudessem contar com

a 1914. Terá sido o ano de 1912 o mais marcante para Ilda. É o de três acontecimentos importantes. Nesse ano morre o poeta Raimundo de Bulhão Pato, tio do marido, que muito estimava, com quem manteve conversas de tardes inteiras, na companhia da tia Izabel. Lamentou muitíssimo a sua perda. No mesmo ano, parte também D. Maria Amélia Perestrello de Bettencourt de Bulhão Pato, mãe do futuro marido, a quem dedicava grande consideração e amizade. A família do poeta e o convívio com a mãe do marido constituíram relações muito significativas para Ilda e as perdas foram marcantes. O terceiro acontecimento foi mais feliz, para si e para as alunas: a mudança para o Convento de Santa Clara. Deixaram de estar dependentes do barco e o novo espaço era muito mais confortável. Mudaram-se para a cidade de Lisboa no final de 1912. E Ilda chamou-lhe: Escola Profissional de Santa Clara. Logo no ano seguinte, depois de um namoro longo, Ilda Adelina Jorge casa-se com Nuno da Câmara

9. Sabe-se que este tipo de mutualidade já existia desde finais do século XIX, em Ourique (Beja), pela mão do professor Joaquim Pedro Dias, conforme dá conta a professora Maria da Conceição Dias, na tese que apresenta ao II Congresso Pedagógico que se realizou em Lisboa, de 13 a 16 de abril de 1909. Esta terá sido a primeira experiência portuguesa. A de Ilda de Bulhão Pato terá sido, assim, a segunda portuguesa e a primeira lisboeta.

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de Bulhão Pato10 a 13 de janeiro. Filho de António de Bulhão Pato e de D. Maria Amélia, republicano de sempre, jornalista e poeta. Pode afirmar-se que Ilda encontrou neste casamento apoio e reforço do seu republicanismo, da sua atividade profissional e, bem assim, enquanto feminista e educadora. Sublinhe-se que, embora formalmente tenha feito um casamento socialmente acima, por si só, pelas caraterísticas pessoais, pela integração na elite republicana, quando o casamento se dá, já Ilda Adelina Jorge se tinha elevado socialmente. Lembre-se que Ilda casa com quase 30 anos, com todo um percurso já feito.

de, consequência imediata na impossibilidade de realizar um trabalho minimamente satisfatório. Isto se se atender ao sentido de perfeição e honestidade profissional de Ilda. O ano de 1918 é marcante, em Portugal e no mundo. É o fim da Grande Guerra. No nosso caso, também o do assassínio de Sidónio Pais que pôs fim ao sidonismo ou à II República. Mas não só. É também o do surto de gripe, a pneumónica. A região de Lisboa foi a que registou o maior número de mortes e originou um número elevado de órfãos. Daí, o convite do provedor da Assistência de Lisboa a Ilda para dirigir o novo espaço destinado a rapazinhos órfãos.

NA ESCOLA MATERNAL DA AJUDA, FUNDA OUTRA ASSOCIAÇÃO MUTUALISTA, O MEALHEIRO, COM UM OBJETIVO MUITO MAIS IMPORTANTE: O DE PERMITIR AOS JOVENS UM FUNDO DE INÍCIO DE VIDA DIFICULDADES E OBSTÁCULOS É mãe pela primeira vez em 1914, de Nuno. Parto complicado que a obrigou a fazer uma paragem e pedir para ser afastada da direção da Escola Profissional de Santa Clara. Retoma atividade logo que recupera, na Missão Escolar João de Deus do Refúgio e Casas do Trabalho, à Junqueira – hoje Centro de Educação e Desenvolvimento D. Nuno Álvares Pereira, da Casa Pia de Lisboa – lecionando pelo Método. Será de novo mãe, em 1915, de Rafael. O período de 1914 a 1920, que afirma muitíssimo triste e só interrompido pela alegria de ser mãe, é de anos muito difíceis. É a época da Grande Guerra, com todas as consequências associadas. Portugal só entrará no conflito em 1916, mas antes e depois dessa entrada as dificuldades foram grandes. Profissionalmente, o tipo de escola e o regime dos alunos foi realmente o pior: classes sem estabilida-

