Cidade Solidária n.º 34

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Nº34 2015 REVISTA SEMESTRAL PORTUGAL: 3,60€

CIDADE SOLIDÁRIA

SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA

JOGOS SOCIAIS DO ESTADO: Apostar em boas causas

HORTAS URBANAS | EMPRESAS SOCIAIS | MITRA | VOLUNTARIADO


Venha conhecer...

MUSEU DE SÃO ROQUE SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA O Museu de São Roque reúne uma das mais completas coleções de arte sacra a nível nacional. O seu acervo integra obras de pintura, escultura, ourivesaria, arte oriental, relicários e frontais de altar, evidenciando-se a coleção do Tesouro da Capela de São João Batista, composta por peças de ourivesaria e paramentaria setecentista de produção italiana, única a nível mundial. Ao lado do Museu, e em estreita ligação com este, ergue-se a Igreja de São Roque, que, pelo seu valor histórico e riqueza artística, se evidencia como um monumento ímpar no contexto da arte portuguesa e internacional. No espaço da Igreja e do Museu decorrem atividades educativas e culturais diversificadas, dirigidas a diferentes públicos. Para mais informação consultar o site do Museu de São Roque: www.museu-saoroque.com


EDITORIAL

Jogos Sociais: por Boas Causas

A

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem a responsabilidade de aliar os jogos sociais a boas causas desde o famoso decreto de 18 de novembro de 1783, concedido pela rainha D. Maria I, que permitiu a instituição de uma lotaria anual para fazer face às dificuldades financeiras da época. Uma responsabilidade que a Misericórdia de Lisboa tem honrado e diversificado ao longo da sua história. Os jogos sociais são hoje uma fonte de receitas que permitem acudir a um maior número de pessoas. Já em 1783, parte dos lucros das lotarias beneficiava outras instituições, situação que se mantém hoje em dia, com mais de 70 por cento das receitas dos jogos a serem devolvidas à sociedade, através da sua redistribuição por várias entidades e instituições do Estado. Numa fase em que esta Mesa, que tenho a honra de liderar, faz quatro anos de mandato, posso dizer com satisfação que, graças às apostas dos portugueses nos jogos sociais, temos conseguido prosseguir com a missão da Misericórdia de Lisboa. O nosso trabalho diário mantém-se focado na ajuda àqueles que mais necessitam e tem sido reforçado em várias áreas de atuação, tais como a saúde, a ação social, o apoio aos sem-abrigo, a investigação, o património e a cultura, o desporto e o empreendedorismo. Mas, além do reforço dessa atuação, alargámos o âmbito da nossa ação ao resto do país, numa mudança histórica em relação à doutrina originária da Misericórdia. Os novos tempos assim o exigiam e, por isso, esta Mesa concretizou essa visão ao “dar as mãos” às Misericórdias espalhadas pelo país. Nesse sentido, a formalização do Fundo Rainha D. Leonor foi um passo muito importante para uma partilha nacional dos lucros dos jogos sociais. Este Fundo é uma novidade absoluta na história de mais de 500 anos de relação entre a Misericórdia de Lisboa e as restantes Misericórdias portuguesas, muitas vezes de costas voltadas, sem qualquer tipo de ligação ou contacto. Constitui uma plataforma de entendimento entre as Santas Casas que – muito para além do apoio financeiro – pode ser dinamizadora de boas práticas. É um projeto assente numa ideia que procuro sempre fomentar: a partilha. E na partilha estão ganhos evidentes para todos. É por e para estas boas causas que a SCML trabalha todos os dias e usa o lucro dos jogos sociais. É nesse sentido que trabalha toda a Mesa que tenho a honra de integrar. Assim vale a pena apostar, pois saberemos que cada euro apostado será um euro bem usado. Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Pedro Santana Lopes

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SUMÁRIO

JOGOS SOCIAIS DO ESTADO: APOSTAR EM BOAS CAUSAS

DESTAQUE 6

16

42

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Os Jogos Santa Casa no século xxi Fernando Paes Afonso

10

A importância dos jogos sociais do Estado em Portugal: valores devolvidos à sociedade Sara Máximo Rebelo

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Ação social e jogos sociais: duas realidades indissociáveis Rogélia Vargues e João Quaresma

24

Verbas dos jogos sociais. Um fôlego em tempos difíceis Teresa Morais

30

Uma história exemplar Dora Santos Rosa

36

O papel dos jogos sociais do Estado no combate ao jogo ilegal Patrícia de Sousa Inês

42

Lotaria Nacional. 200 anos de sonhos. 200 anos de solidariedade Havas Worldwide Portugal

46

Liberdade 194, a porta de entrada num novo ciclo Helena do Canto Lucas

SOCIAL 48

Mitra. Polo de inovação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa Rita Valadas

58

Estudo inovador da Misericórdia de Lisboa: efeitos biopsicossociais da utilização de produtos de apoio Cristina Vaz de Almeida e Mafalda Negrão

66

Apostar nas hortas urbanas Paulo Brito da Luz, Maria Elvira Ferreira e Pedro Brito da Luz

74

Serviço de apoio domiciliário da Misericórdia de Lisboa. Uma metodologia colaborativa Ana Filipa Dias, Maria Isabel Araújo e Susana Alfaiate Santos

78

O acolhimento institucional de crianças e jovens nas legislações nacional, comunitária e internacional Sofia Macedo

86 4

Convite à leitura partilhada Florbela Costa, Isabel Mourato, Rosa Lourenço e Rute Alves

48

78


SOCIAL 94

Natureza: gostar para mimar Maria João Melo Gomes, com a participação de Sónia Salgado

102

Tesouros da Ameixoeira. O património na promoção do desenvolvimento local Fátima Freitas e Sónia Gaspar

SAÚDE

118

110

Prémios Santa Casa Neurociências. Uma ilha de esperança Entrevista realizada por Bernardo Chagas e Rita Rosa

118

Igualdade de género e condições de trabalho Luís O. Duarte e Maria João Goldschmidt

124

Sociedade Portuguesa de Cardiologia: uma sociedade científica de excelência José Silva Cardoso et al.

HISTÓRIA E CULTURA 144

132

A Misericórdia de Lisboa e a assistência médica aos doentes pobres. Do socorro domiciliário aos primeiros dispensários clínicos (1498-1900) Luísa Colen

144

Santa Casa da Bahia. O património cultural como instrumento de integração social Heloisa Fernandes Gonçalves da Costa

154

Paiaçu, um canto pela interculturalidade Mónica Brito

154

162

178 LIVROS

SOLIDARIEDADE 162

Os impactes do voluntariado da SCML pela voz de voluntários, beneficiários e serviços Madalena Matos, Teresa Amor e Sónia Costa

170

Inovar e empreender, uma necessidade Alexandra Rebelo

179 LEGISLAÇÃO

181 AGENDA

FICHA TÉCNICA

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DIRETOR: Pedro Santana Lopes DIRETOR-EXECUTIVO: Samuel Esteves CONSELHO EDITORIAL: Ana Salgueiro, Alexandra Rebelo, Catarina França, Francisco d’Orey Manoel, Helena Lucas, Margarida Montenegro, Maria João Matos, Mário Rui André, Rita Chaves e Samuel Esteves PROJETO GRÁFICO: Catarina França PAGINAÇÃO: Ana Lopes e Catarina França EDIÇÃO DE CONTEÚDOS: Ana Gomes REVISÃO: J. L. Baptista APOIO LOGÍSTICO: Bruno Galinha SECRETARIADO: Antónia Saldanha COLABORADORES PERMANENTES: Laurinda Carona e João Fernandes EDITOR: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA. Largo Trindade Coelho – Apartado 2059 – 1102-803 Lisboa ASSINATURAS: SCML – Revista Cidade Solidária/Remessa Livre n.º 25013 – 1144-961 Lisboa (não necessita de selo). Tel.: 213 243 934 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Classica Tiragem: 5000 exemplares. Depósito Legal n.º 126 149/98. Registo no ICS: 121.663. ISSN: 0874-2952

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| REGULAÇÃO |

OS JOGOS SANTA CASA NO SÉCULO XXI Texto de Fernando Paes Afonso [VICE-PROVEDOR; ADMINISTRADOR EXECUTIVO DOS JOGOS SOCIAIS_SCML]

Os jogos Santa Casa do século XXI continuarão a manter absoluta fidelidade ao princípio intemporal de satisfazer com responsabilidade e integridade a procura de jogo a dinheiro, sem a estimular ou maximizar.

6

É

já longa a história da exploração, pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), dos hoje tão conhecidos jogos sociais do Estado (JSE): foi em 1783 que a rainha D. Maria autorizou a realização de uma lotaria, para que os seus lucros financiassem as ações de apoio aos mais carenciados. Convém recordar que a tradição portuguesa de exploração de jogo a dinheiro assenta em dois princípios fundamentais: reconhecendo que a atividade de jogo a dinheiro não é produtiva, que convida ao ócio, que pode ameaçar a ordem pública, fomentar a criminalidade e delapidar o património das famílias, o


| DESTAQUE |

Estado sempre consagrou o princípio da proibição, competindo-lhe, por isso, regular e fiscalizar as exceções que decidiu permitir, de modo a canalizar para estas a procura que a natureza humana sempre impulsionou; adicionalmente, e pelas mesmas razões, os lucros provenientes do exercício da atividade de jogo a dinheiro devem ser devolvidos à sociedade através do financiamento das boas causas. É bom recordar estes princípios para melhor compreender qual é a missão que o Estado atribuiu à SCML na exploração que esta faz dos jogos sociais, através do seu Departamento de Jogos: gerir os jogos sociais de forma a canalizar para esta oferta

legal a procura, pelos cidadãos, de jogo a dinheiro. Ou seja, a nossa missão não é estimular a prática de jogo, mas sim procurar que, no limite, toda a procura de jogo seja satisfeita pela oferta destes jogos do Estado cuja exploração nos foi atribuída. O lançamento do Euromilhões, em 2004, constitui um bom exemplo do que acabo de afirmar. À época, a SCML sabia que existia (e ainda existe, embora já com menor dimensão) uma importante oferta ilegal de jogo a dinheiro, que alguns estudos estimavam situar-se em mais de mil milhões de euros. Adicionalmente, sabia-se da existência de um número crescente de portugueses que faziam apostas nos jogos de lotaria oferecidos pela nossa 7


| REGULAÇÃO |

vizinha Espanha porque, em resultado da muito maior população, prometiam primeiros prémios muito superiores aos que era possível obter nos jogos então explorados em Portugal. Esse movimento era de tal modo importante que existiam notícias de redes ilegais a atuar na angariação desse tipo de apostas, associadas, não poucas vezes, a diversos tipos de criminalidade.

EXISTIAM NOTÍCIAS DE REDES ILEGAIS A ATUAR NA ANGARIAÇÃO DESSE TIPO DE APOSTAS DE JOGO A DINHEIRO, ASSOCIADAS, NÃO POUCAS VEZES, A DIVERSOS TIPOS DE CRIMINALIDADE” Por isso, foram levadas a cabo todas as diligências necessárias à criação desse novo jogo, explorado de uma forma coordenada entre dez lotarias de nove países europeus, o que veio a acontecer com a participação de Portugal, através da SCML, a partir de 3 de outubro de 2004. As vendas dos jogos Santa Casa aumentaram expressivamente: de menos de 800 milhões de euros, em 2002, para mais de 1500 milhões de euros em 2005. Significa isto que os portugueses quase duplicaram a sua despesa em jogo a dinheiro? A resposta é um redondo não. O que os estudos entretanto efetuados e as estatísticas disponíveis mostram de forma categórica é que esse aumento se deve exclusivamente à canalização da procura preexistente para este novo jogo social explorado pela SCML. A título exemplificativo, as vendas da lotaria espanhola nos seus agentes situados ao longo da fronteira com Portugal caíram mais de 60%. Paralelamente, também foram registadas diminuições de vendas de outros tipos de jogo a dinheiro em Portugal. Tendo presente este enquadramento, a atual Mesa da SCML, logo em 2011, definiu como linha estraté8

gica “atualizar a oferta legal dos Jogos Sociais, no quadro das orientações definidas pelo Estado, por forma a assegurar a proteção da ordem pública, a preservação do património das famílias e a prevenção do jogo excessivo”. Consequentemente, no Plano e Orçamento do Departamento de Jogos para 2012 afirmou-se que o objetivo estratégico definido iria “concretizar-se em três eixos fundamentais, quer em 2012 quer no período 2012 a 2015: base de conhecimento, com recurso a informação externa e melhor sistematização da informação interna existente; eficiência, designadamente através da melhoria de processos e procedimentos; inovação, em que assentará a sustentabilidade dos JSE, com recurso à criatividade, à tecnologia e à informação”. Neste período de grande dificuldade económica, a estratégia adoptada revelou-se acertada, uma vez que, mercê da diversificação da nossa oferta e da consolidação da rede comercial, entre outras ações, foi possível aumentar significativamente o peso das apostas nos jogos Santa Casa no total das despesas das famílias em jogo a dinheiro, de 50,2% em 2010, para 66% em 2015, ao mesmo tempo que se reduziu o valor total deste tipo de despesas das famílias. As vendas brutas dos jogos Santa Casa ultrapassam, em 2015, os 2100 milhões de euros, estimando-se que o mercado ilegal continue a diminuir. Já no decurso deste ano, o Estado entendeu incluir as apostas desportivas à cota e as apostas mútuas hípicas de base territorial no sistema de direitos exclusivos de exploração de jogos sociais que atribuiu à SCML, voltando a reconhecer a esta nossa Santa Casa a absoluta integridade na exploração destes jogos a dinheiro como elemento determinante para a prossecução dos seus fins públicos. Assim, e como é sabido, iniciámos no passado dia 9 de setembro a exploração das apostas desportivas à cota sob o nome de “Placard” e os resultados destes primeiros dias têm superado as nossas melhores expectativas. No que concerne às apostas mútuas hípicas estamos ainda em fase de projeto e ambicionamos iniciar a sua exploração ainda em 2016.


| DESTAQUE |

No Orçamento e Plano de Atividades para 2016 que apresentámos ao Conselho de Jogos, prevemos que as vendas brutas do conjunto dos jogos explorados pela SCML atinjam os 2350 milhões de euros no próximo ano, sendo que esse incremento voltará a dever-se à substituição de despesa antes realizada através da oferta ilegal. Deve notar-se que estes novos jogos, cuja exploração foi cometida à SCML através do seu Departamento de Jogos, estarão disponíveis, numa primeira fase, apenas na rede física. Este facto reflete a natureza social dos jogos explorados pela Santa Casa e o reconhecimento de que estão em causa tipos de aposta que devem ser especialmente acompanhados. Vale a pena, a este propósito, recordar o já célebre Acórdão “Santa Casa”, do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em que o TJUE realça a especial perigosidade que aquelas apostas podem representar para os apostadores que o fazem afastados do contexto social através, designadamente, da internet. Em conclusão, os jogos Santa Casa do século xxi continuarão a desempenhar um papel fundamental na sociedade portuguesa e no quadro da exploração

AS VENDAS BRUTAS DOS JOGOS SANTA CASA ULTRAPASSAM, EM 2015, OS 2100 MILHÕES DE EUROS, ESTIMANDO-SE QUE O MERCADO ILEGAL CONTINUE A DIMINUIR” do jogo a dinheiro, mantendo absoluta fidelidade aos princípios intemporais que os têm distinguido: satisfazer com responsabilidade e integridade a procura de jogo a dinheiro, sem a estimular ou maximizar, por um lado, e melhorar continuamente a eficiência de exploração, por outro, de forma a devolver à sociedade o que ela gasta nesta atividade. É que não estamos perante uma atividade económica normal em que a maximização do lucro é o objetivo dos operadores. Pelo contrário, somos responsáveis por operar uma área que, no mundo ideal, não existiria.

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| RETORNO SOCIAL |

A importância dos JOGOS SOCIAIS DO ESTADO EM PORTUGAL:

VALORES DEVOLVIDOS

À SOCIEDADE Texto de Sara Máximo Rebelo

[DIRETORA DA UNIDADE DE PLANEAMENTO E CONTROLO DE GESTÃO, DIREÇÃO DE GESTÃO FINANCEIRA, DEPARTAMENTO DE JOGOS_SCML]

10


| DESTAQUE |

Os montantes devolvidos à sociedade, em resultado da exploração dos jogos sociais do Estado, são a expressão material da importância desta atividade num vasto e abrangente contributo para a coesão social em Portugal. Nem todos os portugueses apostam nos jogos sociais, mas todos beneficiam do seu retorno económico.

A

importância dos jogos sociais do Estado é incontornável e a sua história comprova-o. Desde 1783, ano em que a rainha D. Maria I concedeu à Mesa da Misericórdia a autorização para instituir uma lotaria nacional, com o objetivo de apoiar a população mais desfavorecida da cidade de Lisboa, que os resultados da exploração dos jogos sociais se destinam a apoiar boas causas, garantindo, em simultâneo, a preservação da ordem social. Estas são as razões de ser dos jogos sociais do Estado que, só por si, se revestem de singular relevância. Porém, a dimensão material que lhes é conferida, pelos montantes gerados na sua exploração, vem reforçar e dar expressão económica ao seu papel no país. É, pois, fácil falar da importância dos jogos sociais do Estado em Portugal, porque os números dizem, praticamente, tudo. A exploração dos jogos sociais do Estado é uma competência atribuída ao Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Nos últimos cinco anos, de 2010 a 2014, esta atividade eco-

nómica tão especial, gerou para a sociedade 8131 milhões de euros, o que representa 97% do total do volume de negócios realizado neste período. Se se quiser ter um referencial de medida para o que este valor representa, pode utilizar-se o Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), que decorreu dentro deste mesmo intervalo de tempo. Não se pretende com esta comparação equacionar as razões ou os efeitos das medidas implementadas neste âmbito, mas tão-somente utilizar um facto que marcou a história recente, que ainda está presente no dia-a-dia dos portugueses e que, como tal, é facilmente apreendido. Este referencial pode, assim, ser utilizado sob duas perspetivas: o pacote de assistência financeira negociado no âmbito do PAEF foi de 78 mil milhões de euros, o que significa que o valor gerado para a sociedade pelos jogos sociais do Estado equivaleu, objetivamente, a mais de 10% do apoio negociado por Portugal com a troika; as consequências do programa de ajustamento económico a que estivemos sujeitos foram bastante negativas ou mesmo, nalguns casos, dramáticas do ponto de vista social, o que torna ainda mais relevante o papel dos montantes gerados para financiamento de causas sociais durante um período de austeridade económica. O retorno resultante da atividade dos jogos sociais, para os quais foi adotada em 2004 a marca Jogos Santa Casa (JSC), pode ser medido pelos montantes de receita que são devolvidos à sociedade, sob a forma de financiamento direto de boas causas, patrocínios, imposto do selo, remunerações pagas aos mediadores, prémios e investimento em combate à ilegalidade e promoção do jogo responsável. Definem-se, assim, quatro níveis de retorno, de acordo com a abrangência dos fins a que se destinam. AS BOAS CAUSAS O financiamento de boas causas compreende os resultados líquidos de exploração distribuídos aos beneficiários dos jogos sociais do Estado e os 11


| RETORNO SOCIAL |

RETORNO à sociedade dos JSC: 2010-2014

Retorno total

8131 milhões de euros

Coesão social

3612 milhões de euros

Retorno social

3052 milhões de euros

Boas causas

2577 milhões de euros

97% das vendas brutas

43% das vendas brutas

36% das vendas brutas

31% das vendas brutas

patrocínios concedidos a ações desenvolvidas no domínio da cultura e do desporto. Os lucros da atividade dos jogos são diretamente e, importa referir, mensalmente distribuídos às entidades a que se destinam, de acordo com o que a este respeito veio definir o Decreto-Lei n.º 56/2006 de 15 de março, entretanto alterado pelos decretos-leis n.º 44/2011, de 24 de março, e n.º 106/2011, de 21 de outubro. A Santa Casa da Misericórdia é, neste contexto, apenas um dos destinatários dos lucros dos jogos sociais, cabendo-lhe, atualmente, 28% dos resultados distribuídos. As restantes entidades são: • o próprio Estado; • o Ministério da Administração Interna; • a Presidência do Conselho de Ministros;

DESDE 1783, ANO EM QUE A RAINHA D. MARIA I CONCEDEU À MESA DA MISERICÓRDIA A AUTORIZAÇÃO PARA INSTITUIR UMA LOTARIA NACIONAL, QUE OS RESULTADOS DA EXPLORAÇÃO DOS JOGOS SOCIAIS SE DESTINAM A APOIAR BOAS CAUSAS” 12

•o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social; • o Ministério da Saúde; • o Ministério da Educação e Ciência; • a Direção Regional de Juventude e Desporto da Madeira; • o Instituto de Desporto dos Açores. A estas entidades compete aplicar os montantes recebidos para fins sociais, também legalmente estabelecidos, entre os quais se contam: o apoio social aos idosos, famílias, crianças e jovens mais carenciados, às pessoas portadoras de deficiência e vítimas de violência, bem como a promoção e valorização da cultura, a melhoria da qualidade educativa, o incremento das atividades desportivas e o combate às dependências. De 2010 a 2014 foram distribuídos resultados no valor de 2564 milhões de euros. Os montantes atingidos nos últimos anos são, essencialmente, fruto, por um lado, do acréscimo de receita assente no alargamento da base de apostadores – que tem vindo a resultar da implementação de políticas de canalização da procura de jogo para a oferta legal – e, por outro, dos ganhos de eficiência alcançados pelo Departamento de Jogos, ao reduzir, de ano para ano, o peso relativo dos custos de operação nas suas vendas brutas. Por sua vez, e resultado da estratégia de promoção de marca levada a cabo pelo Departamento


| DESTAQUE |

de Jogos nos últimos anos, tem vindo a aumentar o valor atribuído sob a forma de patrocínios, em detrimento de outras formas de publicidade e marketing. O total de patrocínios atribuídos nos últimos cinco anos foi de 13 milhões de euros. Com efeito, os Jogos Santa Casa têm vindo a reforçar o seu posicionamento junto de causas estritamente ligadas à essência da exploração dos jogos sociais, sobretudo em áreas do desporto e da cultura, apoiando ações, tantas vezes pouco ou nada incentivadas, mas que assentam em valores a distinguir, como o mérito, o esforço, a dedicação e a superação de limitações físicas ou de outra ordem. Neste patamar de retorno somam-se, assim, 2577 milhões de euros, tendo a maior parcela sido destinada à ação social (63%). O RETORNO SOCIAL Ao financiamento direto de boas causas acresce o montante entregue ao Estado sob a forma de imposto do selo, constituindo-se, deste modo, o total de verbas que se traduzem em retorno social que foi, nos últimos cinco anos, de 3052 milhões de euros. O imposto do selo gerado pelos Jogos Santa Casa, entre 2010 e 2014, atingiu os 475 milhões de euros. De salientar que, no último ano, a receita fiscal resultante das taxas que incidiram sobre as vendas (4,5% incluídos no valor da aposta) e sobre o valor dos prémios (20% sobre a parcela do prémio que excede os 5000 euros) foi de 145 milhões de euros, representando 11% do total da receita fiscal do Estado em imposto do selo, o peso relativo mais elevado até aqui registado. A este nível sublinha-se o facto de o retorno social proporcionado pelos Jogos Santa Casa

523

534

539

535

2011

2012

2013

2014

433

2010

RESULTADOS distribuídos aos beneficiários dos jogos sociais do Estado: 2010-2014 (milhões de euros)

Desporto 11%

Cultura 4% Proteção civil 3% Outras 2%

Saúde 16%

Ação social 63%

2010

2011

2012

2013

2014

59

71

75

77

81

48

64

Total

59

71

75

126

145

Peso na receita fiscal do Estado em Imposto do Selo

4%

5%

6%

9%

11%

Imposto do Selo sobre vendas

FINANCIAMENTO de boas causas por grandes áreas de apoio: 2010-2014

Imposto do Selo sobre prémios

IMPOSTO do selo gerado pelos Jogos Santa Casa: 2010-2014 (milhões de euros)

13


| RETORNO SOCIAL |

fazer que Portugal, de acordo com os últimos dados disponíveis, ocupe o sétimo lugar, num ranking de 44 países (abrangidos nas análises da European Lotteries1), no que toca ao indicador designado por Money for Society. A COESÃO SOCIAL Entre 2010 e 2014, o contributo dos Jogos Santa Casa, em termos de coesão social, concretizou-se em 3612 milhões de euros. Trazendo, novamente, para esta análise um referencial extrínseco aos jogos sociais, pode afirmar-se que, neste nível, o retorno gerado por esta atividade foi significativamente superior ao montante de 3060 milhões de euros previsto no Fundo Comunitário de Coesão inscrito no Quadro de Referência Estratégico Nacional (QREN) e que vigorou em Portugal entre 2007 e 2013. Para além do financiamento das políticas sociais do Estado, incluem-se neste patamar as remunerações pagas aos mediadores dos jogos sociais – que, no período em análise, totalizaram 556 milhões de euros – e o investimento de quatro milhões de euros destinado ao combate ao jogo ilegal, à fraude fiscal e ao branqueamento de capitais, enquanto fenómenos potencialmente

associados a práticas de jogo, e à promoção do jogo responsável como meio de proteção do património das famílias e da ordem pública. O valor obtido pelos mediadores consubstancia-se como suporte financeiro, em muitos casos determinante, para um conjunto alargado de empresas, na sua maioria pequenas e médias empresas, instaladas em todo o país, promovendo, desta forma, a atividade empresarial e o emprego em inúmeras economias locais. Estima-se que, em 2014, o valor das remunerações pagas aos mediadores (134 milhões de euros) tenha garantido, pelo menos, 9500 postos de trabalho. A coesão social proporcionada pelos jogos sociais não se resume, contudo, à vertente económica. O contributo desta atividade para a coesão social assenta, igualmente, num plano sociológico, na medida em que responde ao desejo humano de jogar sem, no entanto, comprometer a ordem pública, ao impor, entre outras medidas, mecanismos dissuasores de jogo excessivo. Num período de enormes adversidades, em que se enfrentaram cortes de rendimento, situações de desemprego e tantas outras situações de precariedade, os jogos sociais puderam, assim, fazer a diferença em fatores de dignidade humana e de coesão, dos quais os portugueses não abdicaram: a esperança e o sonho.

