Cidade Solidária n.º 35

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Nº35 2016 REVISTA SEMESTRAL PORTUGAL: 3,60€

CIDADE SOLIDÁRIA

SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

JUBILEU DA MISERICÓRDIA:

Por um mundo mais humano

Rainha D. Leonor I Cirurgia da mão I Empreendedorismo


Venha conhecer...

CAPELA DE SÃO JOÃO BATISTA da Igreja de São Roque SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

Realizada em Roma no século XVIII, no seguimento de uma encomenda de D. João V, a Capela de São João Batista e as suas coleções constituem-se como um conjunto artístico ímpar no contexto nacional e internacional. A capela, com a policromia dos mármores e mosaicos e o esplendor do brilho dos metais empregues na sua construção, sobressai entre o acervo da Igreja de São Roque, pertença da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. No Museu de São Roque apresentam-se as preciosas coleções de ourivesaria e paramentaria igualmente realizadas em Roma, para uso nesta capela régia erigida na igreja jesuíta. A história da capela e das suas notáveis coleções pode ser conhecida com maior profundidade através de visita guiada, bem como do livro A Capela de São João Batista da Igreja de São Roque: a encomenda, a obra, as coleções. O volume, coordenado por Teresa Leonor M. Vale, reúne textos de reputados especialistas (disponível na loja do Museu de São Roque e por encomenda no website da SCML).

Mais informação sobre visitas e sobre a loja do Museu em: www.museu-saoroque.com


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EDITORIAL O Jubileu e a Misericórdia

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sta edição da Cidade Solidária tem a honra de contar com o contributo de Sua Eminência o Cardeal-Patriarca sobre o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. É um contributo que muito nos orgulha e motiva para encarar este período exigente que atravessamos. Celebramos este ano o Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Sugiro que nos concentremos neste ponto. Qual é o significado do Jubileu? No tempo em que vivemos não é fácil ter tempo para parar e pensar. No entanto, estas celebrações devem motivar-nos a encontrar espaço para o fazer, porque este momento impõe que tenhamos a humildade de perceber se estamos à altura dos desafios que nos surgem todos os dias. Penso que este Jubileu nos deve também fazer refletir sobre o que é, nos tempos de hoje, o dever da caridade e da solidariedade. Os dois conceitos contam porque falam do mesmo: a atitude de estar atento a quem precisa e de se colocar ao seu serviço. Quem, como nós, tem a felicidade de estar numa instituição como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa deve ter sempre a noção de que a sua missão é a de ajudar aqueles que mais precisam e tudo fazer para que sintam esperança e sorriam. Um dos valores que é promovido neste ano jubilar é o da inclusão. Há vários fatores que contribuem para tornar este valor ainda mais relevante nos tempos que correm, e na Santa Casa estamos particularmente atentos e ativos na sua promoção. Estamos a tomar medidas para combater os guetos geracionais, apostando no conceito da intergeracionalidade em todos os projetos que lançamos. Desde a sua criação, pela rainha Dona Leonor, em 1498, a Misericórdia de Lisboa, a mais antiga do país, dedicou-se a apoiar os mais frágeis, os pobres, os presos e os doentes. A sua missão não se completou nestes mais de cinco séculos de existência, antes adaptou-se aos tempos, dando respostas inovadoras aos problemas e desafios que lhe surgiam. Hoje, dar mais e melhores condições aos mais velhos não é apenas o reconhecimento pelo que fizeram ao longo da vida, mas sim uma oportunidade de continuar a aprender com a sua experiência e com os seus conhecimentos. Deixo ainda um convite para que visitem uma igreja jubilar, que transponham a porta santa e se deixem contagiar pelo espírito de missão que a Misericórdia convoca. Em Lisboa, uma das igrejas que tem essa porta santa aberta é a Igreja de São Roque, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Sempre uma boa oportunidade para visitar um espaço único, que conta também parte da história da cidade e do país. Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Pedro Santana Lopes 3

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SUMÁRIO

JUBILEU DA MISERICÓRDIA: POR UM MUNDO MAIS HUMANO

DESTAQUE 12

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Misericórdia, pois não nos basta um amor qualquer… D. Manuel Clemente

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Misericordiosos Frei Luís de Oliveira

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Entre Misericórdias Inez Ponce Dentinho

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Ser Misericórdia hoje Rita Valadas

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Os cuidados de saúde primários na Misericórdia de Lisboa Maria Manuela Marques

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D. Leonor de Portugal: empreendedora da Misericórdia Alexandra de Aboim Barahona Brito Rebelo

SOCIAL 40

Ser, estar, fazer. Promoção da autonomia em acolhimento residencial Conceição Pereira, Rosa Viana, Ana Isabel Pereira, Alexandra Laginha e Cristina Gomes Freire

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Adoção de crianças mais crescidas. Esperança de uma nova vida Ana Sílvia Abelaira e Cristina Oliveira

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Novo paradigma de habitação para seniores Maria Eduarda Napoleão

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Disfunções intencionais do vínculo parental: avaliação. Parte I António José Fialho

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Biblioteca de livros vivos: uma comunidade de histórias Fátima Freitas, Mónica Costa e Vera Novais

48

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SAÚDE 78

Pisar o risco. História(s) W+ Isabel Queiroz de Melo, Sónia Santos, Ana Botica e Sónia Lourenço

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Unidade Móvel Juvenil. Ações e intervenções na comunidade Alexandra Balsas, Ana Lúcia Vitorino e Sara Martins

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Cirurgia da mão. Tradição e excelência Sílvia Silvério e Roxo Neves

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ECONOMIA SOCIAL 102

O empreendedorismo é um valor João Pedro Tavares

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O Pontificado de Francisco João César das Neves

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HISTÓRIA E CULTURA 116

A Igreja de São Roque ao Bairro Alto e a evolução do seu espaço interno Rui Lobo

130

Bibliotecas digitais: divulgação e preservação Dália Guerreiro

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SOLIDARIEDADE 138

Família, afectos e consumos Américo Pereira

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Um novo olhar sobre o nosso património. Inspirar 2016. Ano Jubilar da Misericórdia Ana Delgado

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INVESTIGAÇÃO & DESENVOLVIMENTO 162

180 LIVROS

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Esclerose Lateral Amiotrófica: o que se sabe hoje Dora Brites

162

Reabilitação de doentes com lesões vertebromedulares. Um centro para verdadeiros intrépidos Bernardo Chagas

168

O percurso da SCML rumo à sustentabilidade ambiental Ana Gouveia, Maria Inês Laurentino, Rita Nogueira e Sónia Silva

181 LEGISLAÇÃO

182 AGENDA

FICHA TÉCNICA

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DIRETOR: Pedro Santana Lopes DIRETOR-EXECUTIVO: Samuel Esteves CONSELHO EDITORIAL: Ana Salgueiro, Alexandra Rebelo, Catarina França, Francisco d’Orey Manoel, Helena Lucas, Margarida Montenegro, Maria João Matos, Mário Rui André, Rita Chaves e Samuel Esteves PROJETO GRÁFICO: Catarina França. PAGINAÇÃO: Ana Lopes e Catarina França REVISÃO: J. L. Baptista APOIO LOGÍSTICO: Bruno Galinha SECRETARIADO: Antónia Saldanha COLABORADORES PERMANENTES: Laurinda Carona e João Fernandes EDITOR: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA. Largo Trindade Coelho – Apartado 2059 – 1102-803 Lisboa ASSINATURAS: SCML – Revista Cidade Solidária/Remessa Livre n.º 25013 – 1144-961 Lisboa (não necessita de selo). Tel.: 213 243 934 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Clássica. Tiragem: 5000 exemplares. Depósito Legal n.º 126 149/98. Registo no ICS: 121.663. ISSN: 0874-2952

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| ANO JUBILAR |

MISERICÓRDIA, pois não nos basta um amor qualquer… Texto de D. Manuel Clemente [CARDEAL-PATRIARCA DE LISBOA]

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odemos perguntar porque é que o Papa Francisco proclamou um Jubileu Extraordinário da Misericórdia. E podemos responder com as suas próprias palavras, para acertarmos na intenção. Escreve assim, na bula Misericordiae Vultus (O Rosto da Misericórdia), de 11 de abril de 2015, nº 3: “Há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.” Bastará como referência, para respondermos à pergunta sobre o porquê do presente Jubileu (ou Ano Santo). Fixemo-nos, antes de mais, na oportunidade aludida: há momentos em que somos chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia… Sobre estes momentos, atuais e nossos, tem o Papa Francisco falado e alertado continuamente, desde que foi eleito em março de 2013. Carateriza-os negativamente como de grande descarte de pessoas e multidões inteiras, que não são atendidas nas respetivas necessidades básicas de alimentação, saúde, educação e integração sociocultural. Realidade tanto mais chocante quanto dispomos hoje, a nível nacional ou mundial, de possibilidades inéditas de responder às necessidades de todos. Isto mesmo se verifica, aliás, quando a humanidade reage como um todo, abalada por algum cataclismo natural ou alguma tragédia mais chocante. – Qual a razão de tanta generosidade não se tornar mais permanente? – Porque é que não induz os governos nacionais e internacionais a irem por diante com programas de verdadeiro desenvolvimento regional e global? Com o Papa Francisco, verificamos como as crescentes concentrações humanas, em megacidades de toda a gente e ninguém, ou em mediações virtuais que tanto facilitam os contactos como os rarefazem de densidade, concorrem negativamente para destruir relacionamentos sólidos e antigas vizinhanças. 7

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Resta saber como solucionar o problema. Para o Papa, a resposta implica vários níveis, conjuntamente ativados: sensibilização de pessoas, instituições e governos; fortalecimento dos vínculos sociais, a começar pelas famílias; e reforço do empenhamento dos crentes, para que estejam verdadeiramente do lado de Deus, ao serviço de todas as suas criaturas. Os constantes pronunciamentos pontifícios, tanto os formais como os espontâneos, pretendem que ninguém descanse ou adie seja o que for no que às necessidades dos outros respeita. Tanto mais quanto esses pronunciamentos são por vezes feitos em locais e circunstâncias que lhes dão maior relevo, seja na ilha de Lampedusa, entre os refugiados do Mediterrâneo, seja nas zonas socialmente mais problemáticas do mundo, da República Centro-Africana ao México. E isso mesmo faz diante de governantes e de quem queira ouvir, como ele acredita que aconteça – e nós acreditamos também, pois todos temos consciência, mesmo que seja preciso acordá-la.

que cada comunidade ou instituição cristã se torne acolhedora de cada um dos seus membros e de todos os que por alguma razão a procurem. Noutro passo da citada bula, o Papa exprime este desejo de modo muito sugestivo: “Nas nossas paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia” (MV, 12). Quanto ao maior empenhamento dos crentes, o Papa quer garanti-lo na própria origem, que só pode ser a vontade divina de que sejamos uma única e grande família humana, com o que tal requer de corresponsabilidade e partilha. É desta fonte divina que podemos retirar um amor a toda a prova, como o que havia em Cristo e o seu Espírito nos comunica. Assim o queiramos e recebamos também. Como a água da fonte, que sempre corre mas só dessedenta quem a quiser de facto beber. Para isso mesmo há de servir o presente Ano Santo. Chama-se “jubileu”, nome dum instrumento de sopro com que o antigo povo bíblico seria perio-

PARA O PAPA, A RESPOSTA IMPLICA VÁRIOS NÍVEIS, CONJUNTAMENTE ATIVADOS: SENSIBILIZAÇÃO DE PESSOAS, INSTITUIÇÕES E GOVERNOS; FORTALECIMENTO DOS VÍNCULOS SOCIAIS, A COMEÇAR PELAS FAMÍLIAS; E REFORÇO DO EMPENHAMENTO DOS CRENTES, PARA QUE ESTEJAM VERDADEIRAMENTE DO LADO DE DEUS, AO SERVIÇO DE TODAS AS SUAS CRIATURAS No que aos vínculos sociais diz respeito, o Papa insiste no reforço da sua base, que é necessariamente a família. Foi por isso que convocou duas sessões do Sínodo dos Bispos (2014 e 2015), para envolver toda a Igreja na reflexão e na ação em prol da preparação e do acompanhamento dos casais e das famílias, segundo a proposta cristã, que lhes proporciona consistência e fecundidade. Toda a Igreja se há de tornar em “família de famílias”, para

dicamente despertado para o que era e devia ser, ou voltar a ser: “Povo de Deus”, para fazer um mundo segundo Deus, de todos e para todos. Por isso era também um “Ano Santo”, ainda mais preenchido pela santidade e a graça divinas. As práticas que o Papa indica vão todas nesse sentido: peregrinar e entrar por uma “Porta da Misericórdia”, nos templos em que se abriram, lembra-nos que somos “mendigos do amor de Deus”,

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como assim mesmo exprimimos. Atos penitenciais e sacramentais correspondem com a graça divina ao nosso desejo de conversão. A prática das obras de misericórdia liga intenção, oração e ação, como acontece sempre que os sentimentos são verdadeiros e por isso se comprovam: quem busca misericórdia, pratica misericórdia, pois é no dar que se recebe e Deus retribui sempre a cem por um.

2ª) Ensinar os ignorantes. 3ª) Corrigir os que erram. 4ª) Consolar os tristes. 5ª) Perdoar as injúrias. 6ª) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo. 7ª) Rogar a Deus por vivos e defuntos. Chega um breve relance para reconhecermos a importância de cada uma e a harmonia do conjunto. Alimentar, dessedentar, vestir e abrigar referem-se a tudo o que há de mais essencial e básico para

POR “MISERICÓRDIA” ENTENDE-SE UM AMOR DE DENTRO, ENTRANHADO E PROFUNDO, COMO O DAS MÃES E PAIS PELOS FILHOS Por “misericórdia” entende-se um amor de dentro, entranhado e profundo, como o das mães e pais pelos filhos que nunca enjeitam, condoendo-se com as suas dores, ou prevenindo-as. Assim se revelou o amor de Deus na história bíblica, nunca deixando de procurar ou de esperar quem se perdia ou ausentava da sua intimidade e da sua lei. Como nós cristãos sabemos que se revela em Jesus Cristo, nosso verdadeiro irmão mais velho, que o Pai enviou para nos encontrar e levar à casa paterna. É um amor que incide muito especialmente em quem é frágil e pobre, de muitas fragilidades e pobrezas; um coração voltado para a nossa miséria, como a palavra “misericórdia” quer dizer. Um ano para nos empenharmos ainda mais na misericórdia que pedimos. Ano propício a decorar toda a lista tradicional das obras de misericórdia corporais e espirituais, como o Papa também lembra na sua bula (cf. nº 15). Porque “decorar” é reter no coração para pôr na vida. Lembremo-las na formulação tradicional. As corporais: 1ª) Dar de comer a quem tem fome. 2ª) Dar de beber a quem tem sede. 3ª) Vestir os nus. 4ª) Dar pousada aos peregrinos. 5ª) Assistir aos enfermos. 6ª) Visitar os presos. 7ª) Enterrar os mortos. As espirituais: 1ª) Dar bom conselho.

todos e não pode ser privilégio de alguns, como, tragicamente continua a ser ao nível da humanidade em geral. Basta lembrar que os recursos que dariam para todos são desproporcionalmente usufruídos por uma minoria da população mundial... Visitar doentes ou reclusos traduz uma solidariedade de raiz que se exercita especialmente nesses casos, mais expostos à solidão e ao desânimo. Solidariedade que nem esquece os restos mortais de quem partiu, mas não perdeu dignidade nem lembrança. Dar bom conselho, ensinar os ignorantes e corrigir os que erram, tudo é cumprir a pedagogia recíproca que nos cabe, não desistindo de habilitar e melhorar a todos e a cada um. Ninguém nasce ensinado, todos temos algo a transmitir, aprender e reaprender. Consolar os tristes é fazer circular a alegria e a paz, que só assim se ganham e acrescentam. Perdoar as injúrias e sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo é, para quem segue a Cristo, imitar sobremaneira o seu mestre, que assim mesmo demonstrou a grandeza dum coração capaz de recriar o mundo. Rogar a Deus por vivos e defuntos é garantir com Deus que isso mesmo aconteça e eternamente seja. A graça do presente Jubileu é proporcionar ao mundo um coração que o salve.

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| RECONCILIAÇÃO |

MISERICORDIOSOS Nestes tempos de inclemência que são os nossos, somos chamados a inventar expressões novas de misericórdia. Urge olhar com a visão da fé no ser humano, apoiados na confiança em Deus, firmes como Jesus Cristo na condenação do mal e na reabilitação de cada pessoa, incansavelmente misericordiosos. Texto de Frei Luís de Oliveira [ORDEM DOS FRADES MENORES (FRANCISCANOS), MESÁRIO DA IRMANDADE DA MISERICÓRDIA E DE SÃO ROQUE DE LISBOA]

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squecidos, nós, de pagar a tempo e horas as dívidas de uma presença por amar, de um amor por salvar, de uma pessoa por servir com o melhor do mundo que é a paixão de uma dedicação até à entrega da própria vida, ocupamo-nos, muitos de nós, em tramas fratricidas. O inferno não nos espera, não. Vivemos já nele, com quem ferve de rancor, com quem incendeia no terror em desejos de vingança, com quem desfigura e destrói a vida vocacionada à beleza e à grandeza do seu Criador. Nestes dias, que são os meus, os teus, os nossos, procuramos um lugar nesta terra ao qual possamos chamar com convicção, verdadeiramente, um “paraíso”. Mendigamos a compaixão, à espera de um sentido para a vida dado pela espiritualidade. Precisamos, como de pão para a boca, de um mundo onde a vida possa nascer, crescer e morrer livre, feliz, em paz. Urge o tempo e o espaço da reconciliação com a história, com a mais íntima humanidade de todas as nossas histórias pessoais. Sonhamos um povo liberto a caminho de “uma terra que mana leite e mel”. Propomos relações humanas simbolizadas profeticamente numa fraterna convivência entre o lobo e o cordeiro, onde “a criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente”.

Por tudo isto, e muito mais, a habitual tendência que experimentamos para criticar e encontrar defeitos nos outros tem de ser substituída pela misericordiosa atitude nas apreciações pessoais, pela generosa abertura à doação e pela capacidade de situar-se no lugar do outro. Somos inequivocamente chamados a inventar expressões novas de misericórdia que desarmem quem esteja empenhado em ser sempre do contra. A partir da fé cristã, impõe-se criar atitudes e comportamentos que saibam integrar todas as pessoas com um único padrão de medida: o do amor de Deus. E se para isso há que fazer sacrifícios, faça-se! A mãe não precisa que lhe expliquem porque há-de sacrificar-se pelos seus filhos. E se lhe perguntarmos por que o faz, a resposta é tão simples como contundente: “São os meus filhos!”. Um dos exemplos do chamamento do carinho que faz a pessoa sentir-se incluída na vida de quem a acolhe e a ama, sem necessitar de razões e porquês, acima da mera legalidade, do cumprimento da norma, ou da simples preocupação de justiça. A este propósito, outro exemplo. Fixo-me nas pedras, acossado. Nas mãos daqueles homens, os doutores da lei e os fariseus que, com presunçosa autoridade, desejam atirá-las contra quem consideram desprezível pela sua ação: a mulher adúl-

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tera. As pedras são naquelas mãos o símbolo de corações endurecidos, de um entendimento enrijecido pelo escrúpulo no cumprimento legalista da lei, do mal-intencionado objetivo de tramar Jesus e o seu Evangelho. Hoje também não faltam as pedras, nas mãos de presunçosos justiceiros que com indomável fúria procuram castigar os que eles julgam, não por um reto sentido de justiça, mas por um sustentado instinto de vingança – e também por um fratricídio preconceito sobre quem parece ou é diferente deles –, condenando-os à morte social ou moral ou inclusive física. Matam-nos, mantendo-os vivos até à exaustão, até à perda total de uma qualquer esperança de um sentido para viverem. E não haverá quem esteja matando lentamente nas páginas dos periódicos e nos noticiários em primetime até que já não sirvam às audiências, nem gerem ambicionadas receitas?! É assim, numa ação sentenciosa aparentemente justa, que vemos tantas vezes desprezado o valor da vida, ofendida a dignidade do ser humano, desrespeitados os seus direitos, embargada a sua recuperação social e, pior ainda, impedida uma conversão de coração, autêntica, profunda, uma verdadeira terapia. Neste “quadro clínico” indicativo de algumas “patologias” sociorreligiosas, o Cuidador das Almas e dos Corações – Jesus Cristo – intervém com um curativo invulgar naquele tempo e… ainda hoje! Olha aqueles homens e não os condena, apenas os interpela para uma genuína e honesta autocrítica, fazendo-os ver porventura os seus próprios delitos, e eles “ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos”. Olha aquela mulher e, compadecendo-se dela, exposta a um público juízo, inexoravelmente desapiedado e ampliado pelo mediático estatuto dos que a acusam, não a condena, mas prescreve-lhe, como remédio capaz de possibilitar a recuperação da dignidade humana, que não volte a fazer o mesmo, que não repita o erro, que se arrependa e se converta a uma vida saudavelmente nova. A novidade de uma saúde de corpo e alma da qual Jesus é o rosto e a voz, expressão viva da Palavra cheia de misericórdia que reconcilia e transforma o coração humano, que faz novas todas as coisas, que

URGE O TEMPO E O ESPAÇO DA RECONCILIAÇÃO COM A HISTÓRIA, COM A MAIS ÍNTIMA HUMANIDADE DE TODAS AS NOSSAS HISTÓRIAS PESSOAIS” lhe dá um sentido totalmente outro, inédito, fundado na infinita compaixão de Deus misericordioso. Assim, nestes tempos de inclemência, que são os nossos, urge olhar com a visão da fé no ser humano – homens e mulheres – apoiados na confiança em Deus, firmes como Jesus Cristo na condenação do mal e na reabilitação de cada pessoa, incansavelmente misericordiosos, sempre pacientes a confortar e perdoar, de modo que a “chamada para experimentar a misericórdia não deixe ninguém indiferente”. 11

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| PARCERIA |

ENTRE MISERICÓRDIAS Desde Março de 2015, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa apoia Misericórdias de todo o País através do Fundo Rainha D. Leonor. Trata-se de um acordo inédito em 500 anos de história. Um verdadeiro prenúncio do Ano Santo da Misericórdia que agora se celebra. Texto de Inez Ponce Dentinho [MEMBRO DO CONSELHO DE GESTÃO DO FUNDO RAINHA D. LEONOR]

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Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) saiu das suas fronteiras para apoiar causas socialmente prioritárias das Misericórdias de todo o País. A ideia partiu de uma conversa entre Pedro Santana Lopes e Manuel de Lemos, em 2014, que faz agora caminho com obras que puderam ser concretizadas através de um acordo inédito em 500 anos de história das Misericórdias. “É uma parceria ímpar, em mais de cinco séculos de história da Misericórdia de Lisboa, que se concretiza com a criação de uma ferramenta de financiamento com dotação orçamental própria”, disse o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em Março de 2015. “Este protocolo é um marco histórico e um reencontro com a história, num retomar de uma missão conjunta”, respondeu então o presidente da União das Misericórdias Portuguesas. O Fundo nasce da consciência que a Misericórdia de Lisboa tem de que a sua missão não se pode instalar nos limites estatutários da geografia nem na vantagem histórica das receitas do jogo. Cumpre o espírito primeiro da rainha D. Leonor com uma dimensão que a ordem seiscentista não permitia. Nessa época, face às dificuldades das vias de comunicação e na lógica de responsabilidade social,

desenharam uma organização de apoios das Misericórdias nos círculos de proximidade concelhios, de maior eficácia na dádiva e na recolha de benfeitorias. Séculos mais tarde, quando demasiados chegavam à capital à procura de uma vida melhor, outra rainha proveu a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com parte das receitas da lotaria que, sendo incertas, passaram a dar proventos mais fixos e mais generosos para o serviço desta instituição. O progresso trouxe novas exigências sociais. Sobretudo nas últimas décadas, assistiu-se à inflação demográfica das duas metrópoles e das cidades intermédias, a par de um despovoamento implacável no resto do território português. O Estado Social e a secularização alteraram comportamentos. Transformaram beneméritos em contribuintes; benfeitores em patrocinadores de causas, mais temáticas do que sociais. Com a criação do Serviço Nacional de Saúde, da Segurança Social e da escola pública, gerou-se a ideia de que o auxílio aos que menos têm compete apenas ao Estado, suportado por impostos que secundarizam antigos contributos às Santas Casas. Para os mais exigentes, o esforço social é completado com voluntariado e filantropia, com destinos menos focados nas Misericórdias.

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O reforço do poder local, depois de 1976, completou o quadro de uma certa desresponsabilização social no apoio que anteriormente era prestado pelos mais abonados às Misericórdias e à Igreja. Como foi dito, parte-se do princípio de que o Estado deve suprir todo o cuidado ao próximo. Cedo, o mesmo Estado entendeu que o conceito da “Misericórdia aplicada” não se esgota na prática constitucional, na distribuição das alíneas dos orçamentos anuais ou no número de utentes que é capaz de atender. Sem alternativa, desdobrou-se em acordos de segurança social, saúde, educação, que hoje suportam, em parte, o apoio social prestado pelas velhas Misericórdias. Mas a verdade é que estas rendas do Governo não chegam para as despesas de uma sociedade onde o envelhecimento cresce à velocidade em que a família se reduz a uma expressão nuclear. As casas, as vidas e as vontades não comportam agregados multigeracionais. A cidade chama pelos novos deixando os mais velhos impreparados para dependências quotidianas. O isolamento pede respostas de humanidade e de logística e as Santas Casas locais, atentas à chamada, encontram novas práticas de Misericórdia. Reforçam o apoio ao domicílio, as vagas nos centros de dia e nos lares, cada vez mais com alas para a demência, para gente que vive mais vinte anos do que há vinte anos. Todas as Misericórdias do País têm estes problemas. Mas nem todas têm meios para lhes fazer frente. Nas terras mais pequenas e distantes, o assunto torna-se tão grave como nos subúrbios das duas metrópoles, onde hoje também faltam filhos, vizinhos e meios. Acresce que, sobretudo na primeira década do século xxi, por excesso de ambição de serviço social ou por desmesura das promessas de crédito, algumas Misericórdias investiram mais do que podiam nas respostas para a demanda social. Empenharam-se em construções de grande porte e maior despesa que nem sempre conseguiram concluir. Veio a crise e, com ela, a tripla tribulação: do aumento dos pedidos, da moderação das ajudas do Estado e do peso dos empréstimos a pagar pelos equipamentos entretanto principiados.

I – Em Almeirim, visita ao local

II – Assinatura do Contrato de Financiamento

III – Obra concluída

Lisboa não podia assistir quieta a dificuldades que, como todos sabemos, não param nas Portas de Benfica. Não podia, também, continuar a dar respostas casuísticas ao ritmo dos pedidos que lhe chegavam de Misericórdias de todo o País. Arriscava-se a dar aos que mais pedem e não aos que mais precisam. E, como referido, na consciência de que a sua missão não se pode instalar no seu horizonte concelhio nem na vantagem das receitas do jogo, juntou-se à União das Misericórdias Portuguesas para dar apoio às causas sociais prioritárias identificadas pelas Santas Casas de todo o País, no princípio da autonomia cooperante. Criou, assim, o Fundo Rainha D. Leonor com regras claras e iguais para todos, com transparência 13

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| PARCERIA |

LISTA DAS CANDIDATURAS APROVADAS Penela – Finalização da ampliação de Lar de Idosos Lousã – Renovação e ampliação de Lar de Idosos Pernes – Equipamento da Unidade para Utentes com Demência Almeirim – Finalização da requalificação do hospital para Creche e Jardim de Infância Celorico de Basto – Reabilitação do Jardim de Infância e arranjo da quinta para recreio Barreiro – Projecto de segurança contra incêndios Boticas – Finalização da extensão do Lar de Grandes Dependentes Cabeço de Vide – Finalização do Lar de Idosos e Centro de Dia Constância – Requalificação do espaço exterior do Lar de São João Aljubarrota – Finalização do Lar de Idosos São Nuno de Santa Maria Ponte de Sor – Finalização do Lar de Idosos Madalena do Pico – Reabilitação de Residência para Portadores de Deficiência Vila de Pereira – Finalização dos apoios à Unidade de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) – Cozinha e Lavandaria Sabrosa – Requalificação do Lar de Idosos adaptada às demências Campo Maior – Remodelação para Centro de Dia e de Alzheimer e arranjos exteriores Penacova – Requalificação do antigo chalé que serve de Lar de Idosos e ampliação Portalegre – Equipamento para tanque de aquaterapia para idosos Borba – Equipamento para exercício físico de idosos Crato – Ampliação do Lar e Centro de Dia Gáfete – Ampliação do Lar e arranjos exteriores Faro – Conclusão do Lar de Idosos Torres Novas – Requalificação do Lar de Infância e Juventude Alcantarilha – Ampliação do Lar de Idosos Vila Nova de Foz Côa – Requalificação da Creche e espaço exterior intergeracional Viana do Castelo – Requalificação e ampliação do Lar Velho São Pedro do Sul – Requalificação da ala dos dormitórios do Lar de Idosos Arcos de Valdevez – Adaptação do antigo hospital a lar e CAO para portadores de deficiência

PENELA, Finalização da ampliação de Lar de Idosos

PERNES, Equipamento da Unidade para Utentes com Demência

MADALENA DO PICO, Reabilitação para residência de deficientes

de procedimentos e com meios que hoje completam as tais obras que não podem abrir portas novas ou que não podem manter as antigas abertas, pelo estado de degradação ou pela inconformidade com as exigências da lei. CAUSA MAIOR “O Fundo Rainha D. Leonor nasceu para ajudar na última pedra, para fazer o remate, para apoiar no que faz falta”, definiu Pedro Santana Lopes no dia em que assinou os seis primeiros contratos de financiamento, em 14 de Setembro de

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ALJUBARROTA Finalização do Lar de Idosos São Nuno de Santa Maria

BOTICAS, Finalização da extensão do Lar de Grandes Dependentes

O FUNDO RAINHA D. LEONOR PERMITE COMPLETAR AS OBRAS DAS MISERICÓRDIAS QUE NÃO PODEM ABRIR PORTAS NOVAS OU QUE NÃO PODEM MANTER AS ANTIGAS ABERTAS, PELO ESTADO DE DEGRADAÇÃO OU PELA INCONFORMIDADE COM AS EXIGÊNCIAS DA LEI” PONTE DE SOR, Finalização de Lar de Idosos

CABEÇO DE VIDE, Finalização de Lar de Idosos e Centro de Dia

2015, no estaleiro da obra do antigo hospital de Almeirim. O Fundo recebe as candidaturas através do site www.fundorainhadonaleonor.com. Depois, a equipa técnica vai ao terreno da Misericórdia candidata

para avaliar e organizar o processo que, mais tarde, é analisado pelo Conselho de Gestão e aprovado pela Presidência. Esta sequência culmina com a aprovação do financiamento pela Mesa da SCML, depois firmada em contrato com a candidata. O apoio a cada projecto não excede 300 mil euros – só assim podemos chegar a um maior número de Misericórdias com cinco milhões de euros/ano. É missão do Fundo Rainha D. Leonor completar a realização destes projectos, desde que sejam necessários, que possam ser sustentáveis e que tenham qualidade. A inovação, quando existe, também é valorizada. Damos prioridade às áreas do envelhecimento, da infância, da saúde e do combate à pobreza. Mas, sobretudo, damos importância a candidaturas que garantam qualidade de vida a quem delas venha a beneficiar. São projectos que têm um valor intrínseco porque são identificados pelas Misericórdias, 15

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CELORICO DE BASTO Reabilitação da Creche e Jardim de Infância

CAMPO MAIOR Remodelação para Centro de Dia e de Alzheimer e arranjos exteriores

GÁFETE, Ampliação do Lar e Centro de Dia

senhoras do melhor conhecimento dos problemas das populações a quem servem. Nesse sentido, não precisam de ser reconhecidos pelo Fundo Rainha D. Leonor mas sim apoiados. Hoje, milhares de quilómetros percorridos, em dezenas de visitas a Misericórdias de todo o País, produzem mais de trinta candidaturas que chegam a bom porto com mais de cinco milhões de euros atribuídos. Esta é uma soma rigorosa que não reflecte, em toda a extensão, o contacto inédito de cooperação entre a Santa Casa de Lisboa e as suas congéneres. O ponto de encontro dá-se mais além, sob a forma de partilha na vontade de melhor servir os que mais precisam. O encontro está, afinal, na causa maior que tardava em ser comum. Não fazemos uma visita sem trazer uma experiência que dê boas ideias à escala seguinte, por vezes sem grandes custos. Recordo, por exemplo, os pequenos gabinetes de Ponte de Sor transformados em oratórios onde os idosos podem ter um espaço espiritual a sós, com alguém da família ou com mais alguém do lar. Na Madalena do Pico, destacam-se as inovadoras práticas sociais e clínicas do Centro de Actividades Ocupacionais que mereceram reconhecimento oficial nas comemorações do 10 de Junho.

Lembro ainda a aposta das Misericórdias de Aljubarrota, da Lousã ou de Vila Nova de Foz Côa em campus comuns de Misericórdia que propiciam relações intergeracionais quotidianas. Ou o investimento planificado, com controlo de finanças, de Borba, do Fundão, de Póvoa de Lanhoso, Pernes ou Boticas, entre várias outras. No valor dado à reabilitação do património para usos sociais contemporâneos – tão simbólico para as populações locais – sublinho o caso das extraordinárias recuperações dos antigos hospitais de Almeirim e de Portalegre. Como notável é a promoção do contacto dos idosos com a natureza, propiciado em Campo Maior, no Alandroal e Torres Novas, aqui com máquinas para exercício geriátrico ao ar livre. Também o bom trato dos arquivos seculares de Cabeço de Vide, do Crato ou da Ericeira são exemplares; tal como o esforço financeiro que não falha na urgência social do Fundão, de Celorico de Basto ou da Pampilhosa da Serra, só para dar três exemplos. Podia continuar o testemunho das boas práticas que se observam, de imediato, nas visitas técnicas do Fundo Rainha D. Leonor. E devia, correndo sempre o risco de ser injusta, como estarei a ser, com as Misericórdias que fazem um esforço meritório, nem sempre reconhecido. Todos estes exemplos são trocados entre as Misericórdias agora, também, por intermédio da equipa do Fundo. Funcionamos como uma espécie de congresso ambulante que partilha experiências inovadoras e bem conseguidas para que outros as possam adoptar.

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ALANDROAL A reabilitação do exterior do lar é tão importante como a do interior

BORBA, Equipamento para exercício físico de idosos

UM NOVO PARADIGMA PARA O ENVELHECIMENTO O respeito pela autonomia das Misericórdias não exclui a construção de um novo paradigma para o envelhecimento. Nesse sentido, na apreciação das candidaturas combatemos a criação de guetos de envelhecimento, privilegiando espaços intergeracionais. Defendemos projectos complementados com ambientes exteriores, onde as pessoas possam passear e estar, à sombra ou ao sol, conforme a hora do dia e a estação do ano. Preferimos reabilitações de edifícios que respeitem o património e as suas simbologias. E obras que contemplem, na sua organização espacial, a possibilidade de quem se encontra no ocaso da vida poder recolher-se em oração ou num convívio mais reduzido a três ou quatro amigos do lar e não, obrigatoriamente, num colectivo amorfo em torno de um só canal de televisão generalista, em alta voz. Muitas Misericórdias já evitam a criação de enormes salas comuns – tantas vezes concebidas para facilidade de serviço ou por falta de espaço – e praticam a diferenciação de ambientes. Mas a tendência de quem tem de lidar com muitos utentes, cada vez mais dependentes e com pouca mobilidade, é simplificar o serviço num espaço geral, para chegar a todos com mais eficácia, menos funcionários e ainda menos qualidade de vida para as pessoas que ali vivem. Por vezes, a simplificação do expediente provoca novas formas de isolamento e de alienação. A distribuição de espaços e pátios que encontrámos na Misericórdia de Vila Alva (Beja) pode ser menos

ortodoxa no figurino das actuais instalações que servem idosos, mas resulta num ambiente mais parecido com os das casas onde essas pessoas moraram toda a vida; permite um convívio seleccionado por interesses; evita a massificação e o alheamento; empresta uma humanização às paredes que os amplos espaços das novíssimas Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas (ERPI) nem sempre garantem. Também é nosso empenho provocar nas Misericórdias o uso dos espaços exteriores a favor dos utentes. Tantas vezes instaladas em quintas onde foram construindo as diferentes valências, nem sempre as Santas Casas tiram proveito do verde para criarem circuitos de passeio, com sombras e descanso; silêncio e contacto com a natureza. Do mesmo modo, algumas instituições dos centros urbanos têm a tentação de fechar varandas e pequenos terraços para criar mais largueza nos tais espaços interiores únicos, submetidos ao ruído do mesmo canal de televisão. Com grupos de cadeiras de verga ali dispostos, a distribuição dos idosos seria mais económica e mais variada. É fácil falar quando se vive da observação comparada. Mas também é simples adaptar o que existe à vida que gostaríamos de ter no ocaso dos nossos dias. Tem sido extraordinário ver a abertura das Misericórdias para impulsionar novos espaços e práticas, especialmente com os idosos. O símbolo do Fundo mostra uma imagem da rainha D. Leonor com um movimento que é, simultaneamente, de acolhimento e de dádiva. Saibamos realizar o mesmo gesto na consciência de que, como dizia Santo Agostinho, “o outro sou eu”. Nota: Por opção do autor, este artigo não segue as regras do acordo ortográfico.

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OBRA FEITA! As primeiras obras apoiadas pelo Fundo Rainha D. Leonor chegam a bom termo. Em Pernes, o Centro de Demências constitui hoje uma experiência piloto que é apresentada como case study nos encontros da especialidade. As crianças de Almeirim voltam para o antigo hospital da vila, desta vez para aprender e brincar com espaço e qualidade. Em Aljubarrota, defende-se a Pátria, e os que mais tempo a servem, num lar com vista para a paz da serra ou

para a animação das crianças de um mesmo jardim. Em Ponte de Sor, a ala mais recente do lar acolhe idosos com dificuldades cognitivas e orienta-os com a sabedoria das boas práticas de gerontologia. E, no Barreiro, mais de uma centena de idosos do lar de São José tem, finalmente, condições de segurança contra incêndios, sabendo-se que bastam quatro segundos para fazer alastrar as chamas e que as pessoas que lá estão têm movimentos lentos.

ALJUBARROTA Finalização do Lar de Idosos São Nuno de Santa Maria (antes e depois)

PONTE DE SOR Finalização de Lar de Idosos

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ALMEIRIM, Finalização da requalificação do hospital para Creche e Jardim de Infância (antes e depois)

PERNES Equipamento da Unidade para Utentes com Demência

BARREIRO, Projecto de segurança contra incêndios

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SER MISERICÓRDIA HOJE Ser Misericórdia hoje é o desafio de manter as pessoas, as suas capacidades e as suas vulnerabilidades no centro da ação, cumprindo a missão com um olhar compassivo que busca a promoção e o bem-estar. Texto de Rita Valadas [ACESSORA NA SCML]

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nquanto entidade de intervenção social, a Misericórdia de Lisboa, em rede com outras entidades, tem consolidado estratégias de intervenção e desenvolvido respostas que previnam a exclusão, a vulnerabilidade social, a desigualdade e a carência económica de forma direta ou coordenada e conduzam à cidadania e dignidade humana. Catorze obras de misericórdia trazem-nos catorze perspetivas de olhar a ação da Santa Casa. Sobre cada uma destas obras podemos encontrar caminhos percorridos que as tornam referenciais ainda hoje. Se a isto acrescentarmos a capacidade que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) sempre demonstrou de, olhando a realidade social de cada tempo, se reconstruir como exemplo do exercício das obras de Misericórdia, podemos perceber o “rasto histórico” da sua intervenção pioneira ao longo dos tempos, criando as respostas capazes de responder aos apelos e

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vulnerabilidades sociais da realidade portuguesa ao longo dos cinco séculos da sua existência. “… Possam as Santas Casas da Misericórdia, estas ímpares, tão portuguesas, tão lusófonas, instituições de solidariedade e humanismo cris-

CATORZE OBRAS DE MISERICÓRDIA TRAZEM-NOS 14 PERSPETIVAS DE OLHAR A AÇÃO DA SANTA CASA. SOBRE CADA UMA DESTAS OBRAS PODEMOS ENCONTRAR CAMINHOS PERCORRIDOS QUE AS TORNAM REFERENCIAIS AINDA HOJE”

tão, fiéis à sua vocação original e originária de se destinarem à prática de todas as obras da misericórdia em relação a todas as pessoas e em todos os tempos e lugares responder, em criatividade, em dinamismo e em universalismo pluralista, a este repto de entrarmos no século XXI com a garantia de que as obras da misericórdia são as quatorze… e as outras, ou seja, tantas e de tanta misericórdia e quantas e quanto quem quer que seja necessite.” (Padre Vítor Melícias, in “As obras de Misericórdia para o século xxi”) É neste “tantas e de tanta misericórdia e quantas e quanto quem quer que seja necessite” que encontramos o fio condutor da intervenção da SCML, tantas vezes à frente do seu tempo, tantas vezes olhando e avaliando as reais necessidades dos que careciam do seu cuidado e assim garantindo a “realização da melhoria do bem-

UNIDADES de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade (UDIP)

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-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos”. Hoje a Misericórdia cuida, numa ótica transversal, com os vários atores no terreno, de todos e de todas, em todas as idades numa perspetiva intergeracional, e procura “rasgar horizontes, identificando novas potencialidades e novas respostas sociais, em prol da melhoria da qualidade de vida dos utentes”. Hoje Lisboa é uma cidade em grande transformação e a intervenção social tem de ter um olhar alargado e plástico que acompanhe as novas realidades e as novas necessidades. Usando o simbolismo da porta, também a SCML tem de disponibilizar portas que permitam o acesso dos mais vulneráveis. Ser vulnerável é ser pobre, é ser doente, é ser isolado, é estar só, entre muitas outras fragilidades que possam deixar uma pessoa em risco. Ser vulnerável é uma condição que exige atenção e intervenção no âmbito da missão da Misericórdia. As mudanças de paradigma, tais como a crise económico-financeira que o país enfrenta e as pressões sociais que determinam o aumento de casos que carecem de intervenção da SCML, exigem novas respostas e um elevado nível de responsabilidade social. A SCML conduz a sua ação através de três portas: a da proximidade (que olha o território), a da infância (que olha pela criança) e a dos públicos vulneráveis (que olha pelos deficientes, pelos idosos, pelos doentes isolados e pelos sem-abrigo) numa lógica de parceria e integração das respostas. A PROXIMIDADE Direção de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade Esta área tem especial intervenção na área de proximidade. Sabendo que muitas das situações de risco social têm de ter recursos vizinhos para poder encontrar soluções eficientes, procurou-se que as unidades de intervenção (UDIP) se tornassem tão próximas quanto possível, com vista a reforçar a promoção de processos de autonomia e inclusão social. Esta proximidade (que divide Lisboa em dez

HOJE LISBOA É UMA CIDADE EM GRANDE TRANSFORMAÇÃO E A INTERVENÇÃO SOCIAL TEM DE TER UM OLHAR ALARGADO E PLÁSTICO QUE ACOMPANHE AS NOVAS REALIDADES E AS NOVAS NECESSIDADES”

UDIP) permite também a melhor gestão e articulação dos recursos disponíveis no território para garantir o cuidado. Para maximizar a intervenção, a esta área compete também a gestão da resposta da SCML para a Educação e Formação para utentes (ver mapa). Poder estar próximo é agir na vizinhança, o que permite encontrar soluções mais adequadas e parceiros mais interessados. Receber e acolher são as palavras-chave da ação. A CRIANÇA Direção de Infância e Juventude Proteger as crianças e jovens e desenvolver processos de autonomia e inserção social “no respeito pelo superior interesse da criança” é a missão 23

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desta direção, que olha em especial para os projetos de vida das crianças à sua guarda. Cuidar das crianças é uma das primeiras marcas da Misericórdia nos seus primórdios e uma das suas maiores responsabilidades. Desde os meninos da roda que a SCML transporta esta missão no seu ADN e procura caminhos de vida para as crianças e os jovens que vivem ou frequentam as suas atividades e equipamentos. Proteger e Promover são as palavras-chave da ação.

OS PÚBLICOS VULNERÁVEIS Direção de Intervenção com Públicos Vulneráveis Tendo como referencial promover mecanismos de apoio a públicos vulneráveis, tais como população envelhecida, portadora de deficiência, ou, ainda, cidadãos sem residência fixa, ou em trânsito na cidade de Lisboa (sem-abrigo, ex-reclusos em processo de reinserção social e vítimas de violência), esta área tem também mecanismos de apoio à população vulnerável que carece de acompanhamento terapêutico, evitando assim “que se adensem as doenças”. No que à população idosa respeita, a aposta é numa atuação pautada pela intergeracionalidade e pelo envelhecimento ativo. Um dos grandes desafios da SCML é assim o de encontrar um modo de viver melhor o envelhecimento, através das soluções encontradas na rede social e de programas que motivem e qualifiquem os anos que a medicina e a investigação vêm acrescentando à vida. Quanto à população sem-abrigo, a aposta, depois de uma avaliação pelo programa “Inter-

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gerações” (uma marca diagnóstica da SCML), foi a de, no âmbito da Rede Social, criar uma resposta, a “casa-mãe” para os sem-abrigo e para quem colabora no terreno, e gerir este problema, numa perspectiva de governação integrada, garantindo a melhor utilização dos recursos e conhecimentos já existentes. Num espaço cedido pela Câmara Municipal de Lisboa e gerido pela SCML, funciona hoje a Unidade de Apoio à População Sem Abrigo (UAPSA). Cuidar e apoiar são as palavras-chave da ação. É assim que, visando aproximar os serviços dos cidadãos, tentando garantir a transversalidade e integração das respostas, a parceria, a participação ativa das comunidades, e procurando uma intervenção que tenha como farol o princípio da inovação, da qualidade e da qualificação de serviços e respostas, que se pretende encontrar soluções para intervir no social, hoje na Misericórdia. Que sentido tem então o Jubileu da Misericórdia para a ação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em Ação Social?

A SCML CONDUZ A SUA AÇÃO ATRAVÉS DE TRÊS PORTAS: A DA PROXIMIDADE (QUE OLHA O TERRITÓRIO), A DA INFÂNCIA (QUE OLHA PELA CRIANÇA) E A DOS PÚBLICOS VULNERÁVEIS (QUE OLHA PELOS DEFICIENTES, PELOS IDOSOS, PELOS DOENTES ISOLADOS E PELOS SEM-ABRIGO) NUMA LÓGICA DE PARCERIA E INTEGRAÇÃO DAS RESPOSTAS” Nesta época de grande dificuldade social em que todos somos convocados para agir, importa reinterpretar os métodos e as práticas e resgatar o “capital simbólico das obras de misericórdia” que se afirmam cada vez mais como código de conduta.

UNIDADE de Apoio à População Sem Abrigo

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OS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

NA MISERICÓRDIA DE LISBOA A prestação de cuidados de saúde primários à população de Lisboa, em particular aos grupos mais carenciados e desprotegidos, está na génese da fundação da Misericórdia de Lisboa. Através das suas unidades de saúde, a Santa Casa presta estes cuidados a uma população de cerca de 25 mil utentes. Texto de Maria Manuela Marques [ENFERMEIRA DIRETORA NA DIREÇÃO DE SAÚDE SANTA CASA_SCML]

OS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS NO SISTEMA DE SAÚDE s cuidados de saúde primários (CSP) são reconhecidamente o pilar central do sistema de saúde, assumindo – numa perspetiva integrada e de articulação com outros serviços para a continuidade de cuidados – importantes funções de promoção da saúde e prevenção da doença, e de prestação de cuidados de saúde, promovendo ainda um acompanhamento de qualidade e proximidade às populações. Garantem, desta forma, a resolução da maioria das situações de saúde e previnem a desnecessária afluência a cuidados de urgência hospitalares, pela diversidade de intervenções que asseguram, contribuindo inequivocamente para a sustentabilidade do sistema. Por conseguinte, os centros de saúde constituem o primeiro acesso dos cidadãos à prestação de cuidados de saúde. Assumem as funções fundamentais de promoção da saúde e prevenção da doença, prestação de cuidados na doença, reabilitação, reinserção social e ligação a outros serviços para a continuidade dos cuidados.

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Saliente-se que os sistemas de saúde orientados para os CSP – como cuidados holísticos, de proximidade, continuidade e transversais – mostram melhor desempenho, melhores resultados, mais equidade e acessibilidade, melhor relação custo-benefício e maior satisfação do cidadão (ATUN, 2004). Felizmente, o ambiente internacional atual resulta favorável a uma renovação dos CSP. Ora, desde 1979 e nos termos da Lei de Bases da Saúde (LBS), o sistema de saúde português tem sido baseado num sistema nacional de saúde com cobertura universal, livre acesso e um financiamento baseado em impostos. Deste sistema espera-se a promoção de equidade, a eficiência, a qualidade, a responsabilização e a descentralização, sendo a contenção de custos um objetivo intermediário.

Através da LBS estabeleceu-se um modelo misto de sistema de saúde, consagrando a complementaridade e o caráter concorrencial do setor privado e de economia social na prestação de cuidados de saúde. Deste modo, ficam integrados na rede nacional de prestação de cuidados de saúde as entidades privadas e os profissionais livres que acordem com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) a prestação de todas, ou de algumas atividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde. Neste quadro, as instituições particulares de solidariedade social, em especial as Misericórdias, protagonizam um papel de destaque no sistema de saúde, que tem sido reconhecido ao longo dos tempos na sociedade portuguesa. Efetivamente, as Misericórdias têm estado frequentemente

DÉCADA DE 50 Sessão de educação para a saúde, SCML

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distribuída aos tutelados pela instituição farinha láctea, fabricada pelo laboratório da SCML. Em 1943 abre as portas o Hospital Infantil de São Roque, com internamento em várias especialidades. Em 1945 já existiam na cidade de Lisboa sete lactários da SCML, que mais tarde viriam a denominar-se dispensários materno-infantis. Posteriormente, em 1958, a Misericórdia de Lisboa realiza o primeiro curso de educadoras de saúde pública e, em 1965, é inaugurado o Centro de Saúde e Assistência Dr. José Domingos Barreiro, que completou no passado dia 2 de julho de 2015 cinquenta anos ao serviço da prestação de cuidados de saúde à população da sua área de abrangência. Em 1978, a SCML inaugura um serviço de planeamento familiar que realizou formação nesta área a todos os profissionais da instituição e onde participaram ainda muitos profissionais da Administração Regional de Saúde, tendo-se iniciado também, em 1982, a primeira consulta de adolescentes no Bairro do Relógio. Com a criação do SNS em 1979, a intervenção da SCML no domínio dos cuidados de saúde primários passou a ter um caráter supletivo na cidade de Lisboa, mas não menos importante, na medida em que dirige a sua intervenção para a população mais carenciada e desprotegida, sendo ainda um parceiro estratégico do SNS para colmatar necessidades e disponibilizar respostas à população. DÉCADA DE 50 Vacinação, SCML

associadas à prestação de cuidados de saúde, embora exercendo diferentes papéis, em especial na sua associação à prossecução do interesse público. UMA HISTÓRIA DE PIONEIRISMO É no início do século xx – quando a mortalidade infantil até ao primeiro ano de vida nas crianças tuteladas pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) era de 23,9% – que são criados em Portugal os primeiros lactários e dispensários materno-infantis, em Lisboa, pela SCML. A farmácia central da Santa Casa é inaugurada em 1906, na mesma altura que o posto de socorros médicos, ambos a funcionar no edifício de São Roque. Foi também nessa data que começou a ser

COOPERAÇÃO INTERSETORIAL E COMPLEMENTARIDADE De acordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), os CSP deverão ser igualmente acessíveis a todos os utentes, por forma a incentivar os comportamentos de vigilância da saúde e a prevenção da doença, considerando os ganhos em saúde, bem como a contenção de custos, evitando o acesso inadequado a níveis de cuidados mais especializados ou às urgências. “A reforma dos sistemas de saúde em tempos de crises financeiras deve garantir que não é afetado o acesso das pessoas a cuidados de saúde de qualidade” (OMS, Regional Committee for Europe, 2009).