Ocuparam a antiga casa de Alexandre Herculano, junto ao Palácio da Ajuda e a que chamou Escola Maternal da Ajuda. Funcionou de 1920 a 1943. Foi a sua única diretora. Com o Estado Novo, no período de 1926 a 1931, vários equipamentos da Provedoria Central da Assistência são integrados na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e, entre eles, a Escola Maternal da Ajuda (em 1928). Razões económicas e financeiras, novas conceções que os novos regimes sempre trazem, levaram a uma reorganização tanto da Casa Pia de Lisboa como da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Esta avaliação e consequente reestruturação foram executadas por Braga Paixão11 que, em 1943, extinguirá a Escola Maternal da Ajuda. Em consequência deste facto, destas incompatibilidades de espírito, educação laica versus educação

10. Nuno de Bulhão Pato (Almada, 1870-1929, Lisboa). Republicano, poeta e jornalista. Sobrinho do grande poeta. Foi secretário do Ministério das Colónias durante a permanência de seu irmão Álvaro enquanto ministro. Funcionário público com brilhantes trabalhos prestados. Durante o período em que exerceu funções na Companhia de Moçambique, destacou-se pela diplomacia e zelo em situações difíceis. Colaborou intensamente em revistas e jornais, nomeadamente n’O Século, sendo considerado um “burilador da palavra”. Ainda em monarquia, foi elemento importante da propaganda republicana, tendo sido um dos que se bateram na Rotunda a 5 de outubro de 1910. De abnegação e desinteresse raros, recusou qualquer recompensa e a classificação de “revolucionário”, depois votada. Partilhou com Ilda de Bulhão Pato a militância republicana e feminista. 11. Vítor Manuel Braga Paixão (Lisboa, 13/09/1892-11/04/1982). Monárquico. Personalidade desconhecida na primeira geração do integralismo lusitano. Tinha o curso superior de Letras. Foi professor do liceu e diretor-geral do Ensino Primário. Exerceu também funções de diretor-geral da Assistência Pública e diretor-geral do Ensino no Ministério das Colónias. Colaborou no Diário da Manhã, Acção, Aleo e Brotéria (revista da Companhia de Jesus).

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católica, políticas, democracia de vários partidos e democracia de partido único, viver-se um tempo de economia de guerra e a nova visão económica e financeira de Salazar, tudo isto e o fecho da Escola Maternal levaram a que Ilda adoecesse e se reformasse aos 60 anos. Recorde-se que a formação laica que Ilda recebeu, a que aderiu consciente e plenamente, não seria compatível com a do seu provedor. Guilhermina Battaglia Ramos, João de Deus Ramos ou António Aurélio da Costa Ferreira, determinantes na sua formação, estão em oposição filosófica e ideológica a Braga Paixão. Mas cerca de dez anos antes da extinção da Escola Maternal da Ajuda, no Natal de 1934, ao assistir à abertura de um espaço para crianças12, renasceu-lhe o sonho velho da sua Escola Maternal. Deu logo início a uma comissão organizadora, génese da Associação de Beneficência Jardim de Infância da Ajuda, e ao levantamento de fundos. A situação económica e social dos operários e operárias dos anos 40 não era assim tão diferente da do início do século. Depois de quatro anos de muito trabalho, consegue abrir a escola, na Rua de D. Vasco, número 42, que receberá crianças de ambos os sexos; cuidar-se-á delas durante o dia para que as famílias possam ir trabalhar descansadas. Por falta de meios, embora contasse com o apoio de um voluntariado bastante ativo e eficaz, acaba por ter de fechar portas no Natal de 1942. UM SONHO “DESFEITO PELA MALDADE DOS HOMENS” Vivia-se plenamente o Estado Novo. Voltou-se à defesa de conceitos e doutrinas que a I República tinha combatido. Embora o republicanismo não tivesse sido propriamente combatido, deu-se um afastamento do republicanismo democrático, do laicismo e do feminismo. Mesmo tendo sido o Estado Novo a dar às mulheres o direito de voto, houve um retrocesso nas conceções do papel destas na sociedade. Começaram as campanhas no sentido de as reduzir a fadas do lar, de não as deixar intervir no espaço pú12. No fim do ano de 1934, realizou-se a abertura de um jardim de infância no Lumiar, pela Junta Geral do Distrito de Lisboa. Deveu-se à iniciativa do Dr. Xavier da Silva. Ilda de Bulhão Pato assistiu ao evento da inauguração.