134 124 112 101 85

2010

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2012

2013

2014

REMUNERAÇÕES pagas pelos apostadores aos mediadores dos jogos sociais do Estado: 2010-2014 (milhões de euros)

O RETORNO TOTAL O retorno total – 8132 milhões de euros entre 2010 e 2014 – corresponde à globalidade do dinheiro devolvido à sociedade, acrescendo aos valores destinados à coesão social os montantes referentes aos prémios atribuídos. Estes ascenderam, nos últimos cinco anos, a 4519 milhões de euros (valor após dedução do imposto do selo que incide sobre os prémios), registando-se uma assinalável trajetória de crescimento. A este respeito não se deve deixar de referir a extraordinária circunstância de, em 2014, ter sido

1. A European State Lotteries and Toto Association (EL) é a organização de lotarias de Estado que reúne instituições, com e sem fins lucrativos, que operam em nome do Estado. A associação foi criada em 1983 sob a lei suíça e está sediada em Lausanne, na Suíça.

14


| DESTAQUE |

atribuído em Portugal um jackpot do Euromilhões no valor de 190 milhões de euros. Neste mesmo ano, foram atribuídos 116 milhões de prémios na totalidade, a que correspondeu um valor superior a mil milhões de euros. Significa isto que, anualmente, os prémios recebidos pelos portugueses representam cerca de 1% do rendimento disponível bruto das famílias. Em suma, na primeira metade da década em curso foram vários os beneficiários dos montantes gerados pela exploração dos jogos sociais do Estado, tendo sido, naturalmente, a maior fatia destinada aos apostadores premiados. A REDISTRIBUIÇÃO SOCIAL Aos valores despendidos em jogo está subjacente um efeito de redistribuição social de enormes proporções. Por cada euro efetivamente aplicado em jogos sociais – o que para o apostador se traduz em valor despendido subtraído do valor líquido dos prémios ganhos –, 93 cêntimos são atualmente destinados a medidas de coesão social, dos quais 61 cêntimos são diretamente aplicados em boas causas. De facto, só em 2014, o gasto líquido dos apostadores foi de 879 milhões de euros, tendo sido de 817 milhões de euros o valor devolvido à sociedade para promoção da coesão social, dos quais 537 milhões de euros se destinaram diretamente ao financiamento de boas causas. Para a maioria dos apostadores dos jogos sociais será notório que grande parte dos valores despendidos se destina a fins que, no fundo, dignificam o ato de jogar. Mas, por certo, quando joga, o apostador transportará apenas para esse momento a sua expectativa de mudança de vida e deixará que ela perdure, pelo menos, até ser conhecido o resultado da aposta. E, note-se, mais não deverá ser expectável. Por parte do apostador o ato de apostar não terá de ser mais do que um consumo de entretenimento descomprometido. A transformação desse dispêndio em valor social compete a quem regula e explora os jogos sociais, devendo procurar-se maximizar o retorno e otimizar a redistribuição dos montantes de

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946

953

2012

2013

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742

2010

2011

2014

PRÉMIOS atribuídos, líquidos de imposto do selo: 2010-2014 (milhões de euros)

Mediadores 556

Entidades patrocionadas 13

SCML 768 Premiados 4519

Administração Central, Segurança Social, Administração Regional 2272

Outros 4

RETORNO para a sociedade, por destinatário, dos montantes gerados pelos jogos sociais do Estado: 2010-2014 (milhões de euros)

receita, porque do outro lado do jogo estará um vastíssimo número de cidadãos para quem os valores distribuídos terão impactes seguramente diferenciadores no que toca à sua qualidade de vida. Na verdade, pode concluir-se que nem todos os portugueses são apostadores dos jogos sociais do Estado mas todos, direta ou indiretamente, beneficiam do que resulta da sua exploração. 15


| BOAS CAUSAS |

AÇÃO SOCIAL E JOGOS SOCIAIS: DUAS REALIDADES INDISSOCIÁVEIS

Texto de Rogélia Vargues1 e João Quaresma2 [1. GABINETE DE MONITORIZAÇÃO E APOIO À GESTÃO; 2. ASSESSORIA, DEPARTAMENTO DE AÇÃO SOCIAL E SAÚDE_SCML]

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| DESTAQUE |

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é o garante da ligação dos jogos às boas causas. Os jogos sociais que a Misericórdia de Lisboa gere beneficiam múltiplas causas sociais. No caso da Santa Casa, estas verbas são utilizadas para ressarcir a função que a instituição assume na área social, em nome do Estado, no concelho e nalgumas zonas do distrito de Lisboa.

D

esde sempre, a relação entre os jogos sociais do Estado e a ação social é indissociável. Estes nasceram precisamente para responder às necessidades sociais que, em cada momento, se foram manifestando. Desde a sua criação, os jogos sociais procuraram promover e cativar a solidariedade e o altruísmo dos apostadores. Dessa forma, promoveram o financiamento, num nível adequado, das políticas sociais do Estado, quer as que assume diretamente nas áreas da ação social, saúde, educação, juventude, desporto e cultura, entre outras, quer as prosseguidas pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) no âmbito da sua missão de desenvolver fins de ação social. Na pesquisa sobre o tema encontram-se invariavelmente duas referências, uma relativa à constatação dos graves problemas de assistência e saúde existentes na cidade de Lisboa e outra relativa ao facto de a ação benemérita levada a cabo pela SCML de Lisboa ter deixado de ser financeiramente sustentável. Terão sido estes os factos que levaram a rainha D. Maria I, em 1783, a conceder a exploração da lotaria à Misericórdia de Lisboa, repartindo os lucros pelas áreas da assistência, da saúde e da ciência. Naquela época, a partir dos ideais de filantropia, generalizou-se o princípio de que o jogo podia ser utilizado como uma ajuda dos que mais possuíam em favor dos necessitados, sobretudo para

auxiliar as pessoas ou instituições mais carentes, numa lógica de cooperação social para diminuir as injustiças e sofrimentos (SERRÃO, 1998). Desde o seu lançamento, a lotaria passou a constituir uma importante fonte de financiamento da ação social e a SCML foi alargando os seus serviços de assistência, tornando-se uma das instituições pioneiras na proteção à maternidade e à primeira infância ao longo do século xx. Neste contexto, o Estado – considerando o caráter de idoneidade e de intervenção social da SCML ao longo de séculos – veio estabelecer pelo Decreto n.º 12 790, de 1926, que “as lotarias serão exploradas pela Misericórdia de Lisboa, por conta do Estado, constituindo exclusivo do mesmo Estado, e denominar-se-ão Lotarias da Misericórdia de Lisboa”. Em Portugal, tal como noutros países, foram sendo criados novos jogos, encontrando-se evidência da relação destes com a ação social na própria definição das finalidades de cada jogo, ao consignarem o resultado líquido da sua exploração para suprir necessidades sociais que, em cada momento, se foram manifestando (ver caixa). Na sua generalidade, os jogos sociais têm por fim apoiar no cumprimento de finalidades sociais. O retorno das receitas líquidas dos jogos sociais à sociedade portuguesa faz-se, essencialmente, através da distribuição dos resultados líquidos da sua exploração às entidades beneficiárias, nas percentagens legalmente estabelecidas1, e que

1. Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de março, alterado pelos decretos-leis n.º 44/2011, de 24 de março, e n.º 106/2011, de 21 de outubro.

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estas, por sua vez, afetam a ações e projetos com impacte social, salientando-se, resumidamente, alguns exemplos do destino dessas verbas, por entidade. No caso do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social (34,52%), as verbas são utilizadas para promover a melhoria das condições de vida e o acompanhamento das pessoas idosas e das pessoas com deficiência; apoiar crianças e jovens, família e comunidade em geral; combater a violência doméstica e a violência numa perspetiva de género; bem como apoiar situações graves de carência e risco, incluindo a recuperação e educa-

ção especial de crianças com deficiência, o desenvolvimento de medidas de apoio às comunidades portuguesas e a prestação de serviços sociais nas áreas do turismo e do termalismo social e sénior, da organização dos tempos livres, da cultura e do desporto populares, através da Fundação INATEL. O Ministério da Saúde (16,44%) afeta as verbas a ações previstas no Plano Nacional de Saúde, designadamente projetos no âmbito do Alto Comissariado da Saúde – como sejam a luta contra a sida, a luta contra o cancro, a prevenção das doenças cardiovasculares, os cuidados de saúde às pessoas idosas e às pessoas em situação de

FINALIDADES DOS JOGOS SOCIAIS 1783 – Lotaria Clássica: foi criada para apoiar no cumprimento das finalidades sociais da SCML e do Estado. As receitas foram utilizadas para o financiamento da Casa dos Expostos, do Hospital Real (ou Hospital dos pobres, como era conhecido) e da Academia Real das Ciências. 1961 – Totobola: as suas verbas foram destinadas, em partes iguais, ao fomento da educação física e dos desportos e à assistência a diminuídos físicos. As receitas foram afetadas ao Centro de Reabilitação de Alcoitão e ao Centro de Loures para a reabilitação de tuberculosos. 1985 – Totoloto: teve por finalidade apoiar no cumprimento das finalidades sociais da SCML e do Estado. Neste âmbito, estão incluídos o Fundo de Socorro Social; o Fundo de Fomento do Desporto; o futebol; o Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores; o subsídio às despesas, por via aérea, com a deslocação de equipas de futebol que disputem os campeonatos das 1.ª e 2.ª divisões entre o continente e as regiões autónomas; o Fundo de Fomento da Cultura; o apoio às empresas jornalísticas; o apoio às associações de bombeiros voluntários.

1987 – Lotaria Popular: teve por objetivo apoiar no cumprimento das finalidades sociais da SCML e do Estado e proporcionar preços mais acessíveis aos apostadores – conquistando um público com menor poder de compra – e combater o jogo ilegal. 1994 – Joker2: destinou-se a promover projetos e ações integrados na luta contra a sida; o Plano Nacional de Combate à Droga, denominado Projeto VIDA – para afetação a projetos e ações de prevenção, tratamento e reinserção no âmbito da toxicodependência; projetos e ações de auxílio à população idosa carenciada; o Projeto de Apoio à Família e à Criança. 1995 – Lotaria Instantânea: o lançamento ficou a dever-se à necessidade de ampliar as áreas de apoio e/ou intervenção social a crianças e jovens (em 2010 passou a designar-se Raspadinha). 2004 – Euromilhões: surge vocacionado para o desenvolvimento de projetos de apoio às pessoas idosas e às pessoas com deficiência. 2015 – Placard: pretende alargar o financiamento das políticas sociais do Estado e dos fins sociais e de assistência que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa prossegue.

2. Jogo baseado nos números de impressão dos bilhetes do Totobola, do Totoloto e do Euromilhões.

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dependência –, e ao desenvolvimento de projetos e ações de prevenção, tratamento e reinserção no âmbito da toxicodependência. A Presidência do Conselho de Ministros (13,35%) destina as verbas à promoção, desenvolvimento e fomento de atividades, programas, ações ou infraestruturas no âmbito da juventude e do desporto, da cultura e da igualdade de género. O Ministério da Administração Interna (3,76%) utiliza as verbas para finalidades de proteção civil, emergência e socorro, nomeadamente através do apoio a associações de bombeiros voluntários, de ações no domínio da sinistralidade rodoviária e da prevenção da criminalidade e de iniciativas no domínio da prevenção dos riscos sociais e da vitimação. A Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Pública (2,28%) afeta as receitas dos jogos sociais ao Orçamento do Estado. O Ministério da Educação (1,49%), o Instituto de Desporto da Madeira (0,2%) e o Fundo Regional do Desporto

DESDE O SEU LANÇAMENTO, A LOTARIA PASSOU A CONSTITUIR UMA IMPORTANTE FONTE DE FINANCIAMENTO DA AÇÃO SOCIAL E A MISERICÓRDIA DE LISBOA FOI ALARGANDO OS SEUS SERVIÇOS DE ASSISTÊNCIA”

EDIFÍCIO da Colónia de Férias de São Julião, na Ericeira, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

dos Açores (0,2%) destinam as verbas ao apoio ao desporto escolar e para realizar investimentos em infraestruturas desportivas escolares. Por fim, a parcela destinada à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (27,76%) tem por finalidade contribuir para o desenvolvimento de projetos integrados nos seus fins estatutários. 19


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NÚMERO DE UTENTES APOIADOS NOS EQUIPAMENTOS DE CRIANÇAS E JOVENS 1942 2004 2014

1007

950 702

260

N.º médio de crianças em creche e creche familiar

N.º médio de crianças em jardim-de-infância

367

N.º médio de crianças/ jovens em lar e CAT/Emergência

NÚMERO DE FAMÍLIAS E DE CRIANÇAS E JOVENS EM SITUAÇÃO DE PERIGO/RISCO ACOMPANHADAS PELAS EQUIPAS DA SCML 2004 4289

2014

2231

2044

971

N.º médio de famílias acompanhadas pelo atendimento social/EAF

N.º médio de crianças/jovens em situção de perigo acompanhadas pelo at. soc./EAF

Como se constata – e ao contrário da ideia que, por vezes, ainda persiste –, a percentagem atribuída à SCML corresponde a pouco mais de um quarto da receita. Em 2014, a contribuição dos jogos sociais representou 77% dos rendimentos totais da instituição, sendo estes afetados à sua atividade corrente e, em grande medida, à ação social. Ao longo dos anos, a ação social da SCML tem vindo a alargar a sua atividade, quer para responder a necessidades da população de Lisboa quer por via dos acordos e protocolos com a Segurança 20

NO ÂMBITO DO ACOLHIMENTO SOCIAL DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, FORAM ATENDIDAS 45 120 PESSOAS EM 2004 E 54 276 EM 2014, NÚMEROS QUE REFLETEM O AUMENTO DA PROCURA MAS TAMBÉM O INCREMENTO DA CAPACIDADE DE RESPOSTA DA SCML” Social, de que são exemplo a integração dos equipamentos que transitaram em 2011 do Instituto da Segurança Social (ISS) para a SCML e a transferência de competências do ISS para a SCML, no âmbito do Sistema de Acolhimento de Emergência (SAE), nos 16 concelhos do distrito de Lisboa. O alargamento da atividade traduz-se quantitativamente no número de utentes atendidos e em acompanhamento, nas respostas sociais e de equipamentos e nos projetos e de parcerias. Expressa-se também qualitativamente, no bem-estar da população. Procurando dar uma ideia mais concreta dos fins que a ação social da SCML destina às verbas provenientes dos jogos sociais, apresentam-se alguns indicadores da atividade, com especial destaque para as áreas de intervenção da infância e juventude, do apoio a pessoas idosas e do acolhimento de públicos mais vulneráveis. Os dados a seguir referidos permitem observar a evolução da atividade numa década, tendo como referência os anos de 2004 (ano de lançamento do Euromilhões) e de 2014. Por exemplo, se se considerar o número de equipamentos afetos à atividade, os registos mostram que, em 2004, existiam 83 equipamentos e, em 2014, se encontravam 121 em atividade. Para além deste aumento, é de salientar também o forte investimento na requalificação de alguns espaços/equipamentos, que permitiu reinstalar e ampliar respostas.


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No âmbito do acolhimento social, entendido como resposta social suportada numa rede de serviços e recursos locais, é assegurado o atendimento e acompanhamento de pessoas e famílias, tendo como objetivo a prevenção ou reparação de problemas gerados ou geradores de situações de exclusão social. Nesta resposta, foram atendidas 45 120 pessoas em 2004 e 54 276 em 2014, números que refletem o aumento da procura mas também o incremento da capacidade de resposta da SCML. As respostas de proximidade de primeira e segunda infância – creche, creche familiar e jardim-de-infância – são polos dinamizadores da intervenção na comunidade, fundamentada numa perspetiva de respeito pela diferença, pela integração de valores e de múltiplas culturas. A rede de centros de acolhimento temporário (CAT)/emergência viabiliza o acolhimento temporário e de emergência de crianças e jovens dos 0 aos 18 anos. Os lares de infância e juventude asseguram o acolhimento de crianças até aos 8 anos para as quais não se equaciona, a curto prazo, a concretização do seu projeto de vida. Para além destas respostas, a SCML disponibiliza residências de autonomização, que visam promover – no âmbito do Sistema de Promoção e Proteção – a autonomização e integração social de adolescentes e jovens residentes em apartamento. No global, verifica-se um aumento no número de utentes (+36%), destacando-se o crescimento significativo de crianças em creche (+93%). A exceção verifica-se no número médio de crianças a frequentar jardim-de-infância, que tem vindo a diminuir, em virtude do alargamento desta resposta pelo Ministério da Educação. O acompanhamento de famílias com crianças e jovens em perigo tem sido uma área de intervenção da ação social da SCML em constante desenvolvimento, devido à elevada prevalência desta problemática. O acompanhamento, quer das famílias quer das crianças e/ou jovens, é assumido pelas equipas de Acolhimento Social e pelas equipas de Apoio à Família (EAF), que asseguram uma abordagem mais especializada nesta área.

NÚMERO DE UTENTES APOIADOS NOS SERVIÇOS E EQUIPAMENTOS DIRECIONADOS À POPULAÇÃO IDOSA 2004

3316

2014

1985 1494

1356

752 281

N.º médio de utentes em apoio domiciliário

N.º médio de utentes em centro de dia

N.º médio de utentes em lar e em res. assistida

COM O OBJETIVO DE COMBATER O ISOLAMENTO DE IDOSOS E PESSOAS EM SITUAÇÃO DE DEPENDÊNCIA, FOI CRIADO O PROJETO TELEASSISTÊNCIA: DIALOGAR PARA COMBATER A SOLIDÃO” Face ao aumento de situações sinalizadas, houve um incremento substancial da intervenção no âmbito da Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, de forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral. Foram acompanhadas em 2014 muito mais famílias (+130%) e crianças ou jovens (+110%) do que em 2004. Se olharmos para a relação entre o número de famílias e o de crianças, verifica-se uma tendência demográfica, com o decréscimo do número de crianças por família. Enquanto em 2014, em 21


| BOAS CAUSAS |

NÚMERO DE UTENTES SEM-ABRIGO, PORTADORES DE DEFICIÊNCIA E PESSOAS COM ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO EM APOIO RESIDENCIAL 2004 2014

213 188

139 114 70

N.º médio de sem-abrigo em aloj. temporário/ emergência

N.º médio de pessoas portadoras de deficiência em lar

72

N.º médio de utentes em acompanhamento terapêutico

AS RESPOSTAS DE CRECHE, CRECHE FAMILIAR E JARDIM-DE-INFÂNCIA SÃO POLOS DINAMIZADORES DA INTERVENÇÃO NA COMUNIDADE, FUNDAMENTADA NUMA PERSPETIVA DE RESPEITO PELA DIFERENÇA, PELA INTEGRAÇÃO DE VALORES E DE MÚLTIPLAS CULTURAS” média, por cada família havia 2,1 filhos, em 2014, essa relação passou para 1,9. O apoio a pessoas idosas em situação de incapacidade/dependência é prestado através de um conjunto integrado de serviços, atividades e cuidados necessários ao seu bem-estar e à manutenção de graus de autonomia, promovendo a quebra do isolamento e a melhoria da qualidade de vida das pessoas. Inclui as respostas de serviço de apoio 22

domiciliário (SAD), centro de dia, lar de idosos, residência temporária e residência assistida. O SAD consiste na prestação de cuidados individualizados e personalizados no domicílio a pessoas que se encontram numa situação de incapacidade física e/ou psíquica e necessitam de apoio para a satisfação das suas necessidades básicas e/ou atividades da vida diária. Com o objetivo de combater o isolamento de idosos e pessoas em situação de dependência, foi criado o projeto Teleassistência: Dialogar para combater a solidão. O centro de dia, como estrutura aberta à comunidade, integra um conjunto de serviços e atividades que visa permitir à população adulta e/ou adulta idosa a sua manutenção e permanência no meio sociofamiliar. Pretende assim promover o envelhecimento ativo e retardar/evitar a situação de dependência e a institucionalização. Lar, residência temporária e residência assistida são estruturas residenciais para pessoas idosas em alojamento coletivo, de utilização temporária ou permanente, onde são desenvolvidas atividades de apoio social e prestados cuidados e serviços que respondam às necessidades individuais de cada residente. Na área dos idosos, o aumento do número de utentes apoiados pela ação social da Santa Casa na última década é muito significativo, em especial nas respostas de apoio domiciliário e de lar, com um acréscimo de 122% e de 158%, respetivamente. Para este incremento contribuíram, principalmente, fatores relacionados com a transferência de equipamentos do ISS, com o aumento da longevidade da população e com o impacte da crise económica sobre as famílias. A intervenção da SCML na área de públicos vulneráveis e pessoas com deficiência traduz-se em múltiplas respostas, tais como o atendimento e acompanhamento de pessoas e/ou famílias em situação de risco social grave, sem-abrigo ou portadores de deficiência, e o acolhimento residencial. Em apoio residencial são acolhidas pessoas que, devido a um acontecimento súbito, por motivos ocasionais ou de risco social grave, se encontram desprovidas de meios para fazer face, de forma


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imediata, às suas necessidades de alojamento temporário e/ou permanente. São acolhidos ainda jovens e adultos portadores de deficiência, com idade igual ou superior a 16 anos e que se encontrem impedidos de residir no seu meio familiar, bem como pessoas com necessidades de acompanhamento terapêutico que se encontrem em situação social, familiar e económica precária. Nestas respostas, o aumento mais significativo verificou-se no acolhimento de pessoas portadoras de deficiência, em grande parte devido à integração de dois equipamentos que transitaram do ISS para a SCML. Para além das respostas atrás referidas, regista-se ainda que, na área da educação, formação e certificação, a Misericórdia de Lisboa dispõe de dois centros de formação. Estes desenvolvem programas específicos de combate à exclusão social, dirigidos a jovens e adultos que se encontram em risco ou afastados do mercado de trabalho. A intervenção opera sobre as condições de empregabilidade, através do reforço das competências pessoais/sociais e dos níveis de qualificações escolares e profissionais, promovendo a formação ao longo da vida e a inserção profissional, e prevenindo o abandono escolar precoce. O acolhimento, orientação e seleção de todos os candidatos aos dois centros de formação são realizados através do serviço de front office, no qual, em 2004, foram atendidos 680 candidatos, tendo esse número aumentado em 2014 para 1126 (+66%). Os dados atrás descritos permitem observar uma parte da dimensão da intervenção da ação social da Santa Casa, que necessita de recursos diversos, financiados, principalmente, pelos resultados de exploração dos jogos sociais. A SCML garante a ligação dos jogos às boas causas, esta gere os jogos em nome do Estado e as verbas que este lhe atribui são utilizadas para ressarcir a função que assume em nome do Estado, por via da transferência de competências na área social no concelho e nalgumas zonas do distrito de Lisboa.