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Uma das estratégias recomendadas pelo Plano Nacional de Saúde (PNS) 2012-2016 é a de reforçar o contributo dos serviços de saúde, a nível local, na redução do impacte dos determinantes sociais, enquadrando o acesso e as iniquidades em saúde como fatores-chave para a redução das desigualdades e trabalhando com outros setores nas respostas integradas e proativas às necessidades em saúde dos grupos vulneráveis.

os problemas e dificuldades do século xxi. Na verdade, o acesso adequado é um dos determinantes da saúde potenciador da redução das desigualdades. A corroborar esta perspetiva – e atenta a crise financeira, económica e social que o país atravessou nos últimos anos – reafirma-se a forma como a SCML tem vindo a desempenhar, de um modo mais expressivo, o seu papel de complementaridade, enquanto instituição da economia

OS SISTEMAS DE SAÚDE ORIENTADOS PARA OS CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS MOSTRAM MELHOR DESEMPENHO, MELHORES RESULTADOS, MAIS EQUIDADE E ACESSIBILIDADE, MELHOR RELAÇÃO CUSTO-BENEFÍCIO E MAIOR SATISFAÇÃO DO CIDADÃO Saliente-se que o papel da SCML assume especial relevância no contexto atual de fortes restrições orçamentais. Com efeito, os processos de globalização, as alterações demográficas – que traduzem modificação e por vezes inversão das pirâmides etárias refletindo o envelhecimento da população –, as alterações climáticas e a insegurança alimentar terão implicações para a saúde no futuro, criando, deste modo, enormes desafios para uma resposta efetiva e equitativa à população. A Misericórdia de Lisboa, quer ao nível da sua intervenção junto dos utentes mais carenciados e desprotegidos quer no âmbito das parcerias que celebra para a prestação de cuidados de saúde aos utentes do SNS – contribuindo, designadamente, para a redução de utentes sem médico de família e disponibilizando cuidados continuados e altamente especializados através dos equipamentos de que dispõe, como a Unidade de Saúde Maria José Nogueira Pinto (USMJNP), Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA) e Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA) – elegeu também a saúde como um dos principais focos de atuação, sendo nossa prioridade encontrar respostas mais diversificadas para enfrentar

social, colmatando lacunas do SNS e “chegando onde o Estado não chega”, expandindo a sua intervenção, de acordo com as necessidades da sociedade civil. Exemplo desta abertura à cooperação intersetorial é o protocolo estabelecido entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e a SCML, através da Unidade de Saúde Santa Casa (USSC) do Bairro Padre Cruz/Telheiras. Este protocolo permitiu atribuir até dezembro de 2014 médico de família a 5700 utentes do SNS e contratualizar um conjunto de indicadores de saúde para esta população, com manifestos ganhos de saúde. Efetivamente, no que à saúde diz respeito, a SCML tem prosseguido ininterruptamente a sua missão, zelando pela excelência das suas respostas, adequando-as aos desafios de cada momento, renovando-se e projetando no futuro parcerias e caminhos de inovação. Por outro lado, para além da sua atuação na prevenção e tratamento de doenças e da procura e disseminação das melhores práticas, a Santa Casa tem um compromisso adicional, promovendo a investigação nas respetivas áreas de intervenção. 29

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DISTRIBUIÇÃO geográfica das Unidades de Saúde Santa Casa Município de Lisboa

PROXIMIDADE E SOLIDARIEDADE AO SERVIÇO DOS MAIS DESFAVORECIDOS O objetivo da Misericórdia de Lisboa é continuar a ajudar quem mais precisa, dispondo de recursos e respostas inovadoras. A matriz irá manter-se: a solidariedade e o apoio aos mais carenciados – a missão desta instituição. Na verdade, a atuação da SCML vai mais longe. Através de sete USSC – B.º Armador, B.º Boavista, B.º Padre Cruz/Telheiras, Castelo/Natália Correia, Dr. José Domingos Barreiro, Liberdade e Vale de Alcântara/Tapada – e três extensões – Natália Correia, Tapada e Telheiras – estrategicamente dispersas pela cidade de Lisboa, a Santa Casa presta cuidados de saúde primários, personalizados, em ambulatório e domicílio, à população carenciada da área de influência. Garante assim a acessibilidade, a globalidade, a qualidade e a continuidade dos referidos cuidados aos utentes Saúde Santa Casa, tal como a colaboradores, reformados e aposentados da SCML e seus familiares. É, pois, com sentido de missão e muito empenho e dedicação dos seus profissionais, que a Direção de Saúde Santa Casa se orgulha de disponibilizar uma resposta assistencial de qualidade em CSP a cerca de 25 000 utentes beneficiários com cartão de saúde válido. Destes utentes, 4500 têm acesso,

para além das prestações de saúde, a medicamentos gratuitos, produtos dietéticos e à atribuição de próteses e material de incontinência. Como exemplos desta intervenção na vigilância, promoção da saúde e prevenção da doença nas diferentes fases da vida, destacam-se as seguintes atividades: Saúde da mulher Nesta área privilegia-se a promoção do planeamento familiar, incluindo o fornecimento gratuito de métodos anticoncecionais. Aposta-se igualmente no rastreio do cancro do colo do útero e da mama, e também na prevenção e tratamento de infeções transmissíveis sexualmente. O aconselhamento pré-concecional, a vigilância da gravidez normal, a revisão do puerpério e o apoio à mãe e recém-nascido (RN) na USSC e no domicílio, após a alta hospitalar, são outras das práticas realizadas no âmbito da saúde da mulher. aúde do recém-nascido, da criança S e do adolescente As USSC garantem cuidados de saúde integrados, de forma a assegurar a vigilância de saúde da criança nos dois primeiros anos de vida, na idade pré-escolar (2 - 6 anos) e escolar (6 - 10 anos), e ainda a vigilância aos adolescentes e jovens, promovendo o atendimento sem barreiras, confidencial e gratuito. Saúde do adulto e do idoso Nesta faixa etária, a intervenção direciona-se para cuidados promotores de saúde e preventivos da doença aos adultos (20 - 69 anos), selecionando as intervenções dirigidas para problemáticas específicas em cada fase da vida, evitando assim os check-up genéricos. Nos adultos mais idosos (com 70 e mais anos), os cuidados estão organizados de acordo com a identificação das necessidades individuais de cada pessoa e da família, e são orientados para atuar sobre os determinantes de autonomia e independência. As USSC prestam ainda atendimento às situações de doença aguda – no próprio dia e com

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a celeridade possível –, mesmo que no domicílio do utente, sempre que se justifique. Facultam ainda consultas programadas médicas e de enfermagem aos utentes com dependência física e funcional que necessitem de cuidados, sempre que incapacitados da deslocação à USSC. Para o cumprimento e execução dos planos terapêuticos é frequente os profissionais da USSC, nomeadamente os enfermeiros, procederem à administração de terapêutica, à realização de tratamentos e à prestação de educação e apoio na reabilitação a utentes e seus cuidadores, seja na unidade de saúde, no domicílio, ou em lares da SCML.

O PAPEL DA MISERICÓRDIA DE LISBOA ASSUME ESPECIAL RELEVÂNCIA NO CONTEXTO ATUAL DE FORTES RESTRIÇÕES ORÇAMENTAIS O acompanhamento clínico, vigilância e aconselhamento nas situações de doença crónica (por exemplo: Diabetes mellitus, doença pulmonar obstrutiva crónica, hipertensão arterial, entre outras) é mais uma das áreas em que as equipas de saúde das USSC prestam cuidados aos seus utentes. Transversalmente a todas as fases de vida, é ainda assegurado o cumprimento do Plano Nacional de Vacinação. A Direção de Saúde Santa Casa integra ainda a Unidade W+ que, para além da prestação de apoio psicológico e psicoterapêutico a pessoas em situação de risco e vulnerabilidade psicológica – em ambulatório ou na comunidade – investe também na prevenção de comportamentos de risco e na promoção de estilos saudáveis de vida no que se relaciona com os seus principais públicos-alvo. A abordagem desta população está a cargo de equipas multiprofissionais e destaca-se pela proximidade, personalização e qualidade no atendimento, investindo na inovação e melho-

USSC DO ARMADOR Caminhada Sénior/ Rastreio

ria contínua, promovendo e envolvendo o utente como agente de mudança da sua saúde. PREVENIR COMPORTAMENTOS DE RISCO E PROMOVER ESTILOS DE VIDA SAUDÁVEIS Tendo por referência este paradigma, faz igualmente sentido apostar, antes de mais, na promoção de saúde. Uma abordagem que construímos indo ao encontro de vários grupos-alvo, na comunidade, com ações de sensibilização e educação para a saúde e rastreios, com recurso a duas unidades móveis e equipas multiprofissionais, enquanto intervenção de saúde de proximidade que, nos últimos anos, tem estado a cargo do Núcleo Saúde Mais Próxima. Também a recente criação do Núcleo do Desporto pela Saúde espelha a necessidade de promover a saúde através da prática do exercício físico, integrando-o nas atividades de vida dos utentes da SCML. Desta forma, contribui para maximizar as potencialidades da população que serve, tornando-se assim também um valioso 31

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ACAMPAMENTO de verão para jovens promovido pela Unidade W+ À direita: Equipa da Consulta da Cessação Tabágica – USSC do Castelo /Natália Correia

TODAS AS INTERVENÇÕES EM SAÚDE DEVEM ASSENTAR EM QUATRO EIXOS ESTRATÉGICOS TRANSVERSAIS: CIDADANIA EM SAÚDE; EQUIDADE E ACESSO ADEQUADO AOS CUIDADOS DE SAÚDE; QUALIDADE EM SAÚDE; E POLÍTICAS SAUDÁVEIS instrumento de inclusão social e de maior qualidade de vida, sendo ainda mais relevante neste âmbito a área do desporto adaptado. DESAFIOS E METAS PARA O FUTURO O PNS 2012-2016, agora extensivo a 2020, constitui um elemento basilar das políticas de saúde em Portugal, traçando o rumo estratégico para a intervenção no quadro do sistema de saúde. Os grandes desígnios propostos para 2020 são a redução da mortalidade prematura (abaixo dos 70 anos), a melhoria da esperança de vida saudável (aos 65 anos) e ainda a redução dos fatores de risco relacionados com as doenças não transmissíveis, especificamente a obesidade infantil e o consumo e exposição ao tabaco, tendo em vista a obtenção de mais valor em saúde. Para alcançar tais desígnios, todas as intervenções em saúde devem assentar em quatro eixos estratégicos transversais: cidadania em saúde; equidade e acesso adequado aos cuidados de saúde; qualidade em saúde; e políticas saudáveis. As prioridades já enunciadas vão ao encontro das conclusões do relatório “A saúde dos portugueses.

Perspetiva 2015”, da Direção-Geral da Saúde, onde se refere que são muitos os autores que consideram que 25% das causas de morte prematura podem ser evitadas, motivo pelo qual reduzir a morte prematura constitui o principal desafio do atual PNS, exigindo-se, pois, a criação de sinergias e compromissos nas políticas sociais e da saúde ao nível da prevenção. Destacam-se como medidas essenciais a redução do sal na alimentação, a redução do tabagismo, a promoção do exercício físico e a promoção do envelhecimento saudável e, paralelamente, o rastreio/monitorização/vigilância no que respeita aos tumores, hipertensão arterial, complicações da diabetes e ainda excesso de peso. Em suma, os comportamentos e estilos de vida influenciam, de forma comprovada, a saúde individual e coletiva, dado constituírem o denominador comum a praticamente todas as doenças crónicas. Nesse sentido, todas as ações promovidas pela Direção de Saúde Santa Casa, já enunciadas, mantêm a atualidade e pertinência, destacando-se entre as metas traçadas para 2016 as seguintes prioridades: reforço da educação para a saúde na comunidade;

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continuidade dos rastreios em relação a patologias específicas, orientados para públicos-alvo diversificados; alargamento das respostas já existentes, através da replicação das consultas de prevenção do tabagismo; alargamento das atividades de desporto aos utentes da SCML, fomentando a inclusão através de modalidades adaptadas a populações com deficiência; reforço da prestação de cuidados biopsicossociais junto de populações de especial vulnerabilidade; expansão do apoio domiciliário na cidade de

Lisboa, no sentido de proporcionar a acessibilidade a cuidados de saúde aos que mais precisam e não podem deslocar-se às USSC, por situações incapacitantes. Estas grandes linhas programáticas definidas para a intervenção prioritária da Direção de Saúde Santa Casa em 2016 estão perfeitamente alinhadas com os documentos estruturais que definem as políticas nacionais de saúde, no âmbito dos cuidados de saúde primários. Um sintoma de que a missão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa mantém-se atual, sem perder a visão de futuro e modernidade, mas não esquecendo a originalidade e nobreza da missão ancestral que lhe foi confiada.

BIBLIOGRAFIA Acordo de Cooperação entre a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Unidade de Saúde de Telheiras, Lisboa, 2015. ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE, IP – Cuidados de saúde primários. Metodologia de contratualização. Lisboa, 9 de março de 2012. Disponível em http://www.acss.min-saude.pt/Portals/0/14_Mar_2012_MetodologiaContratualizaoCSP_2012.pdf. ATUN, R. – What are the advantages and disadvantages of restructuring a healthcare system to be more focused on primary care services? Health Evidence Network report. WHO/Europe, 2004. DIREÇÃO-GERAL DA SAÚDE – A Saúde dos Portugueses. Perspetiva 2015. Lisboa, 2015. DIREÇÃO-GERAL DA SAÚDE – Plano Nacional de Saúde 2012-2016. Lisboa, 2013. DIREÇÃO-GERAL DA SAÚDE – Plano Nacional de Saúde – revisão e extensão a 2020. Lisboa, 2015. GOMES, Ana; ROSA, Dora Santos – Saúde materno-infantil. Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Coleção Cadernos Solidários SCML, 2008. Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, e alterada pela Lei n.º 27/2002, de 8 de novembro. MARMOT, M. – Achieving health equity: from root to fair outcomes. In Lancet, 2007, 370:1153-63, pp. 19-22. MARMOT, M. et al. – Close the gap in a generation: health equity through action on the social determinant of health. In Lancet, 2008, 372:1661-63, pp. 19-22. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – Redução das desigualdades no período de uma geração. Igualdade na saúde através da ação sobre os seus determinantes sociais. Relatório Final da Comissão para os Determinantes em Saúde. Disponível em http://whqlibdoc.who.int/publications/2010/9789248563706_por.pdf. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Regulamentos das Unidades de Saúde Santa Casa. Lisboa, SCML, 2014.

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D. LEONOR

DE PORTUGAL:

EMPREENDEDORA DA MISERICÓRDIA A fundadora da Misericórdia de Lisboa foi uma das mais notáveis rainhas portuguesas pela sua obra e pelo importante legado que deixou às gerações seguintes, conseguindo colocar em prática as catorze obras de misericórdia, num exemplo de inovação e de empreendedorismo na era de Quinhentos. Texto de Alexandra de Aboim Barahona Brito Rebelo [DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EMPREENDEDORISMO E ECONOMIA SOCIAL_SCML]

E

m pleno ano do Jubileu da Misericórdia proclamado pelo Papa Francisco, este é um tempo de misericórdia. Não deveriam ser todos tempos de misericórdia? “Não devemos esperar que os feridos nos batam à porta, devemos acolhê-los, abraçá-los e curá-los. Fazê-los sentir amados.”1 Foi esta a misericórdia, amplamente praticada pela rainha D. Leonor, que esteve na base da fundação da Misericórdia de Lisboa e de outras obras de grande vulto, realizadas não só num espírito de dedicação aos menos afortunados, mas também num espírito de apoio

à cultura, através de ações de mecenato nas artes e nas letras, que tiveram início no século xv e que perduram até aos nossos dias. A infanta D. Leonor, também Leonor de Portugal, Leonor de Lencastre, Leonor de Avis ou Leonor de Viseu, foi uma infanta portuguesa nascida em Beja, em 1458, e falecida em Lisboa no Paço de Xabregas, em 1525. Filha do infante D. Fernando e da infanta D. Beatriz de Portugal, duques de Viseu, foi rainha de Portugal pelo casamento com o seu primo D. João II, de cognome o Príncipe Perfeito2. De fisionomia suave, olhos azuis e cabelos

JOSÉ MALHOA, Rainha D. Leonor, 1926, óleo sobre tela, 205x137,5. Cm. Inv 1. Museu José Malhoa. Imagem gentilmente cedida pela Direção Regional de Cultura do Centro / Museu José Malhoa

1. Cfr. Il Nome di Dio è Misericordia – Andrea Tornielli – Edizioni Pimme Spa, Milano 2. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda.

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PATRONA DAS ARTES, DA CIÊNCIA E DA MEDICINA, D. LEONOR DE PORTUGAL FOI UMA DAS MAIS NOTÁVEIS RAINHAS PORTUGUESAS DE TODOS OS TEMPOS” louros, herdados de sua bisavó, D. Filipa de Lencastre, foi considerada “a mais perfeita Raynha que nasceo no Reyno de Portugal”3 pelo seu biógrafo, Frei Jorge de São Paulo. Descendente da Ínclita Geração, assim denominada por Camões de geração notável, sua mãe era filha do infante D. João. Por parte de seu pai, sobrinho do infante D. Henrique, o Navegador, era neta do rei D. Duarte, autor do “Leal Conselheiro”, cujos ensinamentos estiveram presentes na educação da época. Considerado como um primeiro ensaio de filosofia em língua portuguesa e versando sobre as doutrinas da ética e da moral, tendo a lealdade como foco central, o “Leal Conselheiro” surgiu numa época de expansão marítima e económica. Quando do nascimento de D. Leonor, faziam parte da geografia de Portugal os arquipélagos da Madeira e dos Açores. O cabo Bojador tinha finalmente sido “dobrado”: a sua passagem foi um dos importantes marcos da navegação portuguesa que derrubou velhos mitos e abriu caminho para os grandes descobrimentos, por “mares nunca de antes navegados”4. É no reinado de D. João II e de sua mulher D. Leonor que decorrem as negociações para o Tratado de Tordesilhas, para repartir terras descobertas e a descobrir fora da Europa, dividindo o mundo ao meio. Celebrado entre os reinos de Portugal e de Espanha, o tratado trouxe o Brasil

para o domínio de Portugal e abriu caminho para expedições em direção à Índia5. Com D. Manuel I é dada importância à diplomacia e a novas descobertas. A exploração marítima prossegue assim com Pedro Álvares Cabral e a descoberta do Brasil, e Vasco da Gama com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, onde então foi aclamado o primeiro vice-rei. No exercício da diplomacia e durante o reinado de D. Manuel I é enviada uma embaixada ao Papa Leão x, que desfilou pelas ruas de Roma, em março de 1514. Marcada pelo exotismo e pela riqueza dos presentes, tinha como objetivo reiterar obediência e apresentar propostas para o fortalecimento da Igreja católica. “Chefiada por Tristão da Cunha e secretariada por Garcia de Resende, a embaixada era composta por mais de cem pessoas, com presentes magníficos: pedrarias, tecidos e joias, um cavalo persa, uma onça de caça e um elefante que executava diversas habilidades.”6 Era este o ambiente que se vivia na era de Quinhentos, no reinado do “Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar, em África, Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia”7, contemporâneo de sua irmã, a rainha D. Leonor de Portugal. Uma era de prosperidade, de inovação e de políticas empreendedoras, em todos os domínios. Este período do Renascimento, marcado por transformações na sociedade, na economia e na cultura, foi uma transição com profundos efeitos nas artes, na filosofia e nas ciências, teve em Itália a sua maior expressão, mas depressa se difundiu pelo resto da Europa. A arte atingiu perfeição e equilíbrio com Piero della Francesca, Botticelli, Rafael, Michelangelo, Leonardo da Vinci e muitos outros. O pensamento político teve uma inspiração decisiva para a construção do Estado moderno em “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel.

3. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa. 4. Os Lusíadas, canto 1, Luís de Camões, Alvarenga 5. A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda. 6. Cfr. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d-manuel-i-ao-papa-leao-x/ 7. Direção-Geral do Património Cultural - http://www.patrimoniocultural.pt/

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Em Portugal, a influência do Renascimento estendeu-se até finais do século xvi e, como principal potência naval pioneira na exploração marítima, floresceu com as navegações para o Oriente. Os contactos comerciais e o intercâmbio cultural intensificaram-se. Lucros imensos fizeram crescer a burguesia e enriquecer a nobreza, permitindo novos luxos, o cultivo do espírito e o avanço de ciências como a astronomia, a cartografia, a matemática e a medicina. Nomes bem conhecidos como Garcia de Resende, Luís de Camões, Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Damião de Góis, mudaram os tempos. Patrona das artes, da ciência e da medicina, D. Leonor de Portugal foi uma das mais notáveis rainhas portuguesas de todos os tempos, pela sua vasta obra e pelo importante legado que deixou às gerações seguintes, tendo posto em prática as obras de misericórdia. De extraordinário cariz empreendedor, o projeto de fundação da Misericórdia

D. LEONOR CONTINUARÁ A SER INCONTORNAVELMENTE A RAINHA DAS MISERICÓRDIAS…”, COM TODAS AS CARATERÍSTICAS FUNDAMENTAIS QUE DEFINEM OS ATUAIS EMPREENDEDORES” de Lisboa e o impulso para a criação de novas misericórdias com uma mesma missão representam, na prática, importantes pilares de um espírito inovador, bem representativo daquele período histórico. Com origem na instituição da Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia, com cem irmãos, “todos de boa fama e sãa consciência e onesta vida, mansos e humildosos a todo o serviço”8 surge, durante a regência da rainha

8. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa

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RESULTADO DE UM CONSTANTE EMPENHO CARITATIVO, AS OBRAS DE D. LEONOR SÃO EMPREENDIMENTOS QUE SURGIRAM DA SUA VONTADE DE CRIAR, BASEADOS NO IDEAL CRISTÃO E NAS BOAS OBRAS, COM A SIMPLICIDADE DA INOVAÇÃO”

D. Leonor, em 15 de agosto de 1498, a Misericórdia de Lisboa, em local conhecido pelo nome de Nossa Senhora da Terra Solta, na capela de Nossa Senhora da Piedade da Sé Catedral de Lisboa. A confraria, orientada pelos princípios estabelecidos no Compromisso da Misericórdia para apoio aos mais desfavorecidos, tinha como objetivo realizar as 14 obras de misericórdia, sete materiais e sete espirituais. Obras pelas quais vamos ao encontro das necessidades do próximo. Instruir, aconselhar, consolar, corrigir os que erram, perdoar as injúrias, suportar com paciência as fraquezas do próximo e rogar a Deus por vivos e defuntos são obras de misericórdia espirituais. As corporais: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, assistir aos doentes, visitar os presos e enterrar os defuntos9. O Compromisso foi aprovado pelo rei D. Manuel I e confirmado pelo Papa Alexandre VI, Rodrigo Borgia. Em 1534, a sede da confraria estava na Igreja da Conceição Velha, onde se manteve até 1755, sendo depois transferida para São Roque, pertença da Companhia de Jesus. Numa expressão mais profunda do ideal cristão, que se traduzia no exercício das suas

obras, inspirado no amor e na entreajuda, o “espírito do Compromisso defendia a ideia de todos os homens serem filhos do mesmo Deus criador, portanto unidos pela vivência de irmãos de sangue”10, princípio defendido pela coroa portuguesa, o que não deixa de ser revolucionário para a época. Participante ativa nos desígnios caritativos do reino, D. Leonor, princesa e rainha de Portugal, pela sua vida exemplar e na prática constante da misericórdia e das suas obras, “alcançou de alguns historiadores o epíteto de ‘Princesa Perfeitíssima’, inspirado no cognome do rei seu marido, a cuja altura sempre se soube manter para o juízo da história”11. Patrocinadora da “primeira edição impressa sob égide real”12, do seu mecenato beneficiaram as artes e a cultura religiosa, com traduções de obras e edições impressas. A rainha apoiou escritores, músicos, ourives, pintores, escultores, arquitetos e tantos outros. Fundadora das misericórdias, da Misericórdia de Lisboa e, alguns anos depois, daquela que seria a segunda misericórdia do reino, a Misericórdia de Óbidos, da sua obra fazem parte, entre outros: os banhos das caldas, com a criação do hospital-balnear, junto do qual foi construída a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, e o desenvolvimento da cidade com o mesmo nome, Caldas da Rainha. Também, o Convento e a Igreja da Madre de Deus, o Convento da Anunciada, a Igreja de Nossa Senhora da Merceana, a Igreja de Santo Elói no Porto, as Capelas Imperfeitas do Mosteiro da Batalha e as sete merceeiras no Convento de Santo Agostinho. “Virtude e Misericórdias descobrem-se e multiplicam-se graças a D. Leonor, pelo que continua a ser conveniente, quase ‘obrigatório’, percorrer o caminho que conduz da descoberta da Misericórdia à invenção das Misericórdias com a ajuda da rainha. Afinal, D. Leonor continuará

9. Cfr. Catecismo da Igreja Católica – § 2447, www.vatican.va e Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. 10. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Joaquim Veríssimo Serrão – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa 11. D. Leonor, Princesa Perfeitíssima – João Ameal – Livraria Tavares Martins, Porto. 12. De princesa a rainha-velha, Leonor de Lencastre – Isabel dos Guimarães Sá, Círculo de Leitores.

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a ser incontornavelmente a Rainha das Misericórdias…”13, com todas as caraterísticas fundamentais que definem os atuais empreendedores. De facto, entrecruzando com os modernos conceitos de empreendedorismo, chegamos às caraterísticas dos empreendedores de sucesso: “iniciativa; orientação para a realização e compromisso com os demais” (McClelland, 1987); “sendo função do empreendedor reformar ou revolucionar o padrão da produção, explorando uma invenção” (Schumpeter, 1952), e introduzindo uma inovação, como “instrumento específico do empreendedor” (Drucker, 1987). Resultado de um constante empenho caritativo,

as obras de D. Leonor são empreendimentos que surgiram da sua vontade de criar, baseados no ideal cristão e nas boas obras, com a simplicidade da inovação, que a sua imensa fortuna permitiu, com o apoio de seu irmão El-Rei D. Manuel I, para “abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática. Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo atual!”14, e nos mundos de todos os tempos. “Precisamos sempre de contemplar o mistério da misericórdia. (…). É tempo de regresso ao essencial, para cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos.”15

BIBLIOGRAFIA AMEAL, João. D. Leonor Princesa Perfeitíssima, Livraria Tavares Martins, Porto. AMORIM, Maria de Lourdes. D. Leonor de Lencastre, Grande Senhora do Renascimento, Editora Ésquilo.

DRUCKER, Peter Ferdinand. Inovação e espírito empreendedor, 1987. McCLELLAND, David. Characteristics of Successufull Entrepreneurs, 1987.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – http://antt.

Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu

dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/embaixada-de-d-

Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de

-manuel-i-ao-papa-leao-x/)

Roma, Servo dos Servos de Deus.

A Vida dos Reis e Rainhas de Portugal – Verso da Kapa, Edição de Livros, Lda. CAMÕES, LUÍS. Os Lusíadas, canto 1, Alvarenga. CARDOSO, Eurico. Dona Leonor de Lencastre, Rainha de Portugal, a sua vida e a sua obra, Edição de autor. Catecismo da Igreja Católica – Terceira parte - A vida

SÁ, Isabel dos Guimarães. De princesa a rainha-velha, Leonor de Lencastre, Círculo de Leitores. SCHUMPETER, Joseph. Can capitalism survive?, 1952. SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de história – Livros Horizonte e Misericórdia de Lisboa.

de Cristo – Segunda secção – Os dez mandamentos

SOUSA, Ivo Carneiro de. Da Descoberta da Miseri-

– Capítulo segundo – “Amarás o teu próximo como a

córdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Granito

ti mesmo”, Artigo 7- Sétimo - VI. O amor aos pobres

Editores e Livreiros, Lda. – Porto.

- § 2447 http://www.vatican.va/archive/compendium_ccc/documents/archive_2005_compendium-ccc_po.html Comunidade Intermunicipal do Oeste http://www.oestecim.pt

Direção-Geral do Património Cultural – http:// www.patrimoniocultural.pt/ TORNIELLI, Andrea. Il Nome di Dio è Misericordia, Edizioni Pimme Spa, Milano. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – www.scml.pt

13. Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525), Ivo Carneiro de Sousa, Granito Editores e Livreiros, Lda. Porto – p. 5 14. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus. 15. Misericordiae vultus, bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, Francisco, Bispo de Roma, Servo dos Servos de Deus

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SER, ESTAR, FAZER PROMOÇÃO DA AUTONOMIA EM ACOLHIMENTO RESIDENCIAL

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa acolhe, nos seus equipamentos, jovens com longo percurso em instituições de acolhimento. Sem perspetivas de integração em família, é prevista a autonomização destes jovens, a partir da situação de acolhimento1. Texto de Conceição Pereira1, Rosa Viana2, Ana Isabel Pereira3, Alexandra Laginha4, Cristina Gomes Freire5 [1. DIRETORA DO LAR RAINHA D. MARIA I; 2. DIRETORA DO LAR NOVO RUMO; 3. ASSISTENTE SOCIAL; 4. ASSISTENTE SOCIAL DO LAR S. FRANCISCO DE ASSIS; 5. PSICÓLOGA DO LAR RAINHA D. MARIA I, UNIDADE DE ACOLHIMENTO RESIDENCIAL DE CRIANÇAS E JOVENS_SCML] 1. A Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro, que procede à segunda alteração à Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro), altera a terminologia nesta área, adotando, entre outras, a designação de acolhimento residencial em vez de acolhimento institucional e de casa de acolhimento em vez de lar. O texto adota a nova terminologia, exceto na transcrição de informação veiculada pelos jovens.

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“É na experiência da vida que o homem evolui.” Hardey Spencer Lewis PREÂMBULO institucionalização tem influência na trajetória de vida das crianças e jovens acolhidos e, nesses termos, o acolhimento residencial é incontestavelmente, uma medida de proteção que influencia o destino de uma pessoa. Para as crianças e jovens que vivenciam o acolhimento residencial numa perspetiva de contexto e de desenvolvimento, o meio é diferente do dos integrados em meio familiar, quer em termos de organização quer em termos dos papéis dos seus elementos, bem como no padrão de cuidados. As instituições de acolhimento de crianças e jovens devem ser encaradas como respostas capazes de cumprir as funções tradicionalmente atribuídas à família, pelo que o desafio que se coloca é o de se configurarem como um ambiente reparador, securizante, organizador, bem como o de (re)criarem laços e interações próximas da sociabilidade primária do ambiente familiar. Para os casos dos jovens em que não se prevê o regresso à família, a resposta das instituições de acolhimento passa pela promoção de competências pessoais e sociais, para que o projeto de autonomização se concretize com sucesso. As Casas de Acolhimento2 sempre enfrentaram um grande desafio no que concerne ao desenvolvimento de competências com vista à autonomização futura dos jovens que acolhem. Assim, têm desenvolvido uma intervenção com base na criação de planos individuais de autonomia, ajustados às caraterísticas e capacidades de cada criança/jovem. A responsabilidade que recai sobre as equipas das casas de acolhimento deve pautar-se pela promoção das competências pessoais e sociais desta população, fomentando o direito a um futuro. Com essa convicção consubstanciou-se uma reflexão sobre autonomia em contexto institucional, que teve lugar, nos recursos de acolhimento residencial, em

A

2014. Refletir sobre a intervenção nesta área torna-se cada vez mais pertinente, tendo em conta o objetivo de incrementar novas práticas ou melhorar aquelas que já se desenvolvem. Este artigo é o resultado da reflexão alargada sobre as diferentes dimensões da autonomia praticadas nos equipamentos de acolhimento residencial de crianças e jovens da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). INTRODUÇÃO Para refletir acerca da prática e da intervenção no âmbito da autonomia foram elaborados questionários. Estes tinham o objetivo de obter a opinião dos adultos cuidadores, dos técnicos de apoio e dos jovens (acolhidos em casa de acolhimento e em apartamento de autonomização) sobre a prática desenvolvida para a promoção de competências para a autonomia. Para o efeito, recorreu-se a uma metodologia quantitativa complementada pela análise de conteúdo das respostas obtidas nos questionários. Participaram nesta reflexão adultos e jovens a partir dos 12 anos, enquanto atores na formulação da interpretação sobre os seus mundos de vida e reveladores das realidades sociais em que se inserem. Neste sentido, foram tidos em consideração: os atores crianças/jovens: a sua individualidade, as suas necessidades, interesses, capacidades e dificuldades; os atores adultos profissionais: a representação que têm da criança na sociedade, as competências enquanto adultos, na relação que estabelecem com os jovens, os seus valores e as suas convicções; o contexto institucional: promotor ou não do exercício por parte das crianças/jovens de uma participação social com significado para edificar cidadãos. BREVE ENQUADRAMENTO TEÓRICO A palavra autonomia provém das palavras gregas autos (próprio) e nomos (norma, lei). Este conceito designa a aptidão ou competência para

2. Anteriormente designadas por lares de infância e juventude (LIJ).

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AS CASAS DE ACOLHIMENTO E JUVENTUDE TÊM DESENVOLVIDO UMA INTERVENÇÃO COM BASE NA CRIAÇÃO DE PLANOS INDIVIDUAIS DE AUTONOMIA, AJUSTADOS ÀS CARATERÍSTICAS E CAPACIDADES DE CADA CRIANÇA/JOVEM” gerir a própria vida, valendo-se dos seus próprios meios, vontades e/ou princípios. A autonomia é um processo pelo qual um indivíduo estabelece por si mesmo as suas próprias normas de conduta. Segundo Kant, é a “faculdade do ser humano de se autogovernar de acordo com seus padrões de conduta moral”, bem como a interiorização de regras e valores. A participação de crianças/jovens institucionalizados na organização da dinâmica, das rotinas e das atividades do lar permite-lhes expressar e desenvolver a capacidade de exercer a cidadania. A inclusão comunitária – através da participação em atividades exteriores às casas de acolhimento – proporciona a sua integração na comunidade, contribuindo assim para o incremento das competências sociais, integrando regras e valores fulcrais para o desenvolvimento da sua autonomia. Todas as crianças/jovens devem beneficiar da definição de um projeto de vida. Segundo Leandro et al. (2006), esse projeto de vida deve assentar em oito princípios e valores do cuidar: dignidade, respeito, autonomia, capacidade de escolher, privacidade e intimidade, confidencialidade, igualdade e equidade e participação. A autonomia é um processo que está relacionado com as relações interpessoais e é influenciado por fatores externos, tais como: a estrutu-

ra e comunicação familiar e o meio envolvente. Este processo pode também sofrer a influência de variáveis internas, nomeadamente a autoestima, o grau de motivação e o desejo de independência do jovem. Pela envolvência destes fatores e de acordo com as teorias defendidas por alguns autores (REICHERT e WAGNER, 2007) e (VICENTE, 2009), considera-se existirem três dimensões de autonomia. Uma é a autonomia cognitiva, enquanto capacidade do indivíduo, através de processos cognitivos, fazer as suas próprias escolhas, ser capaz de definir as suas metas e pensar sobre os seus atos. As outras dimensões são as da autonomia funcional/comportamental – enquanto capacidade do jovem para conseguir tomar decisões e resolver os seus assuntos sem a ajuda dos adultos cuidadores – e da autonomia emocional, alcançada quando o jovem consegue definir as suas metas, com confiança, de forma independente dos desejos dos adultos cuidadores ou dos pares. “Ser autónomo é fazer o que tenho a fazer, mas ser eu própria a lembrar-me que tenho de conseguir fazer as coisas sozinha”. (jovem de 14 anos) A autonomização compreende o período final do acolhimento e visa a reflexão e desenvolvimento de estratégias, tendo em vista a saída do jovem da estrutura de acolhimento residencial e a sua consequente plena autonomia de vida. Nesta fase, o jovem deverá ter interiorizado competências socioafetivas, comportamentais e valores essenciais que lhe permitam a promoção de um futuro independente. APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS Os equipamentos de acolhimento residencial devem ser estruturas capazes de fazer uma ligação entre princípios e práticas e um efetivo exercício de ambos, o que configura um desafio mas também uma oportunidade na responsabilidade técnica e cívica. Os jovens integrados em casas de acolhimento identificam o conceito de

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JOVEM de 12 anos, Casa de Acolhimento D. Maria I

autonomia associado, sobretudo, à sua dimensão funcional e comportamental. Definem-no pela capacidade de realizar, de forma autónoma, tarefas que têm como reflexo a valorização das suas competências por parte dos adultos cuidadores, incrementando a autoestima e níveis de maior responsabilidade. Nas questões que remetem para o exercício de cidadania, a maioria dos jovens reconhece que, na casa de acolhimento, lhe são proporcionados espaços para expor a sua opinião e que a conseguem expressar, sendo que o grupo de jovens com idade superior a 15 anos, considera que tem capacidade de o fazer de uma forma assertiva. Quer os adultos quer os jovens das casas de acolhimento exprimem a importância de uma participação ativa nas rotinas e dinâmicas da casa de acolhimento, bem como em atividades dinamizadas pela SCML e pela comunidade envolvente à casa onde se encontram acolhidos. Ambos reconhecem que a possibilidade de participarem em experiências diversificadas é promotora da inserção social e do treino da autonomia, mani-

A PARTICIPAÇÃO DE CRIANÇAS/JOVENS INSTITUCIONALIZADOS NA ORGANIZAÇÃO DA DINÂMICA, DAS ROTINAS E DAS ATIVIDADES DA CASA DE ACOLHIMENTO PERMITE-LHES EXPRESSAR E DESENVOLVER A CAPACIDADE DE EXERCER CIDADANIA” festando desejo de poderem aumentar as suas aptidões em áreas de caráter mais funcional (por exemplo, aquisição e confeção de alimentos, tratamento de roupa, etc.), com vista à aquisição de 43

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JOVENS de 12 anos, Casa de Acolhimento D. Maria I

JOVENS E ADULTOS RECONHECEM QUE OS LARES, PARA ALÉM DA SUA FUNÇÃO DE ACOLHER, CONSTITUEM-SE TAMBÉM COMO CONTEXTOS EDUCATIVOS E FORMATIVOS” ferramentas que desenvolvam as suas competências pessoais numa perspetiva futura. Jovens e adultos reconhecem que as estruturas de acolhimento residencial, para além da

sua função de acolher, constituem-se também como contextos educativos e formativos. Asseguram uma vida diária personalizada, com uma intervenção orientada para a promoção do desenvolvimento físico, intelectual e moral, para o acesso à educação e à cultura, fomentando a autonomia e a integração social. Crianças e jovens integram rotinas estruturadas, tempos de lazer e de estudo, gerem com qualidade os tempos livres, o tempo com os amigos e a integração em atividades e práticas desportivas e culturais. De um modo gradual e com intencionalidade pedagógica, crianças/jovens são envolvidos e responsabilizados por tarefas da rotina diária, adequadas à sua faixa etária. Participam nas escolhas, aquisições, na preservação dos seus pertences e objetos pessoais, na organização do

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ambiente e espaços privados, nas tarefas do seu autocuidado, e gerem a mesada que lhes é atribuída. Esta gestão da mesada é o início da sua gestão financeira, introduzindo-se nesta fase o conceito de poupança. “Ser autónomo é perceber que tenho de ser o mais adulto possível, de maneira a orientar a minha vida e tentar ser desenrascado com os problemas comuns.” (jovem de 16 anos) A autonomia responsável é reconhecida em cada criança à medida que a capacitação se consolida, contaminada no quotidiano pelo saber fazer, reagir, decidir, optar, partilhar, ceder, enfrentar desafios, sobrepor obstáculos e regozijar-se com conquistas. Da análise da reflexão efetuada evidenciou-se que os jovens em processo de autonomização apresentavam competências pessoais e sociais que refletiam a intervenção desenvolvida em contexto de acolhimento residencial. Estas competências espelhavam a existência de uma boa referenciação/ligação afetiva ao espaço físico e humano, base de segurança para o seu desenvolvimento pessoal e de conquista da sua autonomia. “Na instituição o papel das figuras cuidadoras é fundamental na medida em que é o seu investimento afetivo que potencia a segurança emocional, que por sua vez permite o desenvolvimento da capacidade adaptativa do jovem, e consequentemente a resiliência face ao risco. A possibilidade de o jovem estabelecer relações seguras, dentro e fora da instituição, permite a organização emocional e afetiva impedindo que este permaneça em constantes estados de vulnerabilidade” (MOTA e MATOS, 2008). Se fizermos uma correlação com o tempo de institucionalização destes jovens podemos afirmar que o impacte deste acolhimento foi positivo, apesar de não ter sido possível a concretização de um crescimento em contexto familiar. A qualidade dos cuidados personalizados e individualizados associados ao estabelecimento de

A AUTONOMIA RESPONSÁVEL É RECONHECIDA EM CADA CRIANÇA À MEDIDA QUE A CAPACITAÇÃO SE CONSOLIDA, CONTAMINADA NO QUOTIDIANO PELO SABER FAZER, REAGIR, DECIDIR, OPTAR, PARTILHAR, CEDER, ENFRENTAR DESAFIOS, SOBREPOR OBSTÁCULOS E REGOZIJAR-SE COM CONQUISTAS” vinculações seguras, a consolidação da figura de referência, o ratio adulto/criança e as rotinas em ambiente acolhedor, promovem junto dos jovens um clima de segurança, de escuta ativa e de comunicação positiva, em ressonância às suas expectativas e interesses. Desta forma, constroem-se relações afetivas significantes e determinantes no percurso de crianças e jovens. Deste modo, identificam-se as seguintes condições facilitadoras e promotoras de autonomia em acolhimento residencial: vivência de relações significativas, que se constituam figuras de referência para a vida e de partilha de experiências gratificantes. “O ambiente institucional e as relações que aí se estabelecem influenciam o desenvolvimento cognitivo, social e afetivo das crianças e adolescentes, assim como a construção da sua identidade e das suas trajetórias futuras” (SANTANA, 2003); envolvimento nas atividades da vida diária e nas dinâmicas quotidianas da instituição na qual a criança/jovem se dignifique e atue, num espaço onde é aceite, considerada e respeitada; fortalecimento da integração comunitária 45

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O GRAU DE MATURIDADE E INDIVIDUALIDADE DE CADA UM DESTES JOVENS DETERMINA A DEFINIÇÃO DE NOVOS OBJETIVOS E METAS A ATINGIR, E O MAIOR OU MENOR DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS PESSOAIS E SOCIAIS” positiva, onde se constroem vínculos significativos, se desenvolvem e consolidam a rede de suporte, a autonomia e a inclusão social; histórias e narrativas de vida trabalhadas e integradas. “A abordagem às histórias de vida assume-se como um processo incontornável no âmbito da intervenção em acolhimento residencial, desempenhando um papel importante na elaboração interna das crianças e jovens das suas origens e percurso de vida, visando […] o seu processo identitário” (REIS, 2015). “No lar somos muito mais acompanhados, porque temos educadores 24 horas por dia ao nosso lado. Na residência isso já muda um pouco, temos de ser muito mais autónomos e responsáveis, saber gerir o dinheiro, entre outras coisas.” (jovem de 24 anos em residência de autonomização) Protagonistas da sua história, atores principais das suas decisões, os jovens anteriormente acolhidos nas casas de acolhimento vivem agora em apartamentos de autonomização da SCML.. São diariamente confrontados com a necessidade de realizar a gestão doméstica, financeira e do quotidiano, de enfrentar dificuldades e obstáculos, tomar decisões e fazer escolhas. Estes jovens em processo de autonomização expressam os sentimentos que vivenciaram

aquando da transição da residência para os apartamentos. Ressalta uma valorização positiva associada a estes novos espaços e ao seu funcionamento – “conforto/bem-estar”, “alegria/diversão” – aliados à expectativa de maior “liberdade”. A dimensão funcional do conceito de autonomia foi relevante para o seu desenvolvimento, aliada à intervenção na estabilidade emocional. Possibilitou a estes jovens a capacidade de identificarem as suas fragilidades, indicador de permeabilidade a uma mudança no saber estar e fazer, fruto da aprendizagem ao longo do acolhimento em contexto de lar. A criança/jovem “socializa-se ao mesmo tempo que é socializada, constrói-se a si própria na medida em que é construída pelos outros” (JAVEAU, 1998). Exige “espaços de cidadania [enquanto] construtora activa do seu próprio lugar na sociedade contemporânea […], lugar que com ela partilhamos, ainda que com responsabilidades distintas, cidadãos implicados na construção da (so)ci(e)dade” (SARMENTO, 2004). O grau de maturidade e individualidade de cada um destes jovens determina a definição de novos objetivos e metas a atingir, e o maior ou menor desenvolvimento de competências pessoais e sociais. Um desafio acrescido para estes jovens, para quem é difícil perspetivar o futuro, definir etapas e metas a atingir, gerir/organizar o quotidiano, revelando dificuldades na dimensão cognitiva/emocional do conceito de autonomia. “Autonomia é saber resolver qualquer questão. Basicamente, é ser adulto maduro com responsabilidades.” (jovem de 21 anos) Os atores adultos que desenvolvem a sua intervenção nas residências de autonomização da SCML identificaram nos jovens, na fase de transição do lar para a residência, sentimentos associados à solidão. Este sentimento evoca nostalgia pela perda de referências afetivas, de vivências em grupo e de rotinas/ dinâmicas funcionais que eram assumidas maioritariamente pelos cuidadores.

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ASPETOS FACILITADORES QUE FORAM DESENVOLVIDOS DURANTE A INTERVENÇÃO COM OS JOVENS EM CONTEXTO DE ACOLHIMENTO RESIDENCIAL Existência de uma referência positiva História de vida trabalhada e integrada Vivências experienciadas fora do contexto do acolhimento residencial Existência de objetivos individuais bem definidos Desenvolvimento da criatividade Desenvolvimento da ambição Intervenção na estabilidade emocional Existência de uma rede de suporte eficaz e consistente Existência de continuidade da relação com os cuidadores

Desta reflexão já surgem indicadores de que a institucionalização não é uma experiência pontual que se entrecruza com histórias de vida, mas deve consubstanciar contextos que assumam a diferença positiva na vida daqueles que acolhe e consolidar mudanças e uma evolução positiva. Assim, em contexto institucional, o processo de autonomia das crianças/jovens acolhidos – objeto desta reflexão – deve ter em conta que toda a intervenção tem subjacente uma intencionalidade e um critério que salvaguarde a individualidade e a capacidade de cada criança/ jovem em efetuar com segurança as suas aquisições, com base no princípio de que a aquisição das competências é progressiva e o seu tempo e ritmos são individualizados. Subjacente à intencionalidade pedagógica, assenta a qualidade relacional, pelo que o papel dos adultos enquanto modelos de referência assume uma relevância fundamental. Das práticas profissionais ao perfil psicossocial dos adultos cuidadores – que refletem os seus valores, convicções, experiência de vida e representação social – vai uma imensidão de variáveis não desprezíveis com impacte na intervenção que desenvolvem.

As práticas de hoje determinam o que as nossas crianças e jovens vão conseguir fazer no amanhã, consoante as oportunidades nos “trilhos da vida”.

BIBLIOGRAFIA LEANDRO, A.; ALVAREZ, D.; CORDEIRO, M.; CARVALHO, R.; CÉSAR, M. – Manual de Boas Práticas. Um guia para o acolhimento residencial das crianças e jovens para dirigentes, profissionais, crianças, jovens e familiares. Lisboa: Grupo de Coordenação do Plano de Auditoria Social CID (Crianças, Idosos e Deficientes), Cidadania, Instituições e Direitos, Instituto da Segurança Social, 2006. MOTA, C. P.; Matos, P. M. – Adolescência e institucionalização numa perspectiva de vinculação. Psicologia & Sociedade. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. SANTANA, J. P. – Instituições de atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua: objectivos atribuídos por seus dirigentes e pelos jovens atendidos. 2003. REIS, J. L. – Histórias e narrativas de vida. Unidade de Acolhimento residencial de Crianças e Jovens, SCML, 2015

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ADOÇÃO DE CRIANÇAS MAIS CRESCIDAS

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A adoção de crianças mais crescidas constitui um desafio para a criança, para a família adotante e para os técnicos. As necessidades das crianças, as capacidades das famílias e a intervenção técnica são abordadas através do relato de uma história que reflete a prática da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Misericórdia de Lisboa. Texto de Ana Sílvia Abelaira1 e Cristina Oliveira2 [1. PSICÓLOGA E 2. ASSISTENTE SOCIAL, UNIDADE DE ADOÇÃO, APADRINHAMENTO CIVIL E ACOLHIMENTO FAMILIAR_SCML]

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os últimos três anos, na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) cresceu o número de candidaturas à adoção. Trata-se de um processo longo e difícil para a maioria dos candidatos, que esperam muito tempo até abraçar o seu filho. Paradoxalmente, existem inúmeras crianças disponíveis para adoção do ponto de vista jurídico que não têm resposta porque não correspondem ao perfil de criança que as famílias desejam. Têm algum problema de saúde, um atraso grande ao nível do seu desenvolvimento ou são simplesmente mais crescidas, crescendo e permanecendo nas instituições. São crianças à espera de uma nova família que tanto desejam e que tarda ou nunca chega. Assistem à chegada de “novos pais” que vêm buscar filhos pequenos, na maioria das vezes em substituição dos filhos que não conseguiram ter biologicamente. 49

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Nas casas de acolhimento ouvem-se desabafos das crianças crescidas, tais como: “É por ser crescida que ninguém me escolhe…”, “sei que já passei do prazo para ser adotado”, ou também: “Eu sei que não sou muito boa aluna, mas eu vou esforçar-me mais…” Os técnicos que trabalham nos serviços de adoção estão em alerta para encontrar famílias para estas crianças; fazem contactos com outras equipas para pesquisar se não haverá algures uma família com capacidade para responder às necessidades de uma destas crianças mais crescidas, com um passado e uma história mais complexos. Tentam perceber se algum dos candidatos que estão a estudar, não obstante ter idealizado uma criança um pouco mais nova, terá capacidades para adotar uma criança um pouco mais crescida. Nas formações dirigidas aos candidatos, são apresentados exemplos de adoções de crianças mais velhas, focando as capacidades que as famílias deverão ter nestas situações, nomeadamente firmeza, flexibilidade e abertura na comunicação. Nestes momentos, os técnicos não escondem que que se trata de um maior desafio/risco para os intervenientes, porque estas crianças têm uma história marcada por ruturas sucessivas, perturbações da vinculação, maus-tratos, desconfiança nas relações e abandono.

PELA SUA IDADE, HISTÓRIA DE VIDA E CARATERÍSTICAS, A INTEGRAÇÃO DE CRIANÇAS MAIS CRESCIDAS NUMA NOVA FAMÍLIA NÃO É TAREFA FÁCIL. LEVANTAM-SE DÚVIDAS, INCERTEZAS E MUITOS DESAFIOS”

©Margarida Barros

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A HISTÓRIA DO PAULO Vamos centrar-nos na história do Paulo1, que poderia também ser a do João, do Luís ou da Ana, que representa a nossa experiência na Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar (UAACAF) da SCML, a nossa narrativa acerca da integração de crianças mais crescidas, a partir dos 6/7 anos. Pela idade, história de vida e caraterísticas, a sua integração numa nova família não é tarefa fácil. Levantam-se dúvidas, incertezas e muitos desafios.

1. Personagem fictícia. A história do Paulo é baseada em várias situações de crianças mais crescidas acompanhadas pela Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da SCML.