blico. É importante recordar a extinção de organizações femininas republicanas, de que a Cruzada das Mulheres Portuguesas é um bom exemplo. No bairro da Ajuda, no início dos anos 1940, ainda se sentia a proximidade do campo, da terra. Era uma zona principalmente de operários e famílias, havendo poucas exceções. É aqui que Ilda enfrentará as maiores dificuldades para manter o Jardim de Infância. Republicana e laica, muito habilmente conseguiu apoio inicial por parte das autoridades, mas é certo que foi combatida, e vencida. Não quanto ao mérito, mas porque a iniciativa foi considerada de Oposição. E não ensinava religião na sua escola. Escrevia, em 1971, em Pedaços da Minha Vida, sobre o desaparecimento da “sua Escola Maternal”, acerca do fim do Jardim de Infância da Ajuda: “Tenho desse sonho desfeito pela maldade dos homens muita e muita saudade.” E em 1945, num artigo do Ecos de Belém, dá conta das razões do fim do seu sonho. No mesmo ano, Ilda Adelina Jorge de Bulhão Pato seguirá um rumo novo. Aos 62 anos viaja para Moçambique com o filho Nuno e sua mulher, ao encontro do mais novo, Rafael, militar no quartel de Boane, e instalam-se em Lourenço Marques. Quando chegam, já este tinha sido enviado para Timor. Existiam ainda bolsas de resistência. Alguns meses depois, Ilda juntar-se-á ao filho em Timor. Permanecerá uns poucos anos, com Rafael já desmobilizado, a trabalhar em negócio próprio. Ilda Jorge de Bulhão Pato irá ter à sua guarda a neta, Leonor, nascida em Timor e educada fundamentalmente por si em Lisboa e em Lourenço Marques. Terá sido a filha que não teve e a quem dedicará grande parte de si. Faleceu em Lourenço Marques, onde se encontra sepultada.

BIBLIOGRAFIA Arquivo Privado da família de Ilda Adelina Jorge de Bulhão Pato. HONRADO, Maria – As Escolas Maternais de Ilda Jorge de Bulhão Pato. Lisboa: Estudos sobre as Mulheres – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Dissertação do mestrado defendida em 12 de outubro de 2012.

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O VISÍVEL E O INVISÍVEL

A LUZÊNCIA /SOMBRA

NOS SINAIS DOS

EXPOSTOS

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Texto de Gilda Nunes Barata [DoutoradaemFilosofiapelaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboa,escritora]

1. Excerto do livro A Fenomenologia enquanto Lugar Total da Vida: Diálogo Poético-Amoroso entre Merleau-Ponty e Alguns Pensadores e Artistas, Dissertação de Doutoramento em Filosofia. Lisboa: Edições Sílabo, 2012.

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Os sinais das crianças expostas na roda constituem testemunhos de afetividade, manifestação fenoménica da perda e de lembrança, exibição que esconde um sofrimento volátil e indizível.