NO PLANO DA AÇÃO SOCIAL, FORAM REORGANIZADOS SERVIÇOS, EQUIPAS E ESPAÇOS DE ATUAÇÃO PARA CUMPRIR OS FINS SOCIAIS E ESTATUTÁRIOS DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA” As instituições, em particular as de âmbito social, têm procurado adaptar-se e responder às necessidades decorrentes de alterações sociais, económicas ou outras, que se dão em cada época. Neste sentido, a SCML tem assumido responsabilidades crescentes. No plano da ação social, foram reorganizados serviços, equipas e espaços de atuação para cumprir os fins sociais e estatutários da Santa Casa, reinventando paradigmas de intervenção nas suas áreas de ação e promovendo e participando no trabalho em rede na cidade de Lisboa.

BIBLIOGRAFIA Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de março, alterado pelos decretos-leis n.º 44/2011, de 24 de março, e n.º 106/2011, de 21 de outubro. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatórios de atividade do DASS – Departamento de Ação Social e Saúde. Lisboa: SCML, 2004 e 2014. SERRÃO, Joaquim Veríssimo – A Misericórdia de Lisboa: Quinhentos Anos de História. Lisboa. Livros Horizonte, 1998.

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| IGUALDADE DE GÉNERO |

Verbas dos jogos sociais

UM FÔLEGO EM TEMPOS DIFÍCEIS Desde 2011 a igualdade de género é um dos setores beneficiários das verbas resultantes da exploração dos jogos sociais em Portugal. Estes recursos tiveram enorme importância na criação de novos apoios e no reforço da capacidade de uma intervenção mais qualificada. Texto de Teresa Morais [SECRETÁRIA DE ESTADO DOS ASSUNTOS PARLAMENTARES E DA IGUALDADE NO XIX GOVERNO CONSTITUCIONAL, 2011-2015]

A

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é uma instituição central na intervenção social da cidade e da região, cujos impactes se repercutem, em muitos casos, no país inteiro. Fazendo justiça e respeitando os seus mais de quinhentos anos de história em defesa dos mais vulneráveis, a Santa Casa mantém-se uma instituição de referência,

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quer nos diversos apoios que presta diretamente às pessoas, famílias e organizações, quer pelo suporte financeiro que concede, através das verbas dos jogos sociais, a diversas atividades de grande relevância em várias áreas setoriais. No que se refere à área da igualdade de género, cuja tutela política me coube nos últimos quatro anos, há ainda uma curta história, mas que já vale a pena contar… Em 21 de outubro de 2011 foi publicado o Decreto-Lei n.º 106/2011 que, alterando o regime anterior1, instituiu uma nova forma de distribuição do valor dos resultados de exploração dos jogos sociais, contemplando, pela primeira vez, a igualdade de género entre os setores de intervenção beneficiários destas verbas, para além das anteriormente previstas (cultura, desporto e juventude). Na sequência desta alteração e como forma de a concretizar foram publicadas portarias anuais2 que determinaram a afetação de uma percentagem de 3,75% do total das verbas, que cabem à Presidência do Conselho de Ministros, ao gabinete da Secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade. Mais se estipulou que as verbas se destinam ao “apoio prioritário de ações e programas de combate à violência doméstica e fomento e promoção de outras ações no âmbito da cidadania e da igualdade de género

a transferir para a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros”. E foi assim, e em boa hora, que a igualdade de género passou a beneficiária destas verbas que – apesar de constituírem uma pequena parte se comparada com as destinadas às restantes áreas setoriais – vieram permitir o financiamento de um conjunto de ações e de programas diversificado, compensando de forma eficaz as dificuldades orçamentais sentidas entre 2012 e 2014 e mesmo reforçando os meios financeiros disponíveis para intervenções essenciais.

1. Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 44/2011, de 24 de março. 2. Portaria n.º 6/2012, de 3 de janeiro, Portaria 327/2012, de 18 de outubro, Portaria 322/2013, de 30 de outubro, e Portaria 225/2014, de 5 de novembro.

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| IGUALDADE DE GÉNERO |

ASSINATURA DE CARTAS de Compromisso com diversas entidades gestoras de estruturas da rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica

FOI FINANCIADO O REFORÇO DO ACOMPANHAMENTO JURÍDICO, PSICOLÓGICO E SOCIAL DE NÚCLEOS E CENTROS DE APOIO ÀS VÍTIMAS. NO CONJUNTO, ESTAS ESTRUTURAS DE ATENDIMENTO RECEBERAM ATÉ HOJE CERCA DE 830 MIL EUROS” É disso exemplo a subvenção destinada ao melhoramento das condições de habitabilidade e conforto das casas de abrigo. Em finais de 2013 foram apoiadas 35 casas3, que receberam um total de 350 mil euros destinados à realização de benfeitorias de diversa ordem. Um ano depois, seis dessas casas receberam uma segunda subvenção, por se ter verificado que careciam ainda de outras melhorias.

Foi também financiado o reforço do acompanhamento jurídico, psicológico e social de núcleos e centros de apoio às vítimas. No conjunto, estas estruturas de atendimento receberam até hoje cerca de 830 mil euros, destinados à sua melhor capacitação no atendimento e encaminhamento de vítimas e no desenvolvimento de ações de sensibilização e formação a nível local. Em agosto de 2013 criou-se um serviço essencial à proteção das vítimas e suas crianças, através de um sistema de transporte seguro e acompanhado, de qualquer ponto para qualquer destino do país, disponível 24 horas por dia. Este serviço veio acabar com a situação recorrente de vítimas que chegavam às casas de abrigo através de transporte público, sem acompanhamento e sem condições de segurança. Dos custos deste sistema de transporte, cerca de 330 mil euros foram provenientes das receitas dos jogos sociais e, até maio de 2015, tinham sido transportadas 2391 mulheres e crianças. Em 2013 deu-se início a uma nova resposta, recentemente integrada na rede nacional de apoio

3. Todas, com exceção das duas geridas pela própria Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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às vítimas de violência doméstica4, destinada a receber mulheres e crianças em situação de emergência que têm, por razões de segurança, de ser colocadas a salvo de agressões, evitando que, durante o espaço de tempo em que se deve proceder à avaliação de risco e ao diagnóstico do seu caso, elas sejam acolhidas de forma precária e, pelo contrário, tenham desde o primeiro momento as condições necessárias de apoio psicológico, social e jurídico. Existem hoje 130 novas vagas destinadas a este tipo de acolhimento e integralmente financiadas por estas verbas. Verificado que, em muitos casos, as mulheres não necessitavam já de um acolhimento em casa de abrigo por terem desaparecido os riscos justificativos do seu isolamento e que, portanto, a sua permanência se explicava por razões de índole social – designadamente relacionadas com a falta de meios financeiros imediatos que permitissem a sua autonomia –, foi criado e atribuído a todas as

casas um fundo destinado a apoiar o seu processo de autonomização. Esta subvenção, proveniente das verbas dos jogos sociais, já apoiou, até 30 de junho de 2015, 629 mulheres que assim viram facilitado o recomeço das suas vidas, integradas nas comunidades onde escolheram ficar. Entre 2012 e 2014 realizaram-se “Jornadas Nacionais contra a Violência Doméstica” que promoveram

FOI CRIADO E ATRIBUÍDO A TODAS AS CASAS DE ABRIGO UM FUNDO DESTINADO A APOIAR O PROCESSO DE AUTONOMIZAÇÃO DAS MULHERES AÍ ACOLHIDAS, QUE ASSIM VIRAM FACILITADO O RECOMEÇO DAS SUAS VIDAS”

SESSÃO DE SENSIBILIZAÇÃO contra a violência doméstica “Feridas de Morte”, em 2014

4. Esta resposta foi integrada na rede através da alteração à Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, promovida pela Proposta de Lei n.º 324/XII do Governo, publicada recentemente em Diário da República (Lei n.º 119/2015, de 3 de setembro).

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| IGUALDADE DE GÉNERO |

A SINALIZAÇÃO E O APOIO ÀS VÍTIMAS DE TRÁFICO SÃO HOJE GARANTIDOS POR EQUIPAS MULTIDISCIPLINARES ESPECIALIZADAS FINANCEIRAMENTE SUPORTADAS PELAS VERBAS ORIUNDAS DOS JOGOS SOCIAIS”

“JORNADAS Nacionais contra a Violência Doméstica e de Género 2013”, onde foi exibida a campanha nacional “Contra a violência eu dou a cara” lançada no mesmo ano

um amplo debate nacional sobre o tema. Estas Jornadas envolveram as áreas da Administração Interna, Justiça, Cooperação, Saúde, Segurança Social, Educação e Cultura, juntando membros do Governo, convidados e organizações internacionais, universidades, organizações não-governamentais e autarquias, em múltiplas iniciativas de norte a sul do país, como seminários, workshops, sessões em escolas e encontros com forças de segurança, profissionais de saúde e equipas técnicas das casas de abrigo e estruturas de atendimento.

Algumas das ações desenvolvidas no âmbito destas Jornadas beneficiaram de financiamento das verbas dos jogos sociais. Foi disto exemplo uma ação de sensibilização, inovadora, que constituiu a sessão de abertura das “Jornadas Nacionais” de 2014 e que contou com a colaboração de 11 figuras públicas que quiseram contribuir para chamar a atenção da comunidade para a gravidade deste problema. A sessão designou-se “Feridas de Morte” e cumpriu inequivocamente o seu objetivo, dada a divulgação pública que se alcançou. Ainda no âmbito da violência doméstica, algumas das campanhas anuais de sensibilização e de prevenção realizadas entre 2011 e 2015 foram financiadas pelos jogos sociais. Assim sucedeu com a campanha de 2012, sob o lema “Em vossa defesa, dê um murro na mesa”, dirigida às mães vítimas desta violência, visando alertar para os impactes negativos sobre as crianças que a ela se encontram expostas. O mesmo se passou com a campanha de 2013, sobre a eliminação da violência contra as mulheres em todos os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), produzida e financiada por Portugal, proposta para divulgação a todos os Estados membros e que tinha como principal mensagem “Contra a violência eu dou a cara”. Já em 2015, assim foi financiada a campanha dirigida à violência no namoro, cujo mote é “Quem te ama não te agride!”, pretendendo denunciar e rejeitar a normalidade com que alguma violência exercida numa relação de namoro é vista por rapazes e raparigas. Também no que se refere ao atendimento e acolhimento de vítimas de tráfico de seres humanos – cuja capacidade triplicou no país em pouco mais de um ano –, a ampliação desta intervenção foi possível graças à utilização destas verbas na criação e funcionamento de dois novos centros de acolhimento no Centro e no Sul do país. Acresce que a sinalização e o apoio às vítimas de tráfico são hoje garantidos por equipas multidisciplinares especializadas5 que estão também a ser finan-

5. As Equipas Multidisciplinares Especializadas (EME) são quatro e atuam no Norte e Centro do país, em Lisboa e no Alentejo.

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ciadas do mesmo modo. Foram investidos nestes meios de proteção cerca de 920 mil euros oriundos das verbas dos jogos sociais. Mas também noutras áreas em que a tutela da igualdade intervém, estas verbas financiaram projetos que proporcionaram avanços significativos em muitos domínios. No que se refere à mutilação genital feminina foram financiados três cursos de pós-graduação para profissionais de saúde, nas Escolas Superiores de Enfermagem de Lisboa e de Setúbal, com propina gratuita. Destes cursos resultou a especialização de 85 profissionais que, chegados às suas instituições, replicaram a sua formação e se encontram agora capacitados para o desenvolvimento de projetos destinados à sinalização e ao registo de casos, bem como de uma atividade preventiva mais eficaz. Nesta mesma matéria foi financiado um estudo de prevalência, o primeiro realizado em Portugal sobre mutilação genital feminina, apresentado publicamente em julho de 2015 e que será brevemente publicado. Também no que se refere à matéria da igualdade no mercado de trabalho, as verbas dos jogos sociais financiaram a realização de campanhas de sensibilização sobre a promoção de uma melhor conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal6 e, mais recentemente, sobre a necessidade de um maior equilíbrio na representação de mulheres e de homens nos conselhos de administração das empresas7. Não tendo esgotado nestas linhas tudo aquilo que se fez e, portanto, todo o benefício possibilitado pela aplicação destas verbas às ações abrangidas pela tutela da igualdade de género, julgo que aqui fica registada uma descrição sintética

NÃO TENDO ESGOTADO NESTAS LINHAS TODO O BENEFÍCIO POSSIBILITADO PELA APLICAÇÃO DESTAS VERBAS, FICA REGISTADA UMA DESCRIÇÃO SINTÉTICA MAS EXPRESSIVA DA ENORME IMPORTÂNCIA QUE ESSES RECURSOS TIVERAM NA CRIAÇÃO DE NOVOS APOIOS E NO REFORÇO DA CAPACIDADE DE INTERVENÇÃO MAIS QUALIFICADA DAS DIVERSAS ORGANIZAÇÕES NA PROMOÇÃO DA IGUALDADE E DA NÃO DISCRIMINAÇÃO E NA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS” mas expressiva da enorme importância que esses recursos tiveram na criação de novos apoios e no reforço da capacidade de intervenção mais qualificada das diversas organizações na promoção da igualdade e da não discriminação e na defesa dos direitos humanos fundamentais. É, por tudo isto, devido um sentido agradecimento à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, fonte de tantas resoluções dirigidas à solução de dificuldades das pessoas mais frágeis!

6. Campanha “Tempo para ter tempo”, realizada pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) em outubro de 2013. 7. Campanha “É tempo de encontrar o mérito nas mulheres e nos homens”, lançada em junho de 2015.

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UMA HISTÓRIA

EXEMPLAR O caso de Tiago Ferrão ilustra como o programa de Desporto Escolar, financiado com verbas dos jogos sociais do Estado, promove a igualdade de oportunidades e combate fatores de exclusão. Uma das histórias de sucesso narrada no próximo livro da coleção Cadernos Solidários SCML. Texto de Dora Santos Rosa [AUTORA_COLEÇÃO CADERNOS SOLIDÁRIOS SCML]

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evolver à sociedade tudo o que é gasto nos jogos sociais do Estado – os Jogos Santa Casa – é o pilar em que assenta o monopólio da sua exploração, a cargo do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. No mais recente livro da coleção Cadernos Solidários SCML apresenta-se, em registo de reportagem, o resultado da aplicação de uma parte dessas receitas no Desporto Escolar, um dos maiores e mais abrangentes programas do Ministério da Educação. Combatendo fatores de exclusão, através dele permite-se o acesso à prática desportiva de crianças e jovens, em igualdade de circunstâncias. Entre os muitos casos de sucesso conta-se o de Tiago Ferrão: institucionalizado com apenas 10 anos, Tiago transformou a sua vida pela prática do desporto. Hoje é um campeão e a sua história exemplar. A participar nas provas de atletismo dos Campeonatos Nacionais de Desporto Escolar, por 30

volta das 10h30 Tiago Ferrão consegue 14,81 metros no lançamento do peso, marca que lhe dá o primeiro lugar e a respetiva medalha. Será ainda essa conquista a garantir-lhe o título de líder nacional do lançamento de peso para jovens nascidos em 1998 e, uns meses depois, mais uma internacionalização, agora para representar Portugal nos Jogos da CPLP, em Angola. Tiago é já um atleta com um currículo assinalável: aos 16 anos é campeão nacional de lançamento de peso e campeão nacional de disco, peso e halterofilismo. O caminho até às vitórias não foi simples, mas a vocação para o desporto acabou por falar mais alto. Com um contexto social e familiar complexo, Tiago deve a si próprio as metas alcançadas. Ao seu mérito junta ainda a dedicação do treinador, Fonseca Antunes. Foi ele quem primeiro pressentiu o seu potencial. Mas, mais importante que isso: foi este professor de Desporto Escolar que teve a coragem de olhar para Tiago e de ver


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para além daquela que era a imagem estereotipada de um miúdo problemático, que com apenas 10 anos tinha já um percurso de institucionalização. Certo das suas qualidades, Fonseca Antunes apostou em Tiago tudo o que havia para apostar e, indo para além do que se pede a um treinador, assumiu a responsabilidade de ser também seu tutor. Nesse duplo compromisso deu-lhe a confiança necessária para que acreditasse em si e no seu valor, a disciplina e o sentido do dever que faltavam, e a garantia de estar sempre por perto, em todos os momentos, por melhores ou piores que fossem. Hoje Tiago Ferrão é uma das esperanças do desporto português. Quando o apresenta, Fonseca Antunes é claro: “Este jovem devia ser considerado um cidadão de excelência em qualquer parte do mundo.” Conhecer a sua história é também perceber como pode o programa de Desporto Escolar reverter circunstâncias particularmente difíceis e abrir caminho para um futuro cheio de boas promessas. Com olhos cor de amêndoa, Tiago tem um sorriso aberto que disfarça a timidez. Frequenta o 8.º ano e entrou no segundo período só com uma negativa. A Matemática é seu ponto fraco e, como não podia deixar de ser, as melhores notas são a Educação Física. Mas não só: “Essa é a minha disciplina preferida. E História também. Na turma sou o ‘cromo’ de História. Gosto muito das matérias e acho que é importante sabermos o que se passou para não repetirmos os erros do passado”, começa por dizer. No seu caso, a certeza do que afirma em relação às matérias parece também resultar da maturidade que lhe deu o seu próprio percurso. Com a consciência que tem a esse respeito, Tiago Ferrão avança com o relato: “Perdi-me cedo, mas dei a volta. Antes de ir para a escola de Alhadas, onde o professor Fonseca Antunes dá aulas, vivia em Ílhavo e fazia tudo e mais alguma coisa. O meu pai deixou-me quando eu era pequeno, a mim e à minha mãe, e comecei a andar com más companhias ainda muito novo. Fumava tabaco e ‘charros’ e era muito malcomportado. Com 10 anos bati num professor e fui suspenso. Era muito

TIAGO FERRÃO conta com o apoio de Fonseca Antunes em todas as provas

UMA PARTE DAS RECEITAS DOS JOGOS SANTA CASA É APLICADA NO DESPORTO ESCOLAR, UM DOS MAIORES E MAIS ABRANGENTES PROGRAMAS DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO” nervoso e resolvia tudo com violência. Dessa vez virei a sala do avesso e teve de vir a polícia. Depois, uma assistente social mandou-me para uma instituição, em Águeda. Estive lá oito meses, longe da minha família. No primeiro dia só 31


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COM UM CONTEXTO SOCIAL E FAMILIAR COMPLEXO, TIAGO DEVE A SI PRÓPRIO AS CONQUISTAS ALCANÇADAS E AO SEU TREINADOR, FONSECA ANTUNES”

O ATLETA olímpico Nélson Évora é um bom exemplo para o jovem

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chorava. Foi muito difícil: apesar de tudo era um miúdo e tinha saudades da minha mãe e da minha avó. Os colegas de lá tinham vidas muito complicadas, alguns nem pais tinham… Quando saí, fui viver para Alhadas, com a minha mãe e a minha avó. Foi aí que conheci o professor Fonseca e que a minha vida mudou completamente.