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Paulo teve um percurso marcado pelo abandono, pela negligência e pela institucionalização. Os anos foram passando e o drama do abandono foi deixando marcas. Sentia-se responsável. Acreditava que tinha sido abandonado por “não prestar”, porque se portava mal… Não via a mãe como uma mulher sem capacidade. Protegia-a, idealizava-a e via-se como o culpado. Culpado de existir e de viver. Por vezes, sentia-se revoltado e com medo de ser de novo abandonado. Queria uma nova família, apesar do enorme receio relativamente ao que o esperava. Defendia-se! O sentimento de abandono deixa marcas profundas e afeta a capacidade de amar. Como amar se não se foi amado? Como amar se não gostamos de nós próprios? Como receber o amor dos outros quando não nos sentimos amáveis? Este sentimento de não ser digno de amor dificulta seriamente a capacidade de entrega num relacionamento, por falta de confiança no outro. Nesta fase, a criança necessita de um apoio muito consistente e coerente por parte dos adultos, figuras de referência que com ela convivem no quotidiano. Este acompanhamento tem como objetivo orientar a criança na elaboração do luto da família biológica, ajudando-a a integrar a sua história passada. Um apoio psicoterapêutico é frequentemente necessário nesta fase, para que a criança esteja mais preparada para receber e para se dar a uma nova família. É fundamental que os candidatos que aceitam ser pais de crianças como o Paulo respeitem a sua história, para que a criança possa ultrapassar falhas afetivas, quase sempre tão profundas. Têm de estar preparados para ouvir a sua história, a sua tristeza, a sua cólera. Sentindo que é ouvida, compreendida, contida, a criança poderá aprender e acreditar que o amor existe. Terá novas forças para seguir o seu caminho. O papel destes pais é o de ajudar a criança a sarar aos poucos as suas feridas, propondo-lhe uma nova forma de olhar para o seu passado.

Proporcionando-lhe uma história alternativa, ajudarão o filho a reconstruir-se. Paulo tinha 9 anos quando foi integrado, pela segunda vez, em pré-adoção2. Um ano antes, tinha estado numa primeira família. As coisas não correram bem e voltou para a casa de acolhimento. A família queixou-se que o menino não tinha afetos. E que, afinal, não era como o tinham descrito nos relatórios: meigo, inteligente... “Não sabia nada, nem o nome do rio que passava em Lisboa...”, salientou a primeira família adotante.

O SENTIMENTO DE ABANDONO DEIXA MARCAS PROFUNDAS E AFETA A CAPACIDADE DE AMAR. COMO AMAR SE NÃO SE FOI AMADO? COMO AMAR SE NÃO GOSTAMOS DE NÓS PRÓPRIOS?” Os candidatos, um casal de médicos bem-sucedidos, sempre quiseram ter filhos, mas foram adiando o projeto por motivos profissionais. A certa altura já era tarde para os ter biologicamente, tendo-se por isso candidatado à adoção. Quando Paulo foi viver com eles compensaram-no com muitos bens materiais, acreditando que o estavam a fazer feliz. Apesar das orientações dos técnicos, nenhum deles gozou a licença parental, prevista na lei, tendo regressado ao trabalho ao fim de pouco tempo. O menino ficava entregue aos cuidados da empregada quando não estava na escola. Quando os pais chegavam à noite, queixavam-se que o Paulo só queria jogar, não lhes dava um beijo... Diziam que fazia birras, atirava-se para

2. Nesta fase do processo a criança sai da instituição e passa a viver com a família, mantendo-se o acompanhamento por parte dos técnicos da UAACAF durante seis meses. Findo este período, é elaborado um relatório pelos técnicos e os adotantes requerem ao tribunal a adoção.

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o chão quando não lhe faziam as vontades e “mentia compulsivamente”. O período de pré-adoção foi interrompido passados quatro meses. O casal achou que o Paulo nunca iria ligar-se afetivamente a eles, chegando mesmo a dizer: “Ele não se esforça.” O menino nem teve oportunidade de se sentir filho, amado, desejado, único, como é suposto sentir-se um filho, e estava a ser rejeitado de novo. Teve a confirmação da ideia de que não prestava. O Paulo regressou à casa de acolhimento sem expressão, com um olhar vazio, segundo o casal “como se nada fosse”. Os técnicos da casa de acolhimento foram-se deparando com um menino triste e progressivamente revoltado. Foi encaminhado para uma psicoterapia mediante a qual recebeu apoio durante alguns meses. Os técnicos da instituição e da UAACAF sempre acreditaram que algures existiria uma família disposta a amar o Paulo e a esperar que ele próprio fosse capaz de se entregar. O Paulo tinha fraco aproveitamento escolar mas eram-lhe reconhecidas capacidades para aprender, só não estava afetivamente disponível para assimilar e integrar novos conhecimentos. UMA NOVA ETAPA A Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar recebeu uma candidatura de um casal que desejava muito ter mais um filho, tendo apresentado como limite os 6 anos de idade. Tratava-se de um casal que rondava os 50 anos, com um casamento aparentemente sólido, de mútuo respeito e muito amor. Tinham já dois filhos na faculdade. Mostravam-se firmes mas flexíveis, seguros de si. Assim que foram selecionados, frequentaram a formação para adoção de nível C, que prepara os candidatos para a chegada da criança. Temas como a vinculação, comunicação na família, necessidades específicas das crianças que vivem nas instituições, entre outros, são muito explorados com casos práticos, alertando e antecipando questões cruciais que, bem resolvidas, terão bons resultados. Nesta formação também se realizam atividades em que se dá oportunidade aos candidatos de sentirem o que as crianças sentem, um exercício de verdadeira empatia.

APÓS A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE ADOÇÃO, O PAULO REGRESSOU À CASA DE ACOLHIMENTO SEM EXPRESSÃO, COM UM OLHAR VAZIO, SEGUNDO O CASAL ‘COMO SE NADA FOSSE’” Após a formação, convocámos o casal para uma entrevista, para refletir sobre a possibilidade de lhe podermos apresentar uma criança mais crescida, dando a conhecer a idade e caraterísticas de Paulo. O casal ficou de pensar sobre esta possibilidade. Passados alguns dias, comunicou que estaria recetivo à situação. Concordou que na sua dinâmica familiar e face às suas idades faria sentido uma criança mais crescida. O Paulo foi “apresentado” ao casal passado pouco tempo. O casal deslocou-se ao serviço para ouvir falar da criança e ter acesso aos relatórios de caraterização da criança (social, psicológico, pedagógico e clínico). A história era dolorosa. Maus-tratos, abandono, tentativa de adoção falhada. A candidata, emocionada, disse-nos que não estava à espera de uma história cor-de-rosa. O candidato fez várias perguntas, tentando esconder a emoção. Viram uma fotografia. Passados dois dias, após falarem com os filhos, telefonaram a dizer que aceitavam o Paulo. Os candidatos foram conhecendo – através de relatórios e da reunião com os técnicos da casa de acolhimento – os gostos do menino, as suas caraterísticas principais, o seu comportamento no dia-a-dia, a sua história. Elaboraram um álbum de fotografias para o Paulo os conhecer antes de estar com eles pessoalmente. Um dos comentários do Paulo a uma fotografia do candidato a pai foi: “Parece mesmo um pai.” Entretanto, na casa de acolhimento, a educadora começou a preparar novamente o Paulo. No último

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ano, em contexto psicoterapêutico, foi realizado um trabalho com a criança no sentido de reforçar a sua autoestima e de a preparar para uma nova família, apesar das experiências negativas pelas quais tinha passado. Durante a preparação surgiram muitos receios. O Paulo estava feliz por um lado, mas por outro muito inquieto. Revelou à educadora que tinha muito medo, relembrando o que sucedera com a outra família adotiva. Foi-lhe assegurado que a integração demoraria o tempo que fosse necessário até que ele se sentisse confiante. As figuras de referência da criança na casa de acolhimento são uma peça-chave na preparação e transição da criança para a nova família. É um papel difícil, porque existe uma forte ligação afetiva à criança, sendo essencial que o profissional seja capaz de se afastar gradualmente da crian-

ça, para ir dando espaço à relação com a nova família. Esta figura de referência deverá passar a mensagem de que confia naquela família, dando assim segurança à criança. Do ponto de vista da criança, o processo de adoção não é simples. Ao longo do seu percurso, Paulo teve diferentes prestadores de cuidados, conheceu a falta de afeto, a violência, a ambivalência, uma vida desregrada. Na instituição passou a ter uma vida com regras e rotinas, com elementos de referência, mas sem uma verdadeira vinculação. O papel da nova família será o de o ajudar a conciliar todas estas vidas, dando-lhe afeto incondicional e proporcionando-lhe um ambiente estável e seguro, constituindo-se assim os novos pais como figuras de vinculação. Pouco tempo após a integração, Paulo começou a testar, tal como fizera antes, os limites 53

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extremos, para ver se podia confiar na relação com os novos pais, referindo que os pais adotivos não eram os seus pais, falando na mãe biológica, dizendo querer regressar ao lar. Nesta fase, é fundamental tentar perceber a criança, para que esta se possa reconciliar gradualmente com a sua história. Ser paciente, flexível, disponível sem deixar de ser firme e, sobretudo, respeitar o ritmo e o passado da criança, demonstrando que se confia nela e valorizando os aspetos positivos que se vão observando no dia-a-dia. No diálogo que as técnicas da Unidade de Adoção foram estabelecendo com os pais durante o período de pré-adoção, estes referiram quanto tinha sido importante participar na formação de nível C, onde aprenderam a não ter receio de conversar com o filho sobre o seu passado sempre que este o abordasse. Perceberam que se o fizessem de forma natural, sem constrangimentos, o filho teria cada vez mais confiança neles para poder contar outras coisas da sua história e, assim, sentir-se cada vez mais pertença da nova família. A partir do momento em que a criança é integrada numa família que não conhece passa a ter uma série de “tarefas psicológicas” com as quais as outras crianças não têm de se confrontar. Essas tarefas psicológicas são, segundo Triseliotis et al. (1997), a revinculação aos novos pais; a tomada de consciência/conhecimento de que é adotada; e a formação de uma identidade que inclui as questões anteriores. REVINCULAÇÃO E RENASCIMENTO A revinculação aos novos pais envolve lidar com o sentimento de perda dos pais biológicos e o consequente sentimento de rejeição, para a criança ir reconstruindo a sua identidade. Este trabalho vai sendo feito gradualmente pela criança com o suporte dos pais, sabendo-se que a qualidade dos afetos e as atitudes favoráveis do meio são determinantes para o sucesso dessas tarefas que a criança adotada tem de ultrapassar. Por outro lado, os pais também têm tarefas específicas. Como refere Meltzer e Harris (1983), os pais não devem ser psicoterapeutas mas devem organizar-

A PARTIR DO MOMENTO EM QUE A CRIANÇA É INTEGRADA NUMA FAMÍLIA QUE NÃO CONHECE PASSA A TER UMA SÉRIE DE ‘TAREFAS PSICOLÓGICAS’ COM AS QUAIS AS OUTRAS CRIANÇAS NÃO TÊM DE SE CONFRONTAR” -se de forma a assumir as funções de “gerar amor, promover a esperança, compreender o sofrimento depressivo e pensar”. Segundo Ozoux-Teffaine (1987), as crianças mais crescidas vivem um renascimento quando integram a nova família. Ao nível simbólico, a criança sente-se o bebé da família. Vai regredir no seu comportamento. Com 10 anos vai querer colo, que a vistam, que lhe contem histórias. Será importante respeitar esta fase, mesmo que seja longa. Esta fase regressiva, ou de “lua-de-mel”, permite que a criança recomece do zero, permite uma reconstituição parcial do seu “eu” psíquico. Deste modo, a criança vai poder passar pelas diferentes fases de uma infância normal em família. Assim, restaura o narcisismo dos pais, tal como o seu próprio narcisismo. Nascem as primeiras relações mãe/criança, pais/criança. Esta apodera-se do espaço da casa, dos objetos, dos hábitos familiares. Quanto mais marcada pelo abandono ou pelos maus-tratos, mais exclusiva será a sua expectativa relativamente aos pais adotivos. Os pais deverão entrar no jogo e confirmar à criança que ela é o seu bebé e que vai crescer com eles. Nesta fase, tudo se passa como se a criança quisesse apagar, esquecer o passado. Normalmente, a este período de lua-de-mel segue-se uma fase de desilusão. É uma fase muito complicada para pais e crianças. Mas é tão fundamental e necessária como a primeira.

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Segundo Ozoux-Teffaine, vai permitir que a criança aceda ao narcisismo secundário, separando-se/diferenciando-se dos pais para construir a sua autonomia. Quando a criança começa a projetar nos pais adotivos a imagem dos pais biológicos, tem medo de ser de novo abandonada/ maltratada e entra numa fase em que vai testar os pais adotivos com provocações, crises de oposição ou ataques de raiva. Projeta na mãe ou no pai adotivos a imagem dos pais que a abandonaram. É muito importante que os pais se sintam apoiados pelos técnicos nesta fase. É frequente as crianças dizerem aos pais que na casa de acolhimento é que era bom, que querem voltar para lá, testando os seus limites no sentido de perceber se, mesmo assim, continuam a gostar deles. Esta fase deve ser vivida para evitar a sua explosão na adolescência de forma muito mais violenta. Os pais adotivos terão de ter forças para não ceder à chantagem da criança, para dizer que a amam e que desejam que ela fique com eles para sempre. Se os pais adotivos tiverem capacidade de diálogo, se forem capazes de negociar e de ser flexíveis, terão sucesso. Deverão ser normativos e orientadores nesta fase de reconstrução de um ego magoado e desvalorizado. Com o Paulo, a fase de teste e as birras foram-se espaçando no tempo, sendo evidente a proximidade afetiva com os pais, irmãos e restante família. A confiança nos pais foi crescendo pela constatação das atitudes coerentes que estes mantinham. Ao fim de alguns meses, Paulo chegou a verbalizar: “Agora já percebi que vocês não mentem! Aquilo que prometem, fazem mesmo…É que os meus outros pais estavam sempre a mentir-me.” O aproveitamento escolar de Paulo melhorou gradualmente e de forma significativa. Foi grande a necessidade de apoio para recuperar falhas importantes ao nível da aprendizagem, pelo que os pais se movimentaram para lhe proporcionar os apoios necessários e também se disponibilizaram para o ajudar a estudar todos os dias. Nunca se mostraram dececionados com o Paulo, respeitando o seu ritmo, mesmo que fosse por vezes lento. Três anos após a integração do Paulo, os pais não hesitam em transmitir-nos que um dos fatores

©Margarida Barros

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essenciais para o sucesso deste percurso foi, sem dúvida, a cumplicidade e a coesão do casal durante as fases mais difíceis. “Um casal forte, unido, onde a criança não veio resolver um problema conjugal. Falamos muito, partilhamos muito as nossas ideias. Somos tolerantes. Confiamos um no outro. Temos os mesmos objetivos e enfrentamos os problemas em conjunto. Quando um comportamento do Paulo é mais desajustado, pensamos: porque é que está a ter este comportamento? E chegamos à conclusão de que existe sempre um motivo.” Salientam que o grande mérito é do Paulo, pois ele soube conquistá-los: “Foi ele que nos adotou. Não nos imaginamos com outro filho, tinha de ser o Paulo.” Para nós, como técnicas de adoção e, sobretudo, como pessoas, é indescritível o que sentimos face à alteração do rumo de vida destas crianças, que acreditamos convictamente ser o melhor.

BIBLIOGRAFIA GALLI, J.; VIERO, F. – El fracasso en la adopción. Prevención y reparación. Espanha: Acebo, 2001. OZOUX-TEFFAINE, O. – L’adoption tardive: entre deux vies. Paris: Stock, 1987. TRISELIOTIS, J.; SHIREMAN, J.; HUNDLEBY, M. – Adoption: theory, policy and practice. London: Cassel, 1997. VERDIER, P.; AUCANTE, M. – Ces enfants dont personne ne veut. Paris: Dunod, 1997.

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NOVO PARADIGMA DE

HABITAÇÃO PARA SENIORES O Em sociedades que valorizam todas as gerações, os desafios habitacionais para os mais velhos podem ser revistos à luz de um novo paradigma. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa dá o seu contributo com uma nova estrutura habitacional que promove a intergeracionalidade.

Texto de Maria Eduarda Napoleão [COORDENADORA DO PROGRAMA ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO E AVALIAÇÃO DAS ESTRUTURAS RESIDENCIAIS INSTALADAS EM EDIFÍCIOS DE INTERESSE PATRIMONIAL/HISTÓRICO. DEPARTAMENTO DE ACÇÃO SOCIAL E SAÚDE | DEPARTAMENTO DE GESTÃO IMOBILIÁRIA E PATRIMÓNIO]

envelhecimento apresenta-se como um dos dilemas centrais do século xxi. Nas últimas décadas registou-se um aumento contínuo do número de idosos, com o prolongamento da esperança média de vida por oposição à queda da natalidade, o que contribuiu para transformar as sociedades mais desenvolvidas em sociedades envelhecidas. À medida que a pessoa envelhece, a sua qualidade de vida é determinada, em grande parte, pela sua capacidade de manter a autonomia e a independência. Tal constatação fez surgir o conceito de esperança de vida saudável, que significa por quanto tempo podem as pessoas esperar viver sem incapacidades. O objectivo é melhorar a qualidade de vida, através de estratégias que promovam a redução dos fatores de risco associados a doenças crónicas, permitindo um envelhecer saudável e produtivo, gerando menor utilização dos recursos sociais e de saúde. Isso pode ser conseguido através de abordagens efetivas para a modificação do estilo de vida das pessoas, redução do sedentarismo, do

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Rácio - % Anos

Índice de envelhecimento

Proporção - % Índice de dependência total

Índice de dependência jovens

Índice de dependência idosos

Índice de longevidade

1960

27,3

59,1

46,4

12,7

33,6

1970

34,0

61,7

46,0

15,6

32,8

1981

44,9

58,6

40,5

18,2

34,2

1991

68,1

50,6

30,1

20,5

39,3

2001

102,2

47,8

23,6

24,2

41,4

2011

127,8

51,3

22,5

28,8

47,9

tabagismo, controlo do peso, alimentação saudável, vida emocional e social saudável. O desafio não é “como viver mais” mas sim “como viver melhor”. Alimentar-se corretamente, gerir o stress, praticar atividade física e controlar o peso corporal não somente evita ou retarda a mortalidade por doenças crónicas, mas possibilita também que eventos graves, que reduzem a qualidade de vida, sejam adiados por vários anos. Em Portugal, as projeções em termos demográficos até 2050 indicam que apenas o grupo dos maiores de 65 anos crescerá, estimando-se que atinga os 32% da população.1 Tendo em consideração esta perspetiva, torna-se imprescindível repensar os padrões associados ao envelhecimento, à habitação e aos cuidados. Se, por um lado, as políticas e os programas de envelhecimento ativo devem favorecer o equilíbrio da responsabilidade pessoal, isto é, o cuidado com a própria saúde e a dos membros da família, por outro, é fundamental analisar as questões ligadas à habitação e ao urbanismo, uma vez que todos os outros grupos etários diminuirão nas próximas quatro décadas. VIDA INDEPENDENTE PARA A IDADE MAIOR Num estudo realizado na freguesia de São Nicolau, na Baixa Pombalina, em Lisboa, para caraterizar as condições habitacionais da população idosa, designadamente a muito idosa, Rito e Martin (2011)3

INDICADORES de envelhecimento segundo os Censos2

NO QUE DIZ RESPEITO À HABITAÇÃO, AS SUAS CARATERÍSTICAS E A SUA ADEQUABILIDADE E ACESSIBILIDADE TÊM UMA GRANDE INFLUÊNCIA NA QUALIDADE DE VIDA DOS MAIS VELHOS” efetuaram um estudo sobre os principais indicadores de habitabilidade, através de um método de caraterização de proximidade à habitação da população muito idosa, entre os 83 e os 94 anos. Os indicadores que melhor evidenciaram a precariedade das habitações e das condições de vida das pessoas muito idosas são, seguidamente, descritos. As habitações localizam-se principalmente no terceiro andar de prédios ou andares superiores (53,8%), cujo acesso se faz apenas por escadas (92%), em apartamentos construídos antes de 1919. As habitações correspondem, sobretudo, a um regime de propriedade por arrendamento com contrato assinado, em média, no ano de 1968, com rendas no valor mensal médio de 52 euros. Apresentam quatro ou mais divisões (69,2%), três divisões (23,1%) e uma divisão (7,7%).

1. INE, 2010. 2. Indicadores de envelhecimento segundo os Censos. Fontes de dados: INE - X, XI, XII, XIII, XIV e XV Recenseamentos Gerais da População. Fonte: PORDATA. Última atualização: 2015-06-26. 3. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10586.pdf

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A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA TEM EM DESENVOLVIMENTO UM CONJUNTO DE PROJETOS PARA EQUIPAMENTOS COM CONCEITOS ALTERNATIVOS DE HABITAÇÃO PARA OS MAIS VELHOS, TENDO POR BASE OS PRINCÍPIOS DA INTERGERACIONALIDADE E DA MOBILIDADE” Não obstante, o maior problema resulta da carente capacidade socioeconómica desta população muito idosa, da implicação da desadequação ambiental às necessidades particulares e das débeis condições de acessibilidade no seu quotidiano (implica dificuldades no acesso a cuidados de saúde, na interação social e na aquisição de informação), com graves comprometimentos na sua qualidade de vida.4 Por variadíssimas razões, umas de ordem económica, outras de ordem patrimonial, não será viável criar as condições necessárias para que todas estas pessoas continuem a viver nas suas casas e a alternativa não poderá ser a institucionalização. De acordo com a nova lei do arrendamento urbano, Lei n.º 79/2014, DR n.º 245, Série I, de 19 de dezembro, que revê o regime jurídico do arrendamento urbano procedendo à segunda alteração à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, as rendas antigas irão ser atualizadas. Desta forma, os que tiverem contratos de arrendamento anteriores a 1990 serão os mais afetados por esta legislação.

No que diz respeito à atualização extraordinária das rendas, irá assentar numa base negocial: o senhorio deverá propor ao inquilino a nova renda, o qual deverá apresentar uma contraproposta. A média dos valores propostos por ambas as partes servirá para calcular a nova renda. Porém, caso não haja acordo, o senhorio terá a pagar o valor da indemnização para ficar com o imóvel disponível. Esta indemnização será equivalente a 60 rendas (cinco anos) calculada pelo valor médio das duas propostas. Existem todavia situações especiais para as famílias carenciadas e para os arrendatários com idade igual ou superior a 65 anos, ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, já que não podem ser despejadas, ou seja, a renda vai aumentar – mediante negociação ou mediante as regras estipuladas para as famílias carenciadas –, mas nunca haverá lugar a despejos. Por outro lado, através do Decreto-Lei n.º 156/2015, de 10 de agosto, estabelece-se o regime do subsídio de renda a atribuir aos arrendatários com contratos de arrendamento para habitação, celebrados antes de 18 de novembro de 1990, em processo de atualização de renda, e o regime de determinação do rendimento anual bruto corrigido (RABC). Assim, promove-se uma resposta social para todos os arrendatários cujo período transitório não ocorrerá antes de 2017. De acordo com o artigo 11.º do referido decreto-lei, o subsídio para arrendamento em vigor é um apoio financeiro, concedido ao arrendatário sob a forma de uma subvenção mensal não reembolsável, relativo ao montante da nova renda e destinada a apoiá-lo a manter a sua residência permanente no locado. Este regime contempla um subsídio de renda que pode assumir duas modalidades, podendo traduzir-se num subsídio para arrendamento em vigor, o qual permite aos arrendatários manter o contrato de arrendamento e a sua residência

4. Martin, Ignacio; Santinha, Gonçalo; Rito, Susana; Almeida, Rosa – Habitação para pessoas idosas: problemas e desafios em contexto português – Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Número temático: Envelhecimento demográfico, 2012, pp. 177-203.

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atual, ou em alternativa optar, se assim o desejarem, por um subsídio para um novo contrato de arrendamento (artigo 18.º). Prevê-se cinco anos de regime transitório, até à liberalização total do mercado (2017), com a garantia de que as carências económicas continuarão a ser apoiadas até que a necessidade se mantenha, através de um subsídio num valor correspondente a 1/15 do valor patrimonial da casa e que esse subsídio possa ser transferido para um novo contrato de arrendamento. Esta legislação permite que os idosos com baixos rendimentos possam escolher se querem manter-se na sua habitação ou mudar-se para outra, provavelmente mais pequena, mas com outros apoios, serviços, relacionamento, atividades e segurança. Considerando que em 2017 o mercado de arrendamento estará totalmente liberalizado, que a população em termos globais continua a diminuir e que o único grupo etário que irá crescer são os maiores de 65 anos, existe uma oportunidade que justificará uma especial atenção ao segmento do mercado habitacional dos idosos ao nível da atividade no setor imobiliário. É necessário prever e concretizar alternativas de habitação para seniores que lhes permitam manter a sua independência, melhorar as suas relações sociais e a sua qualidade de vida. A reabilitação urbana terá de considerar também esta realidade, a de um aumento crescente das necessidades habitacionais deste setor populacional. As atividades profissionais ligadas a este setor deveriam equacionar novas soluções. Igualmente os municípios terão de planear as suas intervenções nos espaços públicos e equipamentos tendo por fundamento esta realidade.

ALTERNATIVAS HABITACIONAIS PARA A IDADE MAIOR Nos países anglo-saxónicos e em alguns países nórdicos os alojamentos para pessoas com poucas ou nenhumas necessidades assistenciais caraterizam-se por serem estruturas residenciais que comportam altos graus de privacidade, ainda que se viva em vizinhança com outras pessoas idosas, pois o estilo de vida destes residentes é, normalmente, autónomo (Martin, Rito e Brandão, 2011). São exemplos as tipologias de alojamento Homeshare, Lifetimes Home, Cohousing, Sheltered e Extra Care Home.5 À excepção da tipologia Homeshare, a única não construída de raiz, todas as outras deslocam a pessoa idosa para fora do seu contexto natural. No entanto, a sua adoção permite encontrar respostas no setor privado com capacidade de equilibrar as premissas independência, privacidade, interação social e capacidade económica.6 Estes conjuntos habitacionais são construídos especificamente para os reformados viverem em comunidade. A maioria destas comunidades oferecem serviços e atividades,

HÁ TRANSFORMAÇÕES E ALTERAÇÕES A SEREM REALIZADAS DE FORMA A CRIAR UM NOVO PARADIGMA QUE PERMITA QUE SEJAM OS PRÓPRIOS IDOSOS COM AS SUAS FAMÍLIAS A DEFINIR QUAL A SOLUÇÃO RESIDENCIAL QUE MELHOR SE ADAPTA À SUA SITUAÇÃO”

5. http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/10586.pdf / Martin, Ignacio; Santinha, Gonçalo; Rito, Susana; Almeida, Rosa – Habitação para pessoas idosas: problemas e desafios em contexto português – Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Número temático: Envelhecimento demográfico, 2012, pp. 177-203. 6. Idem.

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Tipologia

Filosofia

Caraterísticas

Perfil

Tamanho

Auxiliar

Lifetimes Home

Adequar as habitações às necessidades decorrentes do ciclo de vida familiar

Devem respeitar 16 normas estipuladas nesta tipologia

Toda a população

­

­

Homeshare

Partilhar recursos

Condições de conforto e habitabilidade

Pessoas idosas independentes

1 habitação

­

Cohousing

Desenvolver comunidades, tendo como principal agente ativo a população idosa

Apartamentos independentes e espaços comuns

Pessoas idosas

Muito variável

Optativo

Sheltered

Garantir apoio 24 horas

Apartamentos independentes e espaços comuns

Pessoas idosas independentes ou ligeiramente dependentes

“15-60 apartamentos”

Sim/Não

Extra Care Home

Apoiar na realização das atividades de vida diária

Apartamentos independentes e espaços comuns

Pessoas idosas mais dependentes

Muito variável

Sim/Sim

SÍNTESE de alternativas habitacionais para a população idosa7

com clubhouses para dar aos idosos a oportunidade de se relacionarem com outros idosos e participarem em atividades comunitárias, tais como artes e ofícios, encontros de férias, aulas de educação continuada, ou noites de cinema. Estas residências também podem oferecer comodidades como piscina, fitness center, campos de ténis, mesmo um campo de golfe ou outros clubes para satisfazerem outros grupos de interesse. Estas instalações seniores são destinadas a adultos mais velhos autónomos. As tipologias Sheltered e Extra Care Home implicam, eventualmente, alguma assistência na vida diária. A maioria não oferece cuidados médicos ou pessoal de enfermagem. Tal como acontece com a habitação regular, o custo destas habitações depende da localização, da dimensão do apartamento e dos serviços disponíveis.

UM CONCEITO ALTERNATIVO DE HABITAÇÃO O conceito de envelhecimento ativo e saudável traduz a possibilidade de a pessoa idosa permanecer autónoma e capaz de cuidar de si própria, no seu meio habitual de vida, ainda que com recurso a apoios. No entanto, a realidade mostra que existe um número considerável de pessoas idosas que não encontram resposta no seu meio familiar. Assim, será necessário criar outras alternativas para que as dimensões física, psíquica, intelectual, espiritual, emocional, cultural e social da vida de cada indivíduo possam por ele ser desenvolvidas sem limitações dos seus direitos fundamentais, a identidade e a autonomia.8 Inserida nesta problemática, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem em desenvolvimento um conjunto de projetos para equipamentos com conceitos alternativos de habitação para os mais

7. Idem. 8. www4.seg-social.pt/

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velhos, tendo por base os princípios da intergeracionalidade e da mobilidade. Estas estruturas residenciais pretendem dar respostas mais adequadas aos mais velhos mas integrar também os mais novos. Não é a mesma coisa criar um espaço intergeracional ou um espaço multigeracional. O último termo refere-se ao design de ambientes físicos capazes de responder às necessidades de pessoas de todas as idades. No entanto, a partir de uma perspetiva intergeracional, o objetivo do projeto é não só instalar as diferentes gerações, mas criar condições físicas para elas interagirem no momento e no tempo. Um dos projetos já em curso é a Estrutura Habitacional Intergeracional, a desenvolver na Quinta Alegre, imóvel classificado como IIP – Imóvel de Interesse Público, Decreto n.º 44 452, DG n.º 152, de 5 de julho de 1962, que prevê a reabilitação, conservação e restauro do palácio e jardins e a ampliação das estruturas de apoio agrícola e a construção de raiz de um edifício. Procura-se, com este equipamento, uma relação intergeracional entre os mais velhos e os mais novos, bem como com a população em geral, de forma a garantir uma interação constante e um desenvolvimento intelectual e social, evitando o isolamento e exclusão recorrente na terceira idade. A Quinta Alegre localiza-se na Charneca do Lumiar, a norte da cidade de Lisboa. Foi construída nos inícios do século xviii como solar de veraneio do 1.º marquês de Alegrete. O jardim é delimitado por muro com bancos conversadeiras forrados a

REABILITAÇÃO da Quinta Alegre ­ – Estrutura Habitacional Intergeracional Palácio do Marquês de Alegrete – Quinta Alegre

ESCRITA desenhada, base da memória descritiva do projeto, VMSA

azulejos, formando miradouro sobre a propriedade, e lago artificial. Foi definido um programa funcional para este imóvel que, para além da reabilitação, conservação e restauro do edificado existente e jardins, prevê a instalação de uma Estrutura Habitacional Intergeracional que inclui uma Unidade Residencial Assistida para os reformados da SCML e um conjunto de residências e apartamentos com tipologias diferentes para os vários grupos etários. 61

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DESENHO do palácio e jardim

ANTIGA casa de jantar, futura sala de chá

Esta Estrutura Habitacional Intergeracional pressupõe a execução de três unidades funcionais complementares: a Unidade Social, a Unidade Assistida e a Unidade Residencial, sendo que a Unidade Social corresponde ao palácio e jardins. Esta Unidade Social dará apoio ao nível de atividades e serviços às unidades residenciais e irá estar aberta ao público. O projeto de arquitetura que concretiza este programa funcional é da autoria dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.

UNIDADE SOCIAL Esta unidade complementa, em termos de espaços para usos sociais, o programa necessário para o funcionamento das outras unidades. Pretende-se que estes usos e atividades promovam naturalmente o encontro intergeracional. Esta unidade irá também estar aberta à comunidade, tanto a nível dos espaços como das atividades a desenvolver. Esta opção contribuiu também para que a intervenção no palácio seja essencialmente de conservação e restauro, com introdução das infraestruturas necessárias ao seu funcionamento e assegurando o acesso a pessoas com mobilidade condicionada a todos os pisos com funções destinadas ao público através de um elevador. Os usos já previstos para as salas do palácio são: uma casa de chá a instalar na antiga sala de jantar, com o apoio de uma copa a alojar na antiga cozinha; uma sala de leitura; uma sala com computadores e internet; uma sala de jogos (cartas e de tabuleiro). As outras salas serão de estar e de atividades. Relativamente ao jardim, será também reabilitado, funcionará como centro lúdico e de atividades (tais como tai chi, jardinagem, horticultura, circuitos de manutenção, entre outros), promovendo a vivência exterior e atividades físicas. UNIDADE ASSISTIDA Ampliação e reabilitação das estruturas de apoio agrícola para edificação de uma Unidade Residencial Assistida destinada aos reformados da Santa Casa

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da Misericórdia de Lisboa. Esta Unidade Assistida está projetada para instalar 62 utentes, distribuídos por 27 quartos duplos e oito quartos individuais e os respetivos serviços de apoio, previstos na legislação em vigor para este tipo de equipamento social, localizados no piso 0. De forma a garantir a intergeracionalidade desde o início do projeto, esta unidade inclui dez apartamentos, sete apartamentos T0 e três T1 localizados no piso 0. No edifício principal desta Unidade, para além dos serviços previstos já referidos, acrescentou-se uma

lavandaria self-service, um ginásio, um gabinete de estética e um restaurante/sala de refeições para uso de todos os residentes, este último também aberto ao público. Desta forma permite-se que nestes espaços exista uma interação entre as várias gerações. O facto de a sala de refeições desta Unidade Assistida funcionar como um restaurante aberto ao público conduz a que as famílias destes utentes possam ir lá almoçar ou jantar e dará um sentido de maior liberdade a estes utentes, uma vez que se cruzarão diariamente com pessoas diferentes.

ESTRUTURAS agrícolas em ruína

UNIDADE Residencial Assistida Intergeracional

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PISO 1 Estrutura Residencial Assistida que ocupa o piso 1 dos dois edifícios

1. PLANTA de um dos quartos 2. Apartamento T1 3. Apartamento T0

UNIDADE RESIDENCIAL Com esta Unidade Residencial, a construir de raiz, pretendeu-se criar um alojamento autónomo para pessoas de todas as idades. É constituída por 14 apartamentos, tendo por base a conceção das residências para estudantes. Cada espaço está dividido em áreas com usos distintos: quarto, instalação sanitária com acessibilidade para todos, espaço de estar com kitchenette equipada com equipamentos elétricos. Desta forma, os moradores poderão confecionar as suas refeições ou utilizar o restaurante. Todos os serviços instalados nas várias unidades

que compõem esta estrutura habitacional intergeracional, bem como as atividades a desenvolver, serão para uso de todos os que lá residirem. A gestão desta Estrutura Habitacional Intergeracional deverá, tanto quanto possível, ser aberta à comunidade. O objetivo deste projeto é não só permitir a possibilidade de instalar as diferentes gerações, mas também criar condições físicas efetivas para elas interagirem. Com base num regulamento ainda a efetivar, prevê-se uma maior flexibilização em termos de gestão funcional e financeira. Por exemplo, os jovens podem ter uma diminuição do valor a pagar pelo alojamento se fizerem companhia aos mais velhos. Apesar de a legislação referente a esta problemática estar ainda demasiado condicionada à criação de estruturas residenciais para os idosos muito mais tradicionais como os lares, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem investido em alternativas habitacionais para os mais velhos, com outros conceitos, como já anteriormente referido.

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A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA TEM EM DESENVOLVIMENTO UM CONJUNTO DE PROJETOS PARA EQUIPAMENTOS COM CONCEITOS ALTERNATIVOS DE HABITAÇÃO PARA OS MAIS VELHOS, TENDO POR BASE OS PRINCÍPIOS DA INTERGERACIONALIDADE E DA MOBILIDADE” ARQUITETURA, URBANISMO E QUALIDADE DE VIDA A arquitetura e o urbanismo têm uma influência determinante na qualidade de vida das populações, com particular destaque para as mais vulneráveis ou mais dependentes. Considerando os dados demográficos, é essencial que a habitação a construir ou reabilitar tenha por base, sempre que for possível, esta realidade, assegurando que os seus utilizadores possam manter a sua autonomia e autodeterminação ao longo do tempo. Assim, o conceito de habitação assistida não deve fazer parte de um programa, mas sim de uma conceção generalizada de um conjunto habitacional onde é potenciado o bem-estar dos mais velhos, permitindo-lhes viver a sua velhice como desejarem. O que o distingue das demais opções são os serviços que integra, não só na ajuda que podem fornecer aos idosos relativamente às atividades diárias, mas também no apoio à saúde. Porém, este modelo de habitação para idosos atinge um patamar elevado de qualidade ao integrar, conjuntamente, uma habitação intergeracional.9

UNIDADE Residencial Intergeracional – Novo edifício com dois pisos

CATORZE apartamentos T0

PLANTA do apartamento T0

A habitação assistida deve ser vista como um conjunto habitacional normalizado ao qual se adicionam serviços específicos de apoio, apenas para quem os solicita. Assim, a sua imagem deve associar-se à generalidade dos edifícios multifamiliares, de modo a que também as suas vivências se fundam no ambiente quotidiano.10

9. Maria João Borges Centenário Pereira da Fonseca, “Habitar e envelhecer no século xxi – Habitação assistida”. Dissertação apresentada à Universidade Católica Portuguesa para a obtenção do grau de mestre em Arquitetura, Universidade Católica Portuguesa, Centro Regional das Beiras. 10. Idem.

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DISFUNÇÕES INTENCIONAIS

DO VÍNCULO PARENTAL: AVALIAÇÃO PARTE I Partindo dos fundamentos da convivência familiar entre as diversas gerações, é analisada a problemática da alienação parental e do tipo de comportamentos que procuram transformar os vínculos afetivos positivos que devem existir entre pais e filhos em sentimentos negativos (o “amor em ódio”). Texto de António José Fialho [JUIZ DE DIREITO, MEMBRO DA REDE INTERNACIONAL DE JUÍZES DA CONFERÊNCIA DE HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO]

OS FUNDAMENTOS DA CONVIVÊNCIA FAMILIAR criança tem o direito de estabelecer, reatar ou manter uma relação direta e contínua com o progenitor a quem não foi confiada, devendo este direito ser exercido no interesse da criança, verdadeiro beneficiário desse direito de visita1. Ao progenitor residente incumbem as obrigações de não interferir nas relações do filho com o progenitor não residente e de facilitar, ativamente, o direito de contacto e de relacionamento prolongado. Ao progenitor não residente incumbe o dever de se relacionar pessoal e presencialmente com o filho. Em situações de dissociação familiar, e estabelecida a residência dos filhos comuns, assiste ao outro

A

progenitor o direito de participar no crescimento e educação daqueles. Assiste-lhe igualmente o direito de tê-los na sua companhia, concretizando aquilo que é normalmente designado por “regime de visitas” mas que será mais adequado denominar por “organização dos tempos da criança” ou por “relações pessoais entre o filho e o progenitor não residente”, na medida em que pais e filhos não se visitam, dado que fazem parte integrante da mesma família2. Este conceito de relações pessoais abrange, designadamente, o denominado direito de visita (permanência ou simples encontro) mas também toda e qualquer forma de contacto entre a criança e os familiares (incluindo nesta definição toda e qualquer relação estreita de tipo familiar, como a existente entre os netos e os avós ou entre irmãos, emergentes

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da lei ou de uma relação familiar de facto) e abrangendo o direito dos familiares à obtenção de informações sobre a criança3. O direito de visitas significa assim o direito de o progenitor não residente se relacionar e conviver com a criança ou o jovem4. O exercício deste direito funciona como um meio de este manifestar a sua afetividade pela criança, de ambos se conhecerem reciprocamente e partilharem os seus sentimentos, as suas emoções, ideias, medos e valores, constituindo mesmo a “essência dos direitos parentais para o progenitor não residente”. O exercício deste direito não pode ser restringido ou suprimido, a não ser que circunstâncias extremamente graves o justifiquem e em nome do superior interesse da criança (artigo 40.º, n.os 2 e 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível)5. AS DISFUNÇÕES NO VÍNCULO AFETIVO PARENTAL (A TRANSFORMAÇÃO DO “AMOR EM ÓDIO”) A atribuição da guarda (agora denominada residência) dos filhos menores a um único progenitor é fortemente suscetível de estabelecer, de imediato e de uma forma quase automática, um corte irreversível com o progenitor não guardião ou não residente, que até então contactava e participava diariamente na vida do filho. Numa situação de dissociação familiar, “a atribuição da guarda (ou do estabelecimento da residência) converte-se num elemento essencial, absorvendo a principal função parental e investindo o seu titular numa superioridade real, jurídica e de facto”. Cria uma sensação ou sentimento de superioridade por parte de um dos progenitores e coloca o outro numa situação de fraqueza, de desequilíbrio em relação ao progenitor residente, como se um deles detivesse mais “direitos de amar, educar e orientar o seu filho” do que o outro. O direito de convívio constitui um meio imprescindível à manutenção e fomento da relação de afetividade e de amizade entre a criança e os seus progenitores. No entanto, consubstanciando-se este direito em encontros esporádicos, de poucas horas ou de poucos dias, espaçados ao longo do mês, ocorrem situações de progressivo e gradual afastamento de

alguns progenitores em relação aos seus filhos. Estas podem suceder por desinteresse do próprio progenitor não residente, mas também podem ser provocadas por uma intervenção manipuladora por parte do progenitor residente6. Deste modo, no âmbito das relações pessoais entre a criança ou o jovem e o progenitor com quem aquele não reside, podem verificar-se situações de incumprimento na vertente dos contactos pessoais entre a criança e o progenitor não residente em que o progenitor guardião ou residente condiciona ou manipula o filho com o intuito de prejudicar ou afetar gravemente os laços afetivos com o outro progenitor, provocando sentimentos de temor e de ansiedade do filho em relação àquele progenitor e um verdadeiro “conflito interior de lealdade” para com o progenitor residente. Este tipo de comportamento foi designado por “alienação parental”, que se carateriza, muito sumariamente, pela “criação de uma relação de caráter exclusivo entre a criança e um dos progenitores com o objetivo de excluir o outro”. Os incumprimentos sucessivos dos regimes de regulação do exercício das responsabilidades parentais e a alegação de factos falsos ou a distorção da verdade para obstar ao cumprimento da convivência entre o progenitor não residente e o filho menor associam-se, na maioria das vezes, aos casos de manipulação e pressão psicológica sobre as crianças, consubstanciando uma situação de alienação parental. A alienação parental é caraterizada por uma disfunção do vínculo afetivo parental, obtida através de uma campanha sistemática, continuada e intencional, dirigida à passagem daquele vínculo de positivo a negativo (a transformação do “amor em ódio”), configurando uma forma específica de abuso emocional7. Independentemente das dúvidas que se possam suscitar sobre a qualificação destes comportamentos como “síndrome”8, a verdade é que os mesmos constituem alterações significativas no vínculo afetivo parental, ainda que seja evidente que não se possam considerar como anomalias clínicas que constituam uma entidade com etiologia, modo de evolução e tratamento definidos9. 67

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Importa ter presente que, para o progenitor alienante, orientar o seu percurso de vida para a destruição da relação dos filhos com o outro progenitor e ter o controlo total dos filhos é uma questão de vida ou de morte10, não respeitando regras nem obedecendo às decisões dos tribunais11, presumindo que tudo lhe é permitido12 e que as regras são para os outros13.

situação de alienação parental são, nomeadamente, os seguintes16: a existência de um conflito entre os progenitores estende-se à disputa nalguma das vertentes da regulação das responsabilidades parentais (residência do filho, relações pessoais entre este e o progenitor não residente, e a obrigação de alimentos a cargo do mesmo);

EM SITUAÇÕES DE DISSOCIAÇÃO FAMILIAR, E ESTABELECIDA A RESIDÊNCIA DOS FILHOS COMUNS, ASSISTE AO OUTRO PROGENITOR O DIREITO DE PARTICIPAR NO CRESCIMENTO E EDUCAÇÃO DAQUELES Estando patente um incumprimento da regulação das responsabilidades parentais em que existam indícios da existência de uma “campanha difamatória” em relação ao outro progenitor, qualquer profissional que intervenha na avaliação do conflito ou da relação familiar não deve permitir a si próprio que, em nome de uma qualquer relação contratual de prestação de serviços ou de uma avaliação deficiente, seja prejudicado aquele que é, em qualquer dos casos, o interesse superior a proteger, ou seja, o da criança. O técnico a quem é atribuída a missão de efetuar a avaliação da situação não deve orientar a sua atuação nesse tipo de comportamentos destrutivos dos vínculos parentais. Especialmente quando estejam em causa informações provindas de uma única parte, deturpando a convivência e o são relacionamento com o outro progenitor, sem que seja efetuado o acompanhamento e diagnóstico da família como um todo14. Na verdade, e apesar de este processo destrutivo ter como alvo principal o outro progenitor, a principal vítima destes comportamentos é a criança, que acaba por ser explorada, enquanto voz involuntária no processo de alienação15. Os atos e comportamentos que poderão constituir indicadores seguros da existência de uma

correm contribuições da própria criança para o denegrir o progenitor com quem não reside; são imputados ao outro progenitor comportamentos suscetíveis de denegrir a sua imagem (falsas acusações de abusos sexuais ou de maus-tratos, obrigações relacionadas com hábitos de higiene ou alimentares, o exagero de traços de personalidade, a referência a episódios negativos prévios à separação ou a criação de ideias de perigosidade ou de violência); verifica-se a propagação dessa inimizade aos amigos ou familiares do outro progenitor (avós, tios, primos, cônjuge ou companheiro(a) do progenitor), proibindo-se ou tentando-se impedir os contactos dos filhos com amigos ou membros da família do outro progenitor; existe apoio ou falta de ambivalência por parte da criança ou do jovem relativamente ao outro progenitor, assumindo de forma consciente a posição do progenitor com quem reside (conflito de lealdade); verifica-se uma presença de encenações vivenciadas pela criança relativamente a cenas, paisagens, conversas e termos que esta adota como vividos na primeira pessoa, mesmo que nunca tenha estado presente (a denominada “implantação de falsas memórias”);

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e xiste a recusa ou dificuldade em permitir contactos telefónicos entre o outro progenitor e o filho, tornando estes contactos uma experiência desagradável para a criança; são organizadas atividades com os filhos durante os períodos em que se encontra estabelecida a visita do outro progenitor; é apresentado o novo cônjuge ou companheiro(a) aos filhos como a “nova mãe” ou o “novo pai”; são intercetadas ou não entregues mensagens, cartas, encomendas ou presentes enviados pelo outro progenitor ao filho; verifica-se com frequência uma recusa de informação ao outro progenitor sobre as atividades em que os filhos estão envolvidos (desportos, atividades escolares e extracurriculares, dança, teatro, escutismo); verifica-se com frequência uma atitude ostensiva de “esquecimento” em avisar o outro progenitor sobre compromissos importantes do filho e que eram normalmente partilhados entre ambos (dentistas, médicos, psicólogos), utilizando-se depois essa circunstância como sinónimo de incompetência parental; são envolvidas pessoas próximas – avós, novo cônjuge ou companheiro(a) – nos atos de manipulação dos filhos; são tomadas decisões importantes a respeito dos filhos sem que o outro progenitor seja consultado (quando o deva ser); verifica-se um impedimento frequente do outro progenitor no acesso às informações escolares ou médicas dos filhos; ocorrem saídas do progenitor residente, deixando o filho com outras pessoas que não o outro progenitor, ainda que este manifeste disponibilidade para o efeito; é afirmado aos filhos que o vestuário e o calçado adquirido pelo outro progenitor não lhes fica bem ou são proibidos de o usar; são manifestadas reservas ou uma grande resistência em que os filhos sejam avaliados e examinados por especialista independente; são manifestadas ameaças aos filhos se estes

telefonarem, escreverem ou contactarem com o outro progenitor de qualquer maneira; são atribuídas culpas ao outro progenitor pelo mau comportamento ou pelos maus resultados escolares dos filhos; obriga-se o filho a fazer escolhas constantes entre ambos os progenitores, colocando-o numa situação de conflito interior, enredando-se os atos e comportamentos do progenitor residente na expressão de emoções falsas; verifica-se o pedido de regulação provisória urgente do exercício das responsabilidades parentais por parte do progenitor alienante, sabendo que esta é de difícil alteração e suscetível de provocar uma situação de facto determinante para a decisão definitiva; mas, ao mesmo tempo, pode existir uma oposição infundada à regulação provisória das responsabilidades parentais na parte em que seja estabelecido um regime de contactos pessoais e de férias com o outro progenitor; ocorrer uma insinuação ou acusação de falsas situações de violência física ou agressão sexual, com o consequente pedido de vigilância ou suspensão das visitas ao progenitor alienado; verificam-se solicitações súbitas por parte do progenitor alienante dos serviços de psicólogo ou de terapeuta (mais evidente nas situações em que essa necessidade não se fazia sentir) ou a solicitação ao tribunal de exames psicológicos ou psiquiátricos aos pais e, se 69

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necessário, dos filhos, com o objetivo de protelar a decisão definitiva de regulação do exercício das responsabilidades parentais; afirmação no processo de “gritos de alma”, ou seja, expressões postas na boca das crianças, sentimentos negativos, raiva ou ódio, por parte do progenitor alienante, “pedindo ao juiz que os ajude”, escrevendo cartas para o processo (comportamento que pode surgir à revelia do próprio advogado); transmissão da ideia de que as crianças podem e devem contestar o outro progenitor (e.g. “ele(a) não sabe” ou “ele(a) não percebe”), do progenitor incapaz (e.g. “se ficarem doentes, ele(a) não sabe tratar de vocês”) ou a ideia de que o comportamento de recusa pertence aos filhos (e.g. “se eles não querem ir, não vão”); verifica-se uma interferência absoluta e domínio nos mais insignificantes aspetos da vida quotidiana dos filhos (alimentação, higiene, sono, organização dos tempos livres, etc.), tornando-os fortemente dependentes da figura do progenitor alienante; ocorrem situações de humilhação do outro progenitor com frequência (e.g. a espera dos filhos à porta durante muito tempo ou a falta de resposta aos contactos); são estabelecidas dificuldades de contactos em todas as ocasiões que não se encontrem definidas ou delimitadas no acordo ou na decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais; os filhos são incentivados a exigir ou a pedir coisas materiais ao outro progenitor, sabendo que este não as pode suportar ou que as mesmas não se incluem no âmbito das obrigações a cargo deste (e.g. “se ele(a) não vos dá, é porque não gosta de vocês”).

alienado, e através de atos jurídicos17 e comportamentais, com o objetivo de as isolar. Nota do editor: na próxima edição da revista será publicada a Parte II dedicada à dimensão da intervenção.