A

roda dos expostos era o local onde mães envergonhadas abandonavam os seus filhos, fazendo-os acompanhar de alguns sinais, fragmentos identificadores que futuramente poderiam restabelecer uma ligação, o elo entre o abandonado e o que poderia ser a forma de o reaver. Estes sinais constituem testemunhos de afetividade, manifestação fenoménica da perda e de lembrança, exibição que esconde um sofrimento volátil e indizível (o invisível desses mesmos sinais). Estes objetos, na sua manifestação fenoménica, podem prolongar a memória de uma existência, a construção de uma identidade intensa que se perde em códigos, entre aquilo que se permitiu criar um código (a mãe no lugar sombrio da roda) e a criança enjeitada acompanhada do sinal. O sinal é o lugar falante dessa ligação, dessa reversibilidade sensível entre perda e esperança futura de reaver o sujeito/identidade perdida. Nesta relação entre mãe, roda e criança que se abandona, podemos contemplar a relação entre consciência-corpo-mundo que é a relação fundamental para uma abordagem fenomenológica da existência nas suas essências. A mãe é

uma consciência sombria, não identificada, no lugar escuro do reconhecimento que, através do sinal que funciona como prolongamento de si e do seu corpo, completa o entrelaçado com a roda, que representa um microcosmo do próprio mundo. Naquele gesto de abandono, naquele momento, o mundo resume-se àquela roda onde há recetividade, onde há um vazio, uma aglutinação de sentimentos que fazem daquela roda

o lugar existencial do próprio mundo. Os sinais são o lugar falante, são a linguagem falante de um silêncio que se impõe, que é o silêncio do abandono. Nesta mostra de objetos podemos sentir a essência de cada um deles, descolando-os do seu lugar material. Eles não são a matéria, não são independentes de uma consciência intencional e afetiva que lhes dá sentido. Uma carta, uma fita, uma medalha, uma meia, metade de

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OS SINAIS SÃO O LUGAR FALANTE, SÃO A LINGUAGEM FALANTE DE UM SILÊNCIO QUE SE IMPÕE, QUE É O SILÊNCIO DO ABANDONO” “PROCURA DA PATERNIDADE” Óleo sobre tela, 1884, Convento do Cardaes

uma fotografia que aguarda a outra metade num tempo que não se sabe se chegará, para completar a história e o sentido daquele sinal. Na verdade, aquele sinal só absolutiza o seu sentido no momento decisivo em que, por exemplo, metade de uma fotografia se junta à sua outra metade ou quando a figa realmente produz sorte ou a cruz de madrepérola reluz. Nos “escritos” – sinais escritos – podemos descobrir sentidos afetivos, lugares ontológicos desses mesmos escritos. Pede-se, por exemplo, que a criança seja batizada, pede-se que seja criada com amor e caridade. Fazendo uma analogia entre estas situações e a obra de arte, podemos dizer que a mesma só cumpre a sua função última se tocar o seu desti-

natário, se o comover, se houver nele uma reverberação interior que o modifique. Ora, os sinais expostos na roda revelam uma realidade que em si mesma se cumpre, mesmo que aquelas crianças não tenham as existências completas pelo seu reaver por parte dos pais. Podemos dizer que estes sinais já contêm em si uma fenomenologia de afetividade que se finaliza em si própria. São prenhes de absoluto, de identidade, de memória, de futuro, ainda que esse futuro não se cumpra de uma determinada maneira. Os expostos são afetividade transcendental. É nessa afetividade que se cumpre a autorrelação entre objeto e a mãe sem filho. A fenomenologia da relação cumpre-se no sinal exposto. A vida é a experiência exaltada

de si mesma e é ela que nos salva. A ligação aos outros dá-se na vida. Naquele momento de perda, de alguma coisa que fica exposta (visível), a felicidade não é o contrário do sofrimento. A aspiração ao amor é o lugar ontológico dos expostos. Há uma aporia entre aquele que abandona e aquele que é abandonado. O sujeito abandonado não pode ser conhecido. O sujeito que abandona não pode ser conhecido. Só o sinal é o reconhecível, a presença viva de uma consciência que se encontra no fundo do coração. Os sinais são o ser essencial, a matéria vibrante, a fascinação do mundo de algo que pode voltar a si sem renunciar a nada. É o pathos do abandono, o sinal que se torna prisioneiro do mundo e domiciliado no absoluto da sua fenomenologia afetiva. A autoafeção da mãe, a sua plenitude, o sofrimento, o seu coração, o fundamento da sua vergonha, reside naqueles sinais. É na relação com o sinal que a mãe estabelece a sua relação com a vida. Podemos pensar os sinais a partir da sua vida ou a sua vida a partir dos sinais. O sinal funde-se no abissal do abandono. O desespero torna-se subjetividade pura nos sinais. É o grande desespero que nos pode fazer renascer. Culpabilidade e traumatismo significam a vinda de uma subjetividade no seu verdadeiro eu. Os sinais são também um poder. Através do seu poder, a vida manifesta-se, um outro ser, esse fundo onde apareceu