Se não fosse ele, acho que hoje estava igual. Ou pior… Foi ele que me ajudou, que acreditou em mim. Devo-lhe tudo. É quase como um pai.” Fonseca Antunes tem 54 anos e uma paixão de longa data pelo ensino e pelo desporto. É professor de Educação Física e, tal como a maior parte dos atletas que treina, também ele começou cedo o seu percurso desportivo, passando por diversas modalidades, quer na estrutura escolar quer federada. Em 1972 ganhou a primeira medalha, no escalão de infantis, sagrando-se campeão distrital de voleibol. Andebol, futebol e remo fazem parte do seu currículo, mas a partir de 1977 dedica-se exclusivamente ao atletismo e ao halterofilismo. Durante a década de 1980, vestiu a camisola do Sporting e do Benfica e em 1987 envolveu-se na criação de um clube desportivo no seio da Sociedade União Operária dos Vais (SUOVAIS), um projeto de associativismo local que nasceu em 1914, pela mão dos operários mineiros da região, com o objetivo de fomentar a instrução e o recreio da população. Nessa povoação encostada a Buarcos, no concelho da Figueira da Foz, Fonseca Antunes ajudou a fazer nascer esse clube federado que, apesar de muito modesto, ainda hoje continua a dar grandes valores ao desporto português. Alguns dos seus atletas são de nível internacional e muitos chegam pela via do Desporto Escolar. Para além do mérito desportivo, as preocupações sociais estão presentes em todo o trabalho, assumindo Fonseca Antunes responsabilidades como treinador e como dirigente. “Somos um clube com pouquíssimos recursos, mas nem por isso deixamos de fazer o nosso trabalho. Treinamos no areal e a casa de banho pública é o nosso balneário. Mas isso não nos tem impedido de formar campeões, alguns no desporto adaptado. A Catarina Marques, uma atleta surda profunda, é campeã europeia de corta-mato e é também um bom exemplo. Mas há outros nomes: o Nuno Serra, o Jorge Santos ou o João Dias. Curiosamente começaram todos ou quase todos no Desporto Escolar, comigo, e depois derivaram para a prática federada. Tenho muito gosto em dizer


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que os acompanhei em todo o percurso. O Tiago é um deles e já tem um ótimo currículo. E é ainda muito jovem, com imenso para dar… Mas já é um dos meus ‘canhões’”, adianta, usando a gíria de treinador e sem esconder o orgulho. Com o percurso de Tiago bem presente, Fonseca Antunes recorda como tudo começou: “Conheci-o quando ele tinha 11 anos, na escola de Alhadas. Com aquela idade já tinha vivido coisas complicadas. Apesar de ser miúdo, sabia bem utilizar o corpo que tinha e resolvia tudo da pior forma. Era um terror. Fui professor dele em Educação Física e percebi que tinha um potencial enorme. Puxei-o para o Desporto Escolar, também como forma de canalizar toda a sua energia para uma prática positiva. Apresentei ao conselho de turma uma proposta e criou-se um programa de tutoria partilhada entre mim e a avó. Começámos a trabalhar na escola e pouco depois levei-o para o Clube Sociedade União Operária de Vais, onde foi integrado no grupo de juniores e seniores. Mesmo sendo ainda infantil treinava com eles, todos os dias da semana. Começou a ser o protegido dos atletas mais velhos e a ganhar o gosto pela prática do desporto. E tão importante como isso: começou a perceber que a autoridade não tem de passar pela força física e que há outras formas de resolver os problemas.” Ao ouvir o relato do treinador, Tiago vai acenando com a cabeça em sinal de acordo: “É verdade: acho que o professor pensou que eu tinha algum jeito e depois levou-me para o desporto, também para me dar disciplina. No início dos treinos fazia tudo mal. Mas continuei a trabalhar com os meus colegas e isso deu-me muita motivação. Comecei a ter bons resultados e já não parei. A minha meta é ser um atleta olímpico, um dia…” Se o sonho é grande, a capacidade de entrega não é menor. Por isso – e pelo talento que lhe reconhece – o treinador admite que tudo é possível: “O Tiago tem o futuro todo pela frente. Ele é muito rápido e muito determinado. É de raça pequena e não se poupa. Já aprendeu que para chegarmos onde queremos é preciso trabalhar muito, com garra. Mas isso não é problema: ele

FUI VIVER PARA ALHADAS, COM A MINHA MÃE E A MINHA AVÓ. FOI AÍ QUE CONHECI O PROFESSOR FONSECA E QUE A MINHA VIDA MUDOU COMPLETAMENTE. SE NÃO FOSSE ELE ACHO QUE HOJE ESTAVA IGUAL. OU PIOR…” [TIAGO FERRÃO]

gosta de treinar. Tem é de ter juizinho… Caso contrário, estamos mal…” Tiago sorri enquanto escuta tudo o que é dito a seu respeito. Depois avança com a sua opinião sobre o assunto: “Gosto muito de treinar e sei que se não trabalhar não chego aos resultados que quero. Mas também não é só trabalho! Também nos divertimos e o ‘pessoal’ é muito unido. Se não fosse essa união não teríamos as marcas que temos… Isso é muito importante para a motivação.” Fonseca Antunes concorda com o rapaz, mas tem algo a acrescentar: “É fundamental o prazer que se tira do treino e essa diversão de que fala o Tiago é muito importante, desde que a responsabilidade esteja sempre presente, não é assim?!” A cumplicidade entre os dois é bastante evidente e a pergunta do treinador não espera resposta, apesar de Tiago parecer concordar com o que é dito. Para que não fiquem dúvidas, Fonseca Antunes volta ao assunto: “Este rapaz tem caraterísticas extraordinárias. Mas está a crescer e agora começa a aparecer na equação uma nova premissa, que me está a dar cabo da cabeça: as cachopas. Este jovem tem muita saída com as cachopas…” Dito isto, riem-se os dois. Depois o treinador prossegue: “Pois é, aqui o jovem acha que a energia e a força são inesgotáveis… Vai de bicicleta das Alhadas para a Figueira, 12 quilóme33


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NOS TREINOS ou em prova, com a camaradagem sempre presente

NO INÍCIO DOS TREINOS FAZIA TUDO MAL. MAS CONTINUEI A TRABALHAR COM OS MEUS COLEGAS E ISSO DEU-ME MUITA MOTIVAÇÃO. COMECEI A TER BONS RESULTADOS E JÁ NÃO PAREI. A MINHA META É SER UM ATLETA OLÍMPICO, UM DIA…” [TIAGO FERRÃO]

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tros de distância, e pelo caminho ainda namora…” Tiago tem resposta pronta: “Quem corre por gosto…” A voz do treinador soa grave, mas o registo continua a ser o da brincadeira: “Não pode ser! A minha mulher bem me diz que ele é muito parecido comigo e que um dia ainda me vai dar problemas… Ainda ontem à noite [na véspera da prova do Desporto Escolar] esteve para levar com uma sapatilha porque não estava a cumprir as ordens: mandei apagar a luz e fazerem silêncio, mas estava difícil calarem-se…” Entre risos e “puxões de orelhas”, a camaradagem salta à vista. A camaradagem e o respeito mútuo, os dois pilares em que parece assentar a relação. Para Tiago é hoje inquestionável o apoio do seu treinador. E para este é claríssimo o mérito do jovem, mais ainda se for tida em consideração a sua história de vida. “O Tiago começou o seu percurso em condições muito adversas e conseguiu reverter o processo. Ele era uma espécie de guerreiro que via inimigos em todo o lado e, sentindo-se ameaçado, não continha a sua força. Cheguei a ser chamado para ir resolver uma situação numa sala de aulas… Com o desporto foi possível ‘temperar’ essa força e utilizá-la de outro modo”, explica Fonseca Antunes, valorizando o caminho feito.


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Quanto às caraterísticas físicas do jovem e aos meios que tem à sua disposição, uma visão lúcida permite ao treinador tirar o melhor partido das circunstâncias: “Como atleta, embora não seja muito alto, o Tiago é um ótimo lançador. É verdade que, para o nível que se pretende alcançar, as condições de treino que temos no clube não são as melhores, mas por mais adversas que elas sejam, o caminho é sempre para a frente e o trabalho é tudo. Ele já sabe isso e não poupa esforços. Nem nos treinos nem na escola. Está com uma negativa, mas sabe que é para levantar. Até porque sabe que as más notas podem pôr em causa o trabalho desportivo. Já houve momentos em que tive de me impor perante outros professores que sugeriam que para o castigar lhe cortássemos os treinos… Não deixo que isso aconteça. Nem sequer admito que pensem nisso! E ele tem consciência do que está em jogo e aplica-se. O Tiago pode chegar muito longe”, diz Fonseca Antunes, convicto. Nos anos que leva como treinador e professor, muitas são as histórias de vida com que Fonseca Antunes já se cruzou. Algumas são duras: histórias de miúdos que, como Tiago, cedo se confrontam com situações que parecem não ter saída. Mas a experiência ganha em todos esses anos já lhe deu a serenidade suficiente para saber que, em alguns momentos, a todos se abre a possibilidade de transformar a realidade, agindo sobre ela, por mais adversa que se apresente. Por saber isso, Fonseca Antunes lembra a importância que as receitas de exploração dos jogos sociais do Estado assumem no âmbito do programa do Ministério da Educação: “Não tenho qualquer dúvida ao afirmar que as verbas dos jogos da Santa Casa são muito bem aplicadas no Desporto Escolar. Se não fosse esse dinheiro, este programa não teria a dimensão que tem e certamente não chegaria a tantos jovens, em alguns casos mudando-lhes radicalmente a vida. O Tiago é um bom exemplo…”

AS VERBAS DOS JOGOS DA SANTA CASA SÃO MUITO BEM APLICADAS NO DESPORTO ESCOLAR. SE NÃO FOSSE ESSE DINHEIRO, ESTE PROGRAMA NÃO TINHA A DIMENSÃO QUE TEM E CERTAMENTE NÃO CHEGARIA A TANTOS JOVENS, EM ALGUNS CASOS MUDANDO-LHES RADICALMENTE A VIDA. O TIAGO É UM BOM EXEMPLO…” [FONSECA ANTUNES] Valendo-se do que foi também aprendendo, Fonseca Antunes desenvolve: “O Desporto Escolar tem um enorme valor: do ponto de vista desportivo, por ser aí que os alunos têm o seu primeiro contacto com as modalidades; do ponto de vista social, pelas oportunidades que cria e pelos hábitos saudáveis que promove. Neste momento, trabalho com cerca de trezentos alunos no Desporto Escolar. E além de ser aqui que podem ‘nascer’ grandes atletas, temos de admitir que, em alguns casos, é devido a esta oferta que muitos miúdos continuam na escola. Com o Tiago parece-me bastante evidente que se não tivesse sido o desporto a ‘agarrá-lo’ talvez hoje a sua vida fosse muito diferente. Conheço bem a sua história e sei da importância que a prática desportiva assumiu.” Nessa história – sem dúvida exemplar – o Desporto Escolar deu o pontapé de saída para o percurso deste campeão.

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O papel DOS JOGOS SOCIAIS DO ESTADO no combate ao jogo ilegal O combate ao jogo ilegal passa por garantir a existência de jogo legal atrativo, íntegro e controlado, e pela repressão eficaz da atividade ilegal e das suas consequências indesejáveis para a sociedade. Texto de Patrícia de Sousa Inês [DIRETORA DO GABINETE DE ASSUNTOS JURÍDICOS, DEPARTAMENTO DE JOGOS_SCML]

I. PORQUÊ REGULAR O JOGO? primeira Lotaria Real terá sido realizada em Portugal em 1688, organizada pelo Estado com o objetivo de reformar a moeda angariada com o seu produto. As lotarias de Estado tiveram a sua origem em Itália, no século xvi, com a finalidade de angariar receitas para os fragilizados erários públicos das cidades-estado italianas. Em França, com inspiração na experiência italiana, foi instituída uma lotaria através de um édito real de 1539, com o objetivo de “pôr termo aos jogos dissolutos e impedir burgueses e outros de blasfemar a Deus, e de consumir o seu tempo, trabalho, virtudes e bens essenciais em jogos de azar” e de “impedir que dissipem todos os seus bens e cometam injúrias e excessos contra outras pessoas”. Por toda a Europa, o jogo era, há largo tempo, uma atividade proibida e sancionada, proibição fundada em razões morais e religiosas, mas também em

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motivações sociais, dado o caráter vicioso e ruinoso do jogo, e a sua aptidão para causar distúrbios de ordem social, como rixas, litígios, fraudes e criminalidade generalizada. Portugal não era exceção a esta proibição. Em 1304, D. Dinis decretou uma lei que sancionava com pena de morte quem jogasse com dados falsos ou chumbados, a qual foi substituída, nas Ordenações Afonsinas, pelo castigo de açoite público e degredo nas ilhas. Estabelecia-se, igualmente, a proibição e punição do jogo de dados a dinheiro e da tavolagem. Estas proibições mantiveram-se nas Ordenações Manuelinas e nas Filipinas e, mais tarde, no Código Penal de 1886 e no Código Civil de 1867, que dispunha que “o contrato de jogo não é permitido como meio de adquirir”. Curiosamente, o Código Penal de 1886 já fazia uma distinção entre jogos e lotarias. Com efeito, não obstante a proibição e repressão do jogo que vigoravam em Portugal, em 18 de novembro de 1783 a rainha D. Maria I outorgou


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a concessão de uma lotaria anual à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dividindo-se os seus lucros, em partes iguais, pelo Hospital Real, pelos Expostos e pela Academia Real das Ciências. Em 1892, as extrações da lotaria passaram a designar-se por Lotaria Nacional Portuguesa. Como refere Sérgio Vasques no livro Os Impostos do Pecado – O Álcool, o Tabaco, o Jogo e o Fisco, “a Santa Casa operava então como um genuíno serviço do Estado, não sendo a lotaria senão o sucedâneo de um imposto. Com efeito, com os 12% do lucro, o Estado cumpria funções que de outro modo teria de financiar pela via tributária, ao mesmo tempo que se distanciava do jogo, associando-o a instituições de caridade”. A proibição do jogo a dinheiro tinha por base razões morais e sociais. O Estado procurava canalizar a propensão humana para o jogo na lotaria da Santa Casa e, por essa via, angariar receita para causas públicas, proteger os jogadores e moderar o seu impulso para os jogos de azar. A primeira lei do jogo em Portugal, aprovada pelo Decreto n.º 14643, de 3 de dezembro de 1927, procedeu à regulamentação da exploração dos jogos de fortuna ou azar. Deixou de existir uma proibição total do jogo, passando a exploração dos jogos de fortuna ou azar a ser permitida em zonas de jogo concessionadas e manteve-se o exclusivo da exploração da Lotaria Nacional Portuguesa pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. O Estado, olhando para o jogo como uma atividade indesejável mas inevitável, desistia da sua proibição absoluta, optando por um modelo de autorização regulamentada que vigora ainda hoje. Como pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 99/02, de 27 de fevereiro de 2002, “evoluiu-se da punição, em todos os casos, daqueles que fossem achados a jogar jogo de fortuna ou azar ou o dirigissem ou explorassem (artigos 265.º e 267.º do Código Penal de 1886), para a punição, em leis avulsas, da exploração e prática de jogos de fortuna ou azar, fora dos locais e sem respeito pelas condições em que os mesmos são autorizados – máxime, nos casinos e salas de bingo. Adoptou-se, portanto, o sistema da autorização regulamentada”.

Refere ainda aquele Tribunal que “a punição penal da exploração de jogos de fortuna ou azar não autorizados não se destina primacialmente a impedir a prática de uma actividade – o jogo – considerada moralmente reprovável. Com efeito, o fundamento ético-social do sancionamento penal do jogo de azar não se encontra tanto na necessidade de proteger o jogador contra as inclinações, gostos ou vícios que lhe podem ser – e normalmente são – prejudiciais, quanto na necessidade de reprimir a prática de uma actividade que constitui objecto de uma significativa reprovação social, do ponto de vista ético, tendo em conta os males e prejuízos para a própria sociedade que se considera encontrarem-se-lhe associados 37


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– por exemplo, acréscimo de burlas, usuras e fraudes, bem como de litígios e violências, facilitando o alastramento do crime organizado; significativa perturbação da vida familiar dos jogadores, com repercussão na capacidade de manutenção e educação dos filhos; ou, ainda, possibilidade de incidência negativa no domínio das relações laborais ou económicas dos jogadores”.

jogadores, as restrições e condições de acesso aos locais onde ele se pratica, de modo a assegurar a protecção de certas pessoas, como menores e incapazes, o prestígio de certas funções, a segurança e tranquilidade públicas. Por via disso, procura-se extirpar o jogo clandestino, de características perniciosas e muitas vezes associado à marginalidade”.

O COMBATE AO JOGO ILEGAL NÃO CONSTITUI APENAS A REPRESSÃO DO JOGO EM SI MESMO, MAS TAMBÉM, E PRINCIPALMENTE, A PREVENÇÃO DE OUTRA CRIMINALIDADE E MALES SOCIAIS A ELE ASSOCIADOS Neste enquadramento, o combate ao jogo ilegal não constitui apenas a repressão do jogo em si mesmo, mas também, e principalmente, a prevenção de outra criminalidade e males sociais a ele associados. Desde a instituição da primeira lotaria e, especialmente, a partir da lei do jogo de 1927, foi sendo sedimentada a política nacional de jogo portuguesa: optou-se por um sistema de autorização regulamentada em detrimento da proibição absoluta. Mas optou o legislador por regulamentar cuidadosamente os jogos permitidos, estabelecendo as condições em que estes são autorizados e a sua fiscalização. Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de fevereiro de 2010, “desta forma, o Estado tenta controlar os efeitos negativos do jogo, chamando a si a tarefa de regulamentar e disciplinar essa manifestação lúdica do homem, estabelecendo, por meio de leis apropriadas, os locais onde certas modalidades de jogo consideradas mais atentatórias de bens comunitários de relevo podem ser praticadas, as entidades que as podem explorar, o seu modo de funcionamento e de fiscalização, as regras que devem ser observadas para garantir a seriedade e isenção dos 38

II. O JOGO LEGAL O objetivo, prosseguido pelo Estado e assegurado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em nome e por conta daquele, era garantir que a exploração lícita, controlada e íntegra do jogo a dinheiro – neste caso, dos jogos sociais do Estado –, desmotivasse os jogadores de procurarem a oferta ilegal, evitando-se, desse modo, os seus inconvenientes. É neste contexto que, já no século xx, são criados novos jogos, cuja exploração foi sendo atribuída em regime de exclusivo à Santa Casa: em 1961 o Totobola, em 1985 o Totoloto, em 1987 a Lotaria Popular, em 1994 o Joker, em 1995 a Lotaria Instantânea, em 1997 o Loto 2, em 1998 o Totogolo e em 2004 o Euromilhões. Veja-se, a este respeito, o Decreto-Lei n.º 43 777, de 3 de julho de 1961, pelo qual foi atribuído à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa o direito exclusivo de organizar e explorar concursos de prognósticos ou apostas mútuas sobre resultados de competições desportivas. Referia o preâmbulo daquele diploma que “entre nós o desenvolvimento das apostas particulares aconselha a aproveitar, para fins superiores de interesse público, o rendimento destas atividades. E só uma organização oficial


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pode assegurar ao público a necessária lisura na recolha do capital das apostas, no apuramento dos resultados dos concursos e no pagamento dos prémios. Pode lamentar-se que a evolução dos tempos se encaminha neste sentido. Mas a verdade é que, perante o inevitável do fenómeno, a melhor solução é, sem dúvida, rodeá-lo das garantias necessárias e transformá-lo em fonte de receita para fins de assistência e de educação física. De outro modo teria de assistir-se, sem grande possibilidade de intervenção efectiva, ao progresso de um jogo conduzido irregularmente, com todos os graves inconvenientes que disso sempre resultam”. O objetivo de canalização da procura de jogo para a oferta legal do Estado, atribuída a uma entidade credível como a Santa Casa e em benefício da aplicação das receitas dos jogos a causas de cariz social, estão bem patentes no preâmbulo da legislação que procedeu à criação destes jogos. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa atua, pois, na prossecução de um interesse público: a garantia da idoneidade e integridade da exploração do jogo, bem como da existência de uma oferta atrativa para os jogadores, desincentivando-os, por esta via, de participar em jogos ilícitos, potenciadores da fraude, do crime e perturbadores da ordem pública e da paz social. Para uma instituição secular como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, é notável a capacidade que esta tem demonstrado na execução deste desígnio, evidenciada na exploração eficaz de novos jogos que foram sendo introduzidos com o objetivo de disponibilizar aos jogadores uma oferta credível e atrativa, capaz de responder aos desafios colocados pela proliferação do jogo ilegal. Foi esse o caso do Totobola, como resulta do preâmbulo acima citado, mas foi também esse o caso da introdução da Lotaria Popular, em 1987, como resposta às rifas ilegais, ou do Euromilhões, em 2004, que se mostrou eficaz contra o jogo transfronteiriço ilegal. Mas não é apenas a introdução de novos jogos que demonstra essa capacidade de reação por parte da Misericórdia de Lisboa. A Santa Casa acompanhou a evolução dos meios tecnológicos que permitiram assegurar uma oferta segura e íntegra para os apostadores e suficientemente abrangente no território

nacional, como sucedeu em 2000, com a adoção do sistema informático de registo de apostas. Como pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 153/2000, de 30 de setembro, “de facto, a utilização de um sistema de registo de apostas online exige instalações com características especiais de segurança, tanto quanto possível imunes às consequências de catástrofes naturais ou provocadas, como tremores de terra, inundações, incêndios, sabotagens e outras, que se traduzem nomeadamente na existência de um centro de backup em compartimento estanque, e exige, igualmente, uma reestruturação ao nível do pessoal do Departamento de Jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”. Destaca-se ainda neste domínio a introdução, em 2004, pelo Decreto-Lei n.º 282/2003, de 8 de novembro, da exploração eletrónica dos jogos sociais do Estado, designadamente através da internet, como resposta à crescente procura de jogo através daquele canal e à oferta ilegal de jogo online efetuada por diversos operadores internacionais, em desrespeito pela legislação nacional, atividade contra a qual a Santa Casa se tem batido, como melhor veremos adiante. III. O JOGO ILEGAL O combate ao jogo ilegal tem ainda sido prosseguido pela Santa Casa através da via repressiva. Os Estatutos de 1991 já atribuíam à Santa Casa, através do então criado Departamento de Jogos, poderes de autoridade administrativa para a apreciação dos processos de contraordenação respeitantes à exploração ilícita de lotarias, apostas mútuas e atividades similares, para aplicação de penalidades previstas na lei, atribuição que se manteve nos atuais Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro. Igualmente, a Lei n.º 30/2006, de 11 de julho, veio clarificar o regime contraordenacional aplicável a exploração ilícita de lotarias, apostas mútuas ou jogos similares pela violação do regime de exclusivo atribuído à Misericórdia de Lisboa, inclusive através de meios eletrónicos. A mesma lei veio confirmar as competências da Santa Casa para o processamento 39


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e aplicação de coimas e sanções acessórias relativas àquelas contraordenações. O jogo ilegal reveste diferentes formas, das mais simples às mais complexas. Se inicialmente se assistia a jogo ilegal explorado presencialmente, através de suportes físicos, na última década assistiu-se a um crescimento do jogo ilegal explorado através de meios eletrónicos, quer através da internet, quer com recurso a computadores ou telemóveis para registo e comunicação de apostas presenciais ilegais, quer ainda com recurso a máquinas ditas de diversão, de maior ou menor sofisticação.

evasão fiscal e ofensas à integridade das pessoas. O combate a uma atividade tão dispersa, que apresenta caraterísticas tão díspares, exige coordenação de esforços e estreita colaboração entre as entidades competentes. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – enquanto autoridade administrativa competente para a instrução e aplicação no âmbito dos processos de contraordenação por jogo ilegal similar às lotarias e apostas mútuas – desenvolve um conjunto de atividades de averiguação de situações suspeitas de jogo ilegal, tendo em vista a abertura de processos de

FOI REAFIRMADA, À LUZ DO DIREITO NACIONAL E DO DIREITO EUROPEU, A JUSTEZA DA ATRIBUIÇÃO DO EXCLUSIVO DA EXPLORAÇÃO DOS JOGOS SOCIAIS DO ESTADO À SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA As modalidades de jogo ilegal abrangem a atribuição de bens ou dinheiro com recurso a cartazes numerados com base nos resultados dos sorteios da Santa Casa; a bilhetes, rifas ou cartões; a jogos de apostas mútuas ou de lotaria, passiva ou instantânea; a apostas desportivas ilegais ou à gestão de bolsas de apostas, entre outras. As quantias envolvidas em apostas e em prémios são também muito variáveis, podendo ser somas de valor reduzido ou de valor muito considerável. Coexistem assim, por exemplo, apostas ilegais de €0,50 para atribuição de prémios constituídos por bens perecíveis e apostas de €100 para a atribuição de prémios de €10 000. Se o jogo legal procura responder à oferta ilegal, também o inverso acontece, razão pela qual, por exemplo, o crescente sucesso da lotaria instantânea foi rapidamente imitado pelo surgimento de “raspadinhas” ilegais. A aparente simplicidade de algumas formas de jogo ilegal esconde o facto de, por detrás destas atividades, estarem muitas vezes crimes de associação criminosa, fraude, burla, branqueamento de capitais, 40

contraordenação. Dispõe de uma equipa própria para o efeito, contando ainda com o apoio da sua rede comercial para a denúncia de situações suspeitas. A cooperação com as autoridades policiais na matéria tem sido inestimável, quer no âmbito da formação e informação mútuas quer no âmbito da deteção e repressão de situações de jogo ilegal e remessa dos correspondentes autos de notícia para o Departamento de Jogos da Santa Casa. Por outro lado, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa participa ativamente nos processos judiciais de impugnação das coimas aplicadas. IV. O DESAFIO DO JOGO ONLINE Na última década, a deteção e repressão do jogo ilegal têm enfrentado, como se disse, um novo desafio resultante do jogo ilegal online. A oferta online de jogo ilegal coloca sérias dificuldades na prevenção e punição da atividade, uma vez que os titulares dos sites de jogo online estão, na maioria das vezes, sediados fora de Portugal, em paraísos fiscais, sem qualquer ligação ao território nacional. Os servidores de internet estão também localizados fora de


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Portugal. A volatilidade da internet dificulta a tomada de medidas eficazes para restringir o acesso a essa oferta ilegal e a punição da atividade. Logo em 2004, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa encetou um conjunto de ações para fazer cumprir a legislação nacional no que respeita a esses sites, instruindo os processos de contraordenação por jogo ilegal e intentando as competentes ações judiciais. Infelizmente, a maioria desses processos não transitou ainda em julgado, pelo que a atividade ilícita tem prosseguido de forma relativamente impune. Contudo, estas ações – e o longo litígio jurídico que se seguiu – constituíram uma oportunidade para reafirmar, à luz do Direito nacional e do Direito europeu, a justeza do modelo português de organização e exploração dos jogos a dinheiro e, em especial, da atribuição do exclusivo da exploração dos jogos sociais do Estado à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Com efeito, numa importante decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia – proferida no processo C-42/07, de 8 de setembro de 2009, que deu razão à posição defendida pela Santa Casa –, aquele Tribunal reconheceu a compatibilidade da legislação portuguesa relativa ao jogo a dinheiro com os tratados europeus e, em especial, que “o objectivo principal prosseguido pela legislação nacional é o combate à criminalidade”. Mais afirmou aquele Tribunal que “o combate à criminalidade pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral, suscetível de justificar restrições quanto aos operadores autorizados a oferecer serviços no sector dos jogos de fortuna ou azar” e reconheceu que aqueles jogos “comportam riscos elevados de delito e de fraude”. O Tribunal afirmou ainda que a organização e o funcionamento da Santa Casa se regem por considerações e exigências que visam a prossecução de objetivos de interesse público e que “a concessão de direitos exclusivos para a exploração de jogos de fortuna ou azar na Internet, a um único operador, como a Santa Casa, que está sujeito ao controlo rigoroso do Estado, pode […] permitir canalizar a exploração desses jogos para um circuito controlado e ser considerada apta a proteger os consumidores contra fraudes cometidas pelos operadores”.