NOTAS 1. O regime de visitas pressupõe o tempo que a criança passa com o progenitor não guardião ou residente. 2. Também as relações com os avós e outros membros da família são de fulcral importância no equilíbrio presente e futuro da criança, uma vez que constituem “a preservação do património familiar, genético e espiritual”. 3. Artigo 2.º, alínea a), da Convenção sobre as Relações Pessoais Relativas às Crianças aberta à assinatura em 5 de maio de 2003 (instrumento ainda não ratificado e aprovado pelo Estado português). 4. Este direito de visita reafirma a tendência para considerar o filho não como propriedade dos pais, mas antes como ser autónomo e sujeito de direitos. O regime de contactos pessoais (ou direito de visita) definido no acordo ou na decisão judicial de regulação do exercício das responsabilidades parentais serve ainda para, entre outras coisas, possibilitar ao progenitor com quem a criança não reside habitualmente a oportunidade de acompanhar a maneira como o filho está a ser educado e orientado pelo outro progenitor. 5. Com efeito, mesmo nos casos em que seja aplicada medida de confiança do filho a terceira pessoa ou a estabelecimento em consequência de uma situação de perigo para a segurança, saúde, formação moral e educação da criança, será estabelecido um regime de visitas aos pais, a menos que, excecionalmente, o interesse do filho o desaconselhe (artigo 1919.º, n.º 2 do Código Civil). 6. São apontados muitos motivos para a existência dessa intervenção manipuladora que, no essencial, traduzem dificuldade na partilha das responsabilidades parentais ou na

Em síntese, a alienação parental carateriza-se pela criação de um processo destrutivo da imagem de um dos progenitores e da família deste, quebrando os laços afetivos e emocionais com estes, através de um afastamento forçado, físico e psicológico das crianças em relação ao progenitor

assumpção de uma parentalidade positiva, nomeadamente o sofrimento causado por uma relação familiar conflituosa, a impotência perante a rutura da estrutura familiar, as relações de dependência típicas de relações familiares doentias, o sentimento de abandono ou o desejo de vingança, os ciúmes ou o desprestígio pessoal e social, o desprezo, o medo (este medo

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de perder os filhos conduz, muitas vezes, à sua “objetivação”,

12. Num caso muito famoso que correu nos tribunais norte-

enquanto forma doentia de exercer a parentalidade, transfor-

-americanos (Schutz vs. Schutz), afirmou-se na decisão que:

mando os filhos em pacotes que se entregam e devolvem) e a

“Como Medeia, ela está disposta a sacrificar a sua filha para

incapacidade de “gerir o luto da separação” ou a incapacidade

alcançar os seus objetivos egoístas”, comparando a progenitora

em ver na crise familiar a oportunidade para novas possibili-

à figura mitológica de Medeia, que, segundo a versão de Eurípi-

dades de relacionamento.

des, teria sacrificado os filhos para vingar-se do abandono a que

7. A alienação parental consubstancia um distúrbio carateri-

Jasão a tinha votado.

zado pelo conjunto de sintomas resultantes do processo pelo

13. Do ponto de vista psicológico, perder um filho por causa da

qual um progenitor transforma a consciência dos seus filhos,

alienação parental é mais doloroso e devastador do que a mor-

mediante diferentes estratégias, com o objetivo de impedir,

te de uma criança. A morte é definitiva e sem esperança de re-

obstaculizar ou destruir os seus vínculos com o outro pro-

conciliação, enquanto na alienação parental a criança continua

genitor. É ainda caraterizada por um processo destrutivo da

viva e, provavelmente, bem perto, havendo, apesar disso, pouco

imagem do outro progenitor com clara utilização e manipula-

ou nenhum contacto. Para um progenitor alienado, “o desgosto

ção da criança (dependente do progenitor residente), promo-

equivale a viver permanentemente no inferno”.

vendo o afastamento da criança relativamente ao progenitor

14. Importa realçar a importância e a obrigatoriedade de des-

não residente, incutindo-lhe medo, eliminando referências do

crever o uso de abordagem metodológica sistémica (recomen-

passado e distorcendo a realidade.

dada pela American Psychologist Association), nomeadamente,

8. A (Síndrome de) Alienação Parental (SAP) tem sido objeto

ouvindo e avaliando todos os interessados, aplicando-lhes os

de acesa discussão na comunidade científica (nos ramos da

procedimentos adequados, bem como, nos casos de acusação

psiquiatria e da psicologia), havendo dúvidas sobre a sua quali-

ou insinuações de abuso sexual, satisfazendo a conveniente in-

ficação como “síndrome” face à não inclusão na DSM-IV (neste

tervenção de três avaliadores independentes.

sentido, Cintra, Pedro, et al. – “Síndrome de Alienação Parental:

15. Alguns autores sustentam que este processo consiste numa

Realidade Médico-Psicológica ou Jurídica”. Revista Julgar. N.º 7

espécie de lavagem cerebral progressiva, ou mesmo numa es-

(janeiro-abril 2009). Lisboa: Coimbra Editora, pp. 197-205).

pécie de programação da criança envolvida no processo de

9. Uma análise muito completa sobre esta realidade é-nos dada

alienação parental mediante a qual a criança acaba por partici-

por Feitor, Sandra Inês – A Síndrome de Alienação Parental e o seu

par ativamente na aniquilação do seu vínculo com o progenitor

Tratamento à Luz do Direito de Menores. Coimbra: Coimbra Edi-

alienado.

tora, 2012.

16. Tenha-se em atenção que a existência de um único indica-

10. É sabido que os acontecimentos vivenciados na infância

dor pode não ser suficiente para concluir estarmos perante uma

são determinantes para os distúrbios da personalidade na ida-

situação de alienação parental. Este deve ser acompanhado de

de adulta.

factos que indiciem o objetivo de criar uma relação de caráter

11. Identificar estes comportamentos e evitar que este processo

exclusivo entre o progenitor alienante e os filhos, de forma a

afete a criança ou o jovem e se converta em futuras situações de

excluir para sempre o outro progenitor da vida destes. De igual

depressão, desespero, sentimentos de culpa, isolamento, trans-

modo, não é obrigatória a existência de todas estas caraterísti-

tornos de identidade ou de imagem, são tarefas que se impõem

cas para identificar esta situação, nem esta enumeração preten-

aos juízes da área da família e das crianças mas também aos

de ser exaustiva.

advogados que exercem o patrocínio nesta área, quando procu-

17. Muitas vezes, os comportamentos processuais num proces-

rados pelo progenitor alienante que visa exercer os seus direitos,

so de regulação das responsabilidades parentais ou das suas

bem como a outros profissionais que exerçam a sua atividade no

vicissitudes constituem também indícios da existência de alie-

âmbito de um conflito parental.

nação parental.

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BIBLIOTECA DE

UM CONVITE À LEITURA ceite o convite: sente-se numa esplanada de café, num tranquilo banco de jardim ou num sofá de uma sala recatada. Porque todo o espaço se torna adequado quando a finalidade o justifica – a companhia de um livro. Está à sua frente mas, para sua surpresa, não está pousado sobre a mesa ou sobre os joelhos, nem se deixa segurar entre as mãos. Tem um rosto, um corpo, um movimento e também uma voz. Perceberá que, afinal, não vai lê-lo mas sim escutá-lo e conversar com ele. Este é o momento para descobrir as suas proezas e memórias, as suas aventuras e desventuras, os seus medos e receios, os seus sonhos e projetos, o seu passado mas também o seu futuro. Um registo único e singular porque é o seu e porque o partilha de forma diferente com cada leitor, numa prática de leitura interativa, que conduz ao conhecimento e respeito por si próprio e pelo outro. São partilhas de diferenças entre iguais que acrescentam entendimento entre seres, num mundo que assim se percebe tão rico e amplo quanto as vozes que o preenchem. O leitor encontrará um livro que cresce e se completa em cada nova experiência de leitura, que se enriquece com cada encontro e que enriquece todos os seus leitores. Quando, finalmente, chegar ao último parágrafo e a voz do livro se silenciar, não se espante nem apoquente, este é apenas o início de uma nova leitura, de um novo livro ou de um livro escondido que existe dentro de si. Aceite o convite. A sua curiosidade é o alento desta biblioteca de livros vivos.

A LIVROS

VIVOS: Uma comunidade de histórias

Um livro vivo organiza os seus capítulos de folhas soltas, lembrando e relembrando as suas memórias e imaginando quantas histórias ficaram por acontecer e quantas o futuro trará. Com um livro vivo partilhamos, aprendemos, ensinamos, choramos e rimos. Explore esta biblioteca para descobrir os inúmeros tesouros que ela contém. Texto de Fátima Freitas, Mónica Costa e Vera Novais [MEMBROS DO PROJETO TESOUROS DA AMEIXOEIRA]

DIVERSIDADE E CONFLITOS Os livros vivos têm uma história única para partilhar. Por meio de uma simples conversa, estabelece-se uma troca de experiências entre livro e leitor e, por vezes, uma franca cumplicidade entre pessoas vindas de realidades tão diferentes. Esta interação permite a criação de laços, a valorização das diferenças e o estabelecimento da compreensão. Porque as relações humanas são, sobretudo, um caminhar para o encontro, permitindo o conhecimento, a descoberta e o respeito do e pelo outro.

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Partindo deste princípio, o projeto Tesouros da Ameixoeira adicionou esta coleção de livros vivos ao seu baú de tesouros. A identificação dos tesouros da Ameixoeira tem como objetivo a valorização do território da Ameixoeira e do seu património, na tentativa de combater os estereótipos e preconceitos que, nas últimas décadas, o têm estigmatizado e penalizado. “Temos uma Ameixoeira muito diversa, muito heterogénea”, confirmou Sónia Gaspar, elemento do projeto Tesouros da Ameixoeira. “Mas também com alguns conflitos. Alguns conflitos culturais, alguns problemas associados à marginalidade, à falta de coesão, ao pouco conhecimento entre pessoas”, acrescenta. Esta heterogeneidade e conflitualidade foram condicionadas pela história da ocupação deste território ao longo dos anos. A localização periférica da Ameixoeira relativamente ao centro da cidade permitiu que, até ao século xix, ali persistissem valiosos recursos naturais como campos férteis, aptos para a agricultura e pastorícia, que funcionaram como um valor de atração para este território1. Relatos vários referem como este lugar atraía nobres, fidalgos e burgueses, que aqui instalaram as suas casas e quintas de veraneio e que, juntamente com os populares saloios, compunham um mosaico social novecentista muito rico e diverso. Este cenário de ancestral ruralidade foi profundamente alterado ao longo de todo o século xx, devido a migrações e imigrações, e gravemente afetado pelo conjunto das políticas urbanas, nomeadamente o Programa Especial de Realojamento para a área metropolitana de Lisboa (a partir do final dos anos 1990). A introdução, neste território, de populações socialmente fragilizadas e institucionalmente desacompanhadas veio agudizar os conflitos emergentes. Uma outra perspetiva faz-nos perceber um potencial muito mais rico no território da Ameixoeira do que o nosso olhar superficial permite alcançar. Um estudo recentemente realizado na Ameixoeira no âmbito da pós-graduação em cidades sustentáveis2 referia que o capital humano, as pessoas, representava a grande mais-valia do território. Neste sentido, o projeto Tesouros da Ameixoeira procurou

integrar esse capital diverso e contrastante como recurso fundamental para (re)construir coletivamente a memória da (ainda) freguesia da Ameixoeira. Para além da biblioteca de livros vivos, existe um conjunto de iniciativas de intervenção no território que visam combater o desenraizamento da população, as acentuadas incompatibilidades e fragilidades sociais, estimulando a criação de laços de interconhecimento, espaços de socialização e novos sentimentos de pertença. O VALOR DE UMA BIBLIOTECA A criação desta biblioteca, inspirada num projeto de âmbito internacional – Human Library (http://humanlibrary.org) –, pretende elevar a autoestima da comunidade, valorizar o património local (geológico, histórico, humano), consolidar sociabilidades e laços de vizinhança, sensibilizar para a diversidade e para as vantagens da coesão social no sentido de qualificar e capacitar a própria comunidade para ser parceira numa relação que se quer mais informada, interventiva e eficaz sobre o território. A biblioteca de livros vivos será, pois, um recurso estratégico para incentivar o sentimento de pertença e de estima pelo território, de forma a transformar a população residente numa comunidade. A adaptação da metodologia implicou que, num primeiro momento, se fizesse um trabalho de identificação dos potenciais candidatos a livros vivos, tendo como critério base a relação com o território da Ameixoeira: porque aqui viviam, porque aqui trabalhavam ou porque um dia o seu percurso da vida os encaminhou até este local. “Pessoas que criaram raízes no território, que passaram pela história da Ameixoeira, que vivem o território e que têm uma participação ativa dentro dele”, como propõe Dinaldo Rodrigues, um jovem ativo na comunidade, que também anseia ser um livro vivo, porque se sente profundamente implicado com o território que também é o seu. Depois desta primeira identificação, teve lugar o segundo momento de trabalho, a seleção dos livros cuja diversidade de histórias de vida permitisse abordar temáticas várias: percursos migratórios, 73

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diferenças étnicas e culturais, criações artísticas, contributos científicos, saberes tradicionais, profissões antigas ou que mostrassem outras perspetivas, como o desafio de viver sendo portador de deficiência, entre outros. “São histórias muito bonitas, histórias muito fortes, que têm um impacte em quem conversa com eles”, refere Ana Ngom, técnica do Projeto de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira (PDCA) – Programa K’CIDADE, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. São histórias que sublinham os valores da diversidade, da pluralidade, da participação, da cidadania, da inclusão e da coesão social. Selecionaram-se 13 livros que integram um catálogo (figura) concebido para facilitar a consulta das sinopses relativas a cada um dos livros. Nesta biblioteca de tesouros imensuráveis, o valor reside totalmente nas pessoas que se disponibilizam voluntariamente a serem lidas, a contarem as suas histórias ou a dinamizarem atividades onde os leitores podem acompanhar um rebanho de ovelhas, participar numa oficina de queijaria ou pintar motivos étnicos africanos. Esta é uma biblioteca acessível a todos, livre de encargos mas carregada de riqueza humana.

ponsabilizados na construção de uma comunidade mais coesa e geradora de sentimentos de pertença. Esta biblioteca procura bibliotecários, voluntários da comunidade que sejam responsáveis pelo acervo e pelas requisições dos livros, que orientem livros e leitores nas suas leituras e descobertas, e que procurem enriquecer a coleção. Conforme evidencia Sónia Gaspar, “os livros vivos aparecem com a identificação de pessoas que, de alguma forma, escreveram a história da Ameixoeira e continuam a escrever”. Por isso, a biblioteca precisa de acrescentar e complementar o acervo atual, incluindo outros elementos relevantes para a comunidade. DAR VOZ AOS LIVROS VIVOS: ALGUNS TESTEMUNHOS Ciente das divergências culturais, sociais e geográficas existentes, o projeto Tesouros da Ameixoeira pretende diminuir as incompatibilidades, “pretende puxar pelo que a Ameixoeira tem de bom e que pode ser potenciado, observado e valorizado por todos”, afirma Sónia Gaspar. Os livros podem ter várias idades. Pode ser um livro recente ou ter um tempo de vida recheado de acontecimentos. Podem falar do

A BIBLIOTECA DE LIVROS VIVOS SERÁ, POIS, UM RECURSO ESTRATÉGICO PARA INCENTIVAR O SENTIMENTO DE PERTENÇA E DE ESTIMA PELO TERRITÓRIO, DE FORMA A TRANSFORMAR A POPULAÇÃO RESIDENTE NUMA COMUNIDADE Esta experiência verdadeiramente interativa tem tido resultados muito positivos: o livro sente-se valorizado como pessoa e percebe-se transmissor de uma experiência socialmente reconhecida; o leitor obriga-se a pensar e conhecer experiências e realidades que antes desconhecia e que o desafiam a sair da sua “zona de conforto”. No seu conjunto, uns e outros sairão destes encontros de leitura, destas conversas, com perspetivas humanamente mais enriquecidas e socialmente mais comprometidos, res-

futuro, do presente ou dum passado muito, muito longínquo. Mas a sua principal vantagem é o facto “de ser falante, de ser voz, de ser muito interativo”, como salienta Fátima Cunha, professora do ensino básico e um dos livros vivos da coleção. Enquanto livro vivo, afirma que tem muitos capítulos, mas também sente que ainda tem muitos para escrever. “Ainda não me estruturei muito bem, no índice. Mas penso que a fase da infância foi a que mais me marcou”, revela.

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Fátima Cunha iniciou o seu percurso aos 7 anos como “educadora”, ao ser escolhida pela aldeia para ajudante da professora. Amante da natureza e do local onde cresceu, a sua história de vida foi marcada por um estreito convívio com animais e plantas, com o espaço da serra de Montejunto e com as pessoas mais velhas da aldeia. É professora na Escola Maria da Luz de Deus Ramos há mais de vinte anos. Tem uma ligação bastante antiga com a Ameixoeira e sente-se presa tanto ao lugar como às pessoas. “Os alunos aqui marcam sempre significativamente, eles são muito intensos e verdadeiros”, confidencia. “Identifico-me com eles e, nessa linha, parece que aqui estou mais confortável.”

CATÁLOGO de livros vivos, Tesouros da Ameixoeira, Lisboa, 2012

“ESTA PROPOSTA DE LIVRO VIVO É INTERESSANTE PORQUE ME LEVA A FAZER UMA VIAGEM NO MEU PRÓPRIO LIVRO. ISSO ARRUMA-ME MAIS, ORGANIZA-ME, MAS TAMBÉM ME DESORGANIZA, DESCONSTRÓI-CONSTRÓI. ACHO MUITO INTERESSANTE ESTE DESAFIO”. Fátima Cunha Os livros convivem nesta mistura de bairros e etnias, cruzando histórias de vida diversas e complexas, com diferentes pontos de origem, mas carregadas de saberes. Sek Sar, outro livro vivo e presidente da Associação Grupo Esperança Direitos Iguais (AGEDI), fica orgulhoso por partilhar a sua história, mostrando como é capaz de fazer uma vida normal após um acidente que o deixou tetraplégico. “Fui contactado porque acharam que a minha história podia ser interessante e podia ser partilhada com outras pessoas com dificuldades semelhantes”, revela Sek, num exemplo de força e confiança. Como o próprio afirma, a sua vida “é uma história de vários contornos”. Nasceu na Guiné, cresceu no Senegal mas, aos 14 anos, depois do acidente, viu-se obrigado a vir para Portugal para encontrar o tratamento adequado. “Quero tentar transmitir que, após as coisas más que acontecem na vida, também acontecem as coisas boas.” Para Sek, ser um livro vivo significa poder ajudar os outros “e mostrar que

o ser humano é muito mais forte do que aparenta”. Na associação a que preside procura, sobretudo, melhorar as condições de vida de pessoas com deficiência e dos seus familiares. “Quando estou com outros miúdos, tento esclarecer as suas dúvidas, explico-lhes como é que faço para sair da cadeira e como é que faço para tomar banho, por exemplo”. Sek afirma que o objetivo é seguir em frente, fazendo a sua vida de uma forma perfeitamente normal. Sente que, quando esclarece os outros, consegue mudar a forma de pensar sobre as dificuldades inerentes às limitações físicas. Nesta interação entre livros e leitores ganham os leitores, porque têm a oportunidade de ler livros e de conviver com pessoas que os seus preconceitos poderiam à partida não permitir. E ganham os livros porque, tal como nos diz José Maia, cantor cigano e mais um elemento desta biblioteca, “é sempre uma mais-valia recordar as coisas, comunicar e estar com as pessoas”. A sua vida seguiu pelo mundo 75

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da música, do fado e do flamenco. Iniciou-se como cantor com apenas 8 anos de idade, nas tabernas de Lisboa, tendo ficado conhecido como “o miúdo de Moscavide”. Gravou discos, esteve na televisão e cantou em bares. A sua história tem os cheiros, ruídos e encantos de uma Lisboa bairrista. José Maia diz, com orgulho, que foi o primeiro de etnia cigana a gravar um disco e que, por causa disso, nunca será esquecido: “Há quarenta anos, um cigano a cantar fado não era habitual.” Infelizmente, um problema nas cordas vocais aos 40 anos impediu-o de continuar a carreira. Agora canta apenas entre amigos e familiares. Enquanto livro vivo, relembra os tempos de fama em que cantava, dava autógrafos e era abordado pelas pessoas. Admite que tinha mais facilidade em can-

e pinturas únicos. “São notas daquilo que gostaria que me tivessem ensinado em pequena, sobre os povos de África”, explica. Sentiu a necessidade de compilar esta informação “porque gostava de saber a história do seu país” e também de modo a construir uma memória daquilo que pertence a África e do que foi o seu passado. Deseja que, enquanto livro vivo, consiga transmitir às pessoas a Angola que conheceu, uma Angola viva e com uma história própria, que também conheceu a paz e a harmonia antes dos tumultos e guerras civis dos últimos anos. A ancestralidade deste pequeno território também está bem patente nas histórias de Hermínia Soares e Abel Vicente, ambos livros vivos. Os dois dedicados à vida rural, desde tenra idade sabem o que é trabalhar de sol a sol e ao ritmo das

“TEMOS DE ESTAR SATISFEITOS COM AQUILO QUE SOMOS, COM AQUILO QUE TEMOS. TAMBÉM PODEMOS DAR AOS OUTROS AQUILO QUE ELES NECESSITAM DE TER.” Manoel Martins Noura tar do que tem em falar, mas recontar a sua história fá-lo sentir-se valorizado. Esta biblioteca ganha o seu valor e dimensão porque “as pessoas se sentem muito valorizadas por poderem contar a sua história, por poderem criar outros laços na comunidade”, garante Ana Ngom. Os próprios livros passam por um processo de transformação ao ouvirem as histórias uns dos outros. Afinal, este processo também os transforma. Ao darem de si, num diálogo aberto com o leitor, expondo memórias, pensamentos e experiências, também são alterados pela comunicação e leitura que o outro faz. Manoel Noura, outro livro vivo, é pintora de arte africana e transmite, através das suas pinturas, as paisagens e as cores quentes de um outro continente e da vida das tribos. Traz consigo um livro da sua autoria, uma preciosa monografia que foi concebendo ao longo dos anos, na qual reúne saberes

estações. A Dona Hermínia, como é conhecida na vizinhança, já era queijeira em 1974 e o seu marido era pastor. De acordo com Hermínia, teve um rebanho bastante alargado, com mais de mil ovelhas. O pastoreio era feito nos terrenos baldios da periferia da cidade que, com o passar dos anos, foram diminuindo consideravelmente. Já Abel Vicente trabalhava numa das últimas quintas ativas da Ameixoeira – a Quinta da Comenda. É neste espaço que Abel ainda conserva alguma da ruralidade da região. Na quinta ainda mantém árvores de fruto e cuida de vários animais. E não se espante, se ao chegar à Ameixoeira se cruzar com o seu rebanho, pois ainda hoje Abel leva as ovelhas para os terrenos baldios na zona. Terrenos que outrora foram campos férteis e que tão bem caraterizaram esta paisagem, sendo um aprazível local de veraneio e de passeio para escapar aos ares da cidade.

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Mas, continuando a viajar no tempo, não é só o facto de ter sido campo e de terem existido quintas que carateriza esta região. Os vestígios desta ruralidade acompanham os nossos passos à medida que avançamos pelas ruas e vielas mais antigas da Ameixoeira. Esses são os mais evidentes, presentes nos edifícios que se vão deixando apagar pelo tempo. Mas existem outros, que não estão onde o olhar alcança. Em muros, nas fachadas das casas e até nos terrenos baldios, existem vestígios do que em tempos foi um local totalmente submerso, abundante de vida exótica e que evidencia um clima e paisagem bem diferente do atual. E foi através de um livro vivo que foi possível conhecer melhor esse passado. Mário Cachão, professor do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, colabora desde 2009 em atividades de valorização do património geológico e paleontológico no âmbito do projeto Tesouros da Ameixoeira, coordenando no território diversas atividades que envolvem os fósseis. A biblioteca de livros vivos é uma ferramenta para dar a conhecer histórias únicas, colocando as pessoas em comunicação, promovendo a troca de experiências e, por vezes, até uma certa cumplicidade, mesmo quando as esferas dos seus mundos à partida não se cruzariam. Muitos dos livros vivos que compõem esta biblioteca tiveram já oportunidade de participar em momentos comunitários, mas também em eventos fora da freguesia, como no Africando, do Museu de São Roque, no Fórum Social, em Palmela, ou na Feira do Livro de Lisboa. Na última edição desta feira foi possível conhecer os fósseis da Ameixoeira e o seu valor enquanto património local e paleontológico, pela voz do professor Mário Cachão; ouvir a música cantada por Joari (livro vivo) e os Tribo Urb ou sentir a energia do kick-boxing, com Miguel Reis (livro vivo) e a sua equipa. Quem visita a Ameixoeira não fica indiferente às histórias que ela tem para contar. Pode ficar maravilhado com a história militar da vida de Ansumane Dabó (livro vivo), sentir a força de viver

de Carina Brandão (livro vivo) ou a energia do shiatsu pelas mãos do Tiago Santos (livro vivo). E sentirá, certamente, curiosidade em conhecer a Associação Juvenil Tropa da Artes, fundada por Rosa Miguel (livro vivo). Deixe de lado ideias preconcebidas, saia da zona de conforto e deixe-se envolver por uma história única, contada num ritmo próprio, que vai interagir consigo e que certamente o marcará para sempre. O que espera para vir descobrir esta biblioteca de livros vivos?

OS 13 LIVROS VIVOS que compõem a biblioteca desde 2012

NOTAS 1. ESPÍRITO SANTO, Eugénio do – Ameixoeira, um núcleo histórico. Lisboa: Edição de autor, 1997. 2. BISMARK, Ana; SERRA, Graça; MARQUES, Marlene & FERNANDES, Olímpio – Os Bairros do Vale da Ameixoeira – Auditoria urbana. Lisboa: Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, 2011.

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PISAR O RISCO HISTÓRIA(S) W+ A Unidade W+ é uma unidade de saúde direcionada para o trabalho com população de risco (vulnerabilidade psicossocial). O core é o apoio psicológico, sendo este o ponto de partida para uma intervenção multidisciplinar em matéria de saúde. Texto de Isabel Queiroz de Melo1 com Sónia Santos2, Ana Botica2 e Sónia Lourenço2 [1. COORDENADORA DA UNIDADE W+; 2 COORDENADORAS DE NÚCLEO NA UNIDADE W+_SCML]

ERA UMA VEZ… uando o meu pai vem assim temos todos de ficar muito quietinhos” (7 anos). “Eu não sabia que era nada de mal, ele dizia que era um segredo dos dois” (8 anos). “Não sei para que é que nasci, a minha mãe diz que naquele dia a abortadeira devia estar com os copos” (16 anos). “Consigo fazer uma ligação direta num carro em

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menos de trinta segundos, foi o meu pai que me ensinou” (17 anos). “Qual é o problema de traficar? Eu não sou como os outros papalvos que são apanhados… eu sei o que faço!” (14 anos). “Não vou à escola há quatro anos porque ninguém me inscreveu… Ainda bem, porque eu não gosto de estudar” (15 anos). “O que me dá pica é beber shots até cair para o lado” (13 anos).

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“O meu namorado não pode usar preservativo porque é alérgico” (14 anos). “Quando estou com raiva apanho putos betos ao pé da escola e dou-lhes nas fuças” (13 anos). “Ele quando me bate não é ele, é o álcool” (50 anos). “Sim, fui abusada… Mas não é esse o destino de todas as mulheres?” (48 anos). “Ela é casada comigo, como é que isso pode ser violação?” (34 anos).

Estes são fragmentos das histórias que povoam o universo da missão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e que nos fizeram alargar a malha dos paradigmas científicos, esticando-os até ao limite. E assim começámos a crescer, pisando o risco (calculado), pelo caráter inovador que continha, em nome das reais necessidades dos pedaços de história que acima relatámos. Encontrar respostas para as pessoas implica amplitude e profundidade de olhar. Este esbarra

APRESENTAÇÃO pública do grupo de Teatro terapêutico

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O ATENDIMENTO PERSONALIZADO, A DISPONIBILIDADE, A CONFIDENCIALIDADE, A GRATUIDADE, A DESBUROCRATIZAÇÃO E A ACESSIBILIDADE SÃO FATORES-CHAVE NA CONSTRUÇÃO DE UM SERVIÇO COM RESPOSTAS ESSENCIALMENTE FOCADAS NAS ÁREAS DA INTERVENÇÃO PSICOLÓGICA E DA SAÚDE SEXUAL E REPRODUTIVA” muitas vezes com limitações externas e internas, presas a constructos rígidos e distanciados da flexibilidade e complementaridade integrativa imprescindível à individualidade da resposta. E ASSIM, EM 2003, COMEÇÁMOS A PISAR O RISCO… Eu e a enfermeira Saraiva Marques fomos desafiadas para criar uma resposta inovadora, capaz de responder às necessidades, em matéria de saúde, dos adolescentes residentes/apoiados em equipamentos da Santa Casa ou pertencentes a famílias com fragilidade psicossocial. O atendimento personalizado, a disponibilidade, a confidencialidade, a gratuidade, a desburocratização e a acessibilidade são fatores-chave na construção de um serviço com respostas essencialmente focadas nas áreas da intervenção psicológica e da saúde sexual e reprodutiva. Um serviço que, em pouco tempo, consegue uma adesão surpreendente por parte dos adolescentes. São então desenvolvidas respostas inovadoras, fruto da consciência da importância determinante dos processos psicológicos na adesão a comportamentos protetores da saúde. O serviço

estrutura-se criando respostas em função das necessidades e do perfil dos jovens, que vai sendo percebido no contacto com os adolescentes (grupos terapêuticos e de suporte; sessões de educação para a saúde na comunidade; colónias de férias e atividades de verão de educação para a saúde com utilização de técnicas expressivas, sociodramáticas e psicodramáticas; recurso à informática como potenciadora da adesão, etc.). Pisando o risco, começámos a inovar, nomeadamente nos seguintes aspetos: Triagem feita pelo psicólogo A entrevista clínica permite uma avaliação de fatores intrapsíquicos, determinantes não só na adesão como na abrangência da avaliação. Trata-se de um momento-chave de acolhimento, potenciador da vinculação ao serviço, no qual o psicólogo, através dos seus paradigmas concetuais, começa a delinear o plano psicoterapêutico

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ATIVIDADE de verão – Educação para a Saúde

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1, 2, 3: Teatro terapêutico

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individual. Nesta altura é também avaliado o nível de risco psicológico, sendo o ponto de partida essencial para a futura intervenção. Porta de entrada giratória O utente resistente a respostas de saúde pode aceder ao serviço começando (após avaliado em triagem) por frequentar respostas não convencionais (tais como atividades de verão, futebol e natação, informática, entre outras). Estas respostas constituem-se como elemento de vinculação à Unidade e como facilitadoras da adesão às respostas terapêuticas. Com estas “portas” pretende-se ir ao encontro dos jovens egossintónicos no que se refere aos seus comportamentos de risco, criando distonia geradora da consciência da necessidade de mudança. Plano (psico)terapêutico individual (PTI) Elaboração de um PTI no âmbito de uma equipa interdisciplinar, porque encaramos cada utente como uma realidade única. Assim, os encaminhamentos

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efetuados obedecem a uma lógica de criação de respostas de acordo com as necessidades de cada um e não mediante um enquadramento em respostas previamente formatadas. Metaforicamente, podemos dizer que o nosso “menu” contempla também a possibilidade de criar uma “ementa” de acordo com aquilo que o utente precisa. Intervenções na comunidade Por vezes, quem mais precisa de cuidados de saúde é também quem menos recorre aos mesmos. Por isso, a Unidade W+ contempla possibilidades de intervenção na comunidade. 81

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CRONOLOGIA 2003 Criação do projeto www.saude.jovem. Protocolo com Fundação Calouste Gulbenkian. 2004 Protocolo de colaboração com Unidade de Adolescentes do Hospital de D. Estefânia. Realização do estudo do ISCTE “Avaliação dos fatores de risco/proteção e do suporte social institucional na área de saúde com jovens no âmbito da SCML”. 2006 O www.saude.jovem passa de projeto a programa. 2007 Convite para elaboração de um livro sobre a atividade desenvolvida pelo W como um exemplo de boas práticas (Pró-Ordem dos Psicólogos). O programa passa a Unidade de Saúde W Jovem. 2010 O serviço é aberto a todas as faixas etárias. A Unidade passa a chamar-se Unidade W+. 2011 Organização do serviço em três núcleos: crianças, adolescentes, adultos. 2014/2015 Início de colaboração na unidade curricular “Introdução à Pediatria e Saúde na Adolescência” aos alunos do 4.º ano de Medicina da NOVA Medical School / Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Protocolo com o Medical School / Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Realização das Jornadas Pisar o Risco na Faculdade de Psicologia.

Recurso a mediadores Estes mediadores são utentes da Unidade W+ que, pelo seu perfil e percurso terapêutico, passam a intervir com os seus pares, promovendo assim a mudança de comportamentos. Esta metodologia foi já utilizada em diversos contextos (sessões de educação para saúde em escolas e na comunidade, atividades de verão, aulas ministradas na Unidade a alunos de medicina, grupo de teatro terapêutico, etc.). Consideramos que, quer a intervenção na comunidade quer a utilização de mediadores são aspetos inovadores, pelo contexto em que se inserem e pela conjugação de metodologias utilizadas. PORQUE PISÁMOS O RISCO? Adolescentes Jovens, presos em terra de ninguém, entre ser adulto e ser criança… Jovens, corajosamente escondidos atrás da zanga…

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Jovens que pisam o risco à espera que alguém os agarre… Porque é lá (no risco) que estão os adolescentes que, ao longo dos anos, chegam ao W. As suas autonarrativas foram-se desenvolvendo em contextos sociofamiliares complexos, devolvendo-lhes de forma redutora autoconceitos empobrecidos e unidimensionais. A presença de múltiplos fatores de risco inerentes a esta faixa etária (consumos, gravidez precoce, relações sexuais desprotegidas, delinquência, automutilações, abusos sexuais, violência física e psicológica, negligência, bullying, etc.) é potenciada pela patologia do seu contexto sociofamiliar. Existe um grande número de jovens que abandonaram a escola, fruto de um processo de não adaptação ao sistema escolar e que se encontram totalmente desocupados. Pela sua fragilidade pessoal, realidade familiar desestruturante e patologia social, em que se repetem ciclos de violência, delinquência e degradação, são alvos fáceis de aliciamento para comportamentos desviantes. Há ainda aqueles

ELABORAÇÃO DE UM PLANO (PSICO)TERAPÊUTICO INDIVIDUAL NO ÂMBITO DE UMA EQUIPA INTERDISCIPLINAR, PORQUE ENCARAMOS CADA UTENTE COMO UMA REALIDADE ÚNICA” que se encontram totalmente sozinhos, vítimas dos mais diversos tipos de abandono e desintegração, e cuja propensão à identificação com um gang constitui o último reduto de pertença. Muitos têm um funcionamento borderline, sempre a pisar o risco, o que exige uma resposta adaptada às suas caraterísticas pessoais (diferenciada e individualizada). Por isso, o núcleo da adolescência da Unidade W+ vai criando, anualmente, diferentes grupos adaptados às necessidades dos adolescentes que vão chegando. É o caso dos projetos:

GRUPO terapêutico “Casa na árvore”

EDUCAÇÃO para a saúde Projeto Ocup@-te

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GRUPO Biodanzza adultos

EDUCAÇÃO para a saúde Comunidades

Liga-te e Liga-te júnior – para potenciar a adesão –; Bora Lá, etc.). Outros ainda dos grupos que vão sendo mantidos pela adesão e transversalidade (teatro terapêutico, ExpressArte, etc.). Naturalmente, esta multiplicidade de riscos exige uma convergência de saberes. Assim, a pluralidade de respostas (psicologia, enfermagem, medicina geral e familiar, serviço social, terapia ocupacional, etc.), a par de uma estreita articulação com os parceiros (Ação Social, Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, Instituto de Reinserção Social, escolas, Hospital de Dona Estefânia, etc.), é condição essencial na criação de uma real e consistente rede de suporte. PISÁMOS NOVAMENTE O RISCO… Quando, em 2010, por decisão superior, construímos respostas para crianças e adultos. Crianças Crianças irrequietas que não podem parar sob o risco de não identificarem o perigo. Crianças que não conseguem aprender porque ainda esperam o colo que nunca tiveram. Crianças que aceitam uma aproximação abusiva porque nunca ninguém lhes deu nada… As solicitações para intervirmos na área da infância foram ganhando cada vez maior expressão. A elevada procura da resposta W+ para a infância levou a que se tivesse de priorizar os acompanhamentos dos 6 aos 12 anos. Estávamos cientes da necessidade de atuar em idades mais precoces,

principalmente tendo em conta as fragilidades em termos dos padrões relacionais e de vinculação da população que atendemos. Assim, com a forte convicção de que intervir na área da infância deve ser primordialmente prevenir, em 2013/2014 começámos a dar os primeiros passos de intervenção na primeira infância (dos 0 aos 3 anos), incidindo o foco sobre a promoção de relações de vinculação seguras e saudáveis entre cuidadores e bebés. Como caraterizar o trabalho com as crianças e suas famílias? É essencialmente um trabalho em rede. Em rede com as famílias ou seus substitutos, com as outras valências da Unidade W+ (enfermagem, terapia ocupacional, serviço social, atividades desportivas), com os contextos educativos e com as várias equipas técnicas que atuam no terreno (da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e de outras entidades). Este trabalho visa potenciar os fatores protetores e diminuir os fatores de risco das famílias, ajudando-as a criar as condições facilitadoras do desenvolvimento das suas crianças. Neste caminho partilhado pretendemos fortalecer a(s) resiliência(s), para que cada família possa desenvolver respostas cada vez mais positivamente adaptativas perante a adversidade acentuada com que têm de lidar.

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PROJETO Ocup@-te 2015

Adultos Mulheres deprimidas que acham que os homens que lhes batem gostam delas e não sabem expressar de outra forma os seus ciúmes, homens ansiosos que não sabem expressar de outra forma as suas inseguranças e acham que as mulheres são “suas”, crianças que assistem a isto tudo como se fosse a normalidade… Desde 2004 a Unidade contava na sua equipa com uma psicóloga que prestava apoio psicológico exclusivamente aos familiares/cuidadores dos adolescentes. A partir de 2010 desenvolve-se o núcleo de adultos, que passa a responder a toda a população com mais de 25 anos. Na maioria dos casos, estes adultos chegam-nos com um elevado grau de sofrimento psicológico e uma significativa vulnerabilidade psicossocial. Os ciclos de patologia transgeracional não foram quebrados e a vida destas pessoas ressente-se disso. Temos em consulta um número expressivamente mais elevado de mulheres do que homens, resultante de múltiplos fatores e ao qual não é alheio o elevado número de famílias monoparentais femininas e o universo da violência doméstica e de género. Trabalhamos no sentido de prevenir a reprodução de padrões comportamentais de risco e de

OS MEDIADORES SÃO UTENTES DA UNIDADE W+ QUE, PELO SEU PERFIL E PERCURSO TERAPÊUTICO, PASSAM A INTERVIR COM OS SEUS PARES, PROMOVENDO ASSIM A MUDANÇA DE COMPORTAMENTOS” promover padrões alternativos que possibilitem o interromper da transgeracionalidade da patologia. Ao acompanhar adultos, procuramos saber do seu contexto sociofamiliar, da forma como olham os filhos e se projetam neles. Ao intervirmos junto destes adultos estamos também a intervir preventivamente junto daqueles de quem cuidam. O núcleo tem como principal área de intervenção a psicoterapia de apoio, possuindo outras estratégias de intervenção, de entre as quais destacamos os grupos terapêuticos e de suporte, o aconselhamento em saúde e as sessões de formação/informação em saúde, bem como aos ateliers psicoterapêuticos, workshops e sessões de educação para a saúde (dinâmicas de grupo em contexto institucional da Misericórdia de Lisboa e na comunidade). 85

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ATIVIDADES verão Crianças

EM 2013/2014 COMEÇÁMOS A DAR OS PRIMEIROS PASSOS DE INTERVENÇÃO NA PRIMEIRA INFÂNCIA, INCIDINDO O FOCO SOBRE A PROMOÇÃO DE RELAÇÕES DE VINCULAÇÃO SEGURAS E SAUDÁVEIS ENTRE CUIDADORES E BEBÉS” O QUE NOS SEGURA (QUANDO PISAMOS) O RISCO? Segundo a Organização Mundial da Saúde, o conceito de saúde refere “um completo estado de bem-estar físico, mental e social”. Assim, integra não só os aspetos individuais como também interpessoais e contextuais, pelo que se torna imprescindível uma intervenção global. Esta intervenção passa necessariamente pela criação de respostas inovadoras e adaptadas às necessidades específicas das populações.

Não nos podemos limitar às respostas tradicionais, pela verticalidade da abordagem que estas implicam. É tempo de alargar horizontes, conjugando saberes e concretizando sinergias, para encontrar respostas que minimizem os angustiantes condicionalismos que pesam sobre o nosso micro e macrocosmos. Pisámos o risco porque, conhecedores de um vazio de respostas, livres do medo do não reconhecimento ou da incompreensão, apostados na urgência de tantas situações limite e portadores de know how, acreditámos que era possível. Corremos o risco de não ser fácil encaixar-nos, rotular-nos. Trata-se de um serviço ímpar, controverso – como tudo o que é novo e desacomoda – e reconhecido pelos pares com quem mantemos articulação multidisciplinar próxima. E, acima de tudo, reconhecido pelas pessoas (utentes). Deste reconhecimento surge a riqueza resultante da integração de vários modelos terapêuticos, de acordo com a natureza dos casos e a certeza de que “o terapeuta vale mais por aquilo que é do que por aquilo que sabe” (João dos Santos). DIFERENTES OLHARES, O MESMO DESAFIO Sabemos que cada pessoa encerra em si uma multiplicidade de fatores (e de necessidades). Assim, o nosso olhar tem de ser integrador e integrativo. Sabendo da imprescindibilidade dos vários saberes, a Unidade tem ainda – além da resposta na área da psicologia – enfermagem, serviço social, medicina geral e familiar, psiquiatria, terapia ocupacional, animação desportiva/ lúdico-formativa, consoante as necessidades dos utentes das diferentes faixas etárias. ONDE NOS LEVOU PISAR O RISCO? A construir um espaço sentido como pertença, onde é possível fazer a experiência da confiança. Em pessoas cujo padrão relacional básico é o da desconfiança, a possibilidade de se poder abrir num espaço confidencial, de criar raízes com alguém, de fazer laços ou tapar brechas pode ser crucial, tanto mais quão fragilizado se está.Permitir e facilitar a experiência de se descobrir como alguém autónomo,

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UNIDADE W MAIS W+

TRIAGEM • Psicólogo • Enfermeiro • TSSocial

Avaliação e Deteção de Necessidades

EQUIPA MULTIDISCIPLINAR Psicologia Medicina Enfermagem Terapia Ocupacional Serviço Social Animação Sociocultural

Plano (Psico) Terapêutico Individual/Encaminhamentos

Encaminhamentos Externos

• Unidades de Saúde SCML • Ação Social • HDE

COMUNIDADE

Internos para respostas W Núcleos (Crianças, Adolescentes, Adultos/Idosos)

Individuais: • Psicoterapia de apoio • Aconselhamento em Saúde • Consultas Médicas • Cuidados de Enfermagem • Atendimento Social • Terapia Ocupacional • Atividades Lúdico-Formativas

Grupo: • Grupos terapêuticos e de Suporte • Sessões de Educação para a Saúde • Projeto Ocup@-te + • Atividades Desportivas • Formação em Software e Hardware • Atividades Lúdico-Formativas • Formação de Mediadores

• Formação e Ensino • Sessões de Educação para a Saúde na Comunidade Ação Social Saúde Escolas Faculdades

Mediadores/Voluntariado

sentir-se gostado e permitir-se gostar de si próprio, na dor e na alegria conjunta de ver despontar um “eu” que surge do mais profundo de si mesmo, que se vai deixando emergir na gestação lenta de um processo partilhado de descoberta: o caminho para “estar bem” (biopsicossocial). Possibilitar à pessoa uma experiência integral e plenamente consciente das suas reações, sentimentos e emoções; experienciar a própria experiência, entrar na dança livre da relação sobre o terreno firme de uma formação técnico-científica, para poder usufruir do prazer de existir com um “tu” que é um caminho para a descoberta de si mesmo e da alteridade. DESAFIOS DE PISAR O RISCO Existem vários indicadores que apontam para o sucesso da intervenção do W+: o elevado nú-

mero de inscritos; aqueles que vêm por iniciativa própria; o grau de adesão destes utentes a consultas, grupos e sessões de educação para a saúde que, de outra forma, não teriam acesso a qualquer resposta em saúde. Mas o desafio é alargar ainda mais a malha da inovação, de forma que todos aqueles que caíram, que nos escaparam, que perdemos, também possam vir a encontrar o seu espaço. Por isso, precisamos de continuar a aprender. Com os nossos utentes, com os nossos erros, com os nossos colegas e parceiros. Não temos a pretensão de ser perfeitos, temos o desejo de chegar mais longe. Neste sentido, deixamos o convite para o pensar em conjunto. Porque só partilhando podemos, em segurança, pisar o risco.

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UNIDADE MÓVEL JUVENIL

AÇÕES E INTERVENÇÕES NA COMUNIDADE Texto de Alexandra Balsas, Ana Lúcia Vitorino e Sara Martins [ENFERMEIRAS NA UNIDADE MÓVEL JUVENIL, NÚCLEO SAÚDE MAIS PRÓXIMA_SCML]

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A unidade móvel juvenil promove, no terreno, a vigilância regular de saúde através de consultas de enfermagem e ações de sensibilização junto da população do distrito de Lisboa. A equipa tem verificado que, em bastantes casos, não estão presentes muitos dos hábitos que permitem ter uma vida saudável e que devem ser adquiridos o mais cedo possível.

O

Núcleo Saúde Mais Próxima da Misericórdia de Lisboa surgiu em maio de 2012, inicialmente como um programa itinerante que ia (e continua a ir) ao encontro das pessoas dos bairros da cidade de Lisboa, com o intuito de as sensibilizar para a importância de fazer vigilância de saúde e prevenção das principais patologias crónicas que afetam os portugueses, através de rastreios de saúde. Estes rastreios são desenvolvidos por enfermeiras em unidades móveis que, a cada dois meses, abordam uma patologia diferente. Em 2013, após um ano de atividade, revelou-se também importante dar resposta na área da infância e juventude, visto ter sido detetado que, em muitos casos, a vigilância de saúde também não era feita nestas faixas etárias. Assim, após alguns meses de preparação, a unidade móvel juvenil entra em atividade em setembro, tendo como população-alvo crianças e jovens dos 0 aos 18 anos. As atividades foram direcionadas para diferentes áreas, nomeadamente para avaliar hábitos alimentares (número de refeições diárias, consumo de frutos e legumes, consumo de bebidas açucaradas, quantidade de água ingerida diariamente, consumo de laticínios, aleitamento materno, consumo de alimentos ricos em açúcares e gorduras), hábitos de higiene (frequência de higiene oral, uso de fio dentário, acompanhamento no dentista/higienista oral), hábitos de atividade e hábitos de repouso. Em complemento, na consulta de enfermagem avaliou-se igualmente o peso, comprimento/altura e índice de massa corporal (IMC); tensão arte-

rial, glicemia e colesterolemia capilar total; foram calculados e avaliados os percentis de desenvolvimento; fez-se a observação física; fez-se o rastreio oral (observação geral do interior da boca), o rastreio visual (acuidade visual ao longe com recurso a escala optométrica, testes de Hirschberg, Brückner, Ishihara, posições do olhar) e o rastreio auditivo (observação dos canais auditivos externos). No entanto, é de salientar que estas atividades só foram desenvolvidas mediante autorização prévia do encarregado de educação e de acordo com a idade da criança/jovem. A anamnese é feita através de um questionário aplicado aos encarregados de educação ou a jovens com mais de 12 anos sobre dados demográficos como a data de nascimento, sexo, etnia, escolaridade, vigilância de saúde, estado do Plano Nacional de Vacinação (PNV) e número de pessoas do agregado familiar. Neste sentido, avaliou-se igualmente os tipos de família a que as crianças/ jovens pertencem, porque a família é o primeiro local de socialização. É no seio da mesma que se aprendem as regras sociais e as caraterísticas da cultura onde se está inserido, tendo por isso uma grande influência nos hábitos de saúde. Segundo diversos autores, como Hanson (2005) e Relvas (2002), referidos por Figueiredo (2012), existem vários tipos de família. Para esta análise optou-se por considerar família nuclear (pai, mãe e filhos apenas dessa relação), família alargada (família nuclear mais outros elementos da família materna e/ou paterna), família monoparental (apenas um progenitor a viver com os filhos), família reconstituída (após separação do

UNIDADE móvel juvenil

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A UNIDADE MÓVEL JUVENIL ENTRA EM ATIVIDADE EM SETEMBRO DE 2013, TENDO COMO POPULAÇÃO-ALVO CRIANÇAS E JOVENS DOS 0 AOS 18 ANOS”

TABELA 1 – Necessidade de água ao longo da vida Fonte: Instituto de Hidratação e Saúde (IHS), 2008.

casal um dos membros volta a criar uma nova família onde podem estar também inseridos os filhos do novo cônjuge). Consideraram-se também as crianças/jovens que vivem institucionalizadas e as que vivem apenas com os tios e/ou avós. Ao longo destes anos de atividade, verificou-se que o tipo de família mais comum é a nuclear. De acordo com o Portal da Saúde (2009), as doenças cardiovasculares – das quais fazem parte a Diabetes mellitus (DM), a hipertensão arterial (HTA) e a hipercolesterolemia (HC) – são responsáveis por cerca de 40% dos óbitos em Portugal e são hereditárias. Assim, é pertinente conhecer estes antecedentes familiares, juntamente com a existência de patologia ocular. Presentes em muitas das situações, estas patologias são igualmente, em muitos casos, hereditárias. Assim sendo, importa que desde cedo se inicie a sensibilização, no sentido de prevenir estas doenças ou atuar o mais precocemente possível para evitar repercussões. A vigilância de saúde tem um papel fundamental na prevenção de doenças. Contudo, verificou-se pelas respostas dos pais/encarregados de educação que, muitas vezes, esta é confundida com idas às urgências em caso de doença aguda. Por vezes, apesar de conhecido

FEMININO

MASCULINO

Crianças (2 a 3 anos)

1L

5 copos

1L

5 copos

Crianças (4 a 8 anos)

1,2 L

6 copos

1,2 L

6 copos

Crianças (9 a 13 anos)

1,4 L

7 copos

1,6 L

8 copos

Adolescentes e adultos

1,5 L

8 copos

1,9 L

10 copos

o verdadeiro significado de vigilância de saúde, esta era descurada. Parte da vigilância de saúde inclui a vacinação. As vacinas são um meio muito mais eficaz a salvar vidas e a prevenir doenças do que qualquer tratamento médico. Em Portugal, a Direção-Geral da Saúde (DGS) definiu um programa universal, gratuito e acessível a todos: o PNV. Nele são apresentados esquemas de vacinação aconselhados, mas que não são obrigatórios. Todavia, “para que o PNV continue a ser um êxito é necessário manter elevadas coberturas vacinais […] para todas as vacinas do Programa”1. No entanto, dado o contexto de atuação, tem sido difícil a obtenção das informações relativas a este aspeto, porque não nos é facultado o acesso ao boletim de vacinas. Conforme referido pela DGS (2013), “o padrão de crescimento, a composição corporal e o comportamento alimentar durante o 1.º e 2.º anos de vida são determinantes para a programação futura no que respeita ao estado nutricional e composição corporal”. Daí a importância do levantamento dos hábitos alimentares. A alimentação tem um papel fundamental na nossa qualidade de vida e no funcionamento do nosso organismo, sendo por isso muito importante adotar uma dieta saudável, variada, completa e polifracionada. A variedade e o equilíbrio entre os diferentes grupos alimentares da roda dos alimentos é a chave de uma alimentação saudável (DGS, 2012). No entanto, tem vindo a perceber-se que a população da zona de atuação da unidade móvel juvenil, na sua maioria, não cumpre estas recomendações. A água é um bem necessário e essencial para o nosso organismo, fazendo atualmente parte da roda dos alimentos. Posto isto, o Instituto de Hidratação e Saúde (2008) elaborou uma tabela de recomendações (tabela 1) sobre a quantidade de água que deve ser ingerida diariamente por indivíduos com idade igual ou superior a 2 anos, não existindo valores comensuráveis até essa idade. Com base nesta tabela, tem sido feito o levantamento das quantidades de

1. Direção-Geral da Saúde, 2012.

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AVALIAÇÃO da altura

água ingerida desde o início de 2014. Todavia, este é um assunto para o qual nem as crianças/jovens nem os encarregados de educação estão muito despertos. Assim, em muitos casos, a quantidade de água ingerida é inferior ao recomendado, apesar de nem sempre existir a noção disso. O leite e seus derivados devem fazer parte da alimentação das crianças/jovens, porque são parte integrante da roda dos alimentos. São ricos em proteínas de alto valor biológico, que fornecem nutrientes essenciais ao crescimento e ao bom desenvolvimento. Porém, nem todos são totalmente recomendados, visto conterem um alto teor de gorduras saturadas e colesterol (DGS, 2005). Mas um número ainda considerável de crianças/jovens consome regularmente lacticínios gordos, apesar de a maioria optar por meio-gordos. Para além da água e do leite, os sumos e refrigerantes são outras bebidas que fazem parte dos hábitos de um grande número de crianças/jovens

A QUANTIDADE DE ÁGUA INGERIDA É INFERIOR AO RECOMENDADO, APESAR DE AS CRIANÇAS/JOVENS E ENCARREGADOS DE EDUCAÇÃO NEM SEMPRE TEREM A NOÇÃO DISSO” (no inquérito nutricional aplicado averiguou-se o consumo de “refrigerantes com gás”, “sumos ou refrigerantes sem gás” e “leite com adição de chocolate/açúcar”). Todavia, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2015) reconhece que o consumo de grandes quantidades de açúcares livres2 ameaça a qualidade da dieta. Mais especificamente, as bebidas com elevado teor de açúcar têm sido apontadas como fator

2. “Incluem os monossacarídeos e os dissacarídeos adicionados aos alimentos e às bebidas pelo fabricante, pelo cozinheiro ou pelo consumidor, além dos açúcares naturalmente presentes no mel, nos xaropes, nos sucos de fruta e nos concentrados de sucos de fruta” (OMS, 2015).