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um estado de desespero radical. Os sinais tornam-se dialética, crise da história interior de um sentimento. O maior dom: o desespero como condição maior de acesso à vida. Perante este lugar vazio onde habitam sinais, uma resposta fenomenológica é exigida. Qual o sentido do esquecimento, de uma recordação? Porque sofre aquele que esqueceu o seu sofrimento? Há um sentido que se retira desse abandono. O abandono torna-se uma exibição extrema da fenomenologia da vida. Uma imagem exterior, um aparecer noutro aparecer que é a imagem-ausência de um rosto (o rosto materno). A mãe funde-se com o exposto porque deixa de ter rosto quando toca o sino para levarem o seu filho. A consciência do seu sofrimento está naquele sinal, a mãe sofre e frui ao mesmo tempo desse sofrimento através da consciência desse sofrimento que lhe permite o sinal. Dos sinais advém uma acentuação maior

da identidade, a imanência insuportável do abandono. Um caminho para se ser autêntico consigo mesmo. O contemplador dos sinais – com a distância temporal que, por vezes, o curso da história já impôs – entra num sintoma como se sofresse dessa dor física, assume em si o peso daquele sofrimento. O contemplador não tem diante de si o rosto da criança, o rosto da mãe, nem a expressividade dos mesmos diante de si, mas sente essa dor total a percorrer-lhe os ossos. A esta dor total podemos chamar a necessidade de ler o rosto da mãe, o rosto da criança. Isso obriga à disponibilidade de ler o visível dos sinais, num encontro verdadeiro com o sentido vivido indeclinável que esse sinal transporta, reconhecendo no sinal uma família, o complexo da dor que houve nesse abandono, a dor total que ficou cravada no sinal. O “cair em si”, depois da observação atenta de um sinal, é a avaliação interna da dor que

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o sinal em si mesmo não pode fazer dizer. A dor. O horror. O calafrio. O excedente dessa dor, desse contorno de um objeto cheio de sol e de vida. A urgência, a crença, o sonho – tudo isso carregam os sinais. Quando é que mãe e criança ganham carne, rosto? Quando o contemplador confere um sentido a esses sinais, conferindo um sentido a esses dois rostos de mãe e de filho que são o invisível do sinal. A deslocação do abandono do exposto para o sinal. A repulsa excedente dos sinais. Que sensação dolorosa trespassa esta matéria para a deixar como 161

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O SUJEITO ABANDONADO NÃO PODE SER CONHECIDO. O SUJEITO QUE ABANDONA NÃO PODE SER CONHECIDO. SÓ O SINAL É O RECONHECÍVEL, A PRESENÇA VIVA DE UMA CONSCIÊNCIA QUE SE ENCONTRA NO FUNDO DO CORAÇÃO”

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não matéria? O que dói? Como se sabe, qualquer homem tem uma tendência inata para ajudar outro homem que tenha dor. Perante os sinais, há um autossentido, uma autoafetação de um membro fantasma que se prolonga em nós através da contemplação do sinal, como se acedêssemos à contemplação dos dois rostos de mãe e de filho. Tudo isto só é possível através dos sinais, através deste corpo que tudo faz aparecer. O estar à cabeceira da fenomenologia do abandono perante os sinais. Tudo isto traduzido em realidades moleculares. O sentir-se na polissemia do sentir através dos sinais. A medida do homem que perceciona torna-se aquilo que tem diante de si. O abandono torna-se constitutivo através do visível do sinal. A habituação ao abandono fica no sinal. Os sinais são assim um