O Tribunal de Justiça realçou ainda os desafios especialmente colocados pela oferta de jogo através da internet, considerando que “devido à falta de contacto directo entre o consumidor e o operador, os jogos de fortuna ou azar acessíveis na internet comportam riscos de natureza diferente e de uma importância acrescida em relação aos mercados tradicionais desses jogos, no que se refere a eventuais fraudes cometidas pelos operadores contra os consumidores”. Por outro lado, a atuação contra ilícitos cometidos através da internet exige a existência de mecanismos jurídicos e técnicos que possibilitem uma atuação célere e eficaz. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sempre pugnou pela criação desses mecanismos, tais como de medidas de bloqueio de transações financeiras e bloqueio de nomes de domínio e de IP (protocolo de internet) ligados a atividades ilícitas de jogo. V. PERSPETIVAS DE FUTURO Confrontado com a realidade do jogo através da internet, o Governo português aprovou um pacote legislativo que irá alterar a regulação do jogo online e aprovar a exploração de novos jogos. Quanto ao jogo online serão atribuídas licenças a operadores privados, alguns dos quais terão, até agora, atuado ilegalmente em Portugal. A nova lei irá manter o exclusivo da exploração dos jogos sociais do Estado pela Santa Casa, atribuindo-lhe também o exclusivo das apostas desportivas à cota e hípicas de base territorial. O objetivo da nova legislação é controlar o jogo através da internet e combater o jogo ilegal. Esta legislação introduzirá uma profunda alteração ao modelo até agora vigente no que respeita ao jogo online, com o objetivo de trazer para a legalidade atividades até agora ilegais. A concretização deste objetivo deverá ser rodeada de especiais cuidados nos requisitos, controlo e fiscalização da atividade. O pragmatismo das soluções encontradas face à realidade do jogo online ilegal terá sempre de ser acompanhado de exigência e rigor na defesa dos bens jurídicos protegidos: o respeito pelo Estado de Direito, a ordem pública, a segurança dos cidadãos, a proteção da família, da juventude e da infância. 41


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LOTARIA NACIONAL

200 ANOS DE SONHOS. 200 ANOS DE SOLIDARIEDADE Texto de Havas Worldwide Portugal [AGÊNCIA DE PUBLICIDADE QUE TRABALHA A MARCA LOTARIA NACIONAL]

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Criar publicidade para a Lotaria Nacional é um exercício de liberdade e responsabilidade que reflete na perfeição a instituição que a promove. Afinal, como é vender a possibilidade de ganhar um grande prémio, tendo como pano de fundo uma instituição solidária que se confunde com a própria sociedade portuguesa?

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lgumas das melhores peças publicitárias de todo o mundo são anúncios a lotarias e lotos. O potencial de explorar o que, no fundo, é uma promessa de liberdade absoluta, por via de um enorme prémio em dinheiro, não oferece limites. É quase imediato transportar para a criatividade o exercício que cada apostador faz (e que alguns dizem ser a verdadeira recompensa do jogo) de imaginar o que faria se ganhasse. Não há limites para a imaginação? Há alguns, ou pelo menos alguns condicionalismos, e é na relação com esses condicionalismos que floresce o verdadeiro desafio do publicitário. Porque na verdade, criatividade em estado “puro” raramente faz boa publicidade. Um anúncio, seja ele qual for, deve transportar consigo os chamados valores da marca, e do tempo em que é comunicada, e é neste aspeto que a Lotaria Nacional se distancia de todos os outros jogos sociais. Assim, para fazer publicidade à Lotaria Nacional dos Jogos Santa Casa (JSC), há diversos fatores a ter em conta. Primeiro e desde logo, a História. Assim mesmo com H grande porque se confunde com a própria História de Portugal. São já mais de duzentos anos desde o decreto de D. Maria I que concedeu à Santa Casa da Misericórdia a exploração de uma lotaria nacional. Esta história impregnou a Lotaria de uma série de códigos, bordões e figuras populares: o “Anda a roda....”, “É pr’amanhã!” cantados pelos cauteleiros, ou “sair a terminação” ou a “taluda”.

Além disso, é uma presença que se sobrepõe aos ciclos anuais da nossa cultura e sociedade, com as lotarias temáticas de cariz religioso, associadas a feriados, momentos especiais do ano e eventos, e que tem como elemento maior a Lotaria do Natal. Por outro lado, a ação social da Misericórdia, em termos de imaginário coletivo, foi sempre solidificando a noção de que o dinheiro que era apostado era sempre bem utilizado nas chamadas boas causas. Assim, a história da Lotaria dá-nos um quadro de referências, uma linguagem, personagens, que, não indo necessariamente impregnar a publicidade, é sempre tido em conta quanto mais não seja por não poder ser renegado. Como segundo fator, temos de considerar o contexto atual dos jogos sociais do Estado em pelo menos dois níveis. Por um lado, ao nível de concorrentes, mesmo que ilegais, com a explosão de oferta de apostas online, casinos reais e virtuais, etc. Estes últimos, desde logo carecem de alguns valores que distinguem e privilegiam os JSC. O caráter íntegro, responsável e solidário dos Jogos Santa Casa não tem qualquer paralelo nos concorrentes, frequentemente anónimos, estrangeiros, e inquestionavelmente ao serviço apenas de si mesmos e de lucros fáceis, sem qualquer retorno social, se excluirmos os casinos reais, que ainda assim pagam os seus impostos. NOVOS JOGOS, NOVOS DESAFIOS Dentro do portfólio dos próprios Jogos Santa Casa, os desafios oferecem mais matizes. 43


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À medida que os JSC foram diversificando a sua oferta, primeiro com as apostas desportivas do Totobola, depois com o Totoloto, o Joker, as Raspadinhas e com o gigante Euromilhões, a Lotaria Nacional foi tendo de se ajustar em termos de presença da lista de prioridades dos apostadores. Se as apostas desportivas mútuas premiaram o saber e conhecimento dos apostadores em matéria de futebol, os lotos vieram sobretudo mudar o panorama dos prémios dos jogos. A Lotaria perdeu inquestionavelmente algum terreno, aqui. Paralelamente, ao mesmo tempo que apareciam novos jogos, deu-se um acontecimento que também veio mudar a comunicação dos mesmos. A mudança do escudo para o euro transformou a noção de “milionário”. Ter um milhão de escudos, sobretudo

AO MESMO TEMPO QUE APARECIAM NOVOS JOGOS, DEU-SE UM ACONTECIMENTO QUE TAMBÉM VEIO MUDAR A COMUNICAÇÃO DOS MESMOS. A MUDANÇA DO ESCUDO PARA O EURO TRANSFORMOU A NOÇÃO DE “MILIONÁRIO”

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já nos anos 1990, era substancialmente diferente de ter um milhão de euros, mas sobretudo a promessa de ser milionário deixou de poder ser cumprida por prémios que antes se apresentavam como fabulosos. Ganhar um totoloto, de repente, parecia pouco. Da mesma forma, uma lotaria de 600 mil euros, apetecível como é, uns quase inimagináveis 120 mil contos em moeda antiga, já não coloca o vencedor na categoria de milionário, condicionando de alguma forma a comunicação do prémio. “Torne-se milionário” é uma promessa muito mais concisa, concreta e sedutora do que “ganhe uma considerável importância que poderá resolver-lhe todos os problemas financeiros atuais mas não garante necessariamente a independência total para o resto dos seus dias”. Isto, caricaturando, claro. Portanto, considerados estes pressupostos, como é afinal criar publicidade para a Lotaria Nacional no século xxi? A resposta é o clássico e irritante: “Depende!”. Depende do orçamento, depende da lotaria, depende do momento político até. O orçamento, como é bom de ver, condiciona tudo. A comunicação da lotaria não é imune aos tempos de crise. Aqui, como em tudo, é preciso fazer mais com menos e, se uma boa ideia não é necessariamente cara de produzir, a sua veiculação nos mass media continua a exigir montantes


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consideráveis. De qualquer modo, hoje em dia a comunicação das lotarias tende a concentrar-se em dois ou três momentos cruciais, sendo a fatia de leão ainda dedicada à rainha das lotarias: a Lotaria do Natal. O que nos leva ao momento da comunicação. Por tudo aquilo, de alguma forma, a publicidade à Lotaria é em grande medida um conto de Natal. O que, de resto, casa na perfeição com o retrato que temos dos Jogos Sociais do Estado. Enquanto um jogo como o Euromilhões pode celebrar na sua comunicação o delírio mais excêntrico de um multimilionário repentino, a Lotaria do Natal surge numa época em que os valores de partilha e solidariedade estão bem presentes no público. Não se procura tanto a ostentação egoísta como a ideia de um bem partilhado, a possibilidade de ajudar os que nos são próximos ou até, como foi estratégia recente, a sugestão da Lotaria como prenda de Natal. Desde que eclodiu a crise financeira, tem havido também mais cautela ou até mesmo pudor, em exibir manifestações de riqueza que se possam considerar excessivas, ofensivas para quem tem tão pouco, que sugiram desperdício. E no meio disto tudo, ainda assim, tem de sobressair o sonho. APOSTAR NOS SONHOS Um outro desafio vem agarrado à Lotaria Nacional: o público-alvo. Que devemos olhar de duas formas. Por um lado o apostador típico, o cliente fiel, que tem mais de 35 anos, algo conservador, uma pessoa de hábitos e que dá valor à tradição. Por outro, aqueles que queremos atingir de facto, que são todos estes, e também novos apostadores, que nesta vida moderna passam mais tempo a percorrer a internet do que as ruas onde podem ouvir os cauteleiros ou entrar num quiosque que vende Jogos Santa Casa. Este novo público tem de ser impactado porque só assim se pode garantir o futuro e continuidade da Lotaria… para mais duzentos anos. Por isso, a criatividade deve ser capaz de divertir ou comover, empolgar, fazer sonhar, pessoas de todas as idades e condi-

A PUBLICIDADE À LOTARIA É EM GRANDE MEDIDA UM CONTO DE NATAL. O QUE, DE RESTO, CASA NA PERFEIÇÃO COM O RETRATO QUE TEMOS DOS JOGOS SOCIAIS DO ESTADO” ção social e cultural. Umas para as manter fiéis ao seu jogo de sempre, outras para as despertar para a existência de um jogo que é, na verdade, a mãe de todos os jogos. Com todas estas considerações em mente, finalmente a equipa criativa está pronta a trabalhar. O desafio é sempre dizer o que é dito de uma maneira ou outra há mais de duzentos anos, mas de forma uma vez mais original, relevante, surpreendente, cativante, convincente. Desde que trabalhamos a marca Lotaria Nacional já tivemos a satisfação de criar alguns dos anúncios de que mais nos orgulhamos. Sob a assinatura “Lotaria Nacional, aposte nos seus sonhos”, apostámos toda a nossa criatividade. E saiu-nos a sorte grande. P.S.: Este artigo foi escrito por publicitários da Havas Worldwide Portugal. Para compensar qualquer exagero, é prudente aplicar um desconto de 20% de acordo com as taxas em vigor. 45


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LIBERDADE 194, A PORTA DE ENTRADA NUM NOVO CICLO Em maio de 2015, o Departamento de Jogos da Misericórdia de Lisboa foi transferido para o edifício Liberdade 194. O imóvel foi alvo de uma intervenção que tornou possível requalificar e reabilitar este conjunto edificado situado numa zona premium da cidade. Texto de Helena do Canto Lucas [DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE GESTÃO IMOBILIÁRIA E DO PATRIMÓNIO_SCML]

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dia 15 de junho de 1983 assinala a data em que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) adquiriu ao Instituto do Emprego e Formação Profissional o imóvel situado na Avenida da Liberdade, 194, e Rua Rodrigues Sampaio, 13, em Lisboa, com o objetivo de aí instalar os então designados “serviços da Lotaria Nacional”. Face a diversas condicionantes, esta intenção não foi concretizada, tendo o imóvel sido arrendado ao Instituto Português da Juventude. O edifício que denominamos “Liberdade 194” é constituído por dois blocos com duas frentes de rua – uma na Avenida da Liberdade, com nove pisos acima do solo, e outra na Rua Rodrigues Sampaio, com seis pisos acima do solo, estando ambos ligados pelos pisos inferiores, dos quais três são em cave para estacionamento. Em 2004, o edifício foi transferido para o Fundo de Investimento Imobiliário Fechado Santa Casa 2004, cuja entidade gestora é a FundBox, SA, onde foi desenvolvido o projeto de arquitetura e especialidades para futura instalação do Departamento de Jogos da SCML. Nesta sequência, e por escritura de permuta

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celebrada em 2013, o imóvel foi transmitido para a SCML, que assegurou a execução das obras de reabilitação necessárias à sua adaptação a este uso, num investimento traduzido em cerca de 6,5 milhões de euros. A intervenção teve como objetivo valorizar o conjunto edificado, através de intervenções não só ao nível dos interiores, mas também alterações nas fachadas, o que contribuiu para uma melhoria substancial da respetiva zona envolvente. As fachadas sofreram uma intervenção profunda, com ênfase na Avenida da Liberdade, mediante a substituição de todos os vãos por perfis metálicos de sombrea-


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A PAR DA VALORIZAÇÃO ESTÉTICA, PRETENDEU-SE, AO MESMO TEMPO, ADAPTAR FUNCIONALMENTE O EDIFÍCIO AOS REQUISITOS DE UTILIZAÇÃO CONTEMPORÂNEA” Jogos Santa Casa estão a iniciar um novo ciclo e posicionamento estratégico no mercado. Com o passado sempre presente e de olhos postos no futuro, esta intervenção constitui mais um passo na reabilitação do património da SCML, dotando as novas instalações dos requisitos legais exigidos e das necessárias condições de modernidade, proximidade e funcionalidade dos serviços, para que os jogos sociais prossigam a sua missão ao serviço das pessoas e das boas causas.

mento no sentido vertical, o que configurou uma nova imagem do edifício. A par da valorização estética, pretendeu-se, ao mesmo tempo, adaptar funcionalmente o edifício aos requisitos de utilização contemporânea, com incidência nos parâmetros de segurança, sustentabilidade e infraestruturas tecnológicas. Atendendo à localização privilegiada do edifício numa zona premium da cidade de Lisboa, o piso térreo foi reconvertido em dois amplos espaços comerciais, cujos arrendatários, representantes das marcas Guess e Boutique dos Relógios, são os responsáveis pelo design interior dos mesmos. Com esta intervenção foi possível requalificar e reabilitar este conjunto edificado que se encontrava degradado e descaraterizado pelas várias intervenções levadas a cabo ao longo do tempo. Em maio de 2015, foi assim cumprido um desejo com mais de trinta anos. O Departamento de Jogos da SCML foi transferido do edifício das Taipas para o edifício Liberdade 194, no momento em que os 47


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MITRA POLO DE INOVAÇÃO

DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA A MITRA – Polo de inovação da Misericórdia de Lisboa inicia um novo ciclo de vida. Rasgando com um passado marcado pelo estigma, transforma-se num espaço aberto, inovador e de oportunidades. Um olhar atento, 24 horas por dia, sobre a cidade. Texto de Rita Valadas [VOGAL DA MESA ADMINISTRATIVA DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA; ADMINISTRADORA EXECUTIVA DA AÇÃO SOCIAL_SCML]

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DEVOLVER O NOME, MUDAR O QUE ESTÁ DENTRO... spaço soturno e cinzento, de luz forte mas triste, de muitos corpos mas com almas escondidas. Olhos tristes sem expressão, gritos inenarráveis, ambiente frio e sem calor, pessoas sem estórias e histórias sem pessoas. Um espaço prometedor, vidas por resgatar, história por fazer… Pessoas na “parada” a ver passar o dia, sem outro objetivo que o de ver a vida passar. A “parada” continha-se entre um portão sempre fechado e um edifício que dá costas ao comboio. A vida estava fora do portão e dos muros. Do outro lado estavam, frente a frente, um palácio e uma Unidade de Saúde. Esta foi a MITRA que eu vi em 2011. Ou melhor, este era o Centro de Apoio Social de Lisboa, onde o enorme esforço de poucos nunca foi suficiente para combater o espectro asilar que se agarrava a cada espaço. Mas um espaço que foi capaz de se transformar tantas vezes também ainda teria muito para dar. Era preciso acreditar que a MITRA, com o peso do preconceito que transporta, ainda seria capaz de ser o seu oposto, anular o estigma e ser um espaço aberto à cidade, inovador e de oportunidades. Hoje, a MITRA vive de portão aberto para o rio e os que passam sabem que a rua não termina num portão. Hoje, a “parada” desapareceu e a Alameda das Laranjeiras convida a entrar. Os residentes tomaram conta do espaço, interpelam os amigos e passantes, localizam todos os que procuramos e passeiam nele com propriedade.

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ERA PRECISO ACREDITAR QUE A MITRA, COM O PESO DO PRECONCEITO QUE TRANSPORTA, AINDA SERIA CAPAZ DE SER O SEU OPOSTO, ANULAR O ESTIGMA E SER UM ESPAÇO ABERTO À CIDADE, INOVADOR E DE OPORTUNIDADES” “Tem uma moedinha?... Não veste a minha roupa senão morre!... E um cigarrinho, tem?... A capital de Itália é Roma, de Espanha é Madrid e do Reino Unido... do Reino Unido... Menina, venha cá, venha cá... tenho dores nas costas!... Ai Ieeeta, niiiina, Buno, não... Sissi! A diretora está lá ao fundo. Hoje há reunião? Dormiu bem? Tem de arranjar trabalho para a menina…” Estes ecos nunca irão apagar-se da Alameda das Laranjeiras na MITRA… Mas a estes vão juntar-se muitos outros ecos, muitos sons, sons de novas oportunidades. A MITRA, no caminho da reabilitação dos seus espaços e na construção do seu projeto, abriu as portas e é hoje procurada para iniciativas e eventos vários da Santa Casa e de outros parceiros da 49


| INOVAÇÃO |

A MITRA PREPARA-SE PARA OFERECER ESPAÇOS DE VIDA E RESPOSTAS ACESSÍVEIS DE QUE A CIDADE PRECISA” DE ALBERGUE DA MENDICIDADE A POLO DE INOVAÇÃO SOCIAL OBJETIVO DO PROGRAMA MITRA Disponibilizar um espaço em que os valores da solidariedade, da diversidade e da inclusão se vão materializar numa oferta integrada, aberta à sociedade, através da criação de um conjunto de valências que pretendem facilitar e apoiar as pessoas com mais dificuldades de integração na sociedade, sem descurar todos os cidadãos que pretendam interagir ou usufruir desse espaço.

comunidade. A MITRA prepara-se para oferecer espaços de vida e respostas acessíveis de que a cidade precisa, sem deixar de olhar para os que aí vivem e frequentam, diariamente, já hoje, as atividades. O programa MITRA reconhece que a vulnerabilidade, mesmo quando é temporária, é um fator muito comum, não escolhe idades nem classes sociais, sendo, por isso, transversal à sociedade. Ao integrar neste espaço protegido uma elevada diversidade de pessoas vulneráveis, poderão nascer sinergias e poderá crescer a solidariedade. O objetivo da MITRA é apoiar estas pessoas, num caminho desenhado à medida de cada um que lhes permita manter ou ganhar autonomia e capacidade de integração na sociedade. Como tal, contemplam-se os seguintes indicadores-base: aumentar a qualidade de vida de pessoas vulneráveis (assumidas e escondidas); recriar envolvimento, ao alargar a rede de pessoas com as quais podem interagir positivamente, apoiando-se sempre que precisam;