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O ESTUDO DO INSA E DA DGS (2010) REVELOU QUE CERCA DE 90% DAS CRIANÇAS PORTUGUESAS COMEM DOCES E BEBEM REFRIGERANTES, PELO MENOS, 4 VEZES POR SEMANA” AVALIAÇÃO do perímetro cefálico

da redução da densidade óssea, como cariogénicas e aparentemente redutoras do controlo do apetite. Uma das justificações para esta última consequência é que os mecanismos fisiológicos de saciedade são supostamente menos eficientes após o consumo destas bebidas do que após a ingestão de alimentos sólidos (CARVALHO, 2014). Um estudo concluiu também que as crianças que bebem mais refrigerantes são mais propensas a desenvolver excesso de peso (OMS, 2003). O estudo COSI (2010), realizado pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e pela DGS, sobre o consumo de alimentos ricos em açúcares como doces e refrigerantes, revelou que cerca de 90% das crianças portuguesas comem doces e bebem refrigerantes, pelo menos, quatro vezes por semana. Estes dados ajudam

a tornar Portugal um dos países da Europa com maior número de crianças com excesso de peso, segundo a Comissão Europeia. Esta tendência é visível na população atendida por esta unidade móvel. Neste sentido, a recomendação firme da OMS (2015) é que ao longo de toda a vida a ingestão de açúcares livres seja baixa. Tanto em adultos como em crianças, esta deve corresponder a menos de 10% da quantidade de calorias totais recomendadas por dia. Ou seja, as calorias devem ser obtidas através de outros alimentos, de acordo com a roda dos alimentos, que não refrigerantes ou outros alimentos sólidos ricos em açúcares (que muitas vezes têm igualmente elevado teor de gordura). No inquérito alimentar avaliou-se o consumo de alimentos ricos em açúcares e gorduras incluídos nos seguintes grupos: 1) pães com chocolate e outros snacks doces, bolachas com creme, bolos; 2) folhados, batatas fritas, salgados, snacks fritos; 3) gomas, rebuçados, chocolates, gelados; 4) papas e farinhas lácteas ou cereais com mel/chocolate. Para a avaliação de cada um dos parâmetros antropométricos (peso, altura, perímetro cefálico e IMC) usaram-se as novas curvas de crescimento e percentis da OMS, de acordo com atualização do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (DGS, 2013). Os novos parâmetros definem que os percentis de IMC <3 são considerados representativos de magreza, percentis de IMC >85 e <97 são considerados representativos de excesso de peso e percentis de IMC > 97 representam obesidade. O Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral da DGS de 2005 menciona que apenas 33% das crianças com 6 anos de idade não apresentava cáries dentárias. Este mesmo programa revela também que 2,95% das crianças com 12 anos de idade possuíam dentes cariados, perdidos e obturados na dentição permanente. Os problemas de saúde oral podem estar relacionados com diversos fatores de risco, sendo alguns deles modificáveis e outros não. A composição química e a morfologia dentária têm vido a ser reconhecidas como determinantes para

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a suscetibilidade na formação de cárie dentária. Como principais fatores modificáveis temos, nomeadamente, o tipo de alimentação e uma higiene oral ineficaz ou inexistente. Alguns estudos demonstram que existe uma relação inversa entre a frequência da escovagem dos dentes e a prevalência de cárie precoce na infância. Além da frequência dos cuidados de higiene oral, é igualmente importante a idade com que se iniciam estes cuidados. Existem alguns estudos que nos revelam que as crianças que iniciam a escovagem dos dentes mais cedo apresentam menor prevalência de cáries na infância ou, quando apresentam cáries, estas são de menor gravidade (HARRIS et al., CHU et al., referidos por BORRALHO, 2014). A Ordem dos Médicos Dentistas (OMD), referindo a DGS, recomenda que a higiene oral seja feita duas vezes por dia, uma delas obrigatoria-

A AJUDA E SUPERVISÃO DE UM ADULTO NA ESCOVAGEM DOS DENTES É UM FATOR IMPORTANTE NA PREVENÇÃO E CONTROLO DE CÁRIES NA INFÂNCIA” mente ao deitar, independentemente da idade. A ajuda e supervisão de um adulto, nomeadamente pai e mãe, na escovagem dos dentes é um fator igualmente importante na prevenção e controlo de cáries na infância. Segundo a American Academy of Pediatric Dentistry, a supervisão dos pais na escovagem dos dentes é importante até cerca dos 7/8 anos de idade da criança. Tal como já referido, o tipo de alimentação pode ser responsável por contribuir para o aparecimento precoce de cáries na infância. Os microrganismos da

OBSERVAÇÃO da cavidade oral

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AVALIAÇÃO analítica (glicemia e colesterolemia)

É IMPORTANTE FAZER UM ESTUDO MAIS APROFUNDADO DO IMPACTE DAS AÇÕES DE ENFERMAGEM NAS ALTERAÇÕES DE HÁBITOS DE VIDA” flora oral aderem à superfície dentária criando a placa bacteriana. Se existe um consumo regular e/ou em excesso de alimentos e/ou bebidas açucaradas, esta placa bacteriana é continuadamente alimentada, favorecendo o seu aumento e propagação na superfície dentária. A quantidade de placa bacteriana existente à superfície dos dentes da criança pode ser um sinal preditivo de cárie precoce na infância. No que se refere à dieta cariogénica na criança, devem ser considerados diferentes fatores, nomeadamente a quantidade e a frequência da ingestão de açúcares, o tipo de substrato e a sua consistência e as caraterísticas da própria alimentação infantil.

De acordo com a OMS (2015), o termo “higiene refere-se a condições e práticas que ajudam a manter a saúde e a prevenir a disseminação de doenças”. Desta forma se percebe que a higiene corporal é uma prática que deve ser desenvolvida e aprendida desde logo e realizada frequentemente, em especial nas zonas do corpo que são mais propensas a acumular sujidade, como pés, mãos, genitais, axilas e virilhas. A higiene dos ouvidos deve ser feita sem que se introduza nada dentro do canal auditivo, porque este é revestido de pelos e glândulas que produzem o cerúmen (cera do ouvido) que tem propriedades microbianas e que vai saindo do canal de forma espontânea. Assim, a introdução de cotonetes dentro do canal para sua higiene está desaconselhada, porque vai afetar este sistema de defesa do organismo e originar a acumulação de cerúmen no interior do canal, o que pode levar, consequentemente, à sua obstrução. Esta situação foi verificada em vários casos.

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ANAMNESE Preenchimento do questionário de saúde

A atividade física é “igualmente percebida, atualmente, como um comportamento determinante da saúde e da capacidade funcional” (Observatório Nacional de Atividade Física e Desporto – ONAFD, 2011). Segundo a DGS, a atividade física regular fornece inúmeros benefícios (físicos, mentais e sociais) para a saúde das crianças e jovens, nomeadamente: menor probabilidade de virem a fumar, maior performance académica e promoção e desenvolvimento das capacidades sociais dos adolescentes. De uma forma mais detalhada, o ONAFD recomenda que, entre os 6 e os 17 anos, se pratique diariamente 20 a 30 minutos de atividade vigorosa (correr, subir e descer, saltar) e 30 a 40 minutos de atividade física de intensidade pelo menos moderada, perfazendo uma hora por dia. Para além desta atividade, também são aconselhadas atividades ou exercícios que promovam a melhoria da força muscular, flexibilidade e resistência óssea, a realizar duas a três vezes por semana. Por esta questão ser mais difícil de averiguar, muitas vezes considerou-se nos rastreios apenas os dias de prática de educação física na escola.

Por oposição, as horas passadas a ver televisão e a jogar videojogos no computador, telemóvel ou tablet, segundo o National Health Examination Survey II, Gortmaker et al. (1986-1990) e Dennison (2002), aumentam a prevalência de excesso de peso e o risco de obesidade. Troiano et al. afirmam também que a utilização de meios eletrónicos por longos períodos de tempo diminui as oportunidades para a prática regular de exercício físico (RIBEIRO, 2008). Segundo Wong e colaboradores (1992), referido por Setzer (2012), ver duas a quatro horas de televisão por dia aumenta 2,2% e 4,8%, respetivamente, o risco de vir a ter os valores de colesterol elevado. Porém, os dados do National Health Examination Survey II relevam que, em média, as crianças entre os 6 e os 11 anos passam 24 horas por semana a ver televisão (RIBEIRO, 2008). Em Portugal, um estudo de 1992 revelou que as crianças dos 1.º, 2.º e 3.º ciclos veem televisão, em média, durante três horas. Aqui não foram incluídas as horas passadas a ver filmes de vídeo ou a jogar videojogos no computador (MENDES e FERNANDES, 2003). O visionamento de televisão influencia de igual modo a qualidade de sono. O estudo de Calçado 95

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TABELA 2 – Número de horas de sono recomendadas por faixa etária *Nos recém-nascidos estas horas são ao longo de todo o dia. Fonte: Adaptado de LOUREIRO, CÂMARA e GOES, 2011, e Grupo de Estudos do Sono da Sociedade Brasileira de Pediatria, s.d.

IDADE

HORAS DE SONO DURANTE A NOITE*

Recém-nascido

10 a 18 horas

3 a 12 meses

9 a 12 horas

e comportamentos de risco entre jovens. Disponível em

1 a 3 anos

10 a 12 horas

http://repositorio-racs.famerp.br/racs_ol/vol-21-2/

3 a 6 anos

11 a 12 horas

6 a 12 anos

10 a 11 horas

> 12 anos

9 horas

BIBLIOGRAFIA CALÇADO et al. – Relação entre qualidade do sono

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et al. (2014), realizado a 234 adolescentes de ambos os sexos e idades entre os 11 e os 17 anos, denotou que o excesso de uso de aparelhos eletrónicos influencia diretamente a regulação do sono, principalmente devido ao excesso de exposição à claridade. O sono é uma função essencial a todos os seres humanos e as necessidades variam consoante a idade (tabela 2). Em média, as crianças/ jovens com que nos temos deparado dormem entre 10 e 12 horas diárias. Ao longo destes dois anos de atividade na unidade móvel juvenil apercebemo-nos de que, em bastantes casos, não estão presentes muitos dos hábitos que permitem ter uma vida saudável e que devem ser adquiridos o mais cedo possível. No entanto, este primeiro levantamento revela a importância de fazer um estudo mais aprofundado do impacte das ações de enfermagem nas alterações de hábitos de vida como ao nível do consumo frequente de alimentos ricos em açúcares e gorduras, da escovagem dos dentes, do número de horas de sono ou do número de horas passadas a usar aparelhos eletrónicos. Estes também são temas sobre os quais não existem muitos estudos aprofundados relativamente à população do distrito de Lisboa. Importa ainda referir que durante este tempo de atuação a equipa da unidade móvel juvenil tem acompanhado várias crianças ou jovens. Ou seja, são feitos vários atendimentos às mesmas crianças/jovens e é possível verificar, em alguns casos, o início da aquisição de bons hábitos de saúde que era importante quantificar, de forma a ser feita uma avaliação do trabalho até agora desenvolvido.

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| SAÚDE |

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| ORTOPEDIA |

CIRURGIA

DA MÃO

TRADIÇÃO E EXCELÊNCIA

Texto de Sílvia Silvério1 e Roxo Neves2 [1. RESPONSÁVEL PELA UNIDADE DE CIRURGIA DA MÃO; 2. DIRETOR DO SERVIÇO II, HOSPITAL ORTOPÉDICO DE SANT’ANA_SCML]

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| SAÚDE |

No trilho de uma tradição de pioneirismo, a Unidade de Cirurgia da Mão do Hospital Ortopédico de Sant’Ana continua a apostar na dinamização da subespecialidade. A incidência de patologias da mão e do punho que se regista nos dias de hoje assim o exige.

U

ma das caraterísticas que sempre pontuou o nosso hospital foi o pioneirismo. Quando nos anos cinquenta do século xx, em Portugal, a ortopedia estava ainda a dar os primeiros passos para se consolidar como especialidade cirúrgica, no Hospital de Sant’Ana, sob a direção de Arnaldo Rodo, o cirurgião Serra e Costa realizou uma das primeiras cirurgias da mão num doente com poliomielite. Em 1966 o mesmo médico organizou, no nosso hospital, as primeiras jornadas de cirurgia da mão, para as quais foram convidados os cirurgiões europeus mais prestigiados nesta área. Após esta reunião, Serra e Costa enviou para Inglaterra um dos seus especialistas, Buceta Martins, a fim de estudar com os mestres da altura. Com o seu regresso em 1975, e pela primeira vez em Portugal, dá-se início à consulta de cirurgia da mão, orientada inicialmente por Buceta Martins e depois com a colaboração de José Carlos Botelheiro. Este médico manteve a consulta e, mais tarde, o espaço físico da Unidade de Cirurgia da Mão, sempre com a colaboração dos vários internos que iam fazendo a sua formação no nosso hospital e que assim complementavam os seus estudos numa área tão específica. Com estes dois médicos inicia-se uma atividade científica muito prolífera, reconhecida no nosso país e também no estrangeiro. Realizam-se congressos e reuniões, publicam-se artigos científicos e, acima de tudo, cria-se uma “escola” de saber, de técnica e detalhes cirúrgicos feita de muitos anos de experiência. É esta herança que hoje mantemos viva, orgulhosos do nosso passado, querendo dinamizar e per-

HOJE EM DIA, A PATOLOGIA DO PUNHO E MÃO TEM UMA IMPORTÂNCIA ENORME EM TERMOS LABORAIS E DESPORTIVOS”

CONSULTA da cirurgia da mão

CIRURGIA da mão no HOSA

petuar esta subespecialidade. Desde há uns anos, a cirurgia da mão está integrada no Serviço II, cujo diretor, Roxo Neves, tem dado todo o apoio para a sua evolução, incentivando a realização de estágios dos médicos em formação dos outros serviços do hospital, bem como possibilitando a saída dos especialistas para formações e atualizações no estrangeiro em serviços de renome. 99

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| ORTOPEDIA |

UTENTE a realizar tratamentos na Unidade de Terapia Ocupacional

UTENTE a realizar tratamentos na Unidade de Terapia Ocupacional

Recentemente, a Unidade preparou um curso, realizado em março de 2016 no Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA), por ocasião dos 75 anos da consulta de cirurgia da mão, versando todos os aspectos ortotraumatológicos que foram tema de trabalhos científicos apresentados pela Unidade. Hoje em dia, a patologia do punho e mão tem uma importância enorme em termos laborais e desportivos. É fundamental dar respostas médicas e cirúrgicas a um leque vasto de patologias, algumas com origem no uso excessivo de tecnologia (computadores), nos exageros desportivos e como comorbilidades de uma população crescentemente envelhecida. No âmbito das consultas, a patologia da mão ocupa uma área importante, sendo observados, em média, setecentos doentes por semestre. Este espaço trissemanal está reservado ao diagnóstico de múltiplas patologias, do foro degenerativo, traumatológico e neurológico. Os doentes são enviados pelos seus médicos assistentes dos centros de saúde ou são encaminhados a partir das várias equipas que fazem serviço de urgência no Hospital de São Francisco Xavier. Também estamos a alargar o leque de patologia do foro neurológico, graças à colaboração privilegiada com o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão.

É FUNDAMENTAL DAR RESPOSTAS MÉDICAS E CIRÚRGICAS A UM LEQUE VASTO DE PATOLOGIAS, ALGUMAS COM ORIGEM NO USO EXCESSIVO DE TECNOLOGIA, NOS EXAGEROS DESPORTIVOS E COMO COMORBILIDADES DE UMA POPULAÇÃO CRESCENTEMENTE ENVELHECIDA”

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| SAÚDE |

Uma prática com muita tradição na consulta da mão é a realização de infiltrações, uma mais-valia na melhoria a curto prazo de um leque elevado de lesões inflamatórias e degenerativas. O tratamento cirúrgico é realizado maioritariamente em regime de ambulatório, o que permite rentabilizar o internamento e operar um grande número de doentes por dia, sendo a média anual superior a duzentos doentes. A realização de grande parte destas cirurgias de ambulatório é feita com recurso a anestesia local, troncular ou plexo. Esta iniciativa permite operar doentes com múltiplas complicações médicas que não podiam ser sujeitos a uma cirurgia de outra forma. Uma atividade com muita tradição no nosso hospital e que cresceu paralelamente a esta Unidade é a da fisioterapia e também a da terapia ocupacional. A colaboração com estas especialidades remonta ao início da consulta de cirurgia da mão feita por Buceta Martins, quando as terapeutas ajudavam na avaliação pré e pós-cirúrgica dos doentes.

UMA ATIVIDADE COM MUITA TRADIÇÃO NO NOSSO HOSPITAL E QUE CRESCEU PARALELAMENTE À UNIDADE DE CIRURGIA DA MÃO É A DA FISIOTERAPIA E TAMBÉM A DA TERAPIA OCUPACIONAL.”

UTENTE a realizar tratamentos na Unidade de Fisioterapia

Hoje em dia este serviço é coordenado pelo fisiatra Francisco Machado e dele também faz parte Maria Manuel Rebelo. A fisioterapeuta Alice Coutinho e a terapeuta ocupacional Catarina Reis Nobre coordenam uma vasta equipa, que realiza muitas técnicas de elevado grau de diferenciação, de uma forma personalizada e empenhada. Esta diferenciação dos terapeutas do nosso hospital tem gerado uma grande afluência de doentes para tratamento, o que atesta a qualidade do serviço prestado. Para este trabalho de excelência tem contribuído em muito a grande proximidade entre a Unidade de Cirurgia da Mão e as Unidades de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, partilhando a evolução clínica de muitos doentes seguidos em consulta e operados, numa perspetiva de melhorar a assistência e contribuir para o bem- estar do doente. 101

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| EMPREENDEDORISMO |

O EMPREENDEDORISMO É UM

VALOR

O testemunho do empreendedor João Pedro Tavares, presidente da Junior Achievement Portugal, sobre a experiência da aprendizagem do valor do empreendedorismo junto de 210 mil crianças e jovens desde 2005. Texto de João Pedro Tavares [MANAGING DIRECTOR DA ACCENTURE EM PORTUGAL, ANGOLA E MOÇAMBIQUE, PRESIDENTE DA JUNIOR ACHIEVEMENT PORTUGAL DESDE 2012, PRESIDENTE DA ACEGE DESDE OUTUBRO DE 2015 E MEMBRO DO CONSELHO CONSULTIVO DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN]

A

proveito esta oportunidade para vos deixar umas palavras de testemunho pessoal do que tem sido a minha experiência em múltiplas áreas, entidades e desafios e o que a vida me tem proporcionado. Entre as minhas responsabilidades está a de ser presidente da Direção da Junior Achievement Portugal1 que muito me orgulha e o faço em regime de voluntariado e em representação da minha empresa. A JUNIOR ACHIEVEMENT PORTUGAL A Junior Achievement Portugal é uma organização sem fins lucrativos, criada em setembro de 2005. É a congénere portuguesa da Junior Achievement, a maior e mais antiga organização mundial educativa. A apoiá-la estão os associados (empresas e outras instituições) que, através das suas quotas, donativos e recursos humanos, permitem o desenvolvimento do empreendedorismo junto das escolas de todo o país.

Criada nos EUA em 1919, a organização lança em 1963 um centro de operações regional na Europa, a Junior Achievement Europe (JA Europe). Atualmente, através de uma rede com mais de 130 mil voluntários empresariais e professores na Europa e 450 mil em todo o mundo, a JA fornece programas escolares e extraescolares para alunos dos 6 aos 25 anos. Está presente em 122 países e chega a mais de dez milhões de alunos, dos quais três milhões são europeus. A JA Portugal trabalhou, ao longo destes dez anos de atividade, para inspirar e preparar crianças e jovens em todos os níveis de ensino, assegurando uma educação empreendedora, do primeiro ciclo ao ensino superior. As experiências Junior Achievement no percurso académico dos nossos alunos asseguram o desenvolvimento contínuo de competências empreendedoras, de preparação para o mercado de trabalho e de literacia financeira.

1. Junior Achievement Portugal www.japortugal.org/

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| ECONOMIA SOCIAL |

SESSÃO do programa A Comunidade – EB Sá de Miranda, Oeiras (J.P.T. + aluno)

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A JUNIOR ACHIEVEMENT PORTUGAL TRABALHOU, AO LONGO DESTES DEZ ANOS DE ATIVIDADE, PARA INSPIRAR E PREPARAR CRIANÇAS E JOVENS EM TODOS OS NÍVEIS DE ENSINO, ASSEGURANDO UMA EDUCAÇÃO EMPREENDEDORA, DO PRIMEIRO CICLO AO ENSINO SUPERIOR” Os principais objetivos da JA Portugal passam por promover competências-chave como o espírito de equipa, liderança, capacidade de comunicação, responsabilidade e independência; expor os jovens a aspetos fundamentais da economia e dos negócios; desenvolver nos jovens um espírito empreendedor; abrir a mente dos jovens para o seu potencial intrínseco; promover a diversidade cultural e fortalecer a competitividade e inovação em Portugal, através de parcerias entre empresários, educadores e a organização. Uma das caraterísticas fundamentais dos programas das Junior Achievement é o envolvimento direto das pessoas do mundo empresarial, que, com o apoio dos professores, implementam os programas da JA Portugal. Os voluntários estabelecem a ponte entre a teoria aprendida na escola e a prática. Mas o foco está nas crianças e nos jovens, porque acreditamos que é aqui, ao longo do seu percurso académico, enquanto se formam como indivíduos, que as sementes das realizações futuras são lançadas. É neste momento que precisam do nosso encorajamento e apoio, enquanto exploram os seus talentos e motivações, enquanto testam as suas ideias e aplicam as suas competências.

A OFERTA PROGRAMÁTICA DA JUNIOR ACHIEVEMENT PORTUGAL Ensino básico Os primeiros anos escolares são cruciais para todo o percurso académico dos alunos. É uma fase em que os alunos se caraterizam pela vontade de descobrir, de explorar e de experimentar. Os programas da JA Portugal, recorrendo a esta vontade natural de incentivar os alunos, desenvolvem competências como a gestão do tempo, o gosto pelo risco, responsabilidade, cidadania, o trabalho em equipa, entre outros que, independentemente do percurso profissional destes alunos, vão ser caraterísticas diferenciadoras no mercado do trabalho. JA A Família 5 Sessões, 1.º ano (6-7 anos) JA A Comunidade 5 Sessões, 2.º ano (7-8 anos) JA A Europa e Eu 6 Sessões, 5.º e 6.º anos (10-12 anos) JA É o meu negócio 6 Sessões, 7.º e 8.º anos (13-15 anos) JA Economia para o sucesso 6 Sessões, 9.º ano (14-15 anos) Ensinos secundário e superior Criação de novos negócios, trabalho em equipa, criatividade e inovação são alguns dos temas abordados nos programas direcionados ao ensino secundário. Com o recurso a voluntários provenientes das mais variadas áreas, é possível estabelecer uma ligação entre a escola e o tecido empresarial, ao mesmo tempo que se trabalham competências para a empregabilidade que serão úteis para estes jovens na sua vida ativa. Braço Direito – Um dia no teu futuro 1 dia, 9.º-12.º anos (14-18 anos) JA A Empresa 1 Ano letivo, 10.º-12.º anos (16-18 anos) JA Start up programme 1 Semestre/1 Ano letivo, Ensino superior (19-26 anos)

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Após dez anos de atividade, a JA Portugal inquiriu ex-alunos que passaram pelos programas “JA Braço Direito”, “JA Creativity & Innovation Challenge”, “JA A empresa” e “JA Start up” no sentido de avaliar o impacte da ação da nossa organização neste segmento. O impacte dos programas é claro para os alunos: desenvolveram competências, que a maioria utiliza diariamente, reconhecem a importância do voluntariado e tornam-se também voluntários. O QUE DIZEM OS ALUNOS: “O falhanço faz parte do sucesso. Às vezes é preciso cair três vezes para alcançar o que se quer, mas essas quedas são lições de vida que guardamos para o futuro.” “Aprendi a sair da zona de conforto e a enfrentar o desconhecido.” “A vida é feita de escolhas, se não tiver sucesso, aprendo com os erros.”

“Tive um voluntário que nos deu sempre a entender que o problema não estava nos riscos – eles existiam sempre e o nosso trabalho era identificá-los e mitigá-los/contorná-los.” “Ao participar no programa, desenvolvi um espírito de aventura que não me trava perante incertezas, fazendo que não sinta medo de as enfrentar.”

SESSÃO do programa A Comunidade – EB Sá de Miranda, Oeiras (J.P.T. + Rita Bogalho, Programme Manager JA Portugal)

Os inquiridos revelam que a criatividade, a capacidade de ultrapassar obstáculos, a capacidade de lidar com a incerteza, o trabalho em equipa, a vontade de aprender, a capacidade de definir novas estratégias, a capacidade de avaliar o potencial de uma ideia, a relação com colegas e a capacidade de criação dum negócio foram os elementos onde positivamente se sentiram influenciados pelos programas da Junior Achievement. Os jovens que participaram em vários programas da JA Portugal ao longo do tempo demonstram um maior desenvolvimento na área 105

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FEIRA (I)limitada de Lisboa, no Centro Colombo. Iniciativa no âmbito do programa A Empresa da JA Portugal

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de competências não cognitivas. Por exemplo, os maiores desvios positivos face à média estão relacionados com uma maior competitividade, capacidade de falar em público e abertura a sair da zona de conforto. Uma análise do impacte dos programas ao longo do tempo revela que tem havido recentemente um maior foco no empreendedorismo. Os jovens que participaram há seis anos ou mais apresentam um desvio positivo em elementos como a capacidade de gerir a incerteza, liderança e trabalho em equipa; os jovens que participaram nos últimos três anos elencam maioritariamente elementos como a capacidade de identificar uma solução, compreensão das caraterísticas de um empreendedor e a capacidade de estabelecer parcerias. No período Pós-Junior Achievement em média, um em cada cinco participantes deu continuidade ao projeto desenvolvido no programa e a maioria destes projetos estão atualmente em fase de desenvolvimento. Um elemento fundamental para a sustentabilidade da organização é o envolvimento dos voluntários. Cerca de 42% dos jovens que participaram nos programas da JA Portugal integraram iniciativas de voluntariado posteriormente e metade deles contabilizou cerca de duzentas horas de trabalho voluntário. Independentemente do programa em que participaram, 61% dos alunos participantes dizem colocar em prática todos os dias o conhecimento adquirido com a Junior Achievement. Sinónimo da relevância que os programas da JA Portugal têm no percurso e nas vidas destes jovens. EMPREENDER POR MISSÃO A minha responsabilidade profissional primária é ser administrador de uma empresa de consultoria, sendo que tenho mais de 26 anos de experiência nesta área. É aqui que vivo os maiores desafios da minha vida profissional, em que cada dia é único, novo, distinto e desafiante. Mas não vivo esta realidade em sentido estritamente profissional, já que me é dada a oportunidade de me realizar

O FOCO ESTÁ NAS CRIANÇAS E NOS JOVENS, PORQUE ACREDITAMOS QUE É AQUI, AO LONGO DO SEU PERCURSO ACADÉMICO, ENQUANTO SE FORMAM COMO INDIVÍDUOS, QUE AS SEMENTES DAS REALIZAÇÕES FUTURAS SÃO LANÇADAS” enquanto pessoa e cidadão, sendo voluntário nos programas da Junior Achievement Portugal, entre outros. Sou ainda presidente da ACEGE, Associação Cristã de Empresários e Gestores. Mas isto não é ainda tudo, pois, mais importante ainda, sou casado e pai de quatro filhos e este contexto pessoal e familiar é central e representa uma das fundações naquilo que sou como pessoa, onde procuro viver os valores cristãos como base da minha vida. A vida é, um todo e para vivermos em liberdade, temos de o fazer com integralidade, considerando que cada componente é parte de um mesmo todo e contribui para ele de forma sustentada. Participar nos eventos e programas da Junior Achievement Portugal e contactar com tantos alunos, professores e voluntários representa para nós um sinal de enorme esperança no futuro. Nestes programas que promovem o empreendedorismo jovem tenho assistido a histórias de transformação de vida muito marcantes e definitivas. Tenho visto jovens a superarem-se e a surpreenderem em cada momento. A representarem o nosso país com enorme brio e valentia, a conquistarem novos territórios nas suas vidas e na vida dos outros, a darem a cara e a testemunharem os valores em que acreditam. Convivo com voluntários empresariais que conseguem o milagre de desdobrarem o tempo, os compromissos e com toda a carga de responsa107

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TENHO VISTO JOVENS A SUPERAREM-SE E A SURPREENDEREM EM CADA MOMENTO. A REPRESENTAREM O NOSSO PAÍS COM ENORME BRIO E VALENTIA, A CONQUISTAREM NOVOS TERRITÓRIOS NAS SUAS VIDAS E NA VIDA DOS OUTROS” bilidade profissional que carregam, se dedicam a apoiar jovens na geração de novas ideias e na concretização de propostas de enorme valor. Vejo professores e educadores extraordinários, cativantes, mobilizadores, entusiasmantes, que ganham um novo sentido nas suas vidas e na forma como vivem a educação como vocação e o empreendedorismo como um valor. Convivo com pais e famílias profundamente agradecidos e que, comovidamente, testemunham esta transformação nos seus filhos renovando um compromisso de os acompanhar e exortar para novas conquistas. Na verdade, ninguém nasce empreendedor mas aprende-se. E aprender é também um ato de disponibilidade, de confiança. E um sinal de enorme generosidade. Um sinal de esperança. Apresentei-me como pessoa, pois o desafio e a responsabilidade são pessoais. É minha mas é de cada pessoa. É própria de quem vive com sentido de missão. Cheguei à Junior Achievement Portugal há dez anos – tantos quantos os da sua existência. Cheguei sem saber bem ao que vinha, mas rapidamente me revi em tudo o que promovia no resto do mundo e desde logo senti que queria fazer parte do caminho que seria feito por nós, em Portugal. E, de repente, passaram dez anos incríveis. É com emoção que chegamos ao 10.º ano da Junior Achievement Portugal. Ao olhar para trás, revivemos e recordamos uma década preenchi-

da pelo envolvimento de 220 mil alunos, 10 400 professores, 11 900 voluntários, das empresas e instituições que contribuíram com mais de 104 mil horas de voluntariado, em todos os distritos de Portugal continental e nas duas Regiões Autónomas. A nossa missão é a de proporcionar experiências que transformem as vidas destes estudantes. Fazê-los perceber que podem chegar mais longe do que alguma vez pensaram. É dar-lhes capacidade de sonharem com realismo, acreditando nas suas capacidades mas também naqueles com quem interagem e trabalham, em particular os membros das suas equipas, sabendo que todos juntos alcançam resultados mais impactantes. Mas não só as vidas dos estudantes, como igualmente as dos professores, quando também eles entendem que ser empreendedor é uma atitude educativa fundamental e que a devem incutir aos seus alunos. Muitos professores reposicionaram a sua missão na educação e acompanhamento dos seus alunos, muito para além dos curricula letivos que tinham de cumprir, sabendo que só aprendendo e fazendo se pode empreender. Muitos profissionais, enquanto voluntários, entenderam que a partir das suas empresas poderiam cumprir a sua missão enquanto cidadãos, disponibilizando-se por um mundo melhor, construindo o futuro já hoje. Mais de duzentos alunos representaram o nosso país em contexto internacional ao longo destes dez anos e muitos regressaram com prémios pelos seus resultados. Outros formaram empresas, outros ainda venderam ideias de negócio. Outros fizeram de “sombra” a líderes empresariais. Muitos confidenciaram como foi possível mudar a vida num dia, pois tinham entendido o que queriam ser enquanto pessoas e cidadãos responsáveis. Muitos pisaram um palco pela primeira vez, receberam lições de apresentação, de geração de ideias, de trabalho em equipa. Outros, mais novos, entenderam o que significa “viver em comunidade”, “viver numa Europa de valores”, decidir com os recursos que se tem,

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optar, escolher um percurso. Contámos com o envolvimento e participação de muitas famílias, em apoio aos seus “campeões”. Não porque buscassem o primeiro lugar mas porque a experiência os marcou e, em família, assistiram a essa transformação. Dez anos não são dez dias, nem dez semanas ou dez meses. São quase quatro mil dias, com muitas histórias marcantes e muitos intervenientes. Ao longo destes dez anos também o nosso país se transformou significativamente. Ao longo de dez anos, mais de quarenta empresas e instituições aprovaram esta iniciativa e foram fundamentais no apoio, na proximidade, no sentido de compromisso que tiveram, nos bons momentos e noutros menos bons. Nunca duvidaram de que também por este caminho se cumpria a sua missão. Ao longo destes dez anos alguns dos professores entusiastas partiram entretanto e recordamo-los com saudade e afeto. Ao longo destes dez anos muitos destes jovens entraram no

mercado de trabalho. Muitos deles passaram a ser voluntários. É neles que depositamos a nossa esperança de que o futuro se construiu ontem e hoje, por um amanhã melhor. Ao longo destes dez anos, a Junior Achievement Portugal dispôs de uma equipa formidável, de jovens empreendedores, que serviram com espírito de missão e enorme dedicação, contribuindo para um futuro melhor. Esta equipa que aprendeu a empreender, a fazer fácil o difícil, a animar os que precisam, a motivar os jovens, não gosta que se fale deles, pois sabem que a sua missão é como a dos andaimes numa construção. No dia da inauguração, na celebração, retiram-se para que os jovens estudantes assumam o seu papel central na nossa organização. São eles que queremos servir e continuaremos a servir. Com a ajuda de todos, professores, voluntários, escolas e associados. Cada um é fundamental para que o bem seja bem feito e a esperança seja uma semente que dá fruto.

GALA 10º Aniversário da JA Portugal no Museu da Eletricidade, Lisboa

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O PONTIFICADO DE

FRANCISCO Texto de João César das Neves

[ECONOMISTA, PROFESSOR CATEDRÁTICO DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA]

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Os ensinamentos do Papa Francisco seguem de perto a doutrina social da Igreja. Mesmo quando trata de questões económicas, a preocupação do Papa é sempre exclusivamente religiosa, crente que, por detrás das dificuldades do nosso tempo, existe um problema de falsos deuses.

A

s questões sociais saltaram para o primeiro plano com o pontificado do Papa Francisco. Em grande medida esta afirmação, hoje consensual, resulta de uma ilusão de óptica. É verdade que se tem verificado à volta das afirmações papais sobre economia um intenso debate ideológico que não é habitual. Mas muito desse debate resulta de erros e confusões que é importante deslindar. 1. DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA Antes de mais nada, é preciso afirmar que a diferença do relevo dado às questões sociais neste pontificado face aos anteriores é mínima. Todos os Papas têm tido desde há muito uma enorme preocupação social. Todos têm defendido os pobres, condenado as explorações, denunciado os desequilíbrios. Em especial nas últimas décadas, em que a globalização trouxe novos problemas e oportunidades, essas questões têm ocupado crescentemente a atenção dos Santos Padres. São João xxiii, o beato Paulo vi, São João Paulo ii e Bento xvi apresentaram textos profundos, abrangentes e incisivos sobre as questões sociais, 111

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nos quais toda a gente pode encontrar um tratamento sólido, sereno e sábio das questões que nos afligem. A diferença que se pode, talvez, encontrar no actual Papa é de tom e forma. No conteúdo, como ele próprio repetidamente afirma, o seu ensinamento segue de perto a doutrina social da Igreja. Apesar disso, é evidente que Francisco tem uma linguagem muito mais solta, espontânea e contundente do que os seus predecessores. Não é

que estais agora fartos, porque haveis de ter fome!” (Lc 6, 24-25); “Em verdade vos digo que dificilmente um rico entrará no Reino do Céu. Repito-vos: É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino do Céu” (Mt 19, 23-24); “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24). Temos de convir que neste aspecto, incluindo na forma, o Mestre é mais contundente do que o discípulo. Francisco é como é, e a sua linguagem frontal e aberta constitui um dos elementos mais precio-

A EXUBERÂNCIA, SIMPLICIDADE E DESASSOMBRO DO NOVO PAPA ENCANTARAM O MUNDO DESDE O PRIMEIRO MOMENTO. NA ECONOMIA, EM ESPECIAL, ESSA ATITUDE TEM CRIADO ALGUMA PERPLEXIDADE difícil provar esta tese. A exuberância, simplicidade e desassombro do novo Papa encantaram o mundo desde o primeiro momento. Na economia, em especial, essa atitude tem criado alguma perplexidade. É verdade que Francisco usa expressões que parecem exageradas a alguns. Essas são precisamente aquelas que os media proclamam, como dizer: “Esta economia mata!” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium 53); “Se tu escolhes o caminho do dinheiro, no fim serás um corrupto”1; “O dinheiro é o esterco do diabo”2. Mas antes de declarar estas afirmações intoleráveis, é bom lembrar as raízes de onde elas brotam. O Papa repete incessantemente, há muitos anos, antes mesmo de ser eleito, que estas ideias não são comunismo ou pauperismo mas Evangelho. De facto não nos podemos esquecer que o próprio Jesus usou expressões ainda mais fortes: “Ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os

sos da sua eficácia apostólica. Podemos dizer que, num ponto ou noutro, essa formulação sugestiva e contundente gerou alguns melindres. Mas também sabemos que todos os Papas se têm visto envolvidos em polémicas, por mais cuidado que tenham no rigor das suas expressões. São João XXIII e São João Paulo II eram mais emotivos, como o é Francisco, e naturalmente sofreram ataques por isso. Mas também Paulo VI e Bento XVI, muito mais cuidadosos, comedidos, académicos até, não se livraram de incompreensões e agressões. Além disso, antes de considerar as afirmações de Francisco como originais, contrastantes com as ideias dos seus antecessores e alheias ao ensino católico, é bom lembrar que ele segue sempre a doutrina social da Igreja que sustenta as suas afirmações polémicas. Só conhecendo bem esse ensinamento podemos avaliar as novas formulações. Aliás, num dos seus textos mais intensos, a já citada Exortação Apostólica pós-sinodal

1. IGREJA CATÓLICA. Papa, 2013 - (Francisco) – Homilia em Santa Marta, 20 de Setembro de 2013. In PAPA FRANCISCO – A verdade é um encontro. Homilias em Santa Marta. Edição de Antonio Spadaro. Prior Velho: Paulinas Editora, 2014, p. 306. 2. Ver discurso aos representantes da Confederação das Cooperativas Italianas, 28 de Fevereiro de 2015 e o discurso ao II Encontro mundial dos movimentos populares, durante a viagem apostólica à Bolívia, 9 de Julho de 2015. A expressão, que também aparece na homilia citada na nota anterior, é realmente uma citação de São Basílio Magno (330-379).

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Evangelii Gaudium, de 24 de Novembro de 2013, o próprio Papa faz questão de indicar essa referência. “Aqui não é o momento para explanar todas as graves questões sociais que afectam o mundo actual, algumas das quais já comentei

podem desencadear processos de desumanização tais que será difícil depois retroceder. É preciso esclarecer o que pode ser um fruto do Reino e também o que atenta contra o projecto de Deus” (Evangelii Gaudium 51).

“NÃO É FUNÇÃO DO PAPA OFERECER UMA ANÁLISE DETALHADA E COMPLETA DA REALIDADE CONTEMPORÂNEA, MAS ANIMO TODAS AS COMUNIDADES A UMA CAPACIDADE SEMPRE VIGILANTE DE ESTUDAR OS SINAIS DOS TEMPOS” [EVANGELII GAUDIUM 51] no terceiro capítulo. Este não é um documento social e, para nos ajudar a reflectir sobre estes vários temas, temos um instrumento muito apropriado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, cujo uso e estudo vivamente recomendo” (Evangelii Gaudium 184). Outro elemento importante é que, embora hoje as palavras do Papa sejam usadas em debates políticos e ideológicos, criticando ou apoiando os seus pronunciamentos, o próprio Papa nunca entra nesses meios. Pelo contrário, surge a sua repetida afirmação de que não trata de problemas técnicos, mas apenas de questões morais e religiosas. Isso confirma que os que usam as suas palavras nos confrontos políticos ou económicos estão a abusar e fazem algo que o próprio Papa recusa. Logo na Exortação este ponto está explícito. “Não é função do Papa oferecer uma análise detalhada e completa da realidade contemporânea, mas animo todas as comunidades a uma capacidade sempre vigilante de estudar os sinais dos tempos. Trata-se duma responsabilidade grave, pois algumas realidades hodiernas, se não encontrarem boas soluções,

2. IDOLATRIA E DIGNIDADE HUMANA Acima de tudo, é essencial referir que, mesmo quando trata de questões económicas, a preocupação do Papa é sempre exclusivamente religiosa. Com isto não está a fugir à questão, pois ele está plenamente convencido de que, por detrás das dificuldades do nosso tempo, existe um problema de falsos deuses. Poucos meses depois de ser eleito, numa das homilias íntimas e matutinas da capela de Santa Marta3, explicou os fundamentos teológicos do problema económico. É muito curioso que o ponto de partida seja uma objecção que próprio Pontífice apresenta às suas palavras agressivas: “‘Mas, padre, eu leio os dez mandamentos e nenhum deles diz mal do dinheiro. Contra que mandamento se peca quando se trabalha pelo dinheiro?’ ‘Contra o primeiro! Pecas por idolatria! É por isso: porque o dinheiro se torna um ídolo e tu dás-lhe culto!’ Por isso Jesus diz-nos: ‘Não podes servir o ídolo dinheiro e o Deus vivo: ou um, ou outro.’ Os primeiros Padres da Igreja – refiro-me ao século III, entre o ano 200 e 300, mais ou menos – diziam uma palavra forte: ‘O dinheiro é o esterco do diabo.’ É assim, porque

3. IGREJA CATÓLICA. Papa, 2013 - (Francisco) – Homilia em Santa Marta, 20 de Setembro de 2013. In PAPA FRANCISCO – A verdade é um encontro. Homilias em Santa Marta. Edição de Antonio Spadaro. Prior Velho: Paulinas Editora, 2014, pp. 306-308.

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nos torna idólatras e faz adoecer a nossa mente com o orgulho, e torna-nos maníacos, obcecados por questões ociosas e afasta-nos da fé, rompe-nos.” Assim, o mal da nossa sociedade é o culto do deus dinheiro. Esta idolatria monetária, um dos temas mais utilizados pelo Papa nos seus tratamentos das questões económicas, aparece sempre em contraposição à dignidade do homem, em especial do pobre e do trabalhador, que vem sacrificada no altar desse deus menor. Assim, a questão económica que ocupa Francisco ganha uma outra abrangência. O problema é realmente de índole antropológica ou mesmo religiosa, a dignidade humana do trabalhador que, mais

a culpa deste mal. “Que podemos fazer face ao gravíssimo problema do desemprego que atinge diversos países europeus? É a consequência de um sistema económico que já não é capaz de criar trabalho, porque deu a prioridade a um ídolo, que se chama dinheiro! Portanto, as diversas entidades políticas, sociais e económicas estão chamadas a favorecer uma organização diversa, baseada na justiça e na solidariedade. Esta palavra, neste momento, corre o risco de ser excluída do dicionário. Solidariedade: parece quase um palavrão! Não! A solidariedade é importante, mas a este sistema ela não agrada muito, prefere excluí-la. Esta solidariedade humana que garante a todos a possibilidade de desempenhar uma

A IDOLATRIA MONETÁRIA, UM DOS TEMAS MAIS UTILIZADOS PELO PAPA NOS SEUS TRATAMENTOS DAS QUESTÕES ECONÓMICAS, APARECE SEMPRE EM CONTRAPOSIÇÃO À DIGNIDADE DO HOMEM, QUE VEM SACRIFICADA NO ALTAR DESSE DEUS MENOR do que tudo, está em jogo no seu esforço laboral. Este ponto era já a inspiração básica da encíclica Rerum Novarum de 1891 e da doutrina social da Igreja que ela lançou e se mantém ao fim de mais de um século. Um aspecto, mais do que os outros, domina o tratamento que Francisco faz deste problema de dignidade. Em especial, Bergoglio sempre fica muito chocado com o drama do desemprego. A razão, mais uma vez, tem menos que ver com a falta de recursos do que com o impacte anímico que gera. Num outro discurso expressa-o de forma contundente: “Não existe pior pobreza material – faço questão de o frisar – que a que não permite que se ganhe o pão e priva da dignidade do trabalho.”4 O Papa não tem dúvidas acerca de onde reside

actividade laboral digna. O trabalho é um bem de todos, que deve estar à disposição de todos.”5 Daqui saem todas as denúncias do Papa Francisco quanto a injustiças, exclusões sociais e outras formas de agressão a inocentes. “Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras” (Evangelii Gaudium 56).

4. Discurso ao encontro mundial dos movimentos populares, 28 de Outubro de 2014. 5. Discurso a dirigentes e operários das aceirarias de Terni e aos fiéis da diocese, 20 de Março de 2014.

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| ECONOMIA SOCIAL |

3. A DEFESA DA CRIAÇÃO Não é apenas no nível social que esta terrível idolatria se manifesta. Numa notável coerência de pensamento, o Santo Padre usa a mesma linha de lógica para abordar outros aspectos da grave situação contemporânea, desde o evidente ressurgimento de ideologias extremistas, o agravamento do terrorismo e revoluções até à ampliação dos motins e guerras em várias zonas do mundo. Entre eles, porém, destaca-se uma questão particular. Francisco foi o Papa que mais cedo no pontificado apresentou uma encíclica social, pouco mais de dois anos após a sua eleição. A Laudato Si’, publicada a 24 de Maio de 2015, é uma encíclica temática, debruçando-se “sobre o cuidado da casa comum”. Não se trata pois de uma encíclica genérica, como a Centesimus Annus e a Caritas in Veritate, mas particular, como a Populorum progressio (sobre o desenvolvimento), a Laborem Exercens (sobre o trabalho) ou mesmo a Rerum Novarum (sobre a questão operária). Mais uma vez, e apesar dos vários elementos originais que o texto traz consigo, a encíclica não trata de novidade no magistério pontifício. Aliás, o próprio texto faz questão de sublinhar como os Papas anteriores mostravam atenção a estes temas, descrevendo brevemente esses ensinamentos. Partindo da encíclica Pacem in terris, de São João XXIII de 1963, e percorrendo os sucessores, os números três a seis da encíclica mostram como a questão da preservação dos equilíbrios naturais fazem parte da herança da doutrina da Igreja. Entre os inúmeros aspectos que a encíclica traz consigo, aquele que aqui nos interessa é notar como a lógica fundamental encaixa com aquela que vimos atrás. Por exemplo: “Neste contexto, sempre se deve recordar que a pro-

tecção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente. Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações?” (Laudato Si’ 190). O mundo está a passar por inúmeros problemas muito graves. Multiplicam-se os estudos, as estratégias e intervenções para os solucionar, mas os resultados são escassos. No meio de tantos avanços, progressos e ganhos permanecem misérias, injustiças, sofrimentos e, sobretudo, um medo, uma inquietação que inquina todo o desenvolvimento. O Papa Francisco sabe a origem desse mal. Ela não é técnica ou produtiva, não é económica ou política, mas espiritual. Como o cardeal Bergoglio disse vários anos antes de ser eleito, “a cultura actual tende a propor estilos de ser e de viver contrários à natureza e dignidade do ser humano. O impacte dominante dos ídolos do poder, a riqueza e o prazer efémero transformaram-se, por cima do valor da pessoa, na norma máxima de funcionamento e o critério decisivo na organização social”6. Enquanto a sociedade não tomar consciência disto irá progredir no meio da perplexidade e do medo.

Nota: Por opção do autor, este artigo não segue as regras do acordo ortográfico.

6. Conferência inaugural do cardeal Jorge Bergoglio no Seminário sobre Dívidas Sociais organizado por EPOCA, 30 de Setembro de 2009.

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IGREJA de São Roque, Lisboa. Fachada (fotografia do autor)

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| HISTÓRIA E CULTURA |

A IGREJA DE SÃO ROQUE ao Bairro Alto e a evolução do seu espaço interno1

A Igreja de São Roque de Lisboa, levantada a partir de 1566, faz parte da “primeira geração” de igrejas jesuíticas portuguesas. A igreja que conhecemos hoje seria algo diferente, porém, da que foi acabada em finais do século xvi. Neste texto, propomos a ideia de que terá sofrido alterações importantes ao longo da sua história, sobretudo no seu interior. Texto de Rui Lobo [PROFESSOR, DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA DA FCTUC / CES] AS IGREJAS JESUÍTICAS PORTUGUESAS Igreja de São Roque de Lisboa, juntamente com a Igreja do Espírito Santo de Évora (anexa à universidade local), fazem parte da “primeira geração” de igrejas jesuíticas portuguesas. Tem-se mencionado

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a construção paralela destas duas igrejas, a partir de 1566, como tendo estabelecido o tipo português de igreja jesuítica: “igreja-caixa”, de nave única, com transepto inscrito (e nem sempre afirmado na nave), com capelas laterais intercomunicantes, normalmente com tribunas sobre as capelas.

1. Este texto é um resumo de um artigo que escrevemos recentemente (Lobo, 2014) no âmbito de uma publicação do projeto internacional “Corpus de Arquitetura Jesuítica II” liderado pela Professora Maria Isabel Álvaro Zamora, da Universidade de Saragoça.

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| IGREJA DE SÃO ROQUE |

A IGREJA DE SÃO ROQUE, AO BAIRRO ALTO, COMEÇOU POR SER UMA PEQUENA ERMIDA DEDICADA ÀQUELE SANTO, ERGUIDA NO TEMPO DE D. MANUEL, ENTRE 1506 E 1515” Este facto é tanto mais importante uma vez que esta tipologia portuguesa se definiu ao mesmo tempo (ou mesmo antes) que a “igreja-mãe” dos Jesuítas em Roma, Il Gesù, com planta de Vignola e levantada a partir de 1568 (aberta ao culto em 1587), referência para muitas outras igrejas da Companhia por todo o mundo católico. Il Gesù é uma igreja de grandes dimensões, com planta em cruz latina, capela-mor afirmada, capelas laterais intercomunicantes e cúpula sobre o cruzeiro. Naturalmente, houve também em Portugal repercussões deste modelo, que daria origem à “segunda geração” de igrejas jesuíticas em Portugal: a Igreja do Colégio de Coimbra (atual Sé Nova), a desaparecida Igreja de Santo Antão-o-Novo de Lisboa, e a Igreja de São Lourenço (dos Grilos) do Porto. Não obstante, no tempo da Restauração, os jesuítas portugueses depressa regressaram à tipologia anterior, “portuguesa”, de igrejas mais compactas, mais fáceis de levantar, de construção mais económica e prática. Surgiu assim uma “terceira geração” de igrejas espalhadas um pouco por todo o território nacional, desde o Algarve (Faro, Portimão), Alentejo (Elvas, Portalegre, Vila Viçosa), Ribatejo (Santarém) e ilhas (Funchal, Angra, Horta), chegando mesmo ao Brasil (Salvador) e a África (Luanda).