acesso privilegiado ao sentir primitivo de uma mãe, de um filho, da sua relação ancestral única. Como ter um discurso unitivo quando se fala de amor? Qual a categoria objetiva dos afetos? A declinação do amor. Os sinais são a dor e a alegria, como qualquer afeto que é sempre dor e alegria. Os sinais são o abandono na coloração, na possibilidade de poder recuperar o essencial. O coração afetivo, o ser mais originário, a essência de algo que não é apenas uma coisa psicológica ou matéria – os sinais. O desejo de reaver é a cor. Não é um jogo. É uma parte do coração que existe ainda, o sinal enquanto prolongamento do sujeito presente e ausente (o filho e a mãe). Os sinais transportam também ilusões. Uma obscuridade não é iluminada pela sua representação (fita, medalha,

meia) mas pela obscuridade do sentimento que mãe e filho põem nesse obscurecimento. O medo, embora de uma evidência absoluta, é uma noite escura. A sua finalidade própria é a beatitude desse objeto. Existe uma sacralização desses objetos. São como um ninho, o calor do ninho sem haver ninho, porque houve abandono. São “essências carnais”, “essências sensíveis” merleau-pontyanas. O discurso do afeto servirá bem a Filosofia? Como dizer a vida? Como restituir o abandono através da linguagem sem o falsificar? Através de uma não objetivação desse abandono ou de uma objetivação sem palavras, por vezes apenas o símbolo sem palavras. É por isto mesmo que podemos afirmar que os sinais não são uma objetivação total do abandono. Os sinais parecem querer provar alguma coisa, mas na verdade não provam nada. Todas as energias que estão nos sinais estão na vida: as palavras, os sons, os cheiros. Na interpretação concetual dos sinais não há um chão completamente firme para explicar as coisas da afetividade. É necessário um metadiscurso que pode equivaler a um discurso nenhum. É necessário conhecer a primeira canção de embalar que uma mãe cantou ao seu filho, o antepredicativo de tudo nessa canção de embalar. Os sinais são falsos pensáveis. São o espetáculo do mundo, porque são visíveis, mas são transparência e invisibilidade nos seus sentidos mais profun-

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dos. Os sinais são pastorais. São a forma de uma presença que não deve ser criada nem servir nenhuma outra. Não podemos criar outro critério para a interpretação do sinal que não seja o próprio sinal. Os sinais são fenomenalidade pura da vida, da vida de si com si, movimento autorregenerador, autodoação. Que paixão é essa que Deus põe em nós? Que paixão é essa que uma mãe ou um pai põe nos sinais? Essa própria paixão não é impassível. A vida é em si e para si. Não é o pensamento que nos dá afeto à vida. A vida torna-se inteligível na própria vida. É na vida e em vida que se revela o amor. Seres viventes (a mãe e a criança) são a interioridade fenomenológica de qualquer coisa que existe antes

PERANTE OS SINAIS, HÁ UM AUTOSSENTIDO, UMA AUTOAFETAÇÃO DE UM MEMBRO FANTASMA QUE SE PROLONGA EM NÓS ATRAVÉS DA CONTEMPLAÇÃO DO SINAL, COMO SE ACEDÊSSEMOS À CONTEMPLAÇÃO DOS DOIS ROSTOS DE MÃE E DE FILHO” do próprio mundo. O amor é uma autorrevelação do começo. O laço primordial da vida: o estar um no outro, a nostalgia do útero, esse sentimento oceânico, estar em amor é estar um no outro. Os sinais, no paradoxo do seu aparecer, são este mistério de estar um no outro em estado de amor. O júbilo de viver com, a comunhão orgânica de tudo o que se conhece e não se conhece, a fruição do estar total. É por isso que o amor é reconhecido por uns e não reconhecido por outros. É preciso o estado do amor para estar em

amor. O movimento da vida, a dádiva, o dar tudo para devolver tudo (na roda da Misericórdia e na vida). O deslumbramento da vida. O astro esplendoroso que substitui os dogmas pela filosofia do amor onde se dizem coisas não dizendo sempre como as coisas são. A perspetiva mais relacional, mais intimamente relacional, mais solidária sem cisão entre afetos e razão, porque a razão é já afeto. A vida que nos habita. A verdade da vida. O ato de se mostrar.