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Em 1930, a propriedade que hoje designamos por Mitra foi comprada pela Câmara Municipal de Lisboa com o projeto de ali instalar um matadouro, o que nunca veio a concretizar-se. Em 1933 foi criado o Albergue da Mitra, por indicação do então ministro da Guerra, o coronel Lopes Mateus. O albergue viria a ser inaugurado em maio desse mesmo ano. O objetivo era então o de “eliminar das ruas e dos lugares públicos a aparência da miséria”. O Decreto-Lei n.º 19687, de 4 de maio de 1931, determinava e regulava a repressão da mendicidade nas ruas e lugares públicos. Em 1940, Oliveira Salazar aprovava legislação (o Decreto-Lei n.º 30389, de 20 de abril de 1940) determinando “que em todas as cidades sedes de distrito” fossem criados, na dependência da Polícia de Segurança Pública (PSP), albergues destinados a prevenir e reprimir a mendicidade em todo o país. O Albergue da Mitra tornou-se uma espécie de prisão para muitos daqueles que eram retirados à força das ruas pela PSP, deixando enraizada na população a imagem negativa associada ao local. Após Abril de 1974 surgem novos enquadramentos da pobreza e da proteção social e um novo primado na defesa do bem-estar social da população. Em fevereiro de 1975, o Programa de Política Económica e Social enuncia os objetivos a alcançar no campo da repartição de rendimentos e propõe “a eliminação de formas extremas de pobreza através da garantia de um mínimo social” (RODRIGUES, 2002, p. 268). Com a publicação do Decreto-Lei n.º 365/76 a mendicidade passou a ser vista, na sua essência, sob uma perspetiva estrutural, assumindo-se como principais causalidades do problema o desenvolvimento socioeconómico e cultural do país. Deste modo, a


| SOCIAL |

legislação eliminou a perspetiva punitiva até aí então existente, extinguindo o Serviço de Repressão à Mendicidade, criado em 1960, bem como o Albergue da Mitra, procurando-se, em alternativa, criar “uma rede de serviços de acolhimento e triagem com vista ao encaminhamento dos utentes para as soluções adequadas” (PIMENTA, 1992, p. 18). A evolução social de Lisboa levou a que aquele complexo viesse a ter vários usos, estando sob coordenação da Segurança Social até 2011, ano em que é transferido transitoriamente para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. À data, existiam no então designado Centro de Apoio Social de Lisboa as valências de Lar de Idosos e de Centro de Dia. As condições de habitabilidade e de funcionamento deste equipamento obrigaram a SCML a intervir com caráter de urgência, retirando definitiva ou transitoriamente as pessoas para respostas mais dignas, adaptadas aos anseios e projeto de vida de cada um. Cerca de metade dos 160 residentes estão hoje enquadrados em novas respostas. O primeiro sinal dado pela Santa Casa, depois de avaliada a situação pessoal, social e de saúde dos residentes, foi o de demonstrar que a Mitra se queria de portas abertas. Assim se organizou o primeiro evento de gala. Os idosos dos Centros da SCML foram convidados para o Baile da Primavera realizado a 3 de abril de 2013. Nesse dia assumiu-se o portão aberto e um salão cosmetizado em espaço de luxo. Uma resposta de inovação exige confronto de ideias. Assim, em setembro de 2013, reuniram-se pela primeira vez os “Amigos Críticos da Mitra”. O grupo dos improváveis, porque foi criado por especialização e interesse dos seus membros e não por designação. Juntou pessoas de dentro e de fora da SCML e envolveu uma coordenadora – a diretora do equipamento e responsável no programa pela área da inclusão social –, uma pessoa para a coordenação

das questões do património e das relações institucionais com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), um especialista na área da animação sociocultural (interna e externa), uma especialista em saúde e em determinantes sociais da saúde e um responsável pela área da comunicação e das acessibilidades. A Mitra passou definitivamente para a gestão da Misericórdia de Lisboa a 10 de setembro de 2014, numa cerimónia que contou com a presença do ministro da Solidariedade, do Emprego e da Segurança Social. A 5 de novembro de 2014 António Costa, à data presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e Pedro Santana Lopes, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, assinaram publicamente a escritura que contratualiza a transferência de terrenos e equipamentos da Mitra para a gestão da SCML. A decisão de entregar à Santa Casa a reestruturação deste equipamento foi aprovada mediante votação em reunião de Câmara realizada a 8 de julho desse ano. Na sequência da transferência de terrenos e equipamentos da Câmara Municipal de Lisboa para a gestão da Santa Casa, foi apresentado o programa MITRA, um ambicioso projeto de reestruturação da MITRA, traduzido num investimento inicial de cinco milhões de euros e que aposta na abertura deste centro social a todos os lisboetas, transformando o local conhecido por abrigar indigentes num centro de apoio aos cidadãos, sem estigmatizar públicos vulneráveis e com apoio de saúde 24 horas por dia. A operação recuperará o espaço, abrangendo também a exploração agrícola da quinta adjacente, e porá em marcha um projeto único e que se quer de excelência no apoio e integração dos sem-abrigo e de outros públicos vulneráveis, na senda das políticas que têm vindo a ser desenvolvidas nos últimos anos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

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| INOVAÇÃO |

A MISERICÓRDIA DE LISBOA ASSUME A RESPONSABILIDADE DE INOVAR NO QUE RESPEITA ÀS DIMENSÕES SOCIAL, AMBIENTAL E ECONÓMICA, PROCURANDO MODELOS QUE, COM MENOS ESFORÇO, PERMITAM CRIAR MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA PARA TODOS” c riação de oportunidades, para que estas pessoas possam dar o seu contributo positivo e, eventualmente, produtivo, para o aumento da resiliência da comunidade; consolidação de um espaço autónomo e resiliente capaz de apoiar as pessoas, mesmo durante ciclos de escassez. Os atuais esforços vão sistematicamente ao encontro do objetivo de criar condições que aliciam estas pessoas vulneráveis a participar em atividades adaptadas, nas quais se sentem integradas na comunidade, mais realizadas e, em muitos casos, a contribuir também produtivamente. Até oferecermos as condições para cada qual exprimir e experimentar estas atividades, é impossível prever o potencial do contributo de cada qual – tanto no que respeita à criatividade como à produtividade.

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RESILIÊNCIA URBANA PARA PROTEGER A VULNERABILIDADE Quando se regeneram espaços urbanos que transportam uma memória da qual a cidade tem vergonha, é frequente que a primeira medida tomada passe por tentar apagar a marca negativa mudando o nome, o visual, o endereço... Erradicar o sintoma que envergonha a cidade, muitas vezes sem resolver a causa e deixando “feridas” à escala social. Na MITRA, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) propõe investir, mantendo o nome, o visual e o endereço, reabilitando a maior parte do edificado e transformando a sua estrutura social, criando simultaneamente uma oferta inovadora, mas adaptada também ao mesmo perfil de utentes que a tem habitado.


| SOCIAL |

O principal desafio do programa MITRA é conseguir estimular todas as capacidades (mesmo as residuais) de cada um, valorizando o seu contributo para a comunidade e para a cidade, recorrendo sobretudo aos meios de que a MITRA e a SCML dispõem. Esta oferta visa não apenas proteger as pessoas vulneráveis e ajudá-las a viver com autonomia suficiente para serem desejavelmente integradas como cidadãos autónomos na sua cidade, mas ainda acolher públicos urbanos sensíveis e abertos a colaborarem na incubação desta integração. Em suma, a SCML pretende investir para tornar a MITRA um local desejado e útil para a cidade, sem excluir ninguém. Com este objetivo e a visão “fazer da MITRA o Polo de Inovação Social que serve a sua cidade sem excluir ninguém”, a SCML assume a responsabilidade de inovar no que respeita às dimensões social, ambiental e económica, procurando modelos que, com menos esforço, permitam criar melhores condições de vida para todos. O objetivo é o de, gradualmente e desde já, tornar a MITRA um espaço aberto à cidade, oferecendo uma resposta essencial com elevada qualidade, dirigida a públicos específicos, sabendo que a gestão dos meios disponíveis é um tema sempre preponderante. E assim se avaliam e exploram as possibilidades identificadas, assentes nos seguintes princípios: T odas as atividades desenvolvidas na MITRA visam, para além da sustentabilidade material, aumentar a resiliência pessoal e social dos utentes, visitantes e participantes. À partida, todos os factos são susceptíveis de mudança e/ou transformação, não existindo condições predeterminadas – todos os desafios identificados precisam de obter uma resposta adaptada (minimizando preconceitos). Por este motivo são criados grupos de trabalho transdisciplinares, envolvendo especialistas e utentes que colaboram na cocriação de soluções. A abordagem de todos os recursos precisa de ser holística e sistémica, considerando, sempre que possível, o ciclo de vida integral e a minimização de custos de manutenção e de operação.

Na MITRA, procura-se conjugar as vulnerabilidades com os recursos disponíveis, de modo a encontrar equilíbrios dinâmicos que possam assegurar, tanto quanto possível, a continuidade dos princípios acima descritos, também eles dinâmicos. A alimentação é uma das áreas-chave do programa. Para se poderem desenvolver soluções adaptadas e francamente mais positivas – o mais possível dentro das atuais condições económicas – foi decidido iniciar um projeto piloto de confeção da alimentação no local, pelo que se realizaram obras de requalificação para criar as infraestruturas necessárias num dos edifícios existentes. Também a Quinta da MITRA contribui para esta resposta alimentar com produtos gerados no local. Este será um dos espaços de integração por

PLANTA do edifício

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| INOVAÇÃO |

excelência, apostando-se desde já na formação de pessoas sem capacidade de integrar o mercado de trabalho, na área da jardinagem, através da Aldeia de Santa Isabel (outro equipamento polivalente da SCML, que integra um Centro de Formação Profissional). Esta experiência piloto pretende aumentar e diversificar a sua oferta e desempenhar o papel de uma cozinha socialmente útil, bem como o de restauração aberta e atrativa para a cidade.

O EDIFICADO O Palácio da Mitra é uma construção dos finais do século xvii e foi residência de prelados de Lisboa. Ao lado, em 1889, foi construída uma corticeira, que veio a definir parte da sua atual arquitetura, com a alameda central, ladeada pelos típicos edifícios de duas águas e óculo central, que termina com um grande edifício transversal de quatro pisos, construído muito mais tarde. No ponto mais alto, e ligando aos jardins do palácio, situa-se a quinta.

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Outros dos recursos com os quais o programa MITRA se preocupa em inovar são os materiais, a água e a energia. No que respeita ao ciclo de vida dos materiais, a SCML constitui-se como uma “mina” renovável, na medida em que existe uma relação de confiança entre a sociedade e a Santa Casa: a Misericórdia de Lisboa fará bom uso de doações para a sua missão de apoio aos mais desfavorecidos e para a procura de novas respostas sociais. Também o recurso água terá três componentes renováveis e, como tal, inovadoras: a mina (preexistente) para rega da Quinta, as águas pluviais aproveitadas para a lavagem da roupa e as águas cinzentas recicladas utilizadas para as descargas de sanitas.


| SOCIAL |

PROJETOS NAU* Cada Nau é uma infraestrutura que “transporta” uma resposta e identifica os projetos a desenvolver na MITRA. Projeto NAU Centro Psicogeriátrico “Enquanto existe brilho nos olhos do utente é necessário encontrar atividades que o mantenham envolvido com as pessoas e no contexto que habita.” Este Centro será a primeira resposta diurna e residencial da SCML para pessoas com problemas de demência. Pretende-se que a informação e formação de profissionais sobre esta temática tenham na MITRA o seu espaço de partilha. Projeto NAU Oficinas Protegidas Espaço equipado para favorecer a criatividade a nível individual e coletivo, aumentar as competências e a autonomia dos utentes e dos visitantes que com ela colaborarem. Os materiais oferecidos à MITRA são transformados e recuperados para se tornarem produtos apelativos ao mercado e, paralelamente, estes produtos serão veículos de uma mensagem de integração social. Esta oficina coexistirá com o espaço “FabLab” para todos e todas as idades. Projeto NAU Lavandaria Prestará o serviço de lavagem e tratamento da roupa do espaço MITRA e de equipamentos próximos, sempre que possível com a integração e a colaboração dos utentes. Funciona com recurso apenas à água pluvial que cai nas coberturas da MITRA e utiliza fontes de energia renovável.

Projeto NAU Acolhimento de Emergência Coordenação do acolhimento de emergência para crianças e jovens, sob responsabilidade da SCML, ao abrigo do sistema de promoção e proteção à infância e juventude.

ALÇADO do edifício

Projeto NAU Mercado de Santo António A produção da MITRA (oriunda da Quinta e das Oficinas, entre outros) será disponibilizada no Mercado em dias a definir. Este será também um espaço de abertura à comunidade, para onde serão agendadas atividades de animação sociocultural. Projeto NAU Comércio e Empresas Explora e redefine o conceito de “loja” ao integrar a dimensão valor social no sistema de câmbio não monetário. Dinamizará processos de codesign. Explora e redefine o conceito de “espaço de trabalho” ao integrar a dimensão valor social no acesso aos espaços disponibilizados e respetivo funcionamento. Irá promover sinergias entre os vários utilizadores dos espaços empresariais e os outros projetos. Projeto NAU Quinta Um espaço de estímulo multissensorial e de produção hortícola. Fundamental para o ciclo alimentar da MITRA, contará sempre com a integração e a colaboração de todos. Projeto NAU Creche Relocaliza o atual Centro de Acolhimento Infantil Dr. José Domingos Barreiro, garantindo o

55


| INOVAÇÃO |

cumprimento da testamentaria associada a este equipamento, mas qualificando a resposta de forma a melhorar as condições para as crianças. Projeto NAU Residências Programa que integra os conceitos de residência temporária, assistida e de autonomização, de forma transversal e para todas as idades. Será utilizado um modelo de apartamentos cuja tipologia permite acessibilidade total e possibilidade de adaptação conforme a população residente e as suas necessidades. Projeto NAU Espaço Polivalente Sem preconceitos, este espaço abrirá as suas portas a uma grande diversidade de momentos a partilhar com diversos públicos, assumindo-se como espaço de partilha por excelência, dada a sua capacidade, recursos e polivalência. Projeto NAU Restaurante Espaço de integração que faz ponte com a cidade. Integra e responde aos utilizadores da MITRA e estará aberto ao público em geral. Terá uma oferta gastronómica atrativa, saudável e diversificada. Projeto NAU Proteção Civil Estruturado em rede com toda a estratégia de resiliência urbana da cidade, esta infraestrutura assegura mais uma resposta da cidade a situações imprevisíveis, no âmbito das responsabilidades que competem à SCML e numa perspetiva de formação/informação para todos. *A designação “NAU” remete para a vocação de inovação e descoberta, já que a MITRA se define como o Polo de Inovação Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

56

Na energia, a componente renovável é menos inovadora mas fundamental para assegurar que os meios e recursos disponíveis na MITRA consigam cobrir o mais possível do que os utentes necessitam. Se nos identificamos com todos os princípios acima referidos, não há dúvida que o investimento nas infraestruturas que asseguram uma maior autonomia deste espaço de inovação social está mais que justificado. Estas componentes contribuirão para a sustentabilidade do programa. “RASGAR COM O PASSADO…” Conseguir colaborar para construir uma sociedade resiliente, inclusiva, solidária e diversa, em que, apesar das vulnerabilidades individuais, coletivamente se consegue oferecer condições para um bem-estar alargado, é um desafio societal, atual e global, para o qual não tem sido possível ter uma resposta duradoura. “TU ÉS UM MITRA” O passado da MITRA, apesar de inegável e profundamente negativo, é icónico. A marca é ressonante na memória e no imaginário dos lisboetas, muito para além daqueles que conheceram a realidade que lhe confere a reputação. O desafio do programa MITRA está em saber rasgar com o seu passado, associado ao sentido do armazenamento dos problemas que não se conseguem resol-


| SOCIAL |

ver, e perspetivar uma nova cultura que assenta na inovação social. O programa incide sobre um espaço que é suficientemente pequeno para a experimentação poder comportar o risco de falhar, sem causar danos irreparáveis (condição fundamental para a inovação) e, em simultâneo, suficientemente grande para que todos os sucessos possam valer como pilotos para o alargamento das boas práticas que rasgam com aquele passado. Longe de pretender resolver todas as vulnerabilidades da sociedade lisboeta, o programa MITRA procura estimular a integração da diferença em contextos que facilitam a criatividade, envolvendo uma boa proporção de pessoas independentes, que contribuam para a coesão e participem na resolução das dificuldades que se fazem sentir. Ajudar a encontrar soluções para os problemas que hoje exigem avaliação, investigação e especialização. Encontrar respostas de autonomia para públicos diversificados. Proteger com liberdade os que podem ser úteis reconhecendo as suas capacidades. Usar a cidade como recurso e devolver o recurso à cidade, em cada momento, procurando a sustentabilidade social e económica neste referencial. A nova MITRA será de todos e para todos, aberta à comunidade. Todos os lisboetas poderão ir à MITRA almoçar, lanchar, deixar a roupa na lavandaria, encontrar um espaço de trabalho ou residência, ir buscar as crianças à creche. Para isso vão contribuir todas as novas valências do espaço, que a SCML escolheu designar Naus, numa alusão às embarcações usadas pelos portugueses nos Descobrimentos. A nova MITRA estará aberta 24 horas por dia e incluirá um restaurante (que terá dinâmicas de informação e formação), residências (que poderão acolher situações temporárias ou de emergência para qualquer cidadão), acolhimento de emergência (para crianças e jovens em risco), uma lavandaria (que utilizará a água pluvial que cai nas coberturas da MITRA e à qual poderão recorrer utentes e comunidade em geral), a Quinta (que irá ser maioritariamente acessível e voca-

O PROJETO NAU QUINTA É UM ESPAÇO DE ESTÍMULO MULTISSENSORIAL E DE PRODUÇÃO HORTÍCOLA, FUNDAMENTAL PARA O CICLO ALIMENTAR DA MITRA”

cionada para a produção hortícola, tendo espaço para lugares de emprego protegido), o Centro Psicogeriátrico, entre vários outros projetos com um forte elemento de inovação e inclusão social, destinados a apoiar um universo de mais de quinhentas pessoas. A MITRA, com os “Amigos Críticos” (ver caixa “De albergue da mendicidade a Polo de Inovação Social”) ao leme, será o Polo de Inovação Social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Estamos já no caminho. Uma resposta que procura garantir acolhimento de emergência, atendimento de saúde, apoio social. Um olhar atento, 24 horas por dia, sobre a cidade.

57


| INVESTIGAÇÃO |

Estudo inovador da Misericórdia de Lisboa

EFEITOS BIOPSICOSSOCIAIS DA UTILIZAÇÃO

DE PRODUTOS DE APOIO O Serviço de Gestão de Produtos de Apoio da Misericórdia de Lisboa realizou um estudo inovador para avaliar a utilização dos produtos de apoio em requerentes de financiamento pelo Instituto de Segurança Social na cidade de Lisboa e o impacte na sua qualidade de vida. Texto de Cristina Vaz de Almeida1 e Mafalda Negrão2 [1. DIRETORA DO SERVIÇO DE GESTÃO DE PRODUTOS DE APOIO_SCML 2. ESTAGIÁRIA NO SERVIÇO DE GESTÃO DE PRODUTOS DE APOIO DURANTE 2014, NO ÂMBITO DA LICENCIATURA EM ENGENHARIA BIOMÉDICA]

58

CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA “As pessoas com deficiência incluem aqueles que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros” [Assembleia Geral das Nações Unidas em Nova Iorque, 13 de dezembro de 2006].

FINALIDADE DOS PRODUTOS DE APOIO Melhorar a funcionalidade, permitindo maior autonomia e independência, ajudando a dominar com maior sucesso o ambiente em que se insere.

A

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) planeou, concebeu, desenvolveu e aplicou um estudo inovador em Portugal sobre os “Efeitos biopsicossociais da utilização de produtos de apoio em requerentes do ISS” através do Serviço de Gestão de Produtos de Apoio (SGPA) em 2014, com os seguintes autores: Cristina Vaz de Almeida, coordenadora do


| SOCIAL |

SIMPLICIDADE: o questionário é simples cumprindo os seus objetivos

QUALIDADE DE DADOS: os dados utilizados consideram-se completos e válidos

FLEXIBILIDADE: capacidade de se adaptar às necessidades de informação; os dados foram facilmente integrados e associados a outros dados

ACEITAÇÃO: as pessoas envolvidas estiveram dispostas a participar do questionário.

REPRESENTATIVIDADE: o questionário envolve amostra representativa

TEMPORALIDADE: a informação foi disponibilizada rapidamente

ESTABILIDADE: o questionário funcionou sem falhas relevantes

SENSIBILIDADE: o questionário identifica uma proporção muito elevada de casos e tem a capacidade de detetar questões laterais

estudo, Mafalda Negrão, Rita Mendes e Isabel Miguez (psicóloga convidada). Este estudo pretendeu avaliar duas questões concretas sobre a utilização dos produtos de apoio financiados pelo Instituto de Segurança Social (ISS) na cidade de Lisboa: • utilização vs. abandono; • impacte na qualidade de vida. O questionário, desenvolvido pelo SGPA da SCML é um questionário estruturado, com caraterização pessoal; avaliação de efeitos a nível físico; de atividades da vida diária e instrumentais; e da interação social do estado emocional e da qualidade de vida, esta última em resposta aberta. O estudo abrangeu um universo de 136 requerentes, com uma amostra de 100 indivíduos residentes na cidade de Lisboa: crianças, jovens e adultos. As entrevistas foram conduzidas, sendo

AVALIAÇÕES base dos pressupostos e conceitos do questionário

presenciais ou por telefone. Na existência de cuidador informal, o questionário foi também feito ao cuidador. Como ferramentas para a construção do questionário apresentado, usaram-se os seguintes questionários validados: QUEST – Quebec User Evaluation of Satisfaction with Assistive Technology; PIADS – Psycolosocial Impact of Assistive Devices Scale; WHOQOL – World Health Organization Quality of Life.

Caraterização pessoal

ESTRUTURA do questionário

Utilização do produto de apoio Efeitos: nível físico, atividades da vida diária e instrumentais, interação social, estado emocional Qualidade de vida: resposta aberta

59


| INVESTIGAÇÃO |

PRIMEIRAS páginas do questionário desenvolvido para o estudo

Assim, o questionário estruturado em entrevista presencial e telefónica, contendo 32 questões (fechadas) para o requerente e 11 para o cuidador informal, sendo uma destas questões aberta, tem a seguinte estrutura:

2%

8%

Todos os dias

15%

4/6 dias por semana 75%

1/3 dias por semana Não usa

UTILIZAÇÃO dos produtos de apoio atribuídos

60

Considerando a questão da baixa utilização e contrariamente ao que seria expectável no enquadramento bibliográfico (PHILIPS & ZHAO, 1993; SCHERER, 2002; WESSELS et al., 2003), a taxa de abandono verificada para a população avaliada é de apenas 8%, bastante inferior aos 30% referidos na literatura que referencia este número tanto na Europa como nos Estados Unidos da América. Esta minoria de pessoas que não usa os produtos que recebeu, aponta as seguintes justificações para o facto: não sabe ou não quer usar o produto; não se adapta à habitação; não se adapta às necessidades do próprio. As razões que se enquadram nas apontadas pela bibliografia consultada, aquando do abandono dos produtos de apoio (PA) na Europa e nos EUA, assentam nos seguintes pressupostos:


| SOCIAL |

Não consideração da opinião do requerente

Fraco desempenho do produto

1% 1% 3%

Mudança nas necessidades do utente 15%

JUSTIFICAÇÕES encontradas na bibliografia para o não uso

Mobilidade reduzida

de produtos de apoio atribuído

Limitações visuais 80%

NOVA METODOLOGIA DA SCML Desde 2012 que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, como entidade financiadora, desenvolve a sua gestão de financiamento de produtos de apoio através do processo de entrega direta de PA aos requerentes, em vez de um financiamento monetário através do SGPA. Esta mudança de metodologia, com a atribuição direta do produto de apoio ao requerente em vez de um cheque, veio assim modificar os resultados deste processo. Efetivamente, a maioria dos requerentes (91%) e dos cuidadores (91%) afirma ter tido uma melhoria na sua qualidade de vida. Também o grau de satisfação com o produto de apoio é bastante elevado, sendo que 80% dos requerentes e 83% dos cuidadores afirmam ter um grau de satisfação com o produto entre o bom e o excelente.