A ERMIDA E PRIMITIVA IGREJA DE SÃO ROQUE Balthazar Telles, na sua Chronica, refere a história da construção da Igreja de São Roque, ao Bairro Alto. Começou por ser uma pequena ermida dedicada àquele santo, erguida no tempo de D. Manuel, entre 1506 e 1515 (Telles, 1647, p. 93). Os Jesuítas, por sua vez, encontravam-se instalados em Lisboa desde 1542, na residência e depois colégio “velho” de Santo Antão, à Mouraria. Em 1553 decidiram fundar na cidade uma casa professa. Estes estabelecimentos, menos frequentes que os habituais colégios, deveriam ser habitados por padres de grande notoriedade e exemplo, que pudessem garantir a subsistência da casa por meio de contribuições ocasionais e donativos (contrariamente aos colégios, que tinham rendimentos próprios associados). Em Roma, por exemplo, existe também uma casa professa (Il Gesù, com a respetiva igreja) e um colégio (o Collegio Romano, com a sua igreja, Sant’Ignazio). Foi o padre Jerónimo Nadal, comissário-geral da Companhia na Península Ibérica (Telles, p. 95), que escolheu o sítio e a ermida de São Roque, dos vários que lhe foram postos à disposição pelo governo da cidade, com as boas graças do rei D. João III. O Bairro Alto era uma zona de expansão recente, de boas casas e palacetes, que poderia propiciar um bom futuro à nova fundação. Os Jesuítas mantiveram o orago, negociando uma coabitação com a confraria que, até então, tomava conta da ermida. Os padres rapidamente se tornaram populares, congregando grandes assistências nas missas, dadas ao ar livre, pelo que logo se colocou a questão de se levantar uma igreja no lugar da ermida. Essa igreja primitiva fez-se, a partir de 1555, integrando na sua construção a ermida preexistente (que tinha a cabeceira a nascente), ficando a antiga nave, de 80 palmos (17,6 metros), como transepto e estendendo-se nova nave 80 palmos para sul, por onde se faria a entrada do novo templo (Telles, p. 105).

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A NOVA IGREJA DE SÃO ROQUE A igreja que hoje podemos admirar começou a ganhar forma poucos anos depois, na década de 1560. Com efeito, a crescente afluência de público obrigou os padres a pensar levantar uma igreja maior e mais ampla. Sabemos muito do processo construtivo deste novo templo graças a um artigo (já com meio século) do investigador brasileiro Paulo Ferreira Santos, que estudou a ereção paralela das igrejas de São Roque de Lisboa e do Espírito Santo de Évora (Santos, 1966), ambas traçadas pelo arquiteto régio Afonso Álvares, e que originaram a mencionada tipologia portuguesa de igrejas jesuíticas. Enquanto o processo construtivo da igreja de Évora (1566-1574) foi relativamente rápido e escorreito, a ereção da igreja lisboeta foi muito debatida, tendo-se hesitado entre uma disposição de igreja de uma nave ou de três naves. Chegou mesmo a iniciar-se a construção segundo esta última opção (comum a outras importantes igrejas do reino, como as novas sés “joaninas” ou as igrejas “colunárias” alentejanas), mas este arranque foi demolido para se avançar com o partido de igreja de uma nave, apesar da dificuldade técnica, que se adivinhava, de cobrir a nave única com mais de 17 metros de largura. Afinal, a nave única tinha sido a opção do cardeal D. Henrique para a igreja jesuítica de Évora (levantada sob seu patrocínio) e dos próprios jesuítas na construção contemporânea da igreja de Il Gesù em Roma… A Igreja de São Roque seria aberta ao culto em 1573 sem que se tivesse encontrado uma solução definitiva para a sua cobertura. Foi já no tempo de Filipe II (em 1582) que o arquiteto italiano Filipe Terzi elaborou uma complexa estrutura de madeira, com mastros vindos da Prússia, para resolver o problema do teto da igreja (Telles, 1647, p. 110; Rodrigues, 1938, p. 183), teto que seria depois pintado com três falsas cúpulas, em trompe l’oeil, por Francisco Venegas (Serrão, 2006, p. 91). Filipe Terzi terminaria também a fachada, rematada por um frontão, em 1586. Esta é de proporções qua-

FIGURA 1 Igreja de São Roque, Lisboa. Detalhe do painel de azulejos com a vista de Lisboa anterior ao terremoto

dradas, uma vez que a sua largura não corresponde à largura da igreja mas, tão-só, da nave. A fachada atual não seria muito diferente da original, como se pode ver no painel de azulejos com a vista da cidade de Lisboa anterior ao terremoto, que pertenceu ao paço dos condes de Tentúgal, hoje no Museu do Azulejo (fig. 1). A igreja não tinha torres na fachada, tal como as primeiras igrejas jesuíticas italianas e portuguesas. Serviu de sineira uma torre anexa preexistente que ainda hoje subsiste. Não obstante, quando se executou a cobertura definitiva, anexaram-se duas caixas de escada à retaguarda da igreja, para acesso ao forro da cobertura (Telles, 1647, p. 112), que imitam na sua disposição as torres sineiras recuadas da igreja de Évora. No interior (fig. 2) a igreja atual de São Roque apresenta quatro capelas laterais intercomunicantes a cada lado da nave e mais uma, menos profunda, no lugar do braço do transepto. No alçado da nave aparentam ser, de facto, cinco capelas a cada lado, uma vez que os arcos de abertura para a nave são todos idênticos. Sobre cada capela existem hoje tribunas com balaústres, com acesso a partir de galerias altas (fig. 3). Existe ainda um tramo inicial que não dispõe de capelas laterais, nem tribunas, e que ostenta um coro alto, reconstruído em 1893-94 (Mena Júnior, 1894, pp. 8-11). A cabeceira é muito pouco profunda. Constitui-se por uma capela-mor “escavada” na parede de fundo da nave, acompanhada de dois altares mais pequenos, um a cada lado. 119

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FIGURA 2 Igreja de São Roque, Lisboa. Interior (fotografia do autor)

José Eduardo Horta Correia realçou a composição dos alçados internos que conferem à nave “um certo ar de arquitectura civil” delimitando “um espaço totalmente unificado, como se fosse uma ‘praça’ ou ‘espaço público coberto’ de desejada vivência comunitária” associado a um “sentido litúrgico profundamente marcado pela pregação” (Horta Correia, 1986, p. 112). Contudo, a igreja que podemos visitar hoje não é bem a que foi terminada na década de 1580, como veremos.

A IGREJA DO ESPÍRITO SANTO DE ÉVORA A Igreja do Espírito Santo de Évora, iniciada em 1566 (Telles, 1647, p. 367), teve um processo construtivo mais escorreito e sem as hesitações da congénere lisboeta. De uma nave única com capelas laterais comunicantes, foi baseada, segundo desejo expresso do patrocinador cardeal D. Henrique, na igreja tardogótica local de São Francisco, tendo inclusive adotado a galilé exterior sobre a entrada (fig. 4), elemento jamais aplicado em nenhuma outra igreja da Companhia. A igreja, já acabada, foi inaugurada solenemente na Páscoa de 1574, um ano depois de estar a funcionar a de São Roque – embora esta só tenha sido terminada mais tarde, como vimos.

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A fachada da igreja eborense é totalmente distinta da da igreja lisboeta, desde logo pela presença da mencionada galilé. Internamente (fig. 5), a Igreja do Espírito Santo é bastante próxima da de São Roque, embora existam algumas diferenças que importa sublinhar. A mais notória resulta das larguras das naves, mais larga a de São Roque, com os já mencionados 80 palmos (17,6 metros) face aos 50 palmos (11 metros) da do Espírito Santo. Esta diferença nas larguras das naves implicou também diferentes sistemas de cobertura, sendo a da igreja eborense em abóbada de tijolo em meia cana, estucada, em lugar do teto plano de madeira da igreja lisbonense. Resultam deste facto espacialidades diferentes, mais “quadrada” e horizontal em Lisboa, mais alongada e “tubular”, em Évora. Não obstante, os espaços internos das duas igrejas têm semelhanças óbvias e apresentam um certo “ar de família” realçado, sobretudo, pelo desenho dos alçados da nave. Na cabeceira

FIGURA 3 Igreja de São Roque, Lisboa. Plantas do piso térreo, do piso alto, cortes transversal e longitudinal (desenho de Tânia Oliveira)

FIGURA 4 Igreja do Espírito Santo, Évora. Fachada (fotografia do autor)

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destacam-se as capelas-mores pouco profundas e de desenho semelhante. Nas laterais, sobressaem as sequências contínuas de capelas laterais sobrepostas por tribunas. Na Igreja do Espírito Santo existem cinco capelas laterais a cada lado da nave (a primeira das quais abrindo para o espaço de entrada debaixo do “coro”) mais uma última que conforma um transepto, pois o arco desta é mais alto do que o das demais capelas (fig. 6), o que não acontece em São Roque. Uma diferença importante regista-se a nível funcional – os confessionários da Igreja do Espírito Santo, num total de dez, inseridos a um e outro lado da nave, nas paredes divisórias das capelas laterais, são totalmente inexistentes na Igreja de São Roque. No sentido inverso podemos observar o fraco protagonismo do púlpito na igreja eborense (que nem sequer é original), face ao papel determinante dos dois púlpitos, colocados face a face, a meio da igreja lisbonense (ainda que originalmente existisse apenas um).

FIGURA 5 Igreja do Espírito Santo, Évora. Interior (fotografia do autor)

A IGREJA DE SÃO ROQUE SOFREU ALTERAÇÕES IMPORTANTES AO LONGO DO SÉCULO XVII DE MODO A, JUSTAMENTE, SE APROXIMAR A SUA IMAGEM INTERNA À DA IGREJA DO ESPÍRITO SANTO”

A ARQUITETURA ORIGINAL DA IGREJA DE SÃO ROQUE Regressemos ao mencionado parentesco ou “ar de família” que hoje existe entre os espaços interiores das igrejas de São Roque e do Espírito Santo. Sucede que essa semelhança é o resultado de uma intervenção mais recente no espaço da Igreja de São Roque, relativamente à época, que aqui nos interessa, da sua edificação. A nosso ver, a Igreja de São Roque sofreu alterações importantes ao longo do século xvii de modo a, justamente, se aproximar a sua imagem interna à da Igreja do Espírito Santo. Com efeito, uma visita e observação atenta às galerias altas de São Roque, por detrás das tribunas da nave, permite verificar que as galerias não correspondem à construção original da igreja – não possuem o mesmo caráter tectónico e construtivo do restante edifício. Pode ainda notar-se, ao nível das tribunas, como as paredes exteriores da nave eram, originalmente, as paredes exteriores da igreja – o que ainda acontece hoje, mais acima, à cota superior do conjunto. Estas

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paredes externas encontram-se, inclusivamente, dotadas de pilastras. A observação direta a partir de pontos elevados no exterior mostra a presença de cinco caixas de luz sobre o flanco nascente da igreja (fig. 7), feitas em estrutura de madeira e vidro e cobertas por pequenos telhados, colocadas no alinhamento das tribunas. A construção destas caixas de iluminação foi seguramente posterior à época de construção da igreja, pois a segunda pilastra dórica (a contar do cunhal) da parede exterior da nave é interrompida justamente por uma delas, sinal de que as caixas foram colocadas posteriormente. Do mesmo modo, e do lado poente, sobressaem cinco claraboias (também no alinhamento das tribunas) no telhado das dependências anexas que se encostam à igreja, uma das quais interrompe também a segunda pilastra (fig. 8), sinal de que foi “enxertada” na parede. Também a observação de levantamentos planimétricos recentes da Igreja de São Roque (fig. 3), incluindo uma planta ao nível das galerias altas da igreja, permite confirmar esta ideia, em particular se compararmos os desenhos de São Roque com outros, também de produção recente, relativos à Igreja do Espírito Santo (fig. 6), correspondentes à mesma situação. A conclusão óbvia destas observações é a de que as aberturas superiores da Igreja de São Roque não eram originalmente tribunas mas sim, e simplesmente, janelas (como já intuíra Vítor Serrão; Serrão, 2006, p. 90) – janelas de iluminação da nave, diretamente a partir do exterior. Note-se que em São Roque a proporção da abertura de cada “tribuna” é vertical, sendo a altura o dobro da largura. Pelo contrário, na Igreja do Espírito Santo essa proporção é horizontal, sendo a largura obtida pelo rebatimento da diagonal do quadrado cujo lado corresponde à altura do vão (proporção de 1:√2). Mas não foi esta a única alteração realizada na igreja lisboeta. Balthazar Telles, no segundo volume da sua crónica (publicado em 1647), dá conta de uma alteração profunda no espaço anterior da igreja, entre o alinhamento dos dois púlpitos e a entrada (Telles, 1647, p. 113):

HOUVE, PORTANTO, UMA IMPORTANTE TRANSFORMAÇÃO QUE ALTEROU O PRIMEIRO SETOR DA NAVE, COM A SUBSTITUIÇÃO DOS CONFESSIONÁRIOS E DAS TRIBUNAS ORIGINAIS PELAS NOVAS CAPELAS”

FIGURA 6 Igreja do Espírito Santo, Évora. Plantas do piso térreo e do piso alto; cortes transversal e longitudinal da igreja (desenhos do levantamento coordenado pela arquiteta Estela Cameirão, Diocese de Évora)

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FIGURA 7 Igreja de São Roque, Lisboa. Caixas de luz e pilastras sobre o flanco nascente da igreja (fotografia do autor)

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“… no corpo da Igreja, nam falando no cruzeiro, há poucos anos, que nam havia mais que quatro capellas, hoje vemos oito; & no lugar aonde acrescentamos as capellas (que he do pulpito para baixo) havia d’antes huns nichos de pedraria burnida, muy bem ornados, & azulejados, & nelles seus confissionarios, com suas portas pera dentro, por onde entravam os Confessores, com grades de pao preto, obra gabada de muitos. Por sima dos confissionarios corriam tribunas, com janelas muy largas pera a igreja, nas quaes havia grande commodo pera assistir as pregaçõens, & mais officios divinos; tudo isto se desfez, por causa das quatro capellas, que de novo aly fabricamos; nam tanto com o intento de melhorar, & ornar a Igreja (pois alguns julgavam d’antes por mais engraçada) quanto por rezam de acrecentar este novo repuxo das capellas às paredes da Igreja, porque ainda sam grossas, nam tinham bastante fortaleza para sustentar abobeda; que pòde ser alguma hora se intente fazer nesta Igreja porque como o tecto todo conforme dissemos, he de madeira, por mais forte que seja ordinariamente nam he de muita dura, & assim quando se vier acabar, pelos anos vindouros, já se poderá bem seguramente fazer abobeda”. Foi Maria João Madeira Rodrigues (Rodrigues, 1970) quem chamou a atenção para a importante modificação da igreja, relatada por Balthazar Telles. Fez inclusivamente uma reconstituição esquemática da planta original da Igreja de São Roque, que aqui reproduzimos (fig. 9). É possível que a inexistência das capelas laterais no troço anterior da igreja se devesse ao simples reaproveitamento das paredes da igreja “primitiva”, levantada em 1555, e que antecedeu a nova Igreja de São Roque. A inexistência de capelas laterais no setor dianteiro da igreja é a razão por detrás da atual proporção quadrada da fachada da igreja (note-se a semelhança com a fachada da Igreja de São Paulo de Braga, outra igreja desta “primeira geração”, desprovida de capelas laterais, levantada entre 1567 e 1588). Pela nossa parte, apresentamos um desenho à mão livre (Lobo, 2014, p. 251) com uma interpretação possível do espaço interno do novo templo de São Roque (fig. 10). De acordo com

ACONTECEU, POIS, A NOSSO VER, UMA SEGUNDA INTERVENÇÃO NA IGREJA, NA QUAL SE INTRODUZIRAM AS GALERIAS E CLARABOIAS E SE TERÃO TRANSFORMADO AS JANELAS ALTAS EM TRIBUNAS”

FIGURA 8 Igreja de São Roque, Lisboa. Claraboias e pilastras sobre o flanco poente da igreja (detalhe de fotografia SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitetónico)

FIGURA 9 Igreja de São Roque, Lisboa. Reconstituição hipotética da planta original (desenho de Maria João Madeira Rodrigues, 1970)

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FIGURA 10 Igreja de São Roque, Lisboa. Reconstituição hipotética da nave original (desenho do autor)

O ESPAÇO INTERNO ORIGINAL DA IGREJA DE SÃO ROQUE ERA ALGO DIFERENTE DAQUELE QUE PODEMOS OBSERVAR HOJE”

a passagem textual acima transcrita, a parte anterior da igreja ostentava um conjunto de confessionários (função hoje ausente) a cada lado da nave. Estes corriam debaixo de um conjunto de duas ou três tribunas dispostas “ao baixo” (“por sima dos confissionarios corriam tribunas, com janelas muy largas pera a igreja”) à maneira, justamente, das da Igreja do Espírito Santo de Évora. Não é claro se haveria ou não um primeiro “coro alto” (ou, mais propriamente, uma plataforma elevada sobre a entrada, pois os Jesuítas não tinham coro) em função do nível, cremos que pouco elevado, das tribunas. É provável que existisse,

olhando para o caso da igreja de Braga e havendo altura suficiente para o instalar. Houve, portanto, uma importante transformação que alterou o primeiro setor da nave, com a substituição dos confessionários e das tribunas originais pelas novas capelas. Em que época concretamente? Segundo o próprio cronista, a transformação teria ocorrido “há poucos anos”. Por outro lado, sabe-se que a mais antiga das novas capelas, a de São Francisco Xavier, foi instituída em 1623 (Rodrigues, 1980, p. 23) o que remete a alteração para a década de 1610 ou início da de 1620. Esta hipótese levanta evidentemente um problema, de ordem técnica, que é o da reconstrução da metade anterior da igreja com o teto de madeira e respetiva estrutura já montados (e com a pintura de Francisco Venegas acabada). Poderia admitir-se que esta transformação tivesse ocorrido com a construção da cobertura, no início da década de 1580. Deve considerar-se, porém, que se conseguiu mesmo realizar esta delicada operação com o teto e respetiva estrutura no lugar, já em pleno século xvii. Por um lado, a obra da

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cobertura foi o remate do processo de construção original da atual igreja, pelo que a transformação da nave relatada na Chronica teria de ser, logicamente, posterior. Por outro, só assim se admite a estranha situação de os flancos externos da igreja ostentarem as segundas pilastras de cada lado interrompidas por uma janela – porque não se refizeram também as pilastras quando se montava a nova cobertura? Importa notar que, pelo interior, a transformação da igreja terá também implicado a sistematização de janelas por cima das capelas laterais, com abertura de novas janelas e a correção do ritmo da sua disposição. Só depois se seguiu a execução e colocação (na banda superior da nave) da série de 16 painéis com episódios da vida de Santo Inácio de Loiola, da autoria do pintor Domingos da Cunha, o “Cabrinha”, datados justamente de cerca de 1635 (Serrão, 2006, p. 93). Julgamos, porém, que à data da crónica de Balthazar Telles (1647) não existiam ainda as novas tribunas altas que hoje existem nem as galerias que lhes permitem o acesso, nem tão-pouco as claraboias laterais que hoje se notam desde o exterior da igreja. Com efeito, o cronista é totalmente omisso relativamente à presença de novas tribunas, referindo-se apenas às tribunas que haviam desaparecido sem que, aparentemente, tivessem sido substituídas – veja-se novamente a passagem que transcrevemos. Aconteceu, pois, a nosso ver, uma segunda intervenção na igreja, na qual se introduziram as galerias e claraboias e se terão transformado as janelas altas em tribunas. Essas alterações terão ocorrido durante a segunda metade do século xvii, pois no início do século seguinte já se encontravam realizadas. É isso que, finalmente, se depreende com a descrição da Igreja de São Roque incluída na História dos Mosteiros (…) de Lisboa, manuscrito da Biblioteca Nacional, que “parece ter sido composta pelos anos de 1704 a 1708” (Pires de Lima, 1950, tomo I, p. 229): “Tem de comprimento [a igreja], sem falar na capella-mor cento e oitenta e seys palmos e de largura oitenta e dous, nam contando o vam que ocupam as quatro capellas, em tudo iguaes, que de cada parte

A IGREJA DO ESPÍRITO SANTO DE ÉVORA CONSTITUIU, NAS LINHAS GERAIS DO SEU ESPAÇO INTERNO, UM VERDADEIRO MODELO ARQUITETÓNICO” correm pelos dous lados do corpo da igreja, as quaes sam muyto fermosas (…) Sobre as capellas corre hum frizo de pedra, e sobre elle no meyo do arco de cada capella fica huma tribuna com seos balaustres, com bastante vam pera accommodar alguns que mays à sua vontade querem ouvir a pregação e lograr juntamente a vista da igreja e da gente que nella assiste. E por estas tribunas, a que correspondem por detraz largas janelas com vidraças, se comunica nam só boa luz às tribunas mas também mayor claridade à igreja.” CONCLUSÕES A conclusão principal que propomos neste ensaio é a de que o espaço interno original da Igreja de São Roque era algo diferente daquele que podemos observar hoje. As parecenças que podemos atualmente verificar entre esta igreja e a do Espírito Santo de Évora resultam, pois, de duas intervenções distintas realizadas na primeira e na segunda metade do século xvii, respetivamente, e que tiveram por fim último aproximar o aspeto interno de uma igreja ao da outra. Primeiramente com a introdução sistemática de capelas laterais a cada lado da nave de São Roque. Depois, e aparentemente, com a adaptação das janelas altas a tribunas, com balaustradas, e com a definição de umas galerias de acesso. Note-se como Balthazar Telles relata ainda a hipótese, em 1647, de poder vir a edificar-se uma abóbada sobre a nave da igreja lisboeta, o que aproximaria ainda mais a arquitetura das duas igrejas. Estas observações permitem ainda deduzir duas conclusões importantes. A primeira é a de que a Igreja de São Roque de finais de 127

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FIGURA 11 Igreja do Colégio de Santarém. Interior (fotografia do autor)

Quinhentos era, quanto à sua tipologia e ao seu espaço interno, dificilmente classificável: uma “igreja-caixa”, é certo, mas com confessionários e tribunas sobre a metade anterior da nave e capelas laterais profundas apenas sobre a metade posterior. Seria, em bom rigor, uma igreja “híbrida”, sem um tipo arquitetónico claro e bem definido. Ainda assim, a sua arquitetura exerceria forte influência, em particular a conformação da sua fachada, como se pode observar pela Igreja de São Paulo de Braga ou pelas primeiras igrejas jesuíticas brasileiras, como as de Olinda (1584-1592) e a já desaparecida do Rio de Janeiro (1585-1588). Em termos planimétricos vingou no Brasil (como em Braga) o esquema simplificado da nave única

sem capelas laterais profundas. Paulo F. Santos atribuiu esta continuidade ao irmão jesuíta Francisco Dias, “arquitecto”, que terá acompanhado a construção de São Roque antes de partir (em 1577) para o Brasil, onde desempenhou papel central na edificação dos colégios brasileiros mais importantes (Santos, 1966, pp. 551-568). A segunda conclusão, que decorre da primeira, é de que a Igreja do Espírito Santo de Évora constituiu, nas linhas gerais do seu espaço interno, um verdadeiro modelo arquitetónico, a copiar e a reproduzir em muitas igrejas jesuíticas portuguesas subsequentes, inclusivamente em São Roque, nas mencionadas reformulações seiscentistas.

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Para terminar, refira-se a igreja do colégio jesuíta de Santarém, edificada aparentemente entre 1672 e 1687, cujo espaço interno (fig. 11) se aproxima do da igreja lisboeta, na sua versão remodelada, tal como a conhecemos hoje. O teto é plano, de madeira, e a nave dispõe de quatro capelas com altares a cada lado, separadas por pilastras (que não existem em São Roque) e intervaladas por um púlpito entre a segunda e terceira capelas. Sobre a entrada existe um coro alto. A igreja de Santarém dispõe ainda de um outro elemento que também existe em

São Roque e que ainda não mencionámos: uma cancela, ou balaustrada, de planta em “U” invertido, que separa a assembleia do presbitério e do espaço (destinado às procissões) que corre na frente das capelas laterais. Sobre as capelas surgem as tribunas servidas por uma galeria pensada de raiz. O paralelismo com a igreja de Santarém reforça, a nosso ver, a probabilidade de ter sido, justamente, neste período, que se adaptaram a tribunas as janelas altas originais da Igreja de São Roque.

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Paulo Craesbeeck.

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| INFORMAÇÃO |

BIBLIOTECAS

DIGITAIS: DIVULGAÇÃO E PRESERVAÇÃO

As bibliotecas digitais comportam valiosos benefícios. Mas a sua criação, além de exigir um cuidadoso planeamento, pressupõe a sua manutenção no tempo, a eficácia da recuperação dos dados, o incremento dos conteúdos e a atualização tecnológica. Texto de Dália Guerreiro [DOUTORANDA EM CIÊNCIAS DA INFORMAÇÃO E DA DOCUMENTAÇÃO PELA CIDEHUS: CIDEHUS-UE/FCT, UNIVERSIDADE DE ÉVORA, BOLSA DE SFRH / BD / 82229 / 2011]

BIBLIOTECA DIGITAL ma biblioteca digital pode definir-se como um conjunto de documentos digitais disponibilizados em linha, com mecanismos de pesquisa e de recuperação da informação. A disponibilização dos acervos através das bibliotecas digitais confere um elevado índice de visibilidade dos documentos, fomenta a preservação dos originais e permite o acesso a pessoas com necessidades especiais ou em determinadas circunstâncias de inacessibilidade.

U

Na 36.ª Conferência Geral1, a UNESCO aprovou o Manifiesto de las IFLA/UNESCO sobre las Bibliotecas Digitales | IFLA (2011). Neste texto, define-se que a biblioteca digital deve ser constituída de acordo com as normas internacionais, ser persistente no tempo e manter os conteúdos devidamente organizados e estruturados, usando as novas tecnologias no acesso e na recuperação da informação. “Digital libraries offer unique ways of recording, preserving, and propagating culture in multimedia form.” (WITTEN e BAINBRIDGE, 2003, p. 5).

1. Realizada de 25 de outubro a 10 de novembro de 2011 em Paris.

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Ou seja, uma biblioteca digital é um conjunto de documentos, imagens, sons, textos, vídeos – nados digitais ou digitalizados – colocados em linha na web, devidamente organizados e estruturados, usando as novas tecnologias no acesso e na recuperação da informação. A criação e a divulgação de bibliotecas digitais incrementam a visibilidade das coleções (acesso/ difusão) e permitem a consulta da mesma obra por vários utilizadores em simultâneo, preservando o original. Para o utilizador, é vantajoso o acesso direto às obras, em qualquer horário ou local. Além disso, é possível adequar o layout a indivíduos com incapacidades. PLANEAMENTO DE COLEÇÕES DIGITAIS A criação de uma coleção ou de uma biblioteca digital exige uma planificação antecipada. Ainda antes de pensar nas obras a digitalizar, ou no modo de o fazer, deve-se caraterizar-se a biblioteca/serviço, definir a sua missão e objetivos, identificar os recursos humanos disponíveis e respetivas competências, e fazer o levantamento do equipamento existente ou a adquirir. Ou seja, é necessário fazer uma caraterização, o mais completa possível, quer da biblioteca quer dos serviços e do pessoal envolvido. Isto implica ponderar se a instituição tem meios para prosseguir na elaboração de um projeto de digitalização, partindo do princípio de que este não vai ser uma tarefa excecional mas mais uma rotina adicional a implementar (Cf. SITTS, 2000). Uma vez analisada a biblioteca e confirmada a existência de condições políticas, económicas, materiais e de pessoal, pode avançar-se para a fase seguinte, que consiste na caraterização da biblioteca digital a criar. Depois de esboçar o plano, em traços largos, há que detalhar, proceder à programação minuciosa, no âmbito da qual se deve responder, de forma completa e concisa, às seguintes questões: • Que trabalho tem de ser feito? • Quem deverá fazê-lo? • Onde deverá ser feito? • Quando será feito? • Como será feito?

A propedêutica do projeto é determinante para a eficácia da sua execução e para uma resposta adequada a uma audiência intrinsecamente diversificada em termos de competências e expectativas. CRITÉRIOS DE SELEÇÃO A definição dos critérios de seleção está intimamente ligada à missão da instituição e às caraterísticas dos respetivos acervos da biblioteca. No entanto, podem referir-se algumas considerações genéricas que auxiliam na seleção das obras. Preferencialmente, devem ser colocadas em linha obras que estejam em domínio público (art. 31.º do Decreto-Lei n.º 16/2008, de 1 de abril). O direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte do criador intelectual. Se as obras estiverem protegidas pelo direito de autor, é necessário obter autorização escrita do autor, ou dos herdeiros ou seus representantes, e do editor para a disponibilização em linha.

DEVE CONSIDERAR-SE, COMO FATOR PREFERENCIAL, O VALOR PATRIMONIAL, HISTÓRICO, CULTURAL OU ARTÍSTICO DAS OBRAS, SEM PREJUÍZO DA COERÊNCIA DO CONJUNTO” Deve considerar-se, como fator preferencial, o valor patrimonial, histórico, cultural ou artístico das obras, sem prejuízo da coerência do conjunto e em função do propósito global da biblioteca digital, tal como foi previamente definido. Outro critério relevante é o da acessibilidade, que determina a criação de suportes alternativos para obras em reserva, de acesso restrito, ou num estado de conservação frágil. Pode, além disso, considerar-se a oportunidade de efetuar uma campanha de restauro simultânea à digitalização. 131

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| INFORMAÇÃO |

PÁGINA PRINCIPAL do portal do Registo Nacional de Objetos Digitais (RNOD)

As dimensões do objeto são, também, um dado importante na seleção. Obras de grandes dimensões, superiores a A0 (84,1 x 118,9 cm), são difíceis de digitalizar com os meios convencionais garantindo a obtenção de imagens com boa resolução, além de que a sua inclusão, em regra, aumenta exponencialmente os custos do projeto. Além destes, deve também avaliar-se os níveis de utilização da coleção, pelo que a identificação das obras mais solicitadas ou consultadas deve ser considerada prioritária. Depois de elaborada a lista prévia de obras a digitalizar, é conveniente verificar se alguma já terá sido digitalizada e disponibilizada em linha por outras instituições. Em Portugal, para o efeito, pode consultar-se o Registo Nacional de Objetos Digitais2 (RNOD), um agregador de conteúdos digitais disponibilizados por entidades portuguesas. Também deve ser consultada a EUROPEANA3, biblioteca virtual dos países da União Europeia e o Internet Archive4, entre outras bibliotecas digitais de referência. DIGITALIZAÇÃO5 A digitalização, enquanto processo que permite a transformação do sinal analógico num sinal digital, é também designada por conversão A/D. O objeto analógico é representado digitalmente através de um conjunto discreto de amostras,

cujo resultado se denomina representação digital (Cf. RIBEIRO, 2004, pp. 31-39). O principal objetivo da digitalização de documentos com valor patrimonial é a obtenção de uma matriz de qualidade, dado que, independentemente do fim a que se destina, este processo deve garantir a preservação dos originais. As imagens digitais obtêm-se a partir da digitalização dos originais, utilizando digitalizadores (vulgo scanners) ou máquinas fotográficas digitais. Em ambos os casos, as imagens resultantes são matriciais. Existem vários modelos de representação das cores para fazer a conversão para o digital, sendo os mais utilizados: o RGB (Red, Green, Blue) e o CMYK (Cyan, Magenta, Yellow, BlacK). Em qualquer dos modelos, porém, há que considerar que a visão humana consegue distinguir uma gama de cores superior à dos equipamentos, pelo que a cor exibida em ecrã pode não ser exatamente igual à do original. O número de bits utilizado para codificar, ou descrever um pixel designa-se por profundidade de cor, ou número de bits por pixel (bpp). A resolução de uma imagem digital corresponde ao produto do comprimento pela largura em pixels. A expressão pixel por polegada (ppp) refere-se à densidade do objeto, ou seja, à relação entre o número de pixels da imagem e a dimensão do original em polegadas, isto é, dividindo a altura e a largura em pixels pela dimensão da imagem em polegadas. Existem vários formatos para processar os dados consoante a sua tipologia. Isto significa que os dados são codificados de acordo com normas fixas para cada um dos formatos existentes, entre os quais o formato TIFF. A capacidade para guardar imagens não comprimidas e sem perdas de dados, bem como a respetiva compatibilidade com as diversas plataformas (iOS, Windows, Linux, etc.), habilitam o TIFF a constituir-se como um formato de imagem adequado à realização de cópias digitais para preservação.

2. Disponível em http://rnod.bnportugal.pt/rnod/ 3. Disponível em http://www.europeana.eu/ 4. Disponível em https://archive.org/index.php 5. Adaptado de GUERREIRO, Dália Maria Godinho – Repositório digital de património cultural móvel: uma aplicação a objectos do culto católico [Dissertação de mestrado apresentada no ISCTE, Lisboa. 2009].

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Em contrapartida, para disponibilizar imagens em linha, tem vindo a dar-se preferência ao formato JPEG, dado que este permite definir vários índices de compressão, sendo que o tamanho dos ficheiros diminui com o aumento do grau de compressão e numa relação direta com o índice de perda de qualidade da imagem. Tendo como ponto de partida imagens com detalhe, com tons de cor contínuos e 24 bits de cor, considera-se: Imagens de arquivo – formato TIFF (sem interpolação, nem compressão): preferencialmente coloridas, sem compressão. Estes ficheiros, arquivados como matrizes, são utilizados para gerar as cópias de consulta. Imagens de consulta – formato JPEG: imagens de baixa resolução, mas com qualidade suficiente para disponibilizar via web, garantindo a legibilidade dos respetivos conteúdos. As imagens-matriz devem incluir as cunhas de cor e de cinza, adequadas às dimensões do original para garantir a qualidade da respetiva preservação (Vd. GUERREIRO, 2009, pp. 41-43). EQUIPAMENTO DE DIGITALIZAÇÃO Os equipamentos utilizados para a aquisição de uma imagem digital bidimensional e fixa agrupam-se em duas grandes categorias: digitalizadores e câmaras digitais. A distinção entre ambos consiste na distância de focagem. Enquanto numa câmara digital a luz chega ao sensor de captação de imagem CCD através de um conjunto de lentes, permitindo a captação de imagens de objetos que se encontrem a diferentes distâncias, nos digitalizadores a distância do motivo a captar ao sensor é fixa, permitindo apenas pequenas variações na profundidade de campo. A escolha do equipamento de digitalização para cada projeto depende dos seguintes fatores: • tipologia de originais a digitalizar, de forma a minimizar os danos provocados pela digitalização; • dimensões dos originais a digitalizar; • resolução ótica máxima do equipamento; • profundidade de cor; • gama dinâmica;

• velocidade de digitalização. No âmbito restrito da construção de repositórios digitais de espécies patrimoniais, podemos distinguir duas tipologias principais de digitalizadores: os de mesa e os planetários. Os digitalizadores de mesa são preferenciais para digitalizar material opaco de pequena espessura como, por exemplo, estampas, fotografias, folhas soltas, herbários, moedas, medalhas, amostras de tecidos, habitualmente objetos de pequena dimensão e de pouca espessura, assim como de material transparente e diapositivos. Não são aconselhados para a digitalização de espécies encadernadas. Os digitalizadores planetários consistem numa mesa articulada com compensação de lombada. Os equipamentos deste tipo, atualmente disponíveis no mercado, permitem uma resolução até 800 ppp óticos para uma área de digitalização até A0. Estes equipamentos, especialmente concebidos para a digitalização de livros, baseiam o seu funcionamento no comportamento inerente à leitura: o livro é colocado sobre um tampo articulado, o que permite a compensação da lombada, sujeitando as folhas com um vidro transparente de cor neutra e cuja pressão é calibrada por sensores.

MAPA com as cunhas. BNF, Ge D 26179 Rés

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A DIGITALIZAÇÃO INTEGRAL DE OBRAS ENCADERNADAS COM VALOR PATRIMONIAL – E, COM MAIORIA DE RAZÃO, AS QUE EXIJAM REQUISITOS ESPECIAIS DE MANUSEAMENTO E DE PRESERVAÇÃO, COMO É GENERICAMENTE O CASO DO LIVRO ANTIGO – DEVE SER REALIZADA EM SISTEMAS PLANETÁRIOS” DIGITALIZAÇÃO DE LIVROS A diversidade de espécies em papel existentes numa biblioteca é vasta. A digitalização de coleções bibliográficas comporta riscos no âmbito da preservação, os quais derivam sobretudo do manuseamento e da sujeição a tensões físicas e a circunstâncias de iluminação invulgares. No caso das espécies encadernadas, acrescem os problemas inerentes à abertura num ângulo suficiente para permitir a captação integral do conteúdo da obra, ocasionando eventuais danos na encadernação e, sobretudo, na lombada. Os livros que tenham sido muito manuseados, ou cuja encadernação não seja muito apertada, permitem, em geral, um grau de abertura a 180o, considerada adequada para a digitalização em equipamentos planetários, mantendo a obra sujeita sob um vidro com filtros ultravioleta. Em contrapartida, as obras sem manuseamento ou submetidas a encadernações posteriores, sobretudo resultantes de restauros recentes, com a costura dos cadernos demasiado apertada e lombadas sem flexibilidade, implicam a utilização de um berço que mantenha a obra com uma abertura entre 100o e 90o. Outro problema relacionado com a encadernação prende-se com as obras demasiado aparadas, adaptando a dimensão do livro à uniformização da coleção e ao tamanho das estantes, deixando, com isso, margens demasiado pequenas

e, mesmo, suprimindo alguma informação, como as notas marginais ou partes impressas. Para comprovar que essas lacunas constam do exemplar copiado, e como princípio, durante a digitalização deve colocar-se uma folha negra ou contrastante sob cada folha a digitalizar, deixando uma margem tão pequena quanto possível, não excedendo em 3% as dimensões do original. A digitalização sem esta margem adicional não permite discernir se a eliminação ou o corte de elementos percetíveis na imagem derivam do original aparado ou de erros na digitalização. Em regra, a digitalização é feita na íntegra, ou seja, de capa a capa. Sobretudo nos casos em que o livro conserva a encadernação original, esta tem um valor patrimonial, pelo que também deve ser preservada através da transferência de suporte. Por princípio, a digitalização deve fazer-se no sentido da leitura, o que implica uma correta observação da obra, sobretudo quando se trata de livros em línguas não latinas (como, por exemplo, o hebraico ou o árabe), averiguando se aquela se faz da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda e certificando-se da posição correta dos carateres, dado o risco de digitalizar uma obra de forma invertida. A digitalização, por norma, deve fazer-se a 100% (escala 1:1), respeitando as dimensões do original. Nos digitalizadores de mesa ou nos planetários, esta definição surge por defeito; nas máquinas fotográficas digitais, é necessário introduzir este enunciado no início de cada sessão. Para a digitalização de preservação e para a conversão em formato texto, as imagens devem ser captadas a 300 ppp ou 600 ppp e em formato TIFF, sem interpolação, nem compressão, incluindo as cunhas de cor e de cinzentos. Desta forma, pode garantir-se que a obra é submetida apenas uma vez ao processo de digitalização, sendo a partir da matriz que – através da edição de imagem – se criam outras versões, nomeadamente para a colocação em linha, com resoluções mais baixas, noutros formatos e eliminando as cunhas de cor, mantendo o original sem alteração. O plano de captação da imagem deve incluir a cunha de cor e a cunha de cinzentos, colocadas

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IMAGEM digitalizada com e sem margem

tangencialmente à margem inferior do original, tendo em vista o posterior controlo de qualidade e o tratamento das imagens. A digitalização integral de obras encadernadas com valor patrimonial – e, com maioria de razão, as que exijam requisitos especiais de manuseamento e de preservação, como é genericamente o caso do livro antigo – deve ser realizada em sistemas planetários, excluindo-se liminarmente os digitalizadores de mesa e de rolo e as máquinas fotográficas digitais do segmento doméstico. ORGANIZAÇÃO DAS IMAGENS Independentemente da tipologia dos originais, uma das tarefas integrantes e essenciais do processo de digitalização é a correta nomeação das imagens e das respetivas pastas. Nesse sentido, torna-se adequada a criação de um sistema de pastas e subpastas, correspondendo estas a cada uma das versões de imagens criadas (matriz em TIFF e exemplares de consulta em JPEG de diversas resoluções, PDF, etc.).

O nome da pasta, que deve identificar univocamente o exemplar físico digitalizado, passa a constituir o <identificador> da obra digitalizada. É a cota do objeto, correspondendo ao número de inventário na instituição, podendo apresentar a sigla da instituição antes do respetivo identificativo. O nome das subpastas regista o identificador e as caraterísticas da imagem, de acordo com o esquema: <identificador> <identificador>_TIF <identificador>_TIF_t0 <identificador>_JPG <identificador>_JPG_24-C-R0120 <identificador>_JPG_08-G-R0150 <identificador>_JPG_24-C-W0140 A nomeação das imagens faz-se de acordo com o seguinte esquema: identificador_número sequencial_número da página_caraterísticas.formato 135

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AS FICHAS DE CATALOGAÇÃO OU INVENTÁRIO, QUE ORIENTAVAM O REGISTO DA INFORMAÇÃO ELEMENTAR, VARIAVAM DE INSTITUIÇÃO PARA INSTITUIÇÃO” Nestas fórmulas, cada campo de informação é separado por traço baixo (_) e os vários elementos dentro de cada campo são separados por hífen (-). No caso dos livros, o número sequencial da digitalização deve apresentar quatro dígitos, permitindo uma numeração de 0001 a 9999, sendo esta sequência reiniciada sempre que se inicia a digitalização de um novo volume, mesmo que da mesma obra. O número de página reflete a paginação do original. No caso de obras com foliação (numeração sequencial dos retos), a indicação dos versos faz-se sinalizando o número do respetivo fólio seguido pela letra v (verso). Quando as partes preliminares ou finais da obra não sejam paginadas ou foliadas, pode criar-se uma numeração árabe ou romana, segundo um princípio de alternância em relação ao corpo da obra e de acordo com a respetiva catalogação. Isto é, se o corpo da obra apresentar uma paginação com numeração árabe, as restantes partes são numeradas a romano, ou vice-versa. Nas obras não paginadas ou com paginação por assinatura é criada uma paginação árabe sequencial. O mesmo acontece nas obras com múltiplos erros de paginação (mais de três), salvaguardando-se o facto de haver discrepâncias entre o número de página do original e da cópia digital, através de uma nota inserida no respetivo registo de exemplar. METADADOS Metadados – ou informação acerca da informação – é um termo que designa, genericamente, todo o conjunto de dados aplicados à identificação de um determinado recurso. “Metadata is data about data. The term refers to any data used

to aid the identification, description and location of networked electronic resources.” (IFLA, 2005). Embora aplicado em particular no âmbito das novas tecnologias da informação, o conceito não lhes é exclusivo, dado que, sempre que se organiza um acervo bibliográfico, gera-se um corpo de dados coerente que informa acerca do documento escrito para efeitos da sua descrição catalográfica, inventário ou indexação. Todas estas práticas sempre se assumiram como atividades programáticas das instituições detentoras de espólios. A investigação parte da observação direta da peça e da recolha dos dados que lhe são essenciais (título ou designação, autoria, data e local de produção, matéria e forma). Para além destes, pode abranger questões mais alargadas, nas quais se inclui o estabelecimento de relações com outras peças congéneres e a identificação de dados que esclareçam acerca dos respetivos contextos originais. Todos estes procedimentos são transversais às atividades biblioteconómicas e a toda a documentação em torno do património móvel. Contudo, os critérios que presidiam ao registo da informação pautavam-se pela diversidade, na maioria das vezes sem critérios normativos. As fichas de catalogação ou inventário, que orientavam o registo da informação elementar, variavam de instituição para instituição. Neste aspeto, a introdução das novas tecnologias e, nomeadamente, o aparecimento das bases de dados informatizadas como estrutura de suporte à inventariação, impôs a normalização na organização e registo da informação. Os metadados apresentam todas as vantagens da gestão de informação que é própria dos sistemas de bases de dados e acrescentam-lhes a interoperabilidade entre sistemas. Dessa forma, basta formular a questão num motor de busca para que este, através da metainformação, encontre a resposta em vários sistemas distintos. “Metadata is machine understandable information for the Web” (W3C, 2001). Essa informação destina-se essencialmente a ser lida por máquinas, permitindo a localização da informação no mundo digital.

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Além disso, a informação tende a tornar-se mais abrangente, englobando dados relacionados com a versão digital do documento ou do objeto: “Os metadados necessários para utilizar e gerir com sucesso objetos digitais são diferentes e mais vastos que os metadados utilizados para gerir coleções de obras impressas e outros materiais físicos.” (LC, 2006). Essa informação integra, por um lado, os dados identificativos do recurso, a sua descrição física, formal e material ou a compilação do respetivo conteúdo e, por outro, a referência aos intervenientes, programas e equipamentos utilizados na criação do produto digital ou digitalizado e a definição dos parâmetros de utilização ou condições de acesso. Os metadados fornecem respostas às questões de “quem”, “o quê”, “quando”, “onde”, “como” e “porquê”, formuladas sobre as várias facetas da informação que se pretende documentar. Constituem, deste modo, o somatório da informação disponível sobre determinado recurso: o conteúdo, o contexto e a respetiva estrutura. Este conjunto de dados abre novas perspetivas à investigação, na medida em que a pesquisa pode ser significativamente facilitada através de metadados ricos e consistentes (Cf. GILL, 1998, p. 8). De entre os vários esquemas de metadados destaca-se o Dublin Core (DC). O esquema de metadados como o DC (COVER, 2005) é constituído por um conjunto de elementos (elements set), aos quais se associam as respetivas etiquetas. Por sua vez, o conjunto de elementos possui qualificadores (especificações do elemento), utiliza vocabulários controlados específicos, como os tesauros, e tem uma semântica e uma sintaxe próprias. A semântica, ou o elenco do significado dos elementos, enumera as várias etiquetas e os respetivos significados; a sintaxe, ou o conjunto de elementos bem definidos e as suas relações, permite hierarquizar as várias etiquetas e definir a forma como se vão relacionar umas com as outras. Cada elemento pode ter o seu esquema de codificação.

CONCLUSÃO A construção de uma biblioteca digital tem por objetivo a constituição de um corpus coerente de informação, tendo em vista a preservação, o estudo, a comunicação e a divulgação dos materiais que lhe estão na origem. Isto coincide, em larga medida, com as funções patrimoniais atribuídas às bibliotecas. Porém, na atualidade, estas funções dispõem de ferramentas tecnológicas que lhes conferem uma nova dimensão, permitindo a transferência dos acervos para suporte digital e a divulgação, a nível global, através da web.

BIBLIOGRAFIA COVER, Robin – Technology reports: Metadata Encoding and Transmission Standard (METS). Cover pages: online resource for markup languages technologies [online]. 2005. [Consult. 16 abril 2007]. Disponível em http://xml.coverpages.org/mets.html. GILL, Tony et al. – Introduction to Metadata: pathways to digital information [online]. Ed. Murtha Baca. Los Angeles: Getty Research Institute, 1998, atual. 2008. [Consult. 4 janeiro 2009]. Disponível em http://www. getty.edu/research/conducting_research/standards/ intrometadata/index.html. GUERREIRO, Dália Maria Godinho – Repositório digital de património cultural móvel: uma aplicação a objectos do culto católico. Lisboa: ISCTE, 2009. Dissertação de mestrado. Disponível em http://hdl.handle. net/10071/1829. IFLA – Manifiesto de las IFLA/UNESCO sobre las bibliotecas digitales [online]. Atual. 2011. [Consult. 18 junho 2014]. Disponível em http://www.ifla.org/ES/ publications/manifiesto-de-las-ifla-unesco-sobre-las-bibliotecas-digitales. RIBEIRO, Nuno Jorge Gonçalves de Magalhães – Multimédia e Tecnologias Interactivas. Lisboa: FCA, 2004. SITTS, Maxine (ed.) – Handbook for digital projects: a management tool for preservation and access. Andover Massachusetts: Northeast Document Conservation Center, 2000. ISBN 9780963468543. WITTEN, Ian H.; BAINBRIDGE, David – How to build a digital library. San Francisco: Morgan Kaufmann Publishers, 2003. 518 p. ISBN 9781558607903.