ALICATE e os selos de chumbo dos colares dos expostos. Arquivo Histórico SCML

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LEGISLAÇÃO FEVEREIRO A SETEMBRO DE 2014 | Nº 32 |

DESPACHO 3213/2014, de 26-02 IN: Diário da República, série ll, nº 40/2014, de 26-02, pp. 5759-5775 Resumo: Despacho que altera o regulamento de acesso aos apoios cofinanciados pelo Fundo Social Europeu - cursos de aprendizagem.

PORTARIA 96/2014, de 05-05 IN: Diário da República, série l, nº 85/2014, de 05-05, pp. 2637-2639 Resumo: Regulamenta a organização e funcionamento do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV).

DESPACHO 3250/2014, de 27-02 IN: Diário da República, série ll, nº 41/2014, de 27-02, pp. 5872-5873 Resumo: Constitui um grupo de trabalho com o objetivo de avaliar a situação da prestação de cuidados de saúde mental e das necessidades na área da saúde mental.

RESOLUÇÃO 43/2014, de 19-05 IN: Diário da República, série l, nº 95/2014, de 19-05, p. 2882 Resumo: Recomenda ao Governo um conjunto de medidas de combate a todas as formas de violência escolar.

ACÓRDÃO 176/2014, de 04-03 IN: Diário da República, série l, nº 44/2014, de 04-03, pp. 1701-1714 Resumo: Tem por não verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução da Assembleia da República nº 6-A/2014, de 20 de janeiro, sobre a possibilidade de coadoção pelo cônjuge ou unido de facto do mesmo sexo e sobre a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, casados ou unidos de facto. RESOLUÇÃO 18/2014, de 07-03 IN: Diário da República, série l, nº 47/2014, de 07-03, pp. 1780-1782 Resumo: Adota medidas tendo em vista a promoção da igualdade salarial entre mulheres e homens. LEI 15/2014, de 21-03 IN: Diário da República, série l, nº 57/2014, de 21-03, pp. 2127-2131 Resumo: Lei consolidando a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde. LEI 19/2014, de 14-04 IN: Diário da República, série l, nº 73/2014, de 14-04, pp. 2400-2404 Resumo: Define as bases da política de ambiente.

RESOLUÇÃO 5/2014/M, de 02-06 IN: Diário da República, série l, nº 105/2014, de 02-06, pp. 3041-3042 Resumo: Resolve apresentar à Assembleia da República a Proposta de Lei que cria a Estratégia Nacional para a Proteção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais. PORTARIA 150/2014, de 30-07 IN: Diário da República, série l, nº 145/2014, de 30-07, pp. 4024-4027 Resumo: Cria a medida Emprego Jovem Ativo. PORTARIA 64/2014, de 26-08 IN: Diário da República, série l, nº 163/2014, de 26-08, pp. 4464-4467 Resumo: Aprova o regime de concessão de crédito bonificado à habitação a pessoa com deficiência e revoga os Decretos-Leis n.os 541/80, de 10 de novembro, e 98/86, de 17 de maio. DECRETO-LEI 137/2014, de 12-09 IN: Diário da República, série l, nº 176/2014, de 12-09, pp. 4898-4926 Resumo: Estabelece o modelo de governação dos fundos europeus estruturais e de investimento para o período de 2014-2020.

LEI 21/2014, de 16-04 IN: Diário da República, série l, nº 75/2014, de 16-04, pp. 2450-2465 Resumo: Aprova a lei da investigação clínica.