17%

31% 52%

Informal Profissional Sem

EXISTÊNCIA e qualidade de cuidadores

CARATERIZAÇÃO DA AMOSTRA Em termos de caraterização, neste estudo existiu uma distribuição semelhante entre género e faixas etárias, sendo 46% do sexo feminino e 54%

Conforto e posicionamento Dificuldades de comunicação Material clínico

NECESSIDADES e motivações presentes nas prescrições de produtos de apoio

do masculino. Um total de 54% tinha idade igual ou inferior a 35 anos, realçando assim uma amostra constituída por uma população jovem. Quanto ao nível da escolaridade, existente em 73% da amostra, verificamos que a maior parte desta população (69%,) tem escolaridade apenas até ao ensino secundário. Dentro da população com escolaridade: 60% completaram o 3.º ciclo, 9% tinham o ensino secundário, 8% completaram o ensino superior, 19% frequentara o ensino especial, e 4% o ensino profissional. Desta avaliação resultou ainda que 69% dos requerentes têm cuidador, sendo 52% cuidadores informais e 17% cuidadores formais. Um total de 80% das prescrições de produtos de apoio é motivado por incapacidades relativas à mobilidade. Quanto ao tipo de produtos de apoio atribuído podemos identificar os seguintes: EFEITOS BIOPSICOSSOCIAIS NO REQUERENTE E NO CUIDADOR Relativamente aos efeitos biopsicossociais, e considerando que a taxa de utilização dos produtos de apoio é elevada, verificou-se um impacte bastante positivo nas várias áreas consideradas. Estes resultados estão de acordo com os impactes apontados na literatura para a utilização adequada de produtos de apoio, descritos como um caminho para incrementar a capacidade funcional, a autonomia e a 61


| INVESTIGAÇÃO |

31

Cadeira de rodas 23

Cadeira de rodas elétrica 15

Sistema de posicionamento 13

Escrita e leitura para baixa visão 8

Cadeira de transporte 7

Standing-frame 6

Próteses e ortóteses biomecânicas 4

Bengala branca

4

Apoio à higiene Calçado

3

Baterias

3

Tecnologia

2

Material clínico

2

Cama

2

Próteses auditivas

1

TIPO DE PRODUTOS de apoio prescritos para a amostra estudada

qualidade de vida (ANDRADE & PEREIRA, 2009). Em termos médios, o maior impacte da utilização de produtos de apoio, por ordem de prioridade, verifica-se nos seguintes aspetos: 1. mobilidade e conforto físico; 2. estado emocional, relações interpessoais; 3. atividades da vida diária e instrumentais. Assim, dentro dos parâmetros avaliados, a maior alteração conseguida com a utilização do produto de apoio verifica-se na mobilidade. Este é um resultado conjeturável, considerando que a maioria das prescrições no estudo é motivada por uma mobilidade reduzida. A mobilidade pode, no entanto, desdobrar-se em duas situações: a facilidade de transporte quando falamos de uma pessoa bastante dependente, ou um grande incremento na autonomia da pessoa. Ambas as situações são percecionadas como um impacte muito positivo na qualidade de vida do próprio. É importante fazer notar que as expectativas dos utentes demonstraram estar bastante adequadas à sua realidade. Desta forma, mesmo 62

quando parâmetros como a independência, a autonomia na mobilidade, a participação nas tarefas, não sofrem alterações com a utilização do produto de apoio, são apontados outros fatores que contribuem para uma melhoria na qualidade de vida. Portanto, pode afirmar-se que o acompanhamento dos utentes por equipas competentes impede a desadequação de expectativas. Isto vai ao encontro dos valores apresentados que põem o estado emocional como o aspeto que, em segundo lugar, registou um impacte mais positivo com a utilização do produto de apoio. Dentro deste, sobressaíram parâmetros como o sentimento de bem-estar e tranquilidade, assim como o sentimento de competência-eficácia. As relações com outras pessoas são facilitadas com a utilização do produto de apoio. No entanto, o impacte não é tão significativo como o verificado noutras áreas. Além disso, as relações com família e cuidadores são, na sua maioria (51,4%), independentes dos produtos de apoio, o que se justifica nas relações estáveis, que podem fruir da utilização dos produtos de apoio mas que se


| SOCIAL |

Avaliação a nível físico após a atribuição do produto de apoio (%)

Estado emocional após a aquisição do produto de apoio (%) Menor

Igual

Maior

Muito maior

Proximidade em relação às pessoas de quem mais gosto

0,0

40,7

34,9

24,4

51,3

Sentimento de bem-estar e tranquilidade

1,1

16,9

32,6

49,4

19,3

42,1

Autoconfiança quando realizo tarefas

2,5

28,4

23,5

45,7

50,0

34,2

15,8

Expectativa de sucesso

1,3

25,6

43,6

29,5

4,9

25,9

66,7

Felicidade das pessoas que me rodeiam

0,0

26,2

39,3

34,4

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Mobilidade em casa

1,4

26,0

27,4

45,2

Mobilidade fora de casa

0,0

13,2

35,5

Esforço nas tarefas diárias

0,0

38,6

Transferências

0,0

Conforto e correção da postura/ posicionamento

2,5

baseiam em algo interior e mais forte do que esta influência externa. Considera-se, e como já foi anteriormente referido, que o elevado grau de dependência dos requerentes não tem um grande impacte na própria perceção de qualidade de vida. No entanto, não deixa de se fazer notar nos resultados relativos à participação nas atividades da vida diária e instrumentais (AVDI). Assim, é importante realçar que 69% da amostra tem um cuidador, formal ou informal, sendo que metade desta percentagem corresponde a responsáveis por crianças com menos de 18 anos. Consequentemente, as diferenças na autonomia em casa não são muito notórias. No entanto, os produtos de apoio aparecem como promotores da participação no trabalho/escola e atividades de lazer. No que diz respeito aos resultados obtidos para os cuidadores informais, em termos médios, o maior impacte da utilização dos produtos de apoio, por parte dos requerentes, registou-se: 1.º no estado emocional do cuidador; 2.º no conforto físico; 3.º nas relações interpessoais. Como já referido, a maioria dos cuidadores da amostra explica o incremento na sua própria qualidade de vida através da melhoria pronunciada do seu estado emocional, através de sentimentos de tranquilidade e autoconfiança. Neste âmbito, tor-

Interações sociais após a atribuição do produto de apoio (%)

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Relacionamento com a família

0,0

27,4

33,7

38,9

Relacionamento com cuidador

0,0

51,4

25,7

23,0

Saídas ao exterior com outras pessoas

1,1

29,0

24,7

45,2

Número de vezes que participo em atividades com outras pessoas

1,1

29,5

30,5

38,9

na-se imprescindível realçar a resposta aberta que muitos cuidadores dão na pergunta: “Razões que considera relevantes para a melhoria na sua qualidade de vida”. Esta é, repetidamente: “Por ver e sentir que a pessoa ao meu cuidado está melhor.” As alterações dos cuidadores ao nível físico refletem, principalmente e na sua maioria, uma diminuição do esforço físico realizado durante as tarefas de auxílio ao requerente. É possível estabelecer uma relação entre estes dados e a forte componente de mobilidade reduzida que está presente nas motivações das prescrições. O esforço necessário para o transporte do requerente na ausência do produto de apoio é claramente diminuída com a atribuição do mesmo. No entanto, outras tarefas, como as transferências ou cuidados de higiene e alimentação, 63


| INVESTIGAÇÃO |

Participação nas atividades da vida diária e instrumentais após a atribuição do produto de apoio (%)

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Participação tarefas de trabalho / escola

1,4

27,4

33,7

38,9

Autonomia higiene pessoal

2,4

61,9

19,0

16,7

Autonomia refeições, cuidar da casa

2,7

40,5

18,9

37,8

Participação atividades de lazer

1,2

26,7

30,2

41,9

Interação /acesso à tecnologia

3,0

42,4

24,2

30,3

Estado físico do cuidador após a atribuição do produto de apoio ao requerente (%)

que também não revelam grandes alterações nos comportamentos dos requerentes, continuam a depender do cuidador e não mostram alterações aquando da utilização do produto de apoio. No que diz respeito às relações sociais do cuidador, verificou-se que estas não sofrem alterações relevantes. Estes dados estão de acordo com as respostas dos requerentes, que também afirmam não alterar a sua relação com os cuidadores e, muitos deles, mesmo com os familiares. A perspetiva do cuidador reflete uma aceitação da situação, muitas vezes familiar, e uma valoriEstado emocional do cuidador após a atribuição do produto de apoio ao requerente (%)

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Sentimento de bem-estar e tranquilidade

2,2

8,9

48,9

40,0

Autoconfiança na realização das tarefas

4,5

18,2

50,0

27,3

Estado emocional

0,0

20,0

51,1

28,9

zação das relações estabelecidas: quer a relação com o requerente quer as relações de apoio como suporte para encarar as dificuldades do seu percurso de vida. A valorização da rede social parece ter por base o seu caráter de estabilidade. 64

RAZÕES DO SUCESSO DA UTILIZAÇÃO Entre as razões apontadas para o sucesso da atribuição de um produto de apoio verificamos, através deste estudo, que o sistema inovador de financiamento com entrega direta do PA e o trabalho em equipa entre o financiador, o prescritor e o fornecedor, assumidos como parceiros, tem um impacte substancial.

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Esforço realizado durante as tarefas de auxílio ao utilizador

0,0

23,3

32,6

44,2

Transferências do utilizador

0,0

63,9

30,6

5,6

Conforto e correção da postura do cuidador

2,4

41,5

31,7

24,4

Relações sociais do cuidador após a atribuição do produto de apoio ao requerente (%)

Pior

Igual

Melhor

Muito melhor

Relacionamento com o utilizador

0,0

62,2

28,9

8,9

A qualidade e tempo disponível para a vida pessoal e familiar do cuidador

0,0

53,5

37,2

9,3

A adequação do produto às necessidades físicas, aos objetivos do utente e ao espaço que o envolve, torna indispensável ouvir e ter em conta a opinião do utente e dos seus familiares (PHILIPS & ZHAO, 1993; SCHERER, 2002; WESSELS et al., 2003). Desta forma, e considerando que em Lisboa as prescrições médicas são acompanhadas por avaliações minuciosas que resultam em orçamentos bastante específicos, desenvolve-se um trabalho articulado entre financiador, prescritor,


| SOCIAL |

fornecedor, utente e família para que, no momento da aquisição e atribuição, estejam contemplados os detalhes técnicos previamente conversados entre profissionais, utente e família. Através deste processo, com a envolvência de todos, consegue-se uma maior aceitação do produto de apoio e garante-se uma elevada taxa de utilização, refletida de forma evidente neste estudo. Este trabalho em equipa entre o financiador (SCML), os prescritores (centros especializados) e os fornecedores (parceiros) permite bons resultados, obtidos através de uma entrega direta e personalizada ao requerente, com a envolvência do cuidador, no caso de este existir, e acompanhada em todos os momentos. Esta ação bem articulada entre todos os intervenientes tem como consequência o aumento das relações de confiança e de segurança. Consideram-se também muito positivos os resultados no que diz respeito aos cuidadores informais. No entanto, para estes, o maior impacte da utilização do produto de apoio pela pessoa ao seu cuidado não está tão relacionado com o tempo disponível para si próprios ou com o descanso físico, como indicado na literatura (ANDRADE & PEREIRA, 2009). O grande fator referenciado como incremental na qualidade de vida do cuidador prende-se com a autonomia, felicidade e bem-estar da pessoa a seu cuidado. Este estudo comprova que, para a população de Lisboa, existe uma grande aceitação dos produtos de apoio prescritos e financiados através da SCML, que opera como financiadora, em substituição do Centro Distrital de Lisboa – ISS, tendo um impacte profundo na qualidade de vida do próprio requerente e do seu cuidador informal. Assim, é possível constatar que os produtos de apoio financiados demonstram a sua finalidade de suporte no domínio do ambiente físico, social, cultural e em outras dimensões

SEGUNDO OS RESULTADOS DO ESTUDO, OS PRODUTOS DE APOIO SÃO PROMOTORES DA PARTICIPAÇÃO NO TRABALHO, ESCOLA E ATIVIDADES DE LAZER” onde se integra o indivíduo, combatendo a interação com as barreiras arquitetónicas e sociais e facilitando uma participação completa e eficiente da pessoa com mobilidade reduzida ou com deficiência na sociedade. Este estudo, terminado em outubro de 2014 pela equipa do SGPA, foi apresentado nas Jornadas Internacionais do Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão nesse mesmo mês e na Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSA), aos alunos do 4.º ano de Terapia Ocupacional, em novembro de 2014, estando previstas outras intervenções para divulgação do mesmo.

BIBLIOGRAFIA PHILIPS, B.; ZHAO, H. – Predictors of assistive technology abandonment. Assistive technology. N.º 5 (1), 1993, pp. 36-45. SCHERER, Marcia – The study of assistive technology outcomes in the United States. Lecture Notes in Computer Science. Volume 2398 (2002), pp. 764-771. WESSELS, R. et al. – Non-use of provided assistive technology devices: a literature overview. Technology and Disability Vol. 15, n.º 4 (Dec. 2003), pp. 231-238. ANDRADE, Valéria; PEREIRA, Leani – Influência da tecnologia assistiva no desempenho funcional e na qualidade de vida de idosos comunitários frágeis: uma revisão bibliográfica. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Vol. 12, n.º 1 (2009).

65


© Christian Dupraz

| CIDADES |

APOSTAR NAS HORTAS URBANAS Nas estratégias de planeamento das cidades, nomeadamente nos países europeus mais desenvolvidos, as atividades centradas no conceito geral de horta urbana têm vindo a revelar uma importância crescente. Verifica-se também um apelo à participação de diferentes grupos de pessoas e organizações nessas atividades e à consciencialização dos principais impactes e desafios daí resultantes. Texto de Paulo Brito da Luz1, Maria Elvira Ferreira1 e Pedro Brito da Luz2 [1. INVESTIGADORES DO INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO AGRÁRIA E VETERINÁRIA – INIAV, I.P.; 2. MESTRE EM ENGENHARIA MECÂNICA]

66


| SOCIAL |

I. O QUE ESTÁ EM JOGO NAS HORTAS URBANAS... tualmente, as potencialidades das hortas urbanas (HU) têm um particular relevo nas diretrizes do desenvolvimento urbano. Enquadradas no planeamento das cidades, as HU devem apontar para processos multifuncionais e sustentáveis, envolvendo vertentes agroambientais, sociais e económicas. Assim, de acordo com Mourão (2013), as HU, assumem usos múltiplos, tais como: espaços verdes (descongestionando o ambiente urbano), espaços de lazer e recreio (promovendo a interação social e a prevenção em saúde) e espaços de alimentação e complemento de rendimento familiar. Por outro lado, face à natureza dos impactes, a sustentabilidade dos projetos de HU deverá contribuir para a conservação dos recursos (ar, água, solo e energia), a par da obtenção do rendimento. Por vezes surgem mesmo objetivos em conflito e é necessário encontrar soluções de compromisso. Existem também desafios postos na localização e no uso dos espaços. A sua organização pode passar por decisores perante condições de pressão e concorrência. Nas HU podem ser destacadas diversas prioridades para o ordenamento dos espaços. Mourão (2013) refere que, em locais como escolas e instituições (IPSS e entidades de saúde), as hortas podem ter funções pedagógicas, de educação ambiental, de formação, ocupacionais e terapêuticas, contribuindo para o bem-estar e melhoria da saúde física, mental e emocional dos utilizadores. Também uma horta-jardim pode servir os diferentes grupos sociais e faixas etárias, satisfazendo necessidades fundamentais das populações (dando-se assim prioridade a esse uso num espaço de requalificação ou crescimento da cidade).

A

Sustentabilidade e produção Os ecossistemas associados às HU são abertos e dinâmicos, revelando oportunidades de serviços às comunidades. No entanto, existem também impactes e restrições que podem afetar a instalação das HU. Para a sustentabilidade dos recursos

destacam-se alguns aspetos e “pressões” a avaliar no contexto de um determinado sistema solo-planta-atmosfera (SPA): Considerando-se os condicionalismos dos climas mediterrânicos (com um maior ou menor efeito das alterações climáticas), existem desafios relacionados com o uso eficiente de água, sobretudo em situações de carência hídrica. Os sistemas de rega instalados (gota a gota ou miniaspersão) devem garantir uma boa uniformidade e eficiência de aplicação da água, com um dimensionamento e uma gestão que atendam à especificidade do SPA. A reutilização de água tratada tem também potencialidades reconhecidas; A caraterização das propriedades físicas, químicas e hidrodinâmicas do solo são uma necessidade para apoiar opções de cultivo, considerando-se também que poderão existir limitações decorrentes de processos de compactação, encrustamento, contaminação, etc. Boas práticas de conservação do solo – nomeadamente pelo uso de sistemas de drenagem, terraços e existência de culturas ou resíduos, nos períodos de chuva intensa – são soluções para a mitigação dos efeitos de cheias, escoamentos e erosão do solo. Mobilizações do solo reduzidas, a incorporação de matéria orgânica e a compostagem são também práticas aconselhadas; A qualidade da água e do solo deve ser também avaliada. De uma forma simples, recorrendo a equipamentos portáteis, registam-se os valores do pH e da condutividade elétrica, que revelam os riscos de salinidade, toxicidade e poluição; Nas boas práticas deve-se também atender à promoção da biodiversidade, de habitats de plantas e animais, da qualidade do ar e da redução da emissão de gases de efeito de estufa (GEE). Com o desenvolvimento das HU em Portugal, a produção dos alimentos para autoabastecimento tem aumentado. O consumo de produtos hortícolas frescos é cada vez mais recomendado, uma recomendação acrescida se estes forem produzidos em modo de produção biológico (MPB). Este modo de produção obedece aos seguintes princípios (MOURÃO e MOURÃO, 2015): 67


| CIDADES |

QUINTA DA GRANJA, Câmara Municipal de Lisboa, 2011

QUINTA DE SÃO GONÇALO, Câmara Municipal de Cascais, 2015

F azer rotações culturais plurianuais. Esta prática ajuda a manter o equilíbrio de nutrientes no solo e limita o aparecimento de infestantes, pragas e doenças; Fazer adubações verdes através da incorporação de plantas no solo; Aplicar estrume e materiais compostados; 68

A plicar apenas adubos e corretivos do solo de origem natural (sem processos de síntese química); Controlar as pragas e doenças das plantas através de medidas preventivas, como a utilização de espécies e variedades adaptadas ao local, nomeadamente as regionais, e a utilização de predadores naturais de parasitas; Aplicar apenas produtos fitofarmacêuticos autorizados para agricultura biológica; Para o controlo de infestantes, utilizar métodos mecânicos, físicos ou térmicos; Não utilizar plantas nem outros organismos geneticamente modificados (OGM); Utilizar sementes e materiais de propagação vegetativa produzidos em MPB; Utilizar, de preferência, desperdícios e subprodutos vegetais e animais, minimizando a utilização de recursos não renováveis e de fatores de produção externos ao local. Nas hortas urbanas, o modo de produção biológico é o mais difundido, porque contribui para o aumento da fertilidade dos solos e da retenção de água. Contribui ainda para a melhor eficiência na


| SOCIAL |

utilização dos recursos, promove a biodiversidade e tem um menor impacte nas alterações climáticas, o que faz que seja um modo de produção sustentável. As plantas hortícolas (ex.: alface, cebola, cenoura, couve, feijão), as plantas aromáticas e medicinais

o papel de Portugal na aplicação de regulamentações para apoiar uma crescente eficiência nos consumos. O Decreto-Lei n.º 153/2014 de 20 de outubro define as condições da atividade de microprodução de energias renováveis.

NOS ÚLTIMOS ANOS, EM MUITAS CIDADES NORTE-AMERICANAS TEM-SE VERIFICADO A CONVERSÃO DOS SEUS CENTROS, COM ÁREAS DE DECLÍNIO POPULACIONAL E DE ABANDONO, PARA ATIVIDADES EM HORTAS URBANAS (ex.: salsa, coentro, alecrim, tomilho) e as flores comestíveis (ex.: amor-perfeito, petúnia) são os grupos de plantas mais adequados para cultivar numa HU. As plantas aromáticas e medicinais (PAM) são de fácil cultivo e adaptação, propiciando a criação de um pequeno jardim. Nestes casos, o conhecimento dos dados culturais ajuda a tomar uma decisão sobre o que produzir (FERREIRA, 2014). As questões energéticas A crescente preocupação com o futuro do planeta e a sua sustentabilidade motivam cada vez mais as instituições e empresas a atuar de forma eficiente e a perspetivar a produção e o consumo energético de uma forma mais limpa, económica e sustentável. A União Europeia definiu um quadro de objetivos para 2020 que visa a redução em 20% das emissões de gases de efeito de estufa relativamente a 1990, o aumento em 20% da utilização de energias renováveis e a redução em 20% do consumo de energia primária. As metas destacam-se na perspetiva de um aumento de eficiência energética no contexto europeu. Em resolução do Conselho de Ministros n.º 20/2013 de 10 de abril foram revistos e aprovados para execução, ao longo do período 2013-2016, o Plano Nacional de Ação para a Eficiência Energética (PNAEE) e o Plano Nacional de Ação para as Energias Renováveis (PNAER). As linhas orientadoras destes instrumentos estratégicos reforçam

As questões sociais Os desafios e impactes sociais emergentes das atividades em HU podem ser equacionados de uma forma transversal num contexto multidisciplinar, que se sintetiza no quadro 1. Exemplos de implantação de hortas urbanas AMÉRICA DO NORTE Nos últimos anos – sobretudo a partir dos finais do século xx, com alguma relação com o movimento verde –, em muitas cidades norte-americanas tem-se verificado a conversão dos seus centros, com áreas de declínio populacional e de abandono, para atividades em HU. Indivíduos, famílias, escolas e IPSS têm aderido rapidamente a estes projetos, transformando áreas de despejos e entulhos em talhões de hortas com produção de fruta e legumes (ex.: Kansas City). Em muitos destes projetos, para além dos benefícios visíveis – como a disponibilidade de alimentos frescos e formas saudáveis de socialização, recreação e exercício – surgem também alguns problemas, relacionados com a falta de conhecimento das boas práticas de cultivo e os perigos de contaminação dos recursos naturais. Por vezes, as autoridades têm definido atividades de HU também em locais que envolvem riscos, como foi o caso da implantação de talhões junto a linhas ferroviárias em Montreal. Mas a consciencialização da importância das HU tem crescido. Verifica-se 69


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QUADRO 1 Interações no desenvolvimento social das hortas urbanas

ÁREAS TEMÁTICAS

DESAFIOS SOCIETAIS

RECURSOS AMBIENTAIS E ENERGÉTICOS

Conservação e eficiência dos Procedimentos ativos de defesa ambiental. Compromisso recursos. Contaminação e poluição com soluções tecnológicas mais eficientes e sustentáveis. dos espaços. Energias alternativas.

AGROPECUÁRIA E RECURSOS ALIMENTARES

Agricultura biológica. Cultivares regionais. Segurança alimentar. Nutrição e qualidade alimentar.

Adoção de modos de produção mais sustentáveis. Procura por alimentos frescos e saudáveis.

TERRITÓRIO

Preservação da paisagem, espaços verdes. Biodiversidade e habitats. Serviços dos ecossistemas. Variabilidade climática.

Cidades mais resilientes e adaptadas a fatores climáticos. Empenho na requalificação de espaços abandonados e degradados. Consciência do acesso à terra.

ECONOMIA

Desenvolvimento económico. Viabilidade económica.

Redução de gastos e acréscimos ao rendimento familiar. Mitigação de condições de pobreza. Aprendizagem da relação custo-benefício.

SOCIEDADE E COMUNIDADE

Serviço social. Terapia ocupacional. Organização de atividades. Recreação. Carências alimentares na comunidade. Vandalismo e acompanhamento de casos. Riscos sanitários/saúde.

Envolvimento comunitário na promoção do lazer e do exercício físico. Aumento do bem-estar e da segurança nos espaços citadinos. Valorização de relacionamentos e da interação social e geracional. Valorização de costumes e tradições. Promoção do autoabastecimento. Soluções terapêuticas e de apoio a pessoas em situação de risco (de desemprego, familiar, escolar). Recomendações no domínio da saúde.

GOVERNANÇA

Regulamentação e boas práticas. Pedagogia e formação. Estruturas e processos de planeamento/decisão. Redes de informação.