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| REFLEXÃO |

FAMÍLIA,

AFECTOS E

CONSUMOS

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1. Conferência proferida na Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa, no âmbito dos encontros “Fins de tarde com a família”, realizados no edifício sede da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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A família é a estrutura criadora e possibilitadora de desenvolvimento de ser e de vida, obedeça a que modelo obedecer. Autoridade da sabedoria, com uma dimensão económica inalienável, a família é uma comunidade de amor. Texto de Américo Pereira [PROFESSOR AUXILIAR DA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E MEMBRO DA DIREÇÃO DO CENTRO DE ESTUDOS FILOSOFIA, UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA]

FAMÍLIA, FAMÍLIAS família é uma estrutura fundamental da espécie humana. Não poderia haver espécie humana se não existisse esta estrutura. Não só o ser humano individualmente entendido depende do acto familiar mínimo que é o encontro sexual fértil, como também não pode, de modo algum, subsistir – senão em narrativas míticas – sem a família mínima, constituída pelo acto de contínuo cuidado de um outro ser humano, comummente aquilo a que se dá o nobre nome de mãe, mesmo que o objecto desse nome não seja a progenitora em sentido biológico estrito. Há, também, muitas formas de se ser mãe. Aqui se estabelece um paradigma estrutural que constitui a própria humanidade como coisa nascida de e na família, obedeça esta a que modelo obedecer. O fundamental é a estrutura-família como criadora e possibilitadora de desenvolvimento de ser e de vida. Reside aqui o absoluto da realidade família, tudo o mais é relativo. Em termos da tradição cristã, há um pai de família absoluto, que é o próprio Deus, em e pelo seu acto criador. Todos somos filhos de Deus porque todos somos actos/criaturas de um mesmo Pai, nossa família absoluta. Melhor se percebe, agora, o drama de Job: enquanto em casa do Pai, Job encontra-se no seio do amor criador do Pai, a que responde como bom filho que é. Apenas fora da relação familiar, por aparente ausência do Pai, sem isso que é a família como acto de amor, pode Job ser testado como coisa puramente individual, isto

A

é, como ser humano sem família. E a experiência de Job é precisamente a da radical ausência de família, a todos os níveis. Sabemos das consequências imediatas e mediatas. Sabemos, sobretudo, que Job manteve viva em si a memória fundamental de uma familiaridade com Deus que nunca abandonou, mesmo tendo sido por Deus aparentemente abandonado. Só que, para Job, o abandono foi vivido como real, na plenitude do sofrimento da total solidão, da radical ausência de laços familiares. Inferno na terra ou inferno como ausência absoluta de familiaridade com os demais seres humanos e, sobretudo, com Deus. Sem família, repetimos, não é possível a humanidade. A família é coisa biológica. E é-o de uma forma que assume dimensão muito mais vasta e profunda do que a sua simples valência biomaterial. Como é evidente, não é possível haver vida humana sem vida humana preexistente. Mas a família não é coisa biológica num sentido meramente material: o simples mecanicismo material da criação de vida individual nova nunca constitui algo que mereça o nome de família. Por tal, o facto de ser progenitor de alguém não concede automaticamente o título de familiar de alguém. Esquecemo-nos de que ser mãe, ser pai, ser familiar em sentido geral, exige literal trabalho, que não é mero trabalho em seu sentido físico estrito, mas trabalho em sentido humano, que é apropriação, já de ordem espiritual, do movimento físico. Ser mãe e pai, ser familiar em geral, é um merecimento. 139

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| REFLEXÃO |

A família é coisa biológica no sentido de que é maximamente o acto de possibilitação da renovação da vida, do surgimento e desenvolvimento de vida nova. Em termos cristãos, este máximo é assumido na perfeição pela Santíssima Virgem que começou a ser família de Cristo não quando o Espírito a conheceu, mas quando disse sim à possibilidade de conhecimento do Espírito, acompanhando sempre o Filho, corrigindo-o quando necessário, assistindo à totalidade da sua paixão e morte, recebendo-o, em angustiosa piedade, em seu colo. O colo de Maria não amortalha Jesus, serve-lhe de berço para um sono que será o último. Maria é o paradigma da família como acto de amor criador. Este é o sentido da família biológica, inscrito numa materialidade que a Incarnação, por ser precisamente incarnação, não desmentiu, mas numa materialidade que se limita a cumprir a necessidade de transformar em humana carne o sim de Deus à possibilidade de salvação do ser humano e o sim de Maria ao sim de Deus. Paradigmaticamente, família é carne. Mas a carne é o acto material do espírito. Então, família é espírito, acto de espírito feito carne, carne que é fiel presença do que ama ao amado. Assim Maria na relação com o Filho. Mas assim também José, Pai, que é factor de possibilidade de vida sem relação material. José não conheceu Maria, mas amou-a e a seu Filho, no que é a mais bela lição de amor, puro amor, pois que nem dimensão material progenitorial foi passível de possuir. José incarna a outra forma paradigmática de se ser família: através de um acto puramente espiritual. É-se família simplesmente porque se ama. Mais nada, a não ser tudo o que amar implica e é todo um mundo de dedicação e de trabalho. São José, o trabalhador. Família é trabalho. Se o Espírito Santo é o mediador que conhece Maria, São José é o mediador que provê o sustento para a, agora sim, completíssima, Família. São José é esse que prolonga materialmente o acto do Espírito, pois, sem a sua acção providencial, Jesus dificilmente subsistiria como ser humano. Cristo,

o carpinteiro. José, o carpinteiro. Mas, sobretudo, José o continuador terreno do acto providencial de Deus. José o Pai de família, que substitui Deus, que já não pode actuar como no Génesis. E temos, agora percebe-se porquê, a Sagrada Família, que, neste caso, é sagrada porque é mesmo santa: a santa família de Nazaré. Essa que permitiu ao Deus-bebé e Deus-menino chegar a ser Deus-homem. Ora, sendo cada ser humano imagem e semelhança de Deus e cada família humana lugar de possibilidade de desenvolvimento do ser humano, a família é o lugar do desenvolvimento divino do ser humano. Teoricamente. Esta descoberta pode ter uma leitura simplesmente laica: a família, qualquer seja, é o lugar do pleno crescimento das potencialidades propriamente humanas do ser humano incoativo. Para o cristão, estas potencialidades são a imagem e semelhança de Deus no ser humano. Não há contradição, apenas diferença especificadora. Melhor ou pior, este paradigma de hipótese de desenvolvimento de possibilidades próprias do ser humano tem funcionado ao longo do que é a história da espécie humana. Mas a história universal do ser humano é a história propriamente dita. Assim, a família, multimodalmente e de forma mais ou menos bem conseguida, é o motor da possibilidade da história. O drama histórico, com as suas berrantes tragédias, começa com a família e com a formação que a família dá a cada um daqueles cujo desenvolvimento permite. É o seu molde antropológico fundamental. Do nível de perfeição dessa formação muito do que se passa no drama do mundo depende. Muito deste drama diz respeito à qualidade intrínseca do novo ser, mas, se essa qualidade, seja qual for, não for trabalhada pela família no sentido do bem, apenas por feliz coincidência produzirá bons frutos. Perfeito era Cristo e nem por isso deixou a Mãe de o corrigir no famoso episódio das Bodas de Caná da Galileia: a autoridade é devida a quem é sábio. É que a sabedoria é Deus em acto no ser humano e Cristo bem percebeu que quem tinha razão era sua Mãe. Família é autoridade da sabedoria e apenas da sabedoria.

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FAMÍLIA NA PASSIVA Em boa parte, vivemos de modas. Está na moda o tema dos afectos. Tal ênfase é, em parte, devido a uma suposta falência de um modelo dito racionalista. Supostamente, procura encontrar-se nos afectos aquilo que a racionalidade não foi capaz de proporcionar: uma humanidade digna de patentear tal nome. Da fria inteligência racional, incapaz de sentir o próprio dar-se da vida, passa-se a uma forma de inteligência sensível, em que o que conta é o que se sente. Chega mesmo a opor-se pensamento a sentimento. Nada mais errado e perigoso do ponto de vista antropológico.

mental do ser humano a uma sua parte. Quando se procura alicerçar a vida de um conjunto qualquer de pessoas sobre a parte da sua inteligência dedicada à parte material-sensível – seja esta sensibilidade orientada para o exterior ou para o interior da pessoa –, criamos um mundo em que apenas o que é de índole material tem sentido, removendo da possibilidade de fazer parte desse mesmo mundo quer o que diz respeito à parte teórica da vida humana quer o que diz respeito ao governo do motor da própria inteligência, fundamento da própria possibilidade de acção humana, a vontade.

O FUNDAMENTAL É A ESTRUTURA-FAMÍLIA COMO CRIADORA E POSSIBILITADORA DE DESENVOLVIMENTO DE SER E DE VIDA. RESIDE AQUI O ABSOLUTO DA REALIDADE FAMÍLIA, TUDO O MAIS É RELATIVO O ser humano, em seu acto vígil, nada mais é do que um acto de pensamento, precisamente no que o torna propriamente humano, isto é, um ser racional e livre, mas livre apenas porque racional. Neste acto vígil, a inteligência que o ergue contra um absoluto nada de sentido – única alternativa possível – é constituída por isso a que chamamos sensibilidade, vontade e inteligência, em sentido estrito – a tal restrição racional posta em causa. Ora, cada uma destas chamadas faculdades humanas não é um desdobramento da pessoa, não é como que um “departamento autónomo da instituição humana” ou, pior, um habitante da pessoa, no que seria uma fundamental esquizoidia do ser humano. São apenas formas próprias que a inteligência humana como um todo tem de se adaptar ao contexto de ser em que sempre se encontra inserida. É sempre um erro com consequências eventualmente trágicas privilegiar uma destas facetas funcionais da inteligência em detrimento de outras, pois, ao fazê-lo, estamos a reduzir o funda-

Esta redução sensista explica teoricamente muito do que se passa na família, no ensino escolar ou na sociedade ocidental em geral, em que, salvo raras excepções, tudo o que diz respeito à inteligência teórica e ao exercício da vontade está em franca crise. Substitui-se o pensamento teórico por um papaguear copista de banalidades requentadas. Tudo se faz para que decisões difíceis possam não ter de ser tomadas, assim adiando a resolução de problemas graves, por vezes, condenando com tais indecisões milhões de pessoas ao sofrimento e à morte: lembremo-nos dos tristes casos da antiga Jugoslávia e do Ruanda. Acresce que o afecto, como toda a sensibilidade, se bem que imprescindível no âmbito próprio, é da ordem do passivo: não depende fundamentalmente de nós. A passividade nega essencial e substantivamente a nossa liberdade: ao simplesmente sentir, sou escravo do que sinto. Se não for capaz de me apropriar do que sinto, desapareço como pessoa. Na dor e no sofrimento, como na alegria, só permaneço se deixar de ser meramente sujeito 141

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de afecto e passar a assumir como minha a dor, como meu o sofrimento, como minha a alegria. Voltamos a Job, mas também encontramos Cristo, no acto fundamental da assunção do cálice da Paixão, que, assim, deixa de ser apenas paixão para passar a ser acto. A Paixão de Cristo é fundamentalmente não-passional, mas activa: é o acto livre de assunção da cruz que salva. Pode, então, perceber-se que a família não deve ser algo de passional, de passivo, mas de activo. Apenas na amorosa atenção ao bem possível e necessário do outro, dos outros, sem qualquer violência, por excesso ou por defeito, apenas no exercício do acto pleno de caridade para com o outro, a família pode encontrar a sua possibilidade plena e a sua plena realização.

humanidade. Não esqueçamos que a Sagrada Família não é sequer uma família integralmente biológica, não deixando de ser perfeita por causa disso. Mas a família pode mesmo ser uma “coisa que consome”. Há uma dimensão económica inalienável na família, sobretudo para aqueles que, no seu seio, não têm ainda ou já não têm capacidade própria de lidar com a parte económica da sua existência. Ora, esta parte é essencial e substancial, nunca podendo ser dispensada ou descurada. As visões românticas acerca da família apenas como troca de sentimentos, pura e simplesmente condenam seres humanos à morte, pois as pessoas não comem afectos, consomem água, hidratos de carbono, proteínas, oligoelementos, etc. E consomem-nos de forma necessária.

O SER HUMANO, EM SEU ACTO VÍGIL, NADA MAIS É DO QUE UM ACTO DE PENSAMENTO, PRECISAMENTE NO QUE O TORNA PROPRIAMENTE HUMANO, ISTO É, UM SER RACIONAL E LIVRE, MAS LIVRE APENAS PORQUE RACIONAL Ora, é este o paradigma da Família de Nazaré, o acto no sentido do bem de todos e de cada um. Não é apenas um alfobre mecânico para que o Deus feito carne possa crescer, no que seria um acto de escravização de Maria e José, mas um acto de uma comunidade de amor, que promove o bem de todos, porque só este bem pode servir o bem do próprio Deus. A família é, pois, um acto e apenas como acto pode subsistir. FAMÍLIA COMO “COISA QUE CONSOME” A família pode ser vista como “coisa que consome”, mas é sobretudo “coisa que consuma”, que realiza a possibilidade de continuidade propriamente humana da humanidade, não havendo, para ela, substituto possível, independentemente dos modelos, sempre culturais e secundários relativamente ao fundamental da família como útero político da

A família possui, assim, na sua base mais fundamental, uma dimensão económica que implica consumo e consumo perfeitamente correcto. O problema não é o consumo em si mesmo e como tal, mas o modo são ou perverso como esse consumo é operado. O que se consome? Os bens necessários para que a família possa existir como tal, isto é, os bens que promovem o bem comum da e na família? Então, tal consumo é santo e dele apenas bem pode advir à família. O próprio acto de consumo, se for sempre de tipo agápico, é um acto de união dos membros da família e, nesse acto de consumo, a família consuma-se como família. Como exemplo paradigmático damos aquele que é o acto político mais belo que conhecemos: o acto de amamentação. Quanto menos a família consuma o acto de amor que é, mais necessidade tem de consumir

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outras quaisquer realidades substitutivas. Quem se sabe amado – porque o acto de amor preenche totalmente o ser de quem ama e de quem é e se sabe amado – não precisa de ir em busca de soluções alternativas. A fonte dos consumos perversos na família é a ausência de amor na família. A ausência de amor na família corresponde a uma real inexistência de família. Pode haver família em sentido jurídico ou sociológico, qualquer seja, do termo; mas, sem amor, não há família no sentido essencial e substantivo do termo. Precisamente porque a família, ontologicamente, ou é um acto de amor ou não é coisa alguma. O cuidado com o pormenor do consumo perverso no seio do que deveria ser uma família é absolutamente irrelevante, se não se perceber esta sua origem fundamental. Podemos ir buscar todas as ferramentas securitárias, se o membro da família pensar que está, não no seio de uma comunidade de amor, mas num campo de concentração, arranjará sempre modos de encontrar substituto para o que lhe falta, seja liberdade, autonomia ou ternura, ainda que o faça de modo ilusório. Mas esta ilusão anula efemeramente a dor do abandono como ser que se quer amado e não o é. No limite, a morte será sempre uma possibilidade de gritar ao mundo, em desespero, o absoluto da ausência do necessário amor negado2. FAMÍLIA COMO “COISA SOFRIDA” Sendo a família um acto de amor, ela não deixa também de ser uma “coisa sofrida”, não já num sentido passional puramente passivo, mas no sentido de que amar pode dar muito trabalho, muita dor e muito sofrimento, se bem que também possa trazer consigo muita alegria. Parece, então, que a família é uma tenebrosa promessa de dor e de sofrimento, com uma talvez vã possibilidade de alegria associada. É uma aventura humana da mais elevada exigência, em que nada está garantido a não ser que não há garantia alguma: pode tudo correr mal ou não.

Podem os sonhos todos afundar-se ou não. Podem os fins todos revelar-se inatingíveis ou não. A família é o acto presente de amor entre pessoas que é fundamentalmente um acto de fé na possibilidade de bem do futuro, mas é, sobretudo, o presente contínuo do querer que esse bem seja possível. Logo, a família é um esforço contínuo de realização do bem comum que se quer para tais pessoas, indefectivelmente, se necessário contra tudo e contra todos, na certeza de que, mesmo todos morrendo no fim, o amor nunca morreu. É este o grande triunfo sobre o movimento que procura aniquilar a vida e o bem último da vida que é o amor. Sofre-se, mas triunfa-se, no único modo em que o triunfo é possível ao ser humano: espiritualmente. DIMENSÃO ÉTICA DA FAMÍLIA A dimensão ética da família diz respeito ao acto interior próprio de cada um dos seus elementos integrantes: é no seio deste acto, absolutamente pessoal e intransmissível, que nasce tudo o que a família é e pode ser. É a partir dele que se pode transcender para o âmbito do político, isto é, das relações interpessoais. Não confundir com o âmbito da correcção da acção no seio da família, da ordem do político. A ética não é um cardápio de procedimentos, mas o mesmo acto próprio de cada ser humano enquanto pessoa. Boa ou má. A acção do ser humano é sempre ética, pois é sempre o que esse ser humano é enquanto acto próprio, a nada redutível. A acção correcta segundo o bem comum da família é o bem da família em acto; a acção incorrecta segundo o bem comum da família é o mal, segundo o bem comum da família. Mas o problema do mal não é ser negativo eticamente, é ser negativo ontologicamente, o que significa que o mal que se faz aniquila a possibilidade de bem. Esta possibilidade aniquilada fica para a eternidade e o bem que não pôde ser feito nunca mais poderá ser feito; e não há substitutos ontológicos

2. O desespero da impossibilidade de amar por não se conseguir já perceber amado pode ser visto, no seu esplendor trágico, no filme Leaving Las Vegas, de Mike Figgis, numa reescrita fílmica de Crime e Castigo, de Dostoievski, em que a redenção já não é possível, mesmo perante o dom de um amor incondicional.

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possíveis. Em termos da família, isto tem uma importância extrema, pois todo o bem feito permanece para sempre no seio da família, mas o mal também. Uma palavra de amor que deveria ter sido dita e não foi pode ter consequências trágicas, impossíveis de ser remediadas. E não há perdão que obvie ao mal feito, apenas ao mal do malfeitor3. Mesmo que tal mal seja introduzido no seio da família sem o que hoje se chama consciência e culpa associada, tal mal não deixa de o ser e de obedecer à lógica de que depende.

político por essência e substância. Ora, esta definição constitui não apenas a definição de comunidade política, como também, na sua perfeição possível, o acto próprio da Cidade de Deus ou mesmo do Reino de Deus, na sua versão teológica cristã. Pensemos na Sagrada Família: o seu acto é o acto político paradigmático, que integra harmónica e sinfonicamente os actos de recíproco amor entre todas as três pessoas que a constituem; as duas restantes, após a morte de José.

A FAMÍLIA PODE SER VISTA COMO “COISA QUE CONSOME”, MAS É SOBRETUDO “COISA QUE CONSUMA”, QUE REALIZA A POSSIBILIDADE DE CONTINUIDADE PROPRIAMENTE HUMANA DA HUMANIDADE O exemplo de Édipo é claro: vítima inocente de um mal genético de uma família, mal iniciado pelo crime de Zeus, Édipo tudo fez para poupar a sua família ao mal, mas acabou por ser agente de males terríveis, em absoluta inocência de vontade própria. Mas o mal feito, feito foi e teve consequências trágicas indeléveis. A sua salvação final não apagou o mal feito, apenas premiou o sofrimento assumido por um inocente que aceitou penar por uma culpa que não era sua. A ética na família, na sua relação com a dimensão política da família, implica uma total atenção ao bem de cada elemento e uma acção indefectível nesse sentido. Tal é impossível de realizar? Não. O amor implica um esforço humano que eleva o ser humano a alturas divinas. DIMENSÃO POLÍTICA DA FAMÍLIA A dimensão política da família é a própria família, quer dizer, o acto da família é um acto de amor entre pelo menos duas pessoas, acto

O acto das Bodas de Caná ilustra precisamente esta relação política entre Cristo e sua Mãe, mesmo no que a política pode ter de menos nobre, o exercício do poder, se este for não no sentido do bem comum, mas no sentido do bem de apenas um ou de alguns. A lição política que a Virgem dá a seu Filho é paradigmática: ainda que o bem a respeitar inicialmente fosse o do próprio Deus incarnado, um novo bem possível surge a partir do movimento próprio da vida, dom inicial de Deus, posto ao serviço do bem comum. No fim, é o bem comum emergente que é servido: Deus não é coisa caprichosa ou mesquinha, o próprio serve o bem comum, como era suposto que fizesse. E este acto de Maria é o acto paradigmático em termos da relação entre a fonte ética da acção e do bem possível e a sua transcendência política: Maria viu e decidiu, o bem fez-se, o bem foi servido, os seres humanos foram servidos, Deus foi servido. É um momento de Cidade de Deus e de Reino de

3. Sobre o tema do “Perdão”, ver: FREITAS, Manuel da Costa – Perdão. In O ser e os seres. Itinerários filosóficos. Vol. II. Lisboa: Verbo, 2004, pp. 216-217.

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Deus na terra. Mas todos os momentos da Sagrada Família o foram ou não teria havido Sagrada Família. É este o modelo, não ideal, mas real para todas as famílias. Não há outro. FAMÍLIA COMO O LUGAR DA AMIZADE A família é o lugar da amizade. Aliás, é a amizade que constitui a família. A amizade, no que tem de mais elevado, ontológica, ética e politicamente, é um acto de amor recíproco entre pelo menos duas pessoas. Como vimos, este acto de amor é a família em acto. Assim sendo, não há família sem amizade. Quando se diz que se tem o melhor amigo ou amiga fora da família, a pessoa que dá tal testemunho não percebe que chama família a algo que o não é. A família é onde está a amizade que realizamos. Se não há amizade na nossa vida, não há família na nossa vida. Pode haver a ilusão de se ter família porque se vive numa conjugação análoga de tipo jurídico ou sociológico. Mas isso não é família. No romance de Dostoievski, Crime e Castigo, Rodion, o criminoso, e Sónia, a jovenzinha prostituída, encontram na sua amizade a família que verdadeiramente nunca tinham tido. Este encontro revela-se salvífico para ambos, nesse recíproco amor encontrando a mútua redenção. A família é amor salvífico e redentor, a cada momento, a cada acto, ou não é família alguma. Neste sentido, mesmo distante no espaço, Cristo, se o amarmos, é a nossa família, o nosso amigo, a carne da nossa carne, pois o amor que lhe tenho e o amor que me tem são a nossa comum carne. A família pode ser muitos corpos, mas no acto de amor que a constitui é uma só carne, uma só dor, uma só alegria, em e pela partilha operada pelo acto de amor. Se amo o outro, amo-o com o seu sofrimento; não sofro o que ele sofre, mas sofro porque sofre e enquanto sofre. Tal não basta: amá-lo é fazer tudo para que deixe de sofrer, o que implica nunca o abandonar enquanto sofre: presença contígua dos corpos em carne que é amor, como simbolizada pelo colo de Maria.

FAMÍLIA COMO COMUNIDADE DE AMOR Esta comum carne – que não é fusão ou confusão de pessoas, mas acto de amor, acto de espírito, mas incarnado – é a própria família. Repare-se que esta carne espiritual nada tem que ver com questões de ordem biológica. A biologia é apenas uma forma de base material da família. A grande base da e para a família é o acto de amor necessariamente mútuo: a amizade. A família, sublinhe-se conclusivamente, não é apenas amor: com um acto de amor singular e não correspondido, não é possível fundar uma família. Pode ser o despertador ético e político para que a constituição da família seja possível, mas não basta. Tem de haver correspondência. E é o drama da relação de Adão e Eva que aqui encontramos, não enquanto família terrena, de que não duvidamos quanto à sua relação, mas quanto à familiaridade com Deus, que recusaram ao recusar a aliança. Ao acto de amor, acto exigente, de Deus, não responderam com um acto de amor, mas com um acto de perversa afirmação de poder. Se bem que amando-se mutuamente – nada no texto nos afirma o contrário –, Adão e Eva nunca conseguiram alargar a família em sentido fundamental, pois o seu amor era intransitivo: não transitou para Deus, não transitou para os filhos, que destruíram toda a possibilidade de familiaridade. A humanidade tem vivido esta incompletude familiar, que é negação da família. É com Cristo que a família recebe o seu sentido pleno de comunidade de amor, que tem necessariamente de transcender o âmbito adâmico de família segundo o corpo, no sentido de se tornar família segundo o espírito e a carne, espírito e carne que são o acto do amor. Que expressão mais bela e comovente essa que diz: “carne da minha carne”, em que o amor não se sente, mas coincide com o meu acto – eu sou apenas a carne do amor e do bem que ponho no mundo, família que Deus quer e que deveria ser o meu horizonte de amor, pois dons e capacidades não me faltam. Nota: Por opção do autor, este artigo não segue as regras do acordo ortográfico.

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UM NOVO OLHAR SOBRE O NOSSO

PATRIMÓNIO Inspirar 2016. Ano Jubilar da Misericórdia Preservar, valorizar e renovar o património da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é afirmar a sua identidade, prestigiando o legado de todos aqueles que confiaram o testemunho de conduzir esta instituição ao futuro. Texto de Ana Delgado [TÉCNICA SUPERIOR, PROJETO DE AMPLIAÇÃO DO HOSPITAL ORTOPÉDICO DE SANT’ANA | DEPARTAMENTO DE GESTÃO IMOBILIÁRIA E PATRIMÓNIO]

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I

nspirar o ano de 2016” foi o que o Papa Francisco fez ao decretar um Jubileu Extraordinário, um Ano Santo da Misericórdia, que decorre entre 8 de dezembro de 2015 e 20 de novembro de 2016, recordando-nos tudo o que acontece no mundo e à nossa volta. Um ano que nos inspira a fazer ainda mais pelo próximo, contribuindo para um mundo melhor. Hoje, como ontem, o espírito e a missão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) são os mesmos, causa maior para percorrer este caminho jubilar de celebração da misericórdia, virtude presente na prática da Santa Casa há mais de cinco séculos e que projetamos no futuro. É o tempo de celebração e renovação das obras de misericórdia. Neste ano jubilar e pondo em prática o seu compromisso originário, a SCML prossegue o caminho da renovação, valorização e ampliação do seu vasto património, criando novas respostas nas áreas da ação social e da saúde para aqueles que todos os dias acolhe e apoia. A ampliação do Hospital Ortopédico de Sant’Ana, propriedade da SCML, é disso exemplo, com o início da construção de uma nova

unidade de saúde, obra que permitirá aumentar a capacidade de resposta deste hospital e alargar as suas valências.

VISTA POENTE do edifício principal do Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA)

HOSPITAL ORTOPÉDICO DE SANT’ANA, MARCA DA NOSSA MEMÓRIA COLETIVA A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa respeita a memória e a vontade de todos aqueles que entregam os seus bens na certeza de serem colocados à fruição de todos. O Sanatório de Sant’Anna, nome inicial da instituição, foi inaugurado no dia 31 de julho de 1904, por D. Claudina Chamiço, para dar resposta ao surto de tuberculose, “o mal do século”, que então grassava por toda a Europa. Em Portugal, o médico José Tomás de Sousa Martins, clínico de reconhecida competência, foi precursor na luta contra a doença. Sousa Martins conquistou o apoio da família Chamiço Biester para o desenvolvimento do projecto de construção de um sanatório, num local em que o clima, o sol e o mar eram particularmente indicados para o tratamento deste tipo de doença. Em testamento, D. Claudina Chamiço legou o Sanatório de Sant’Anna à Misericórdia de Lisboa 147

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D. CLAUDINA CHAMIÇO LEGOU EM 1911 EM TESTAMENTO O SANATÓRIO DE SANT’ANNA À MISERICÓRDIA DE LISBOA”

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FOTO 1 D. Claudina de Freitas Guimarães Chamiço FOTO 2 Cerimónia de lançamento da primeira pedra do Sanatório de Sant’Anna, a 7 de agosto de 1901 FOTO 3 Inauguração do Sanatório de Sant’Anna a 31 de julho de 1904

em 1911, “por ser a Instituição que pela sua respeitabilidade, antiguidade e garantia de duração, mais própria lhe pareceu para receber este legado”, e que veio a dedicar-se à recuperação dos doentes com tuberculose óssea. A partir dessa data, a assistência aos doentes foi assumida pelas Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, congregação religiosa que mantém presença no hospital até aos dias de hoje.

Depois da morte de D. Claudina Chamiço, em 1913, a gestão do sanatório foi assegurada por uma comissão de sete membros, entre eles o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Em 1927, a referida comissão decidiu entregar à Misericórdia a gestão do sanatório. A instituição conheceu, então, uma nova dinâmica: montaram-se as salas de RX e tiveram início as primeiras intervenções cirúrgicas ortopédicas. Em finais dos anos de 1950, o sanatório viveu um renovado impulso, tendo sido introduzidas várias modificações, incluindo a instalação de uma sala de operações. Surgiram, ainda, os especialistas de ortopedia, anestesiologia e de medicina física de reabilitação (o primeiro Serviço de Medicina Física de Reabilitação no país), permitindo uma maior qualidade no tratamento dos doentes. Em 1961, por despacho ministerial de 21 de julho, o sanatório passou a ter existência jurídica como Hospital Central. Já em 1977, através do Decreto n.º 4807/7, de 15 de novembro, o Hospital de Sant’Ana foi integrado na Direção-Geral dos Hospitais, regressando, em 1982, à administração da Misericórdia de Lisboa (Decreto-Lei n.º 341/82, de 25 de agosto), por força do legado feito pela sua fundadora.

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O Hospital de Sant’Ana, vocacionado essencialmente para a prevenção, o tratamento e a reabilitação musculoesquelética, iniciou em 1981 (ainda antes de ter sido reintegrado na SCML), a cobertura traumatológica da área circundante de Cascais/Sintra. A partir de maio de 1999, passou a assegurar o serviço de urgência de traumatologia ortopédica, em conjunto com o Hospital Egas Moniz, dos concelhos de Oeiras e Lisboa, no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental – CHLO/ (Hospital São Francisco Xavier). Considerado uma referência em Portugal nas áreas de ortopedia e traumatologia, o Hospital de Sant’Ana, propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dispõe de outras valências, tais como: anestesiologia, cirurgia plástica (estética e reconstrutiva), dermatologia, medicina física e de reabilitação (fisiatria, fisioterapia e terapia ocupacional), medicina interna, oftalmologia, otorrinolaringologia, psicologia, reumatologia e o serviço de radiologia. Por ano, são realizadas em média neste hospital 34 mil consultas e cerca de 2500 cirurgias. VAI NASCER UM NOVO HOSPITAL EM 2017 O Hospital Ortopédico de Sant’Ana localiza-se no concelho de Cascais, freguesia da Parede, sendo confrontado, a sul e a poente, com a Avenida Marginal. O seu interior contém vários edifícios de diferentes épocas e tipologias que, no conjunto, constituem o Hospital Ortopédico de Sant’Ana. O edifício principal, o Sanatório de Sant’Anna, encontra-se classificado e protegido por uma Zona Especial de Proteção (ZEP). É um exemplo notável de arquitetura hospitalar da época, assim como o seu anexo, o edifício da lavandaria. No extremo norte do lote iniciaram-se, em 1986, as obras de construção do Centro Ortopédico de Desenvolvimento Infantil (CODI), um edifício separado funcionalmente dos restantes e que se destinava a consultas externas, mas que nunca chegou a ser concluído, perdurando até final do ano 2015 a estrutura do mesmo já em ruína.

FOTOS 4 E 5 Estrutura em ruína do Centro Ortopédico de Desenvolvimento Infantil (CODI)

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VAI NASCER UM NOVO HOSPITAL EM 2017” A intervenção que dará lugar à construção de uma nova unidade hospitalar no Hospital Ortopédico de Sant’Ana iniciou-se com as obras de demolição da estrutura anteriormente destinada ao Centro Ortopédico de Desenvolvimento Infantil – CODI, projeto suspenso há 29 anos. A demolição da referida estrutura foi concluída no início de 2016. Neste terreno, vai nascer em 2017, uma nova unidade hospitalar da Santa Casa ao serviço da saúde em Portugal, com uma área total de construção de mais de 6500 m2. Um bloco operatório com quatro salas, sessenta camas de internamento, seis camas na unidade de cuidados intensivos e uma unidade de recobro com 32 postos vão permitir a este novo hospital prestar serviços em urgência, ambulatório e nas especialidades de neurocirurgia, oftalmologia, otorrinolaringologia e ortopedia. 149

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PROJETO da nova unidade hospitalar de ampliação do Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA)

UMA ABORDAGEM INOVADORA O novo edifício da unidade hospitalar da Santa Casa está inserido no interior do perímetro do lote do Hospital Ortopédico de Sant’Ana, em área definida no Plano Diretor Municipal de Cascais, como “classe de espaço de equipamento”. Uma abordagem inovadora do projeto de arquitetura permitirá estabelecer um diálogo com o edifício existente e toda a envolvente local. A criação de uma zona verde entre os dois edifícios, o considerável afastamento entre eles e a menor cércea associada à nova construção será propícia a esta relação. Acrescem ainda outros aspetos determinantes na qualidade do conjunto, como a anulação do depósito de água (aéreo), elemento muito dissonante no local, as zonas verdes a requalificar em todo o lote e a criar junto ao edifício proposto, tornando possível a fruição do espaço uniformemente. Esta nova unidade hospitalar é composta por dois pisos acima da cota de soleira, com pés-direitos inerentes a instalações hospitalares, o que gera uma volumetria substancialmente

maior do que a existente no anterior edifício que fora demolido. No entanto, a mesma será atenuada pela manutenção formal dos dois corpos originais e pela criação de uma extensa galeria longitudinal, aberta e transparente. Um conjunto de elementos de proteção solar da fachada ao longo de todo o edifício será também criado, o que permite sombrear as fachadas onde se encontram situados os quartos, a nascente e a poente. A nova imagem desta unidade pretende também evidenciar a horizontalidade já existente no edificado do Sanatório, mas com uma nova roupagem e sem tentativas de colagem, respeitando apenas o antigo edifício classificado. Destaca-se, ainda, o rigoroso cuidado havido no desenho das coberturas, habitualmente utilizadas neste tipo de construções para acomodar uma quantidade significativa de equipamentos de AVAC, que pelas suas dimensões e aspeto caraterizam negativamente os edifícios. Do conteúdo do projeto evidenciam-se outros requisitos técnicos e funcionais que contribuem para a modernidade do novo edifício, como por

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| SOLIDARIEDADE |

PROJETO da nova unidade hospitalar de ampliação do Hospital Ortopédico de Sant’Ana (HOSA)

exemplo a localização do equipamento, que deverá ser instalado em piso técnico aberto, mas oculto do exterior, permitindo que a cobertura esteja praticamente desimpedida, a par da seleção e nobreza dos materiais a utilizar na construção – pedra, alvenaria, vidro e madeira, os habituais na unidade paisagística onde se insere a edificação (Avenida Marginal). PROGRAMA DE UTILIZAÇÃO DA NOVA UNIDADE HOSPITALAR O programa de utilização das edificações que constituem a Nova Unidade Hospitalar é composto por três pisos, que perfazem uma área bruta total de 6688 m2, organizados da seguinte forma: Piso -1: Área técnica e logística, com uma área bruta de 689 m2; Piso 0: Entrada principal, Unidade de Cuidados Intensivos, Bloco Operatório e Recobro, Serviço de Esterilização, com uma área bruta de 3199 m2; Piso 1: Internamento, com uma área bruta de 2800 m2. O Bloco Operatório destina-se à realização de intervenções cirúrgicas, convencionais e em ambulatório. Integra quatro salas de operações, sala de anestesia e zona de pós-operatório. A Unidade de Cuidados Intensivos terá seis postos no total, sendo cinco em sala aberta e um em quarto de isolamento envidraçado e com adufa.

No piso 1, a instalação do internamento desenvolve-se em dois corpos paralelos, ligados por uma zona comum e integra as salas de visita e respetivas instalações sanitárias. Cada unidade tem dez quartos individuais, sendo dois de isolamento, e dez quartos duplos.

QUADRO SINÓPTICO O conjunto do edificado do Hospital Ortopédico de Sant’Ana, no quadro desta nova intervenção, terá a seguinte composição: Área total do terreno 42 603,00 m2 Área total de implantação 12 464,78 m2 Área de implantação do novo edifício 3199,00 m2 Área total de construção 25 509,96 m2 Área de construção do novo edifício 6688,00 m2 Número de pisos acima do solo 2 Número de pisos abaixo do solo 1 Altura máxima do novo edifício 9,5 m O investimento da Santa Casa nas obras de ampliação do Hospital Ortopédico de Sant’Ana é de cerca de onze milhões de euros e a sua execução, que se iniciou no 1.º trimestre de 2016, terá o prazo de 14 meses.

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| NEUROCIÊNCIAS |

ESCLEROSE LATERAL AMIOTRÓFICA:

O QUE SE SABE HOJE Texto de Dora Brites [INVESTIGADORA COORDENADORA NO INSTITUTO DE INVESTIGAÇÃO DO MEDICAMENTO E PROFESSORA CATEDRÁTICA CONVIDADA_FACULDADE DE FARMÁCIA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA (FFULISBOA); INVESTIGADORA PRINCIPAL DO PROJETO VENCEDOR DO PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA EM ESCLEROSE LATERAL AMIOTRÓFICA_SCML]

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

A esclerose lateral amiotrófica é uma doença de evolução rápida, difícil identificação e fatal, por falta de diagnóstico fidedigno e terapêutica eficaz. O desafio do balde de gelo veio reforçar a investigação da ELA, mas só o investimento continuado poderá levar à descoberta da sua cura.

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stima-se que existam em Portugal pelo menos 500 doentes com esclerose lateral amiotrófica (ELA). A esperança média de vida destes pacientes é de três anos. Contudo, cerca de 10% dos doentes pode sobreviver dez anos ou mais. A doença envolve a degeneração dos neurónios motores (NM) que controlam os movimentos voluntários, causando falência respiratória por paralisia do diafragma. Apesar de a descoberta da ELA ter ocorrido há cerca de 150 anos, pouco se sabe dos mecanismos da doença e apenas o riluzole se encontra indicado para tratar a doença. Contudo, acreditamos que um maior investimento na investigação científica possa inverter este desígnio e trazer esperança aos doentes com ELA. I. O QUE É A ELA E COMO SE DIAGNOSTICA? A ELA é uma doença incapacitante que afeta cerca de 40 mil pessoas na Europa, ou seja 10% do valor referido a nível mundial. Para além do doente, a ELA causa um impacte profundo na família e na pessoa que lhe está mais próxima, o seu cuidador. A denominação de esclerose lateral significa a existência de lesões da medula espinal (ME) por morte dos NM, causando o seu endurecimento e cicatrização (esclerose). Os NM localizam-se no córtex motor (NM superiores), bem como no tronco encefálico e porção ventral da ME (NM inferiores) (figura 1). Quando um músculo não é estimulado através do influxo nervoso torna-se atrofiado e pode mesmo desaparecer, significado contido na palavra “amiotrófica”. A degenerescência progressiva e morte dos NM levam à in-

capacidade do doente para falar, comer, respirar e movimentar-se. Nesta situação, os filamentos da raiz ventral da ME ficam mais finos e acompanham a redução das fibras espessas mielinizadas. Se bem que exista uma vulnerabilidade seletiva dos NM, considera-se que a ELA seja uma doença multissistema, envolvendo diversas regiões do sistema nervoso para além das associadas à atividade motora. Deste modo, julga-se que resulte de uma série de alterações clínicas com padrões diversos e diferentes mecanismos patofisiológicos que se apresentam numa entidade única. A neurotoxicidade por ativação de células gliais – como sejam os astrócitos e a microglia – e mediada por fatores inflamatórios e tóxicos libertados por estas células é também um contributo importante na doença.

FIGURA 1 – O impulso nervoso que chega aos neurónios motores do córtex, do tronco encefálico e da medula espinal transmite-se ao músculo. Num doente com ELA, a atrofia dos filamentos da raiz ventral da medula espinal leva ao enfraquecimento muscular e diminuição da capacidade motora. Adaptado de: http:// ebooks.cambridge. org/content/ 978/11/0758/866/0/ html_chunk/ Images/44242fig12_1hires.jpeg

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A DOENÇA ENVOLVE A DEGENERAÇÃO DOS NEURÓNIOS MOTORES QUE CONTROLAM OS MOVIMENTOS VOLUNTÁRIOS, CAUSANDO FALÊNCIA RESPIRATÓRIA POR PARALISIA DO DIAFRAGMA” O diagnóstico da ELA – que maioritariamente aparece entre os 40 e os 70 anos de idade, podendo acontecer em pessoas mais jovens – pode demorar de 12 a 14 meses a ser realizado, pois os sintomas são muitas vezes semelhantes a outras doenças do foro neurológico. Habitualmente usa-se o Critério El Escorial, que conjuga um conjunto de sintomas com testes eletrofisiológicos. Um dos mais utilizados é a eletromiografia, que estima a atividade elétrica nos músculos, mas o teste da velocidade da condução nervosa é também muito usado. O dinamómetro de mão possibilita a quantificação da força muscular e monitoriza a evolução da doença. A imagem por ressonância magnética permite despistar outros problemas eventualmente ligados aos sintomas apresentados pelo doente. Entretanto, desenvolveu-se um novo algoritmo, designado de Awaji, que, quando combinado com a eletromiografia, aumenta a sensibilidade do El Escorial. Contudo, um doente pode falecer com ELA sem que um diagnóstico provável ou definitivo tenha sido alcançado. Num futuro próximo, espera-se que a descoberta de marcadores da doença torne o diagnóstico mais expedito e preciso.

II. PREVALÊNCIA E INCIDÊNCIA Apesar de os casos de ELA não serem elevados, o gasto económico e o desgaste social com a doença é substancial. No entanto, não existem dados confiáveis sobre a prevalência (número de casos numa dada população) e incidência (número de novos casos) da ELA em Portugal. Calcula-se, com base nos dados de distribuição do fármaco riluzole pelo Infarmed, que a prevalência da ELA em Portugal seja de cinco pessoas por cem mil habitantes1, perto da de 5,4 para a média europeia. A sua prevalência é superior nos indivíduos do sexo masculino (~2:1), segundo a ALS Association2. Relativamente à incidência anual de 1,4 a 2,4 pessoas por 100 mil habitantes – num estudo que incluiu a Europa, a América do Norte e a Ásia –, espera-se que aumente nos próximos anos em consequência do envelhecimento gradual da população, pois a incidência aumenta com o avanço da idade. Apesar de a ELA não causar habitualmente alterações cognitivas, bastantes doentes apresentam depressão e alguns têm problemas de memória, dificuldade na toma de decisão e defeitos de fluência verbal semântica. Os cuidadores podem também evidenciar quadros de ansiedade. Quanto a dados epidemiológicos, estes são também inexistentes em Portugal. A epidemiologia estuda os fatores (ambientais, geográficos e socioeconómicos) que influenciam a frequência e a distribuição da doença, de utilidade para prevenir e controlar a sua propagação. A recolha de informações deve incidir num conjunto amplo de dados fornecidos por doentes corretamente diagnosticados. Até hoje não é possível saber o peso destes aspetos, nem o do risco genético, pelo que só novos estudos englobando um maior número de casos e países permitirão ajuizar do seu significado.

1. Dados analisados pela Doutora Sofia Martins da FFULisboa. 2. http://www.alsa.org/

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III. CAUSAS DA DOENÇA A etiologia da ELA é complexa e multifatorial, não estando ainda claras as causas e a origem da doença. Exposição a processos inflamatórios, vírus, agentes tóxicos e o próprio processo de envelhecimento podem ser fatores desencadeadores. Na sua maioria, a doença é esporádica (de causa desconhecida), se bem que em pelo menos 10% dos casos se deva a mutações genéticas. No caso de serem mutações dominantes, existem 50% de hipóteses de os descendentes apresentarem a doença. Curiosamente, tanto na forma genética como na esporádica a doença apresenta-se com os mesmos sintomas e patologia. De entre as mutações genéticas mais frequentes3, uma das mais estudadas envolve mutações no gene da enzima Cu/Zn – superóxido dismutase 1 (SOD1) que a tornam tóxica. Para além das alterações do NM, a nível do seu prolongamento (axónio) ou da junção neu-

A ETIOLOGIA DA ELA É COMPLEXA E MULTIFATORIAL, NÃO ESTANDO AINDA CLARAS AS CAUSAS E A ORIGEM DA DOENÇA”

FIGURA 2 A acumulação da proteína SOD1 mutada/mal dobrada nos neurónios motores e nas células gliais pode levar à libertação de exosomas com microRNA que podem causar toxicidade, deficiente comunicação intercelular e alteração da transmissão do impulso nervoso ao músculo através da junção neuromuscular.

romuscular onde se dá o encontro do axónio com a fibra muscular, também as células gliais (microglia, oligodendrócitos, astrócitos e células de Schwann) estão diretamente implicadas no aparecimento da ELA, influenciando a funcionalidade dos NM e contribuindo para a sua morte (figura 2). Por exemplo, a microglia pode ser ativada e levar a processos inflamatórios que se sabe existirem na ELA e causar a morte dos NM.

3. http://alsod.iop.kcl.ac.uk/Statistics/report.aspx

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FIGURA 3 A injeção de exosomas do próprio paciente contendo fármacos e microRNA neuroprotetores para combater a inflamação, a ativação das células gliais e a degeneração dos neurónios motores na medula espinal, poderá vir a ser uma abordagem terapêutica de sucesso. Modificado a partir de http://slideplayer.com.br/ slide/336451

Curiosamente, verificou-se que o aumento da expressão de certos microRNA4,como o miRNA(miR)-155 na microglia do ratinho com mutação SOD1, poderá estar implicado na patogénese da doença. Quanto aos astrócitos, ligados ao aumento do glutamato por deficiente transporte desta molécula excitatória, encontram-se disfuncionais e reativos, originando stress oxidativo, inflamação, excitotoxicidade e morte dos NM. Os oligodendrócitos são as células associadas aos axónios responsáveis pela formação da bainha de mielina e funcionalidade neuronal. Nos doentes com ELA foi observada uma degeneração marcada dos oligodendrócitos na matéria cinzenta da ME, o que está por detrás de uma desmielinização progressiva. Quanto às células de Schwann, envolvidas na bainha de mielina no sistema nervoso periférico, pouco se sabe acerca do seu envolvimento. A funcionalidade de certos organelos celulares, como a mitocôndria, parece estar comprometi-

da, mas também o está noutras doenças neurodegenerativas como a de Alzheimer, Parkinson e Huntington. Na ELA, a mitocôndria que poderá ser responsável pela formação da proteína SOD1 mutada apresenta-se disfuncional e implicada na morte dos NM por apoptose. O retículo endoplasmático, também alterado, parece ser incapaz de prevenir o mau enovelamento/dobramento das proteínas, cuja acumulação é tida como estando na base de todos os casos de ELA. Podemos então dizer que o excesso de glutamato, a libertação de fatores tóxicos pelas células, o processamento incorreto de proteínas e uma resposta imunológica desorganizada se encontram entre as causas mais frequentes de ELA. IV. O QUE INVESTIGAR E COMO TRATAR? A falta de biomarcadores credíveis, para além de atrasar o diagnóstico, não permite a estratificação dos doentes pelo prognóstico. Marcadores de disfunção neuronal e atividade glial no líquido cefalorraquidiano (LCR) e na circulação

4. miRNA são pequenas moléculas de RNA que regulam a expressão de genes a nível pós-transcricional.

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sanguínea podem servir de alvo a medicamentos inovadores. O excesso de glutamato (excitatório), juntamente com a redução de enzimas como a catalase, glucose-6-fosfato desidrogenase, glutationa peroxidase e glutationa redutase (indicadoras de stress oxidativo) e a elevação da proteína inflamatória de macrófago-1 alfa, de alarminas, de citocinas pró-inflamatórias e de metaloproteinase-9 (indicadoras de neuroinflamação) têm sido indicados como potenciais marcadores de ELA. Contudo, a falta de robustez da maioria dos estudos e os resultados contraditórios obtidos fazem supor que, em vez de um único marcador, muitas vezes alterado noutras patologias, se deva usar um painel de biomarcadores para se ganhar sensibilidade e especificidade. Hoje existe um grande interesse nos miRNA associados à neuroinflamação, como o miR-155 e o miR-146a, já encontrados na circulação sanguínea, tanto na forma solubilizada como integrados em microvesículas extracelulares, os exosomas. Técnicas inovadoras destinadas à melhoria da qualidade de vida do doente são o sistema de estimulação do diafragma por implante, bem como os dispositivos de comunicação com controlo visual e as interfaces cérebro-computador que evitam o isolamento e passividade do doente. A participação dos doentes em grupos de suporte e de atendimento especializado, como a Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA)5, é também uma forma de manter o doente informado e de possibilitar diversos tipos de apoio, importantes na manutenção do seu bem-estar. Relativamente ao tratamento da ELA apenas o riluzole, tendo por alvo o excesso de glutamato, se encontra aprovado pela Food and Drug Administration6. O riluzole – que pode prolongar a esperança média de vida dos pacientes em cerca de três meses – apresenta efeitos secundários, em particular

A ELA NÃO É UMA DOENÇA INCURÁVEL. É SIM UMA DOENÇA SUBFINANCIADA” sobre a funcionalidade hepática. Por isso, muitos outros medicamentos dirigidos aos alvos já identificados têm sido testados, alguns com benefício na sobrevida do ratinho com mutação SOD1, mas sem tradução em doentes (tabela 1). O reposicionamento de fármacos para outras patologias, como o ácido ursodesoxicólico e os seus conjugados, apesar de bem tolerados, sem efeitos secundários e com algum benefício na sobrevida de doentes, precisam de ser ensaiados num maior número de pacientes para se inferir da sua eficácia. Os miRNA encontram-se diferentemente expressos nalgumas patologias e podem interferir num conjunto de vias mecanísticas. A estarem alterados na ELA explicariam a sua complexidade. O nosso grupo7 verificou que o ratinho com mutação SOD1 apresenta aumento de expressão do miR-155 na ME e outros que o tratamento com anti-miR-155 diminui a mortalidade. Estas terapêuticas dirigidas aos miRNA poderão representar um enorme potencial no tratamento da ELA. Deste modo, a modulação dos exosomas em miRNA e sua injeção na ME do doente poderá tornar-se uma nova ferramenta para conferir neuroproteção e prevenir a ativação e toxicidade dos astrócitos e da microglia (figura 3). Também o silenciamento de genes associados à doença, tal como o SOD1, poderá ser uma boa estratégia. O transplante de células percursoras neurais e gliais na ME e no córtex motor no ratinho com mutação SOD1 mostrou conferir neuroproteção e na ME de doentes com ELA resultou em benefício clínico, mas apenas se realizado na fase inicial da doença. Pensa-se que o ambiente hostil da ME onde

5. http://www.apela.pt/ 6. http://www.fda.gov/ 7. Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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TABELA 1. Potenciais terapias para a ELA: estudos completados e em ensaio

AÇÃO

COMPOSTOS

EFEITOS

Minerais (lítio, zinco, cobre)

Controversos e inconclusivos.

Vitaminas (E e complexo B)

Benefício clínico não comprovado.

Dexpramipexole

Promissor em modelo animal. Sem eficácia clínica.

Rasagilina

Recrutamento de doentes.

Arimoclomol

Promissor no atraso da progressão da doença. Em ensaio.

Radicut

Aprovado no Japão mas com bastantes efeitos secundários.

Neuraltus

Promissor no atraso da progressão da doença. Em ensaio.

Fingolimod

Em ensaio.

Masitinib

Recrutamento de doentes.

Ibudilast

Recrutamento de doentes.

Talidomida

Fraca eficácia. Em ensaio.

Tamoxifen+Creatina

Resultados inconclusivos.

Tocilizumab

Resultados inconclusivos. Em ensaio.

Talampanel

Fraca eficácia – suspenso.

Ceftriaxone

Promissor em modelo animal. Sem eficácia clínica.

Memantine

Aparenta não ter eficácia clínica. Em ensaio.

Riluzole

Com modesta eficácia. Aprovado pela FDA

Mixelitine

Promissor em modelo animal. Em ensaio.

Redução da SOD1 mutada

Oligonucleotídeo antisence

Promissor em modelo animal. Em ensaio.

Redução da SOD1 mal dobrada

Anticorpo monoclonal

Em ensaio.

Pimozide

Recrutamento de doentes.

Ozanezumab

Em ensaio.

Tirasemtiv

Recrutamento de doentes.

MYOBLOC

Recrutamento de doentes.

Ácido ursodesoxicólico

Promissor mas de reduzida eficácia em baixa dose.

Ácido tauro-ursodesoxicólico

Promissor no atraso da progressão da doença. Em ensaio.

Ácido glico-ursodesoxicólico

Efeitos neuroprotetores em ensaios in vitro.

Injeção autóloga de células estaminais

Promissor em modelo animal e no estádio inicial da doença. Em ensaio.

Proteção mitocondrial e stress oxidativo

Anti-inflamatória

Hiperexcitabilidade

Ativador muscular

Controlo da saliva Anti-inflamatório Antioxidante Antiapoptótico

Renovação neuronal

Fontes: The ALSUntangled Group; Patente WO2015001379 A1; ALS Therapy Development Institute; Vaz et al. Mol Neurobiol 2015; Goyal and Mozaffar Expert Opin Invest Drugs 2014; http://www.alsconsortium.org/browse.php; https://clinicaltrials.gov/; FDA, Food and Drug Administration.

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as novas células são injetadas, em particular a neurotoxicidade exercida pelos astrócitos locais, possa contribuir para o seu limitado sucesso. Hoje, procura-se desenvolver modelos experimentais que melhor reproduzam a ELA, saber por que razão os astrócitos são tóxicos para os NM e qual o papel da inflamação. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa iniciou este ano um programa de investigação de incentivo à descoberta de novas estratégias terapêuticas para a ELA, tendo sido vencedor o projeto de investigação do grupo Neuron Glia Biology in Health and Disease8 liderado por Dora Brites. O grupo irá pesquisar as causas da doença e desenvolver novas formas de tratamento com base na disfunção dos astrócitos e sua toxicidade para os NM, através da modulação dos exosomas obtidos de modelos experimentais da doença e de soros de doentes com ELA.