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LIVROS

| NOSSA SUGESTÃO |

Renovar a Esperança Autores: João Marrana, Paulo Antunes Ferreira, Equipa Intergerações Edição: SCML, 2014 ISBN: 978-989-8712-02-8 Preço: ¤5,00

Saúde e Sociedade Autores: Maria Engrácia Leandro, Paulo Nuno de Sousa Nossa, Victor Terças Rodrigues (org.) Edição: PsicoSoma, 2009 ISBN: 978-972-8994-12-9 Preço: ¤17,91 Conjunto de artigos de investigadores nas áreas das ciências sociais, este livro procura dar um contributo para uma reflexão transversal à sociologia da saúde e sociologia da família. A partir da estreita ligação entre estes dois universos, aprofunda-se o conhecimento da forte influência que o apoio familiar tem no processo de diagnóstico, tratamento e recuperação do paciente, bem como do lugar que os cuidados de saúde têm no seio da família.

Criado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o programa Intergerações teve por missão encontrar e sinalizar os casos de idosos isolados na cidade. Este livro é o relato dessa experiência. São analisados os inquéritos realizados às pessoas identificadas, permitindo um olhar sobre a realidade dos idosos em situação de isolamento, as suas rotinas, atividades, relações sociais e principais dificuldades. Esse balanço é complementado pelos testemunhos das equipas que foram ao encontro dos idosos. Uma missão que visou, acima de tudo, “renovar a esperança” dessas pessoas.

População, Família, Sociedade Autor: Robert Rowland Edição: Celta Editora, 1997 ISBN: 972-8027-85-0 Preço: ¤17,44 O século xxi obriga a refletir sobre o espaço da família na sociedade, face ao desafio do planeamento familiar na nova e difícil conjuntura económica em Portugal. Ancorada em recenseamentos da segunda metade do século xix e de 1960, esta obra do antropólogo Robert Rowland traça um percurso da história da família em Portugal, demonstrando que a evolução do conceito de família não é linear, mas sim dependente do seu contexto social e funcional em diferentes tempos e locais no país.

Sidónia Ribeiro

Velhice e Sociedade

Autora: Ana Gomes Edição: SCML, 2013 ISBN: 978-989-8712-00-4 Preço: ¤10,00

Autora: Ana Alexandre Fernandes Edição: Celta Editora, 1997 ISBN: 972-8027-83-4 Preço: ¤15,86

Em testamento, Sidónia Ribeiro, viajante incansável, legou a sua herança à Santa Casa Misericórdia de Lisboa, confiando à instituição o seu prédio no bairro de Alvalade. Narra-se aqui a vida desta benemérita nascida em Lisboa nos anos 20 do século passado, e cujo percurso testemunha a sua generosidade e se entrelaça com a história da capital e da construção das Avenidas Novas.

Terá a família deixado de ser o espaço privilegiado de apoio na velhice? E a quem temos delegado essa responsabilidade social? O estudo da socióloga Ana Alexandre Fernandes analisa dados que procurem dar resposta a estas perguntas, que se tornam tão mais prementes quando o envelhecimento demográfico de Portugal testa a solidariedade entre gerações e a capacidade de resposta das políticas sociais existentes.

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AGENDA FEVEREIRO DE 2015 A MAIO DE 2015

FEVEREIRO

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Congresso Imaginar e Repensar o Social: Desafios às Ciências Sociais e Humanas nos Espaços de Língua Portuguesa, 25 anos depois 1.º Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa Data: Até 5 de fevereiro Local: Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas http://www.ailpcsh.org/congressos/xii-conlab.html

7 Curso 2.º Curso breve de

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Pós-graduação em Direito internacional privado dos menores Data: Até 21 de fevereiro Local: Centro de Direito da Família, Faculdade de Direito de Coimbra

Congresso I Jornadas de Investigação da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos Data: Até 21 de março Local: Escola Superior de Saúde Dr. Lopes Dias, Castelo Branco

ABRIL

MAIO

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19 Curso 2.º Curso Breve de Pós-graduação em Violência Doméstica Data: Até 9 de maio Local: Centro de Direito da Família, Faculdade de Direito de Coimbra www centrodedireitoda familia.org

Conferência Desafios Globais, Respostas Locais Conferências do Estoril

http://www.apcp.com.pt/ agenda/i-jornadas-deinvestigacao-apcp.html

Data: Até 22 de maio Local: Centro de Congressos do Estoril http://www. estorilconferences.org/

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