BIBLIOGRAFIA ALEXANDER, M.; HU, R.; RUNTSCH, M.C.; et al. – Exosome-delivered microRNAs modulate the inflammatory response to endotoxin. Nature Communications. 6 (2015) 7321. BRITES, D.; VAZ, A.R. – Microglia centered pathogenesis in ALS: insights in cell interconnectivity. Frontiers in Cellular Neuroscience. 8 (2014) 117. CARVALHO, M.D.; SWASH, M. – Awaji diagnostic algorithm increases sensitivity of El Escorial criteria for ALS diagnosis. Amyotrophic Lateral Sclerosis. 10:1 (2009) 53-57. CHIÒ, A.; LOGROSCINO, G.; TRAYNOR, B.J.; et al. – Global epidemiology of amyotrophic lateral sclerosis: a systematic review of the published literature. Neuroepidemiology. 41 (2013) 118-130. ELIA, A.E.; LALLI, S.; MONSURRO, M.R.; et al. – A. Tauroursodeoxycholic acid in the treatment of patients with amyotrophic lateral sclerosis. European Journal of Neurology. (2015) doi: 10.1111/ene.12664. FELDMAN, E.L.; BOULIS, N.M.; HUR, J.; et al. – Intraspinal neural stem cell transplantation in amyotrophic lateral sclerosis: phase 1 trial

CONCLUSÃO A falta de estudos epidemiológicos, bem como de prevalência e incidência da ELA em Portugal, remete-nos para a necessidade de fazer um levantamento dos doentes com tal diagnóstico, para participarmos em estudos populacionais de maior dimensão, bem como para ajuizar do seu significado em Portugal e a nível global. Segundo a ALSTDI9, a ELA não é uma doença incurável! É sim uma doença subfinanciada. Só um permanente financiamento da investigação científica e da prestação de cuidados de saúde permitirá descobrir os mecanismos patogénicos e os marcadores da doença, identificar fármacos inovadores e dar melhor assistência aos doentes com ELA. Perante esta complexa doença, o investimento futuro na cura da ELA deve ser dirigido ao estabelecimento de um painel de marcadores que permita o diagnóstico precoce e ao uso de fármacos combinados que possibilite o ataque simultâneo a vários alvos já identificados ou a identificar na ELA.

outcomes. Annals of Neurology. 75:3 (2014) 363-373. FUGLSANG-FREDERIKSEN, A. – Diagnostic criteria for amyotrophic lateral sclerosis (ALS). Clinical Neurophysiology. 119:3 (2008) 495-496. GOYAL, N.A.; MOZAFFAR, T. – Experimental trials in amyotrophic lateral sclerosis: a review of recently completed, ongoing and planned trials using existing and novel drugs. Expert Opinion on Investigational Drugs. 23:11 (2014) 1541-1551. HAIDET-PHILLIPS, A.M.; MARAGAKIS, N.J. – Neural and glial progenitor transplantation as a neuroprotective strategy for Amyotrophic Lateral Sclerosis (ALS). Brain Research. (2015) doi: 10.1016/j.brainres.2015.06.035. KOVAL, E.D.; SHANER, C.; ZHANG, P.; et al. – Method for widespread microRNA-155 inhibition prolongs survival in ALS-model mice. Human Molecular Genetics. 22:20 (2013) 4127-4135. MILLER, R.G.; MITCHELL, J.D.; MOORE, D.H. – Riluzole for amyotrophic lateral sclerosis (ALS)/motor neuron disease (MND). Cochrane Database of Systematic Reviews. 3 (2012). MIN, J.H.; HONG, Y.H.; SUNG, J.J.; et al. – Oral solubilized ursodeoxycholic acid therapy in amyotrophic lateral sclerosis: a randomized cross-over trial. Journal of Korean Medical Science. 27:2 (2012).

8. Biologia Neuro-Glial na Saúde e na Doença. 9. ALS Therapy Development Institute.

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REABILITAÇÃO DE DOENTES COM LESÕES VERTEBRO-MEDULARES

UM CENTRO

para verdadeiros

intrépidos

Texto de Bernardo Chagas [DOCENTE DO INSTITUTO SUPERIOR DE ECONOMIA E GESTÃO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, COORDENADOR DA UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO & DESENVOLVIMENTO_SCML]

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A aposta na investigação científica tem permitido à Misericórdia de Lisboa alargar os seus horizontes. Neste contexto, a Unidade de Investigação & Desenvolvimento estabelece relações com a comunidade científica e clínica e com instituições de relevo nas áreas a que se dedica, como o norte-americano Center for the Intrepid.

A

cidade de San Antonio, situada no estado do Texas, nos Estados Unidos da América (EUA), tem atualmente diversas valências na área da prestação de cuidados de saúde, sendo considerada um importante polo, no estado e para além deste. Existem em San Antonio diversas instituições de referência que providenciam cuidados de saúde, centrando-se algumas delas no apoio a civis e outras na prestação de cuidados a militares. Como resultado da intervenção americana em diversos conflitos armados, a rede de saúde militar americana é vasta e polivalente. O Brooke Army Medical Center (BAMC), parte integrante do comando médico do exército americano, é um desses centros que proporciona, precisamente, cuidado a militares no ativo e a veteranos de guerra. Este complexo inclui um centro de traumatologia para o tratamento de pacientes que sofram queimaduras e graves lesões traumáticas, resultantes de quedas, colisão de veículos automóveis, ou ferimentos decorrentes da atividade militar no terreno, como os provocados por balas e explosões. Junto do BAMC encontra-se também um centro de reabilitação, o Center for the Intrepid (CFI). Este centro, fundado em 2007, é já uma referência na reabilitação multidisciplinar para militares, tendo sido construído graças à angariação de 55 milhões de dólares, doados por mais de seiscentos mil americanos, através de doações e de ações de benemerência, ao Intrepid Fallen Heroes Fund, criado em 2000 para fornecer apoio aos militares feridos e aos familiares de militares falecidos em

combate. Este é um exemplo do desenvolvimento de iniciativas conjuntas entre o setor privado e o setor público, neste caso, o militar. A construção, as infraestruturas e o equipamento do Centro foram financiados por fundos privados, sendo os seus profissionais, bem como toda a gestão, assegurados atualmente pelo comando militar norte-americano. O CFI, dotado de modernas instalações, equipadas com a mais avançada tecnologia, foca-se na reabilitação física e mental de doentes com queimaduras e vítimas de trauma. Além das muitas valências encontradas frequentemente noutros centros de reabilitação, o CFI possui também, por exemplo, um simulador de realidade virtual e uma piscina de ondas artificiais para o tratamento dos seus pacientes. A criatividade e o esforço investidos no tratamento das pessoas acompanhadas neste Centro residem numa abordagem complementar e multidisciplinar entre a prática clínica, as atividades diárias e a investigação científica. Quando o CFI iniciou a sua atividade, em 2007, cerca de 28 500 soldados norte-americanos haviam sido feridos em combate no Afeganistão e no Iraque, ao longo dos seis anos anteriores. Devido aos avanços tecnológicos em proteções pessoais e armaduras militares, na medicina e na evacuação aérea, mais de 86% desses feridos sobreviveram. De acordo com a Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, esta é a taxa de sobrevivência mais elevada de qualquer guerra na história dos EUA. Apesar desse facto, cerca de setecentos elementos das forças militares americanas

CENTRO de reabilitação Center for the Intrepid

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Intrepid Dynamic Exoskeletal Orthosis, ou IDEO

O NORTE-AMERICANO CENTER FOR THE INTREPID, FUNDADO EM 2007, É JÁ UMA REFERÊNCIA NA REABILITAÇÃO MULTIDISCIPLINAR PARA MILITARES” destacadas perderam pelo menos um membro no período referido, o que marcou a necessidade de centros de reabilitação para cuidar desses militares feridos. A prestação de cuidados de saúde e a reabilitação de militares é uma realidade que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tão bem conhece. Há cerca de cinquenta anos foi criado o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (CMRA)

para dar resposta às necessidades dos lesionados da guerra do Ultramar. Esta unidade foi constituída precisamente com a mesma premissa de inovação que hoje vemos no CFI, tendo sido pioneira e contribuído para o desenvolvimento da medicina física e de reabilitação em Portugal. Atualmente, o CMRA atende a população civil, com a sua oferta de cuidados de excelência, mantendo-se focada na inovação. No CFI também tem vindo a registar-se um aumento de atendimento a civis e a diminuição do acompanhamento de militares, devido à retirada do terreno, nos últimos anos, das tropas militares americanas no Iraque e no Afeganistão. Quando observamos as diversas valências disponíveis no CFI, atualmente das mais avançadas do mundo, percebemos o enorme esforço realizado por civis e militares para a criação deste Centro. Estes elevados standards, refletidos nos equipamentos e na qualificação dos seus profissionais, encontram paralelo no que hoje se faz no CMRA, o que demonstra o contínuo investimento da Misericórdia de Lisboa no seu Centro. O CMRA, tal como o CFI, dispõe de modernos laboratórios – como o de postura e marcha e o da posição de sentado –, de simuladores de condução e de realidade virtual, de meios de construção e adaptação de dispositivos ortoprotésicos, entre outros recursos e atividades. Todos estes meios encontram-se integrados numa abordagem multidisciplinar que reflete a visão holística do tratamento e da recuperação dos seus utentes, de modo a devolver-lhes a maior qualidade de vida e autonomia possíveis. INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA APLICADA À REABILITAÇÃO Novas ideias: o IDEO A forte aposta na investigação científica e o seu enfoque na aplicação clínica traduz-se na procura de novas respostas e soluções, de modo a trazer maior autonomia e qualidade de vida aos que sofrem destas lesões traumáticas. Este investimento trouxe já resultados práticos deveras relevantes para muitos pacientes do CFI, nomeadamente em casos de recuperação após cirurgia de salvamento de membros inferiores.

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Os pacientes a quem é possível salvar os membros inferiores muitas vezes têm sequelas resultantes dos ferimentos que afetaram severamente os seus músculos e nervos, o que lhes dificulta, ou até impossibilita, o andamento ou marcha sem dor e sem recurso a produtos de apoio. Além da dor, estas pessoas deparam-se frequentemente com instabilidade e fraqueza dos membros inferiores comprometidos, especialmente quando existem danos nas estruturas nervosas. Para tentar dar resposta a este problema, e de modo a devolver autonomia a estes pacientes, uma equipa multidisciplinar do CFI que integrava o cirurgião ortopédico Joe Hsu, o ortoprotésico Ryan Blanck e o fisioterapeuta Johnny Owens, desenvolveu uma ortótese de fibra de carbono, feita à medida de cada paciente, denominada Intrepid Dynamic Exoskeletal Orthosis, ou IDEO, como é frequentemente designada. De acordo com os seus criadores, o IDEO funciona como uma espécie de mola. A força aplicada à placa de base do suporte dobra-a à medida que se inicia um movimento descendente, criando um impulso para a frente devido à energia acumulada. Contudo, o desafio na criação da ortótese não estava em devolver apenas a marcha ou o andar. Alguns dos militares afetados são membros das Forças Especiais, soldados habituados a um elevado desempenho antes de sofrerem essas lesões. Voltar a andar era apenas uma das etapas da reconquista da sua autonomia e do regresso à vida ativa civil, ou até mesmo à vida militar. Estes soldados procuravam uma resposta mais eficaz para poderem, inclusivamente, recuperar muitas das funções e voltar a realizar atividades que efetuavam anteriormente, nomeadamente a corrida ou a deslocação em terrenos altamente instáveis, como os que encontravam nos campos de batalha. O repto lançado à equipa do CFI foi grande, mas o seu empenho provou dar frutos e o IDEO é hoje usado por centenas de pessoas que voltaram a poder realizar atividades que até então muitos consideravam impossível. O sucesso da aplicação desta ortótese nos militares foi tão grande que alguns dos soldados tratados no CFI voltaram

A CRIATIVIDADE E O ESFORÇO INVESTIDOS NO TRATAMENTO DAS PESSOAS ACOMPANHADAS NESTE CENTER FOR THE INTREPID RESIDEM NUMA ABORDAGEM COMPLEMENTAR E MULTIDISCIPLINAR ENTRE A PRÁTICA CLÍNICA, AS ATIVIDADES DIÁRIAS E A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA” inclusivamente para a frente de batalha, numa enorme demonstração de força e coragem. Com base nesses bons resultados, também civis procuraram os profissionais do CFI para poderem ter acesso ao IDEO. Numa entrevista a uma cadeia de rádio norte-americana, em abril de 2014, o então diretor do CFI, Donald Gajewski, afirmou que já tinham sido fabricados, até esse ano, mais de 550 equipamentos IDEO para os seus pacientes e que, dos pacientes que usam este aparelho, 50% puderam voltar ao serviço militar ativo. Hoje, além de militares, muitos civis têm já as suas ortóteses feitas à medida e esta tecnologia está disponível em diversos centros de reabilitação para civis, espalhados pela América do Norte. QUANDO A REALIDADE SE CHAMA CAREN A inovação no CFI inclui também o recurso a um avançado simulador de realidade virtual. Este equipamento é usado para a avaliação e treino de pacientes vítimas de lesões traumáticas. O equipamento instalado no CFI consiste num simulador de realidade virtual denominado CAREN (Computer Assisted Rehabilitation Environment). O modelo do CAREN adquirido pelo CFI é o mais avançado desta linha de simuladores e um dos três únicos existentes nos EUA. 163

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O CAREN (COMPUTER ASSISTED REHABILITATION ENVIRONMENT) É UM SISTEMA MULTISSENSORIAL VERSÁTIL, QUE PODE SER USADO NA ANÁLISE CLÍNICA, NO PROCESSO DE REABILITAÇÃO E NA AVALIAÇÃO E REGISTO DO EQUILÍBRIO HUMANO”

CAREN, simulador de realidade virtual (Computer Assisted Rehabilitation Environment)

O CAREN é um sistema que combina hardware e software para o registo, avaliação e treino do comportamento humano funcional. De acordo com o fabricante, o CAREN é um sistema multissensorial versátil, que pode ser usado na análise clínica, no processo de reabilitação e na avaliação e registo do equilíbrio humano. A informação sensorial recolhida através do sistema, de natureza visual, auditiva e tátil, permite aos investigadores a possibilidade de avaliar o comportamento do paciente. A estrutura deste sistema consiste numa cúpula esférica que cobre totalmente o utilizador, com ecrãs que abrangem um ângulo de visão superior a 180 graus, com 18 câmaras de vídeo que captam o movimento em tempo real, som surround e uma plataforma móvel de três metros que permite simular diversos cenários. Serve para avaliar as capacidades motoras e de reação dos pacientes em diversas situações. Depois de analisada, a informação recolhida possibilita o ajuste do treino e do projeto de recuperação individual de cada paciente. GRANDES DESAFIOS: A PISCINA DE ONDAS ARTIFICIAIS E A PAREDE DE ESCALADA No CFI, os utentes em recuperação têm também à disposição uma piscina onde são realizadas atividades de reabilitação. Mas é outra a piscina que lhes faz subir a adrenalina: a piscina de ondas artificiais, chamada FlowRider. A associação entre a recuperação de pessoas afetadas por lesões traumáticas e a utilização de uma piscina de ondas artificiais pode não ser a mais imediata, mas no CFI este equipamento provou ser muito importante para desafiar os utentes à reconstrução da sua motivação e à ultrapassagem de obstáculos que, à partida, poderiam pensar nunca ser alcançáveis. Além do treino do equilíbrio, da coordenação e da força, muito importantes para quem perdeu membros ou sofreu lesões graves e tem de se adaptar a essas mudanças, esta piscina é usada para as situações em que a recuperação depende da superação pessoal dos pacientes, em fases psicologicamente menos positivas, e que reforça, sobretudo, a sua motivação e confiança.

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

Para os profissionais do CFI, a recuperação total dos utentes só pode ser verdadeiramente alcançada quando todos os meios são coordenados para lhes oferecer a melhor recuperação possível, focada nos seus interesses e capacidades. Estes programas integrados podem incluir, por exemplo, um programa desportivo individual adaptado, coordenado pela equipa de fisioterapia; ou a sensibilização do paciente para a sua amputação, o cuidado dos membros atrofiados e a mobilidade em cadeira de rodas ou com recurso a produtos de apoio. No desafio que criam aos seus utentes, os profissionais do CFI recorrem por vezes a uma parede de escalada, montada na sala de exercício do centro, que ocupa dois pisos e inclui uma enorme variedade de equipamentos para treino de força, agilidade e capacidade aeróbica. A recuperação dos seus militares é uma prioridade evidente, patente nos programas que criam, como o que denominaram Performance Optimization Warrior Enhanced Rehabilitation (POWER). Este plano foca-se nos princípios da medicina desportiva e da otimização da performance, nomeadamente na atividade física, na nutrição e na psicologia, para ultrapassar e minimizar as limitações específicas de cada paciente. SIMULADOR DE TREINO COM ARMAS DE FOGO A terapia ocupacional no CFI, além das tradicionais simulações e treino das atividades diárias, disponibiliza também algo muito relevante para os militares que pretendem regressar à vida militar ativa, especialmente para os que querem voltar à frente de batalha: um simulador de treino com armas de fogo. Neste espaço é-lhes reensinado o uso deste tipo de armas, uma vez que, devido aos ferimentos que sofreram e às alterações do seu corpo, também o manuseamento das armas de fogo tem de ser reaprendido, tal como sucede nas restantes atividades. O simulador ajuda os pacientes a obter capacidades para disparar em ambientes de combate e de tiro recreativo e desportivo.

FLOWRIDER, piscina de ondas artificiais

SIMULADOR de treino com armas de fogo

O SIMULADOR DE TREINO COM ARMAS DE FOGO PERMITE AOS MILITARES QUE PRETENDAM FICAR NO SERVIÇO ATIVO OBTER CERTIFICAÇÃO NO MANUSEIO DE ARMAS DE FOGO” 165

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| INOVAÇÃO |

PARA A MISERICÓRDIA DE LISBOA, A COOPERAÇÃO E A PARTILHA DE EXPERIÊNCIA PERMITEM CONHECER MELHOR OUTRAS REALIDADES E ESTUDAR OS MODELOS DE INTERVENÇÃO E DESENVOLVIMENTO DE INVESTIGAÇÃO DE OUTRAS INSTITUIÇÕES DE REFERÊNCIA” As armas são semelhantes às reais – tanto em tamanho como em formato, peso e recuo – e estão equipadas com sensores para simular o disparo num ambiente seguro. Os utentes podem treinar com vários tipos de armas e em vários cenários, dos mais básicos aos mais complexos. Este simulador permite também aos militares que pretendam ficar no serviço ativo obter certificação no manuseio de armas de fogo, essencial para o seu regresso ou manutenção nas forças armadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo dos seus mais de quinhentos anos de história, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem vindo a alargar o seu espectro de atuação e intervenção, e a fomentar e promover a criação e a partilha de conhecimento. Mais recentemente, nomeadamente desde 2013, tem incentivado de uma forma mais direta e dinâmica a investigação científica, primeiro com a criação dos Prémios Santa Casa Neurociências – que compreendem o Prémio Mantero Belard, focado nas doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento, como Parkinson e Alzheimer; e o Prémio Melo e Castro, centrado na procura de soluções e na

recuperação de lesões vertebro-medulares, traumáticas, adquiridas ou congénitas. Em 2015, a Santa Casa reforçou o seu apoio à investigação nacional em neurociências com o lançamento da primeira edição do programa de investigação científica em Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). Os projetos candidatos às diversas bolsas de investigação são avaliados pelos mais reputados peritos nacionais e internacionais nas suas respetivas áreas, de modo a identificar os mais promissores investigadores, tornando-os vencedores dos respetivos concursos. É neste contexto de organização, promoção e acompanhamento dos programas e projetos vencedores – a cargo da Unidade de Investigação & Desenvolvimento (UI&D) do Departamento da Qualidade e Inovação (DQI) da SCML – que é desenvolvido um estreito contacto com a comunidade científica e clínica, nacional e internacional. A cooperação e a partilha de experiência permitem conhecer melhor outras realidades e estudar os modelos de intervenção e desenvolvimento de investigação de outras instituições de referência. Permite ainda estabelecer parcerias para a potencial realização de intercâmbio de profissionais e de criação de projetos conjuntos, nomeadamente de investigação científica ou de oferta formativa avançada. Desta partilha e cooperação nasceu a possibilidade de profissionais da UI&D e do CMRA conhecerem o Center for the Intrepid e outras instituições americanas de relevo, entre hospitais, universidades e centros de investigação. O CFI é um centro de reabilitação notável, onde o objetivo maior é o de maximizar o potencial dos militares feridos, para a vida civil ou militar. Tem como missão prestar cuidados aos pacientes, formar profissionais e realizar investigação que permita resultados com impacte positivo na qualidade de vida dos pacientes, que tenham sofrido lesões traumáticas, sido amputados, tido membros salvos ou sido vítimas de queimaduras.

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

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| SUSTENTABILIDADE |

O PERCURSO DA SCML RUMO À

SUSTENTABILIDADE

AMBIENTAL

Conhecer o perfil energético dos estabelecimentos afetos à atividade Texto de Ana Gouveia, Maria Inês Laurentino, Rita Nogueira, Sónia Silva [SCML_DEPARTAMENTO DA QUALIDADE E INOVAÇÃO – UNIDADE DE SUSTENTABILIDADE E INOVAÇÃO]

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

Entre 2013 e 2015, no âmbito da operacionalização da sua estratégia de sustentabilidade, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desenvolveu um projeto interno de caracterização do perfil energético e hídrico das instalações de ação social e de saúde afetas à sua atividade, com o objetivo de melhor gerir o seu impacte ambiental.

O

compromisso da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com um desenvolvimento social mais sustentável é algo que faz parte da sua história e da sua missão – apoiando os mais desfavorecidos, na procura de um maior equilíbrio social, ou inovando nas suas respostas, de modo a contribuir para a resposta coletiva a novos problemas sociais, ao longo de mais de cinco séculos. Mas esta nobre causa social não desresponsabiliza a instituição – tal como acontece com qualquer outra organização ou empresa – de exercer a sua atividade preservando os recursos naturais de que se serve ou zelando pelos interesses e expectativas das suas partes interessadas. Porque mesmo a mais nobre das missões sociais tem impactes ambientais, sociais e económicos inerentes, positivos e negativos, que é preciso gerir, com vista à sua maximização, no primeiro caso, e à sua mitigação, no segundo caso. Foi, pois, com este entendimento de que era necessário incorporar a sustentabilidade em todo o ciclo da sua atividade, racionalizando e utilizando eficientemente os recursos naturais, promovendo o bem-estar dos seus trabalhadores, ouvindo as suas partes interessadas e fazendo refletir as suas preocupações e expectativas no seu trabalho e na sua gestão, e gerando ativamente um impacte positivo na comunidade envolvente, que, no início de 2012, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa iniciou o projeto de estruturação e aplicação da sua estratégia institucional de sustentabilidade.

Com base nos resultados do primeiro diagnóstico interno efetuado, entendeu-se que a estratégia de sustentabilidade deveria concentrar-se, na sua fase inicial, no pilar ambiental, por ser aquele em que existiam maiores e mais urgentes oportunidades de correção e melhoria. O facto é que o ponto de situação “ambiental” da Santa Casa, à data, não estava feito. Não conhecíamos a nossa pegada ecológica. Por isso, o trabalho de partida consistiu em procurar, compilar, sistematizar e analisar informação. Era preciso começar por conhecer a casa!… Que recursos ambientais consumia, como e onde eram consumidos e em que quantidades, que resíduos produzia e onde, quais eram as principais ineficiências, as prioridades de intervenção, os bons exemplos a replicar ou alavancar… Foi nesse contexto que, no final de 2012, a Santa Casa iniciou o projeto de caracterização do seu perfil energético e hídrico e de elaboração de um plano de eficiência energética para o seu edificado. CARACTERIZAÇÃO DO PERFIL ENERGÉTICO E HÍDRICO: OBJETIVOS, ÂMBITO E METODOLOGIA Para apoiar esse trabalho, numa lógica de parcerias com atores estratégicos, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa estabeleceu um protocolo com a ADENE – Agência para a Energia. O foco central da parceria foi efetuar a avaliação das condições de utilização de energia de 169

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| SUSTENTABILIDADE |

24 21 18 13

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GRÁFICO 1 Universo de edifícios distribuídos pelas tipologias definidas

5

TABELA 1: Tipologias consideradas para distribuição dos edifícios

Habitação

Residência

Edifício Misto

Unidade de Saúde

TIPOLOGIA

RESPOSTAS SOCIAIS/TIPO DE FUNCIONAMENTO DOS EDIFÍCIOS ESTUDADOS

Creche

Creche, creche familiar, jardim-de-infância

Centro de Dia

Centro de convívio, centro de dia, serviço de apoio domiciliário

Edifício Misto

Estabelecimentos com mais do que uma valência (creche e centro de dia; creche e unidade de saúde; centro de dia e lar de idosos; centro de dia, creche e serviços administrativos)

Lar de Idosos

Lar de idosos e residências assistidas para pessoas idosas

Escritório

Estabelecimentos com trabalho administrativo e de atendimento aos utentes

Unidade de Saúde

Unidades de saúde

Edifício de Formação

Estabelecimentos onde se realizam atividades formativas (cursos técnico-profissionais, workshops, cursos intensivos)

Residência

Centros de acolhimento, lares de infância e juventude e lares residenciais

Habitação

Apartamentos de pré-autonomização e de apoio à reinserção social

6

Lar de Idosos

7

7

Formação

Escritório

Centro de Dia

Creche

um conjunto de estabelecimentos1 afetos à atividade da Santa Casa nas áreas do apoio social e da saúde, e identificar prioridades de intervenção, trabalho que decorreu entre 2013 e meados de 2015. Este projeto permitiu-nos, assim, obter uma primeira «fotografia» do consumo energético e hídrico do património edificado da instituição, usando 2013 como ano de referência de consumos, e um primeiro ranking interno de desempenho energético, bem como identificar as principais ineficiências e as maiores oportunidades de melhoria e definir um plano de intervenção. O universo considerado para este trabalho foi de 113 estabelecimentos afetos às áreas da ação social e da saúde da Santa Casa2. Desde logo, destaca-se o facto de muitos dos imóveis onde se encontram instalados estes estabelecimentos não terem sido construídos com a finalidade a que acabaram por se destinar. Por exemplo, espaços inicialmente destinados a lojas ou palacetes que funcionam hoje como creches ou lares de acolhimento, em que as alterações

1. Designação que, para efeitos do presente artigo, abarca os equipamentos sociais e de saúde, mas também instalações de serviços de apoio, como sejam as sedes das Unidades de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade da Ação Social. 2. Excluíram-se da análise no âmbito deste projeto os estabelecimentos e instalações de serviços de grandes dimensões e com especificidades muito próprias e sem possibilidade de comparação com outros ao nível das condições de utilização, como sejam o Complexo de São Roque, a Igreja e o Museu de São Roque, o Hospital Ortopédico de Sant’Ana, o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão e a Escola Superior de Saúde do Alcoitão, bem como estabelecimentos da área social com características muito particulares, como a Obra Social do Pousal, a Aldeia de Santa Isabel ou os Recolhimentos da Capital.

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

FIGURA 1 Pormenor do layout da Matriz Energética

necessárias à melhoria do isolamento térmico nas fachadas são construtiva, legal e economicamente muito complexas. Esta particularidade, aliada à idade considerável de alguns edifícios, construídos numa época em que não eram tidas em conta preocupações em matéria de eficiência energética, constituíram, neste projeto, um dos seus grandes desafios. De modo que cada caracterização do perfil energético não fosse isolada e que, posteriormente, se pudessem estabelecer referenciais internos de desempenho e de consumos, houve igualmente a necessidade de se definir previamente uma metodologia de agrupamento e tipificação dos estabelecimentos em torno de um elemento comum. Para tal, teve-se em consideração o tipo de utilização dada a cada imóvel, de acordo com as respostas sociais e de saúde da instituição, bem como com as características do edificado, resultando na distribuição dos 113 casos estudados por nove tipologias distintas (gráfico 1; tabela 1).

FOI POSSÍVEL EFETUAR UM BENCHMARKING GLOBAL, QUE NOS MOSTRA COMO AS DIFERENTES TIPOLOGIAS DE EDIFÍCIOS SE COMPORTAM ENTRE SI AO NÍVEL DOS CONSUMOS DE ELETRICIDADE, ÁGUA E GÁS” A segunda fase de preparação do trabalho de campo do projeto consistiu no desenvolvimento do modelo de compilação e de análise de informação em que iria assentar a caracterização do perfil energético e hídrico dos estabelecimentos. Desenvolvida pela equipa da ADENE em parceria com a equipa da Unidade de Sustentabilidade e Inovação, esta ferramenta, que se designou por 171

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| SUSTENTABILIDADE |

Kg

FIGURA 2 Resultados globais dos indicadores de consumo de eletricidade, água e gás dos 113 estabelecimentos estudados

Matriz Energética, agrega todos os dados inerentes ao imóvel considerados para levantamento e análise (indicadores de consumo de água, eletricidade, gás natural e outros combustíveis, valores de faturação com os consumos energéticos e hídricos, potência e tempos de utilização dos equipamentos existentes, bem como informação sobre a estrutura da envolvente) e, mediante modelos de cálculo predefinidos, com base em referenciais já existentes no domínio energético e hídrico, permite analisar o comportamento energético e hídrico do edifício. Cada estabelecimento do universo considerado foi alvo de uma visita técnica para efetuar o levantamento de toda a informação local relevante, nomeadamente as particularidades da envolvente com impacte no comportamento térmico, o número de utentes, o número de trabalhadores e os tipos e quantidade de equipamentos e de lâmpadas, o tipo e modo de funcionamento dos sistemas de climatização e de aquecimento de águas, etc. Paralelamente, a partir das faturas, foi feita a compilação discriminada de todos os consu-

mos de eletricidade, gás natural e água de 2013. A análise dos consumos dos equipamentos que funcionam com energia elétrica ou a gás natural foi efetuada através da desagregação em três grupos principais: Equipamentos de climatização (aquecimento e arrefecimento): foram analisados tendo em conta as condições climáticas exteriores, o comportamento térmico do edifício e o uso que os utentes e trabalhadores lhes dão; Iluminação: foi analisada tendo em conta o tipo de lâmpadas instaladas, a sua potência e o tempo de funcionamento; Restantes equipamentos (informáticos, confeção e refrigeração de alimentos, etc.): foram analisados tendo em conta o seu número, a potência e o tempo de funcionamento. Já a análise dos consumos de água foi efetuada através de uma estimativa das várias vertentes de utilização (instalações sanitárias, cozinha, jardinagem, etc.) A aplicação destes indicadores, em função da tipologia dos espaços e do número de utilizadores, permitiu aferir e compreender os hábitos comportamentais verificados em cada estabelecimento, apurar desvios de consumos, ineficiências relevantes e oportunidades de melhoria. A caracterização do perfil energético de cada estabelecimento ficou concluída com a elaboração de um relatório de diagnóstico, suportado na informação obtida durante a visita técnica e na análise de indicadores realizada através da Matriz Energética e, considerando as conclusões daí extraídas, de identificação das medidas de eficiência energética e hídrica mais adequadas e prioritárias para aplicação. O BENCHMARKING INTERNO A segunda fase do trabalho realizado no âmbito do projeto de caracterização do perfil energético dos estabelecimentos afetos à atividade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa consistiu na análise comparativa dos indicadores dos vários estabelecimentos de cada tipologia, com vista ao apuramento de referenciais e à realização de um benchmarking interno.

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

Ou seja, pretendeu-se conhecer a posição de cada estabelecimento em comparação com os seus congéneres, com vista à elaboração de um ranking básico de desempenho energético e hídrico por tipologia, para apurar similitudes e diferenças de comportamento e perceber as razões das mesmas, e bem assim para identificar necessidades e prioridades de intervenção, por área e por estabelecimento. Reunida a informação de todas as tipologias, foi possível efetuar um benchmarking global, que nos mostra como as diferentes tipologias de edifícios se comportam entre si ao nível dos consumos de eletricidade, água e gás. Para poder fazer a comparação, usámos múltiplos indicadores (consumo e custo total, consumo e custo per capita, consumo e custo por m2, etc.). Apresentamos de seguida os resultados globais apurados a partir dos indicadores de consumo global e consumo per capita. ELETRICIDADE Apesar de a tipologia “Edifício Misto” ser apenas a terceira com maior número de estabele-

O PROJETO DE CARACTERIZAÇÃO DO PERFIL ENERGÉTICO DOS ESTABELECIMENTOS AFETOS À ATIVIDADE DA SCML CONSISTIU NA ANÁLISE COMPARATIVA DOS INDICADORES DOS VÁRIOS ESTABELECIMENTOS” cimentos, é a que apresenta maior consumo de eletricidade. No entanto, este resultado é compreensível, uma vez que é nesta tipologia que se encontram os estabelecimentos de maior dimensão, como é o caso do Centro de Desenvolvimento Comunitário da Charneca, do Centro de Reabilitação de Nossa Senhora dos Anjos e do Instituto Médico-Pedagógico Condessa de Rilvas e Centro Residencial. Se analisarmos os mesmos consumos considerando o seu número de utilizadores (trabalhadores e utentes)3, chegamos a valores

GRÁFICO 2 Consumo de eletricidade [MWh/ano] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

79,78

Residência

785,69

Edifício Misto Unidade de Saúde

1 757,80 166,71

Lar de Idosos

440,24

Formação Escritório Centro de Dia Creche

418,61 300,17 314,02 782,09

3. No caso das tipologias “Escritório” e “Unidades de Saúde” apenas se teve em consideração o número de trabalhadores, devido à impossibilidade de obter um número médio diário de utentes. Desta forma, os consumos per capita reais serão inferiores aos apresentados graficamente.

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| SUSTENTABILIDADE |

GRÁFICO 3 Consumo de eletricidade [MWh/utilizador] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

1,04

Residência

1,23

Edifício Misto

0,73

Unidade de Saúde

1,34

Lar de Idosos

1,96

Formação

0,71

Escritório

1,24

Centro de Dia

0,36

Creche

0,58

diferentes. A tipologia que apresenta o maior consumo de eletricidade per capita é a de “Lar de Idosos”, o que está intrinsecamente associado ao facto de se tratarem de estabelecimentos que funcionam ininterruptamente, e que possuem atividades com elevada carga energética, como sejam a confeção de refeições, o tratamento de roupa e a climatização de espaços.

GÁS NATURAL À semelhança do que acontece com a eletricidade, também no consumo de gás natural são os “Edifícios Mistos” os que apresentam globalmente um consumo mais elevado, seguidos pelos “Lares de Idosos”. Dentro da primeira tipologia estão estabelecimentos, como é o caso da Residência e Centro de Dia Quinta das Flores e do Centro de Dia e Lar Rainha D. Maria I, onde funciona, a par com outras, a resposta social equivalente ao “Lar de

GRÁFICO 4 Consumo de gás natural [MWh/ano] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

69,20

Residência

764,29

Edifício Misto

1 465,03

Lar de Idosos

940,51

Formação Escritório Centro de Dia Creche

129,99 0,71 189,07 494,96

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

GRÁFICO 5 Consumo de gás natural [MWh/utilizador] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

0,90

Residência

1,14

Edifício Misto

0,54

Lar de Idosos Formação Escritório Centro de Dia Creche

3,35 0,18 0,003 0,20 0,34

Idosos”, que implica um elevado gasto diário de energia com a confeção de refeições, com os cuidados de higiene dos utentes e também com a climatização dos espaços; 6 dos 17 estabelecimentos incluídos na tipologia “Edifício Misto” têm sistemas de climatização a gás natural, o mesmo se passando com 4 dos 6 “Lares de Idosos”, o que faz aumentar os valores de consumo. A tipologia «Escritório», onde o gás natural é usado apenas em dois dos imóveis e exclusivamente para aquecimento de águas sanitárias, é

a que regista menor consumo global. Os estabelecimentos que constituem a tipologia “Unidade de Saúde” não têm fornecimento de gás natural. Tal como na eletricidade, a tipologia “Lar de Idosos” é a que apresenta o maior consumo de gás natural por utilizador. A existência de sistemas de climatização que funcionam a gás natural em dois terços dos estabelecimentos que a constituem é uma das principais razões que provocam uma diferença acentuada nos consumos per capita relativamente a qualquer outra tipologia.

GRÁFICO 6 Consumo de água [m3/ano] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

3 085,74

Residência

26 869,87

Edifício Misto Unidade de Saúde

59 551,41 1 536,03

Lar de Idosos

20 768,47

Formação

4 312,34

Escritório

4 613,55

Centro de Dia Creche

14 984,61 30 384,48

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| SUSTENTABILIDADE |

GRÁFICO 7 Consumo de água [m3/utilizador] por tipologia de estabelecimentos (2013)

Habitação

40,07

Residência

39,98

Edifício Misto

22,15

Unidade de Saúde

11,91

Lar de Idosos Formação Escritório Centro de Dia Creche

73,91 5,88 17,41 15,91 20,97

NO CONSUMO (DE ÁGUA) PER CAPITA, A TIPOLOGIA ‘LAR DE IDOSOS’ É A QUE SE ENCONTRA NO TOPO DO RANKING” Ao contrário do que acontece nos consumos globais, nos consumos per capita a tipologia “Edifício Misto” fica em quarto lugar no ranking, o que tem que ver com o facto de a proporção de sistemas de climatização a gás no conjunto dos estabelecimentos que a integram ser inferior à de outras tipologias, como a de “Lar de Idosos”, de conter unidades com funcionamento diário de apenas sete horas e de o número dos seus utentes ser, em regra, bastante superior ao de outros. ÁGUA Analisando o consumo de água por tipologia, constatámos que, mais uma vez, a que apresenta maior consumo anual é a tipologia “Edifício Misto”. A existência de vários estabelecimentos polivalentes com espaços verdes de grandes

dimensões e o facto de esta ser a tipologia que regista maior número de utentes, são os principais motivos para que tal suceda. No consumo per capita, a tipologia “Lar de Idosos” é a que se encontra no topo do ranking, seguida de longe pelas “Habitação” e “Residência”. No primeiro caso, um tão elevado consumo de água por utilizador está, sobretudo, relacionado com o número de banhos diários que são providenciados aos utentes aí residentes. AS OPORTUNIDADES DE CORREÇÃO E MELHORIA DA EFICIÊNCIA ENERGÉTICA IDENTIFICADAS Todo o trabalho de compilação, sistematização e análise de informação sobre os 113 estabelecimentos estudados neste projeto teve não só como objetivo traçar uma “fotografia” do comportamento energético e hídrico da Santa Casa, mas também, em última análise, identificar as ineficiências, as boas práticas e as oportunidades de correção de ineficiências e de melhoria da eficiência energética e hídrica, e priorizá-las. Assim, a partir dos problemas e das oportunidades de melhoria identificados individualmente em cada estabelecimento e da priorização de intervenções apurada através da análise de

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

O ESPAÇO Santa Casa é um dos edifícios da Santa Casa onde foi instalada iluminação LED, a mais eficiente atualmente.

benchmarking por tipologias, chegámos ao seguinte conjunto de medidas gerais com relevo para incrementarem positivamente a curto, médio e longo prazo a performance energética do património afeto à atividade da Santa Casa. Envolvente do edifício: Substituição de janelas Isolamento de paredes Isolamento de coberturas Consumo de água: Identificação de consumos atípicos para a deteção de fugas de água Inspeção às instalações com sistemas de rega

O TRABALHO [...] TEVE NÃO SÓ COMO OBJETIVO TRAÇAR UMA ‘FOTOGRAFIA’ DO COMPORTAMENTO ENERGÉTICO E HÍDRICO DA SANTA CASA, MAS TAMBÉM [...] IDENTIFICAR AS INEFICIÊNCIAS, AS BOAS PRÁTICAS E AS OPORTUNIDADES DE CORREÇÃO DE INEFICIÊNCIAS E DE MELHORIA DA EFICIÊNCIA ENERGÉTICA E HÍDRICA, E PRIORIZÁ-LAS” 177

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| SUSTENTABILIDADE |

A INFORMAÇÃO QUE FOI REUNIDA NESTE PROJETO É CRUCIAL COMO FERRAMENTA DE APOIO À DECISÃO, NA MEDIDA QUE NOS PERMITE ORIENTAR O TRABALHO PRESENTE E FUTURO DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ENERGÉTICO E HÍDRICO, NO ÂMBITO DA ESTRATÉGIA DE SUSTENTABILIDADE”

Substituição de equipamentos hídricos Realização de ações de sensibilização Energia elétrica ativa: Substituição de equipamentos de iluminação Substituição de equipamentos de climatização Instalação de equipamentos para produção de energia a partir de fontes renováveis Realização de ações de sensibilização Energia elétrica reativa: Instalação de baterias de condensadores nos edifícios com níveis significativos de energia reativa

PAINÉIS solares térmicos na Unidade de Saúde W Mais, um dos onze estabelecimentos da Santa Casa onde é utilizada a energia solar para aquecimento de águas sanitárias.

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| INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO |

Gás natural: Substituição de equipamentos de climatização Instalação de equipamentos para o aquecimento de águas a partir de fontes renováveis A informação que foi reunida neste projeto é crucial como ferramenta de apoio à decisão, na medida que nos permite orientar o trabalho presente e futuro de intervenção no domínio energético e hídrico, no âmbito da Estratégia de Sustentabilidade, mas também, numa perspetiva mais abrangente, coadjuvar a equipa responsável pela gestão do património na elaboração dos planos de conservação e manutenção do edificado e, bem assim, apoiar a concertação das duas áreas – sustentabilidade e conservação, intrinsecamente interligadas. Ainda que haja diversas medidas de correção e de melhoria do desempenho energético e hídrico que podem ser aplicadas de forma autónoma e sem ter em atenção o contexto envolvente, a verdade é que a manutenção e conservação do património está intrinsecamente associada à eficiência energética. Pode-se instalar redutores de fluxo em torneiras e chuveiros como forma simples e eficaz de diminuir o consumo de água, ou instalar baterias de condensadores para anular a energia reativa sem ter em atenção variáveis estruturais significativas, duas medidas já em desenvolvimento, mas não vale a pena alterar isoladamente todo o sistema de climatização de um estabelecimento por outro mais eficiente, se as janelas estão em mau estado de conservação e registam perdas caloríficas importantes. É preciso avaliar o contexto e analisar as interligações de impactes energéticos. Outro aspeto relevante é o do investimento financeiro. Também é preciso que seja “eficiente”. Ou seja, não sendo economicamente possível intervir em todos os edifícios com necessida-

A CONSERVAÇÃO E MANUTENÇÃO DO PATRIMÓNIO AFETO À ATIVIDADE DA SANTA CASA TEM SIDO SEMPRE UMA PRIORIDADE, NOMEADAMENTE COM O OBJETIVO DE GARANTIR AS MELHORES CONDIÇÕES POSSÍVEIS PARA AS RESPOSTAS SOCIAIS E DE SAÚDE” des ao mesmo tempo, é preciso priorizar intervenções, considerando as medidas a aplicar, o investimento financeiro das mesmas, o seu impacte ao nível de poupanças de consumos e da fatura, e o período estimado de retorno do investimento. A conservação e manutenção do património afeto à atividade da Santa Casa tem sido sempre uma prioridade, nomeadamente com o objetivo de garantir as melhores condições possíveis para as respostas sociais e de saúde que presta e de garantir bons níveis de qualidade de serviço, e tem vindo a conhecer investimentos financeiros crescentes. A eficiência energética é uma variável cada vez mais importante na equação. Integrar o ambiente na construção ou reabilitação de espaços, optando por soluções mais ecológicas, e investir na instalação de equipamentos elétricos e hídricos mais eficientes é investir na sustentabilidade da Santa Casa, nos seus três pilares: diminuindo a sua pegada ecológica (pilar ambiental), poupando nos custos com recursos energéticos (pilar económico) e redirecionando os retornos financeiros das poupanças obtidas para a missão primordial da instituição (pilar social).

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LIVROS | NOSSA SUGESTÃO |

A Capela de São João Batista da Igreja de São Roque Autor: Teresa Leonor M. Vale (coord.) Edição: Museu de São Roque SCML/Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2015 ISBN: 978-972-27-2354-1 Preço: ¤40,00

Uma Igreja, Duas Histórias Autor: Gonçalo de Carvalho Amaro Edição: Centro Editorial SCML, 2015 ISBN: 978-989-8712-27-1 Preço: ¤7,00 Conta-se aqui a história de duas igrejas, a da Conceição Velha (uma das mais emblemáticas da cidade de Lisboa) e a da Misericórdia. Após o terramoto de 1755, esta última passou para São Roque, na zona alta da cidade, e a Conceição Velha para as ruínas da antiga Igreja da Misericórdia, gerando confusão. Através de uma cuidadosa análise das fontes, o autor devolve rigor à narrativa histórica destes monumentos.

Da Descoberta da Misericórdia à Fundação das Misericórdias (1498-1525) Autor: Ivo Carneiro de Sousa Edição: Granito, 1999 ISBN: 972-97530-9-1 Preço: ¤17,46 Habituámo-nos a fazer referências às Misericórdias. Mas qual é a origem da própria palavra e do conceito de misericórdia? O autor, o historiador Ivo Carneiro de Sousa, desvela a história daquelas instituições dedicadas ao apoio e proteção social dos mais vulneráveis e liga-a à descoberta da noção religiosa e devocional de “misericórdia” e às primeiras utilizações do vocábulo, tendo como ponto de partida a correspondência da rainha D. Leonor.

Produzida em Roma por encomenda de D. João V, a Capela de São João Batista da Igreja de São Roque de Lisboa foi entregue à Misericórdia de Lisboa em 1768. Detentora de história e património riquíssimos, e com enorme relevância cultural e artística, é aqui objeto de atento estudo por reputados investigadores portugueses e estrangeiros em áreas que vão da arquitetura à ourivesaria, dos têxteis aos mosaicos.

O nome de Deus é Misericórdia Autor: Papa Francisco Edição: Planeta Editora, 2016 ISBN: 978-989-657-738-4 Preço: ¤17,70 Neste Ano Jubilar da Misericórdia por si proclamado, o Papa Francisco conversa com o jornalista Andrea Tornelli sobre a ideia de misericórdia, que entende ser a mensagem mais importante de Jesus. “A fragilidade dos tempos em que vivemos é também esta: acreditar que não existe a possibilidade de redenção”, diz, justificando a crescente necessidade de, humildemente, perdoar e ir ao encontro do próximo.

Protecção Social em Portugal na Idade Moderna Autor: Maria Antónia Lopes Edição: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010 ISBN: 978-989-26-0029-1 Preço: ¤12,72 Que instituições estão na origem da moderna proteção social? E porque eram, simultaneamente, instrumentos de controlo? Sem esquecer a clarificação histórica de conceitos como “Estado Social”, “Estado-Providência” ou “caridade”, a autora mapeia os problemas, estudos e fontes essenciais sobre misericórdias, hospitais, recolhimentos, confrarias, rodas de expostos e outras instituições que materializaram a assistência social aos portugueses na Idade Moderna.

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LEGISLAÇÃO

SETEMBRO A DEZEMBRO DE 2015

RESOLUÇÃO 77/2015, de 18-09 IN: Diário da República, série l, nº 183/2015, de 18-09, pp. 8318-8324 Resumo: Aprova a Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho 2015-2020. PORTARIA 296/2015, de 21-09 IN: Diário da República, série l, nº 184/2015, de 21-09, pp. 8391-8392 Resumo: Fixa o modo de repartição do imposto especial de jogo online (IEJO) que constitui receita do setor equídeo. PORTARIA 302/2015, de 22-09 IN: Diário da República, série l, nº 185/2015, de 22-09, pp. 8410-8411 Resumo: Aprova o modelo de título de viagem para os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal na qualidade de refugiados e revoga a Portaria n.º 396/2008, de 6 de junho. PORTARIA 308/2015, de 25-09 IN: Diário da República, série l, nº 188/2015, de 25-09, pp. 8454-8456 Resumo: Cria o Programa Empreende Já – Rede de Perceção e Gestão de Negócios e revoga a Portaria n.º 427/2012, de 31 de dezembro. PORTARIA 314/2015, de 30-09 IN: Diário da República, série l, nº 191/2015, de 30-09, pp. 8536-8537 Resumo: Fixa o modo de repartição do montante de 37,5 % do imposto especial de jogo online. PORTARIA 340/2015, de 08-10 IN: Diário da República, série l, nº 197/2015, de 08-10, p. 8732-8738 Resumo: Regula, no âmbito da Rede Nacional de Cuidados Paliativos (RNCP), a caraterização dos serviços e a admissão nas equipas locais e as condições e requisitos de construção e segurança das instalações de cuidados paliativos. PORTARIA 354/2015, de 13-10 IN: Diário da República, série l, nº 200/2015, de 13-10, pp. 8911-8915 Resumo: Cria o Programa COOPJOVEM, programa de apoio ao empreendedorismo cooperativo e revoga a Portaria n.º 432-E/2012, de 31 de dezembro.

PORTARIA 356/2015, de 14-10 IN: Diário da República, série l, nº 201/2015, de 14-10, pp. 8938-8939 Resumo: Fixa as normas regulamentares necessárias à repartição dos resultados líquidos da exploração dos jogos sociais atribuídos à Presidência do Conselho de Ministros para o ano de 2016. DESPACHO 12889/2015, de 13-11 IN: Diário da República, série ll, nº 223/2015, de 13-11, p. 32904 Resumo: Determina que o Programa Nacional de Promoção de Saúde Oral (PNPSO) é alargado, passando a incluir, entre outros, as crianças e jovens de 7, 10 e 13 anos com necessidades especiais de saúde, que não tenham ainda sido abrangidos pelo PNPSO. PORTARIA 407/2015, de 24-11 IN: Diário da República, série l, nº 230/2015, de 24-11, pp. 9582-9587 Resumo: Define as condições de acesso e as regras gerais de cofinanciamento comunitário aos projetos apresentados ao abrigo do Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração. PORTARIA 412/2015, de 27-11 IN: Diário da República, série l, nº 233/2015, de 27-11, pp. 9627-9628 Resumo: Primeira alteração ao anexo da Portaria n.º 302/2015, de 22 de setembro, que aprova o modelo de título de viagem para os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal na qualidade de refugiados. PORTARIA 417/2015, de 04-12 IN: Diário da República, série l, nº 238/2015, de 04-12, pp. 9664-9665 Resumo: Primeira alteração à Portaria n.º 223/2015, de 27 de julho, que regula o procedimento de pagamento da comparticipação do Estado no preço de venda ao público (PVP) dos medicamentos dispensados a beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e à Portaria n.º 224/2015, de 27 de julho, que estabelece o regime jurídico a que obedecem as regras de prescrição e dispensa de medicamentos e produtos de saúde e define as obrigações de informação a prestar aos utentes.

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AGENDA AGOSTO E SETEMBRO DE 2016

DESTAQUE

XIV International Conference “Shaping the future: connecting knowledge and evidence in child welfare practice” Data: 13 a 16 de setembro Local: Oviedo, Espanha

Organização: EUSARF (European Scientific Association on Residential & Family Care for Children and Adolescents) Os temas específicos da conferência incluem: tomada de decisão no acolhimento de crianças; cuidados residenciais terapêuticos; transição do acolhimento para a vida adulta; crianças migrantes e famílias; acolhimento por familiares; necessidades de saúde mental de crianças e jovens acolhidos; educação e qualificação de jovens acolhidos; e proteção de crianças nos primeiros anos. www.congresoeusarf.com/eusarf2016/ introduction_en_66.php

AGOSTO

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Conferência: Poverty’s Causes and Consequences in the Urban Developing World Data: até 6.08 Local: Universidade de Jyvaskyla, Finlândia http://povdev.blog.jyu.fi/p/ conference-2016.html

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International Conference of Social Work and Sexualities: Transgressing Boundaries and the Intersection of Sexualities in Social Work Data: até 19.08 Local: University of

Applied Sciences and Arts Northwestern Switzerland, Olten, Suíça www.sexualityandsocialworkconferences.org

SETEMBRO

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Conferência: Qualitative Methods and Research Technologies Data: até 3.09 Local: Cracóvia, Polónia Organização: Associação Europeia de Sociologia (ESA Research Network – Qualitative Methods) www.europeansociology.org/ research-networks/rn20qualitative-methods.html

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CES Summer School: Artistic and other Creative Practices as Drivers for Urban Resilience Data: até 7.09

Local: Museu Municipal de Espinho www.ces.uc.pt/cessum merschool/?id=13412& id_lingua=1

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