Capacitação/sensibilização para movimentos cívicos. Aumento dos processos de ensino-aprendizagem (individual ou associativismo).

esse facto em várias medidas tomadas pelas autoridades. É o caso de um programa de colaboração comunitária, para facilitar ações partilhadas, em Detroit, ou a promoção de um mercado para a venda de produtos em Los Angeles. EUROPA O desenvolvimento urbano sustentável na Europa tem recebido, ao longo dos últimos vinte anos, um importante contributo: o interesse renascido dos cidadãos pelas HU, especialmente nas grandes cidades. Verificam-se diferenças nacionais, regionais, ou também de escala e de história, na caraterização do seu desenvolvimento e impacte. Por exemplo, em Manchester (Inglaterra) as HU são destinadas sobretudo à produção de legumes, frutas e PAM, enquanto em Poznan (Polónia) observam-se os parques de HU, com talhões de área média de 350 m2, frequentemente com grande variedade de arbustos e flores, mas áreas de hortícolas muito reduzidas. Nesta cidade pola70

IMPACTES SOCIAIS

ca, os objetivos de lazer são dos mais observados. A Holanda apresenta também uma longa tradição de HU, que remonta ao início do século xix. A partir dos anos 1950 as HU – que eram sobretudo para produção de hortícolas, também com a utilização de estufas – passaram a ter maior uso recreacional. Existe também uma forte adesão a associações de HU nos países escandinavos, muitas das quais têm listas de espera. Uma diferença assinalável dentro da Europa é a quase ausência de práticas de rega nos países do Centro e Norte, em contraste com a absoluta necessidade dessas práticas nos países da orla mediterrânica. Lisboa – Tem uma população de cerca de 500 mil habitantes e uma área próxima de dez mil hectares. A precipitação média anual ronda os 700 mm, mas com grande variabilidade anual (regularmente entre 500 e 900 mm), em geral muito concentrada entre outubro e abril. A rega é uma prática necessária nos períodos secos, sobretudo


| SOCIAL |

nos meses de verão. As áreas ocupadas por HU atingem perto de 80 hectares e estão tipificadas pela autarquia (MATA, 2011), como sociais, de uso individual ou comunitário, para sustento e rendimento (numa base de legumes e frutos); de recreio e pedagógicas de uso coletivo para lazer, educação e sensibilização agroambiental. A instalação de HU obedece a normativos para se garantirem as boas práticas agrícolas, envolvendo regras para o uso do solo e da água e o fomento do MPB, e áreas adequadas (talhões superiores a 50 m2) com cultivo permanente ao longo do ano. Póvoa de Lanhoso – Num espaço global de 3,1

específicas e de equipamentos, reportada a um hipotético sistema solo-planta-atmosfera: 1. Solo – É caraterizado por uma textura francoarenosa (com boa infiltração e drenagem), rico em matéria orgânica (3%), sem indícios de crosta superficial e compactação. As amostras de terra indicam que não existe contaminação de metais pesados. O solo é ligeiramente ácido (pH entre 6,5 e 7) e tem baixa salinidade (condutividade elétrica inferior a 1 dS/m). 2. Clima – A região tem clima mediterrânico (com temperaturas e humidade de primavera e verão adequadas para culturas hortícolas) e ventos fracos a mo-

EM LISBOA, AS ÁREAS OCUPADAS POR HORTAS URBANAS ATINGEM PERTO DE 80 HECTARES hectares, propriedade da autarquia, têm sido cultivados – numa área que perfaz meio hectare – alguns talhões de hortas sociais em MPB. Regista-se uma produção média anual de cinco toneladas de vegetais. Promovem-se boas práticas, com a aplicação de compostos orgânicos de resíduos das plantas e adaptam-se rotações culturais. Os benefícios comunitários também são evidentes, verificando-se a distribuição dos produtos alimentares por 35 famílias. Também a demonstração e a disseminação das atividades em escolas são um estímulo educacional. Em termos de voluntariado, as atividades recebem o apoio de 29 pessoas (COSTA, 2013). II. O PLANEAMENTO DE UMA HORTA URBANA Na hora de escolher e decidir o que produzir no talhão deve ter-se em conta as condições do local, como o clima, a exposição solar, o tipo de solo, a disponibilidade de água e as preferências alimentares. Num espaço adequado poderão ser disponibilizados, durante todo o ano, produtos com qualidade e prontos para consumir. Sugerem-se os seguintes passos e a avaliação das condições

derados. A precipitação média anual é de 700 mm, mas não é usual que ultrapasse os 50 mm no verão. Nesta estação, as necessidades de água das culturas hortícolas (como a alface, uma das mais exigentes), associadas à evapotranspiração nos períodos mais críticos de desenvolvimento, atinge os 6 a 7 mm/dia (L/m2 por dia). Ao longo de um ciclo de quatro estações estimam-se valores médios mensais entre 1 e 5 mm/dia (janeiro ou julho). 3. Culturas – A alface para cultivo na primavera/verão está adaptada às condições referidas de solo e clima, e é uma opção corrente. No entanto, tende a ter problemas por reduzida tolerância à falta de água, à acidez e a temperaturas muito elevadas (> 330 C). O planeamento anual é necessário, pois as culturas da mesma família botânica não devem ser cultivadas no mesmo local em períodos consecutivos. As rotações proporcionam também maior diversidade de produtos para consumo. 4. Sistema de rega – Para cobrir um talhão com 50 m2 de área selecionou-se um kit de microaspersão, no qual se procuraram critérios que definissem um bom desempenho: eficiência, pressão, custo, etc. (figura 1): 71


| CIDADES |

Ponto de água Válvula Filtro Tubagem principal Tubagem secundária Lateral – Ramal com emissores Microaspersor Emissor

FIGURA 1 Instalação de rega com microaspersão

QUADRO 2 Caraterísticas do projeto de rega para um talhão de 50 m2 para produção de hortícolas e sua operacionalidade

Também de acordo com um catálogo comercial, considerou-se um sistema automatizado com 15 microaspersores, que apresentava as seguintes caraterísticas: compasso quadrangular (1,7 x 1,7 m); o diâmetro molhado de cada microaspersor (3,4 m) permite uma adequada sobreposição dos jatos de água; pressão de funcionamento de 2 bares; o caudal de cada microaspersor é de 43 L/h (ou opção de 70 L/h);

a instalação de bombagem debita um caudal total de 645 L/h (ou 1050 L/h). Para o desenvolvimento do projeto considerou-se uma eficiência de rega elevada, de cerca de 80% (ou seja, para uma necessidade da cultura de 5 L/m2, a aplicação de água será de aproximadamente 6 L/m2), uma frequência de rega diária no período crítico (para o solo considerado, pois num solo mais argiloso e com a cultura desenvolvida, uma frequência de 3-4 dias também é aceite). Nestas condições, e se disponível pela autarquia, uma simples torneira ligada à rede de distribuição poderá ser suficiente como ponto de água. Com bombagem, a água poderá ser captada de linhas de água, lagoas, poços ou reservatórios. Considerando as condições, com aqueles caudais, para as necessidades de pressão previstas, a eletrobomba de água (figura 2) terá uma potência de 1/4 kW (com equipamento fotovoltaico -1) ou de 1/2 hp (sistema convencional -2): Considera-se, por hipótese, que as culturas da rotação têm uma ocupação anual de 300 dias e serão regadas num total de 100 dias. A dotação real de rega é de 6 L/m2 por dia (300 L por talhão), mas com uma variação da frequência em função dos da-

KIT DO TIPO ECOSOLAR COM INVERSOR ( 600¤) 2 painéis fotovoltaicos de 1 m2 e 130 W cada (potência instalada: 260 W)

1 Bomba de água (12 v) com pressão de 5 bares, caudal de 645 L/h e potência utilizada de 260 W

CENÁRIO DE SIMULAÇÃO Precipitação anual efetiva: 600 mm

Necessidades anuais de rega: 600 mm (600 L/m2): a) 300 L por dia ¤ 27 000 L b) 300 L por dia ¤ 3 000 L Volume total de água de rega = 30 000 L (50 m2)

100 dias de rega: a) 90 primavera-verão b) 10 outono-inverno

N.º horas de rega: 30 000 L / 645 L/h 50 h

QUADRO 3 Simulação do sistema fotovoltaico do kit do tipo Ecosolar com inversor.

Consumo de energia: 260 W x 50 h = 13 kWh

CENÁRIO DE CARATERÍSTICAS DO SISTEMA Energia elétrica produzida: 440 kWh/ano

Rendimento global: 9,8%

Inclinação: 34° Azimute: sul

RESULTADOS POR ANO Energia elétrica: a) Consumida: 13 kWh b) Injetada: 427 kWh

Valor monetário: a) Consumo (ponderado a 0,15 ¤/kWh) 2¤ b) Venda à rede (a 0,05 ¤/kWh) 21 ¤

Custo do equipamento: 30 ¤ (amortização simplificada)

SIMULAÇÃO PARA 100 HA Valor potencial (garantindo o autoconsumo): 21 ¤ x 20 000 talhões = 420 000 ¤/ano Redução de emissões de GEE: 13 kg x 20 000 talhões = 260 t CO2/ano

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Período de vida útil: 20 anos

Redução de emissões de GEE: 13 kg de CO2


| SOCIAL |

FIGURA 2 Equipamentos de energia fotovoltaica e de bombagem de água

2X Painel solar 130W, 12V

1) Bomba de água, 12V

dos climáticos. Para um balanço hídrico anual com 1200 L/m2 (ou 1200 mm) de água utilizada, programam-se 600 L/m2 (6 x 100) de água aplicada na rega e 600 L/m2 provenientes da precipitação. Em conformidade com estes pressupostos (quadros 2 e 3), serão necessárias cerca de 50 horas anuais de rega com o equipamento alternativo fotovoltaico (cada rega 30 minutos) e cerca de 30 horas com bombagem convencional (cada rega 20 minutos). A programação da rega poderá ficar automatizada com um relógio de rega ou com um sistema de eletroválvulas. A rega deverá ser realizada nos períodos do dia de menor calor e evitando condições de maior intensidade do vento. 5. Energia - A energia solar fotovoltaica é referenciada no âmbito das Unidades de Produção e Consumo (UPAC), nas quais se enquadram os contratos de autoconsumo e microprodução. A remuneração da eletricidade fornecida à Rede Elétrica de Serviço Público (RESP) aproxima-se dos 0,05¤/kWh. Numa análise simplificada do investimento consideram-se apenas as amortizações anuais sem inclusão do juro do capital fixo. A instalação do kit solar fotovoltaico com 2 m2 é proposto para um talhão de 50 m2 e considerou-se uma extrapolação para uma cidade com cerca de 100 ha, numa base de pequenos talhões de HU (quadro 3). Verificou-se que nas condições definidas o investimento na energia fotovoltaica, como UPAC, não é rentável, já que o autoconsumo (3%) é mínimo e a venda da eletricidade tem um valor muito baixo. Desta forma, no contexto da extrapolação definida, o potencial de evolução no mercado desta energia alternativa não é verificado. Por outro lado, também a redução da “pegada do carbono” (emissões de GEE), associada a este tipo de instalação e

2) Eletrobomba, 220V e 0,5hp

utilização, fica posta em causa. De acordo com os dados de base, apenas a partir de 25% para autoconsumo (por exemplo, para regar uma área individual/comunitária de 400 m2, com um uso diário do kit de 4 horas e um consumo energético de cerca de 100 kWh/ano) o investimento poderá ser considerado rentável.

BIBLIOGRAFIA COSTA, N. M. – Hortas Sociais na Póvoa de Lanhoso - CMPL. In MOURÃO, I. M.; BRITO, L. M. (coord.) – Horticultura Social e Terapêutica. Porto: Publindustria, Edições Técnicas, 2013. FERREIRA, M.E. – As plantas aromáticas e medicinais na dieta mediterrânica: porquê, quando e como? In ROMANO, A. (ed.) – A Dieta Mediterrânica em Portugal: Cultura, Alimentação e Saúde. Faro: Universidade do Algarve, 2014, 335 p. Disponível em http://www.ordemdosnutricionistas. pt/documentos/_A_Dieta_Mediterranica_em_Portugal_Cultura_Alimentacao_e_Saude.pdf. MATA, D. – Estratégia municipal para a dinamização da agricultura urbana em Lisboa. Lisboa: Instituto Superior de Agronomia, Universidade de Lisboa, 2011. [Seminário A Horticultura Volta à Cidade – APH, 8 de julho]. MOURÃO, I. – Horticultura Social e Terapêutica: contexto. In MOURÃO, I.M.; BRITO, L.M. (coord.) – Horticultura Social e Terapêutica. Porto: Publindustria, Edições Técnicas, 2013. MOURÃO, I.M.; MOURÃO, M.M. – Uma horta em casa. Lisboa: Arteplural edições, 2015. [Catálogos comerciais de equipamentos de rega e de energia fotovoltaica].

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| AUTONOMIA |

Serviço de Apoio Domiciliário da Misericórdia de Lisboa

UMA METODOLOGIA COLABORATIVA No âmbito da reorganização da ação social da Santa Casa, procedeu-se a uma reestruturação dos serviços de apoio domiciliário. Esta resposta social tem vindo a adotar uma metodologia de que resulte um acompanhamento de maior proximidade, baseada numa intervenção interdisciplinar e colaborativa e numa abordagem holística de cada situação. Texto de Ana Filipa Dias1, Maria Isabel Araújo2, Susana Alfaiate Santos3 [1.DIRETORA DA UNIDADE DE DESENVOLVIMENTO E INTERVENÇÃO DE PROXIMIDADE DESCOBERTAS; 2. DIRETORA DO CENTRO DE DIA DO ALTO DO LUMIAR; 3. DIRETORA DO CENTRO SOCIAL POLIVALENTE DO BAIRRO DA BOAVISTA_SCML]

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| SOCIAL |

C

om o aumento da esperança de vida, a diminuição da natalidade, entre outros fatores de ordem social, o envelhecimento demográfico tem vindo a constituir-se, cada vez mais, como uma problemática a merecer especial atenção por parte da sociedade. Nos últimos anos, o serviço de apoio domiciliário (SAD) foi a resposta na área das pessoas idosas e/ou em situação de dependência que apresentou maior crescimento em Portugal, seguindo assim as orientações internacionais nesta matéria1. Atenta a estas recomendações e conhecendo as necessidades do território, o SAD da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) destina-se a indivíduos residentes na cidade de Lisboa que se encontram em situação de dependência física e/ou psíquica, que não possam assegurar temporária ou permanentemente a satisfação das suas necessidade básicas e/ou a realização das atividades básicas e instrumentais da vida diária. Esta resposta rege-se pelos princípios de atuação da qualidade, eficiência, humanização e individualização; interdisciplinaridade; reserva da intimidade da vida privada e familiar; inviolabilidade do domicílio e da correspondência, assim como da participação e corresponsabilização do utente ou representante legal e dos seus familiares na elaboração do programa de cuidados e serviços. Não obstante o facto de o SAD permitir às pessoas idosas em situação de dependência permanecerem no seu domicílio habitual de vida – evitando ou adiando a sua institucionalização –, ele não é, por si só, suficiente, em muitas situações, para conseguir um nível de qualidade de vida desejável. Na realidade, sem um esforço integrador e sem serviços complementares, pode converter-se numa institucionalização no domicílio, sobretudo se os planos de intervenção forem homogéneos e padronizados em vez de flexíveis e heterogéneos (CARVALHO, 2012:219). Os objetivos de maior relevância desta resposta incidem na melhoria da qualidade de vida dos utentes e respetivas famílias, prevenindo situações

de maior dependência e promovendo a autonomia, através da prestação de cuidados de ordem física e psicossocial aos utentes e famílias. Desta forma, pretende-se contribuir para o seu equilíbrio, apoiando-os na satisfação das suas necessidades básicas e atividades da vida diária. Não menos importante, é propósito desta resposta assegurar e colaborar no acesso à prestação de cuidados de saúde e a outros serviços da comunidade adequados às suas circunstâncias. O SAD tem ainda por objetivo dinamizar a prestação informal de cuidados e rentabilizá-la por forma a obter-se um melhor acompanhamento do utente. Para a persecução dos objetivos mencionados, esta resposta social apresenta um conjunto de serviços que visam a satisfação das necessidades básicas, de segurança, sociais e de autorrealização, tendo como referência a teoria das necessidades de Maslow. Maslow identifica as necessidades do ser humano numa pirâmide, hierarquizando-as por níveis. Os cinco níveis das necessidades descritas na pirâmide e a ter em conta são: Necessidades de autorrealização

TEORIA DAS NECESSIDADES Pirâmide de Maslow

Necessidades de estima Necessidades sociais Necessidades de segurança Necessidades fisiológicas

ecessidades fisiológicas (básicas), tais como a n fome, a sede, o sono, o abrigo;

1. Organização Mundial da Saúde (2002).

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| AUTONOMIA |

O ATUAL DESAFIO É TRANSFORMAR OS DIAGNÓSTICOS SOCIAIS CENTRADOS NO INDIVÍDUO E NOS PROBLEMAS, PASSANDO A INCLUIR AS POTENCIALIDADES DAS FAMÍLIAS E OS RECURSOS DAS REDES DE APOIO LOCAL” n ecessidades de segurança, tal como a simples necessidade de sentir-se seguro dentro de uma casa; necessidades sociais ou de afeto, tais como pertencer a um grupo ou fazer parte de um clube; n ecessidades de estima, que passam por duas vertentes: o reconhecimento das nossas capacidades pessoais e o reconhecimento dos outros face à nossa capacidade de adequação às funções que desempenhamos; n ecessidades de autorrealização, em que o indivíduo procura tornar-se aquilo que pode ser. Considerando a importância destas necessidades na qualidade de vida dos destinatários da resposta, o SAD da SCML proporciona serviços complementares em função das especificidades individuais, tais como a teleassistência, empréstimo de ajudas técnicas, serviço de apoio domiciliário integrado, projeto REPARAR – no âmbito de pequenas reparações no domicílio –, entre outros2. De facto, “esta resposta social é um programa individualizado, que não se quer homogéneo e padronizado, mas flexível e heterogéneo. Tal processo exige planificação, direção por objetivos e flexibilidade, de acordo com as particularidades dos recursos com que se intervém e das circunstâncias pessoais e sociais das pessoas idosas e do contexto familiar” (CARVALHO, 2012:219).

No início de 2014 e na sequência da reorganização da ação social da SCML, com a constituição de dez Unidades de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade (UDIP), procedeu-se a uma reestruturação dos SAD existentes, reagrupando-os em onze núcleos, distribuídos pelas dez UDIP, com uma capacidade total de resposta a 2870 utentes. De forma a garantir uma resposta adequada à procura e aos recursos de proximidade existentes em cada uma das unidades territoriais, o SAD tem vindo a posicionar-se na construção de uma visão que promova um acompanhamento de maior proximidade, adaptado a cada situação. A resposta de serviço de apoio domiciliário tem ainda em consideração o agregado familiar no seu todo, alargando o enfoque da abordagem tradicional, que se centrava numa resposta individualizada. Transformar os diagnósticos sociais centrados no indivíduo e nos problemas, passando a incluir as potencialidades das famílias e os recursos das redes de apoio local, numa visão interdisciplinar, é o atual desafio inovador que se apresenta à resposta de SAD. Através de um olhar interdisciplinar, o SAD passa a incidir num acompanhamento holístico, substanciado numa visão global de todos os elementos envolvidos do agregado familiar em acompanhamento, deixando a pessoa idosa de ser o único foco da intervenção. A resposta de SAD, atendendo às suas caraterísticas específicas, não adota na íntegra o modelo da abordagem colaborativa, mas sim os seus princípios orientadores, numa perspetiva integrada e de abordagem interdisciplinar. A visão interdisciplinar das diferentes dimensões da problemática permite espaços de reflexão conjunta, potencializando a partilha de conhecimento que conflui numa maior abrangência de formulação de estratégias de intervenção. Atualmente, as equipas técnicas do SAD são constituídas por diferentes profissionais com formação nas áreas das ciências sociais e humanas e da saúde, com formação e supervisão

2. Com o intuito de assegurar a diversificação e o aumento da acessibilidade do serviço à população de Lisboa, a sinalização pode ser feita por qualquer serviço/entidade externa à SCML, por iniciativa do próprio, de familiares e amigos/vizinhos, ou internamente, por qualquer serviço e equipa, podendo agendar marcação nos núcleos de SAD das respetivas Unidades de Desenvolvimento e Intervenção de Proximidade.

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| SOCIAL |

profissional permanente. Esta nova abordagem metodológica deixa em aberto a possibilidade futura da integração de outras disciplinas nestas equipas, enriquecendo assim a qualidade da resposta. Adotando uma metodologia colaborativa, o SAD enfrenta o desafio de potencializar as redes e os parceiros do território, de modo a proporcionar sinergias centradas na solução de problemas sociais complexos, contribuindo para uma resposta mais eficiente e eficaz. Esta abordagem é particularmente relevante e apresenta-se como eficaz na intervenção social com indivíduos multidesafiantes, que apresentam problemas sociais complexos e que exigem o acesso a uma diversidade de serviços/recursos e profissionais. A implementação dos princípios orientadores do modelo de gestão de caso constitui-se como o grande desafio para todos os intervenientes envolvidos no processo (profissionais, serviços e utentes). A presente reorganização tem vindo a potencializar na resposta de SAD o reforço das redes locais de parceria – permitindo maior ligação aos territórios de abrangência – e tem fomentado a solidificação das equipas técnicas na visão interdisciplinar e na partilha/conhecimento de todas as situações em acompanhamento. As equipas técnicas do apoio domiciliário são equipas interdisciplinares, responsáveis pela gestão e organização do SAD, nomeadamente através da coordenação das equipas prestadoras, constituídas por ajudantes familiares, e do acompanhamento social dos indivíduos/famílias com necessidade desta resposta social, garantindo a qualidade dos serviços prestados3. “No estudo e na intervenção nos processos de envelhecimento deve ter-se em consideração vários níveis de análise: o estrutural, o organizacional, o familiar, o grupal e o individual e suas interconexões, o que requer a integração de várias disciplinas académicas e o diálogo entre si” (RIBEIRINHO, 2013:181). Neste sentido, a visão da abordagem

colaborativa permite concetualizar o modelo de SAD assente nos seguintes princípios: abordagem centrada nas competências, recursos e conhecimentos do próprio indivíduo, das famílias e comunidades; mudança como um processo que visa a procura de soluções por parte dos vários intervenientes de forma a resolver a situação; existência de um interlocutor de referência, baseado no conceito de gestor de caso; visão integrada e articulada da equipa técnica. Face à crescente complexidade dos problemas sociais com que o SAD se depara, é cada vez mais importante consolidar os princípios da intervenção social radicados na promoção da cidadania e dos direitos humanos. Tal pressuposto só é possível através de uma intervenção transversal, territorializada e interdisciplinar. Uma intervenção que coloque as pessoas como centro e motor da intervenção, sujeitos de direitos e deveres, no respeito pelas suas diferenças, especificidades, capacidades, recursos, potencialidades e competências, afirmando o seu direito à liberdade de escolha, autodeterminação e participação ativa no seu processo de mudança. É fundamental promover igualmente uma crescente intersetorialidade das respostas e medidas inscritas nos diversos domínios de atuação, bem como efetuar o reforço dos princípios em parceria e em rede.

BIBLIOGRAFIA CARVALHO, Maria Irene – Envelhecimento e cuidados domiciliários em instituições de solidariedade social. Lisboa: Coisas de Ler, 2012. OMS – Active ageing, a policy framework. Organização Mundial da Saúde, 2002. RIBEIRINHO, Carla – Serviço social gerontológico: contextos e práticas profissionais. In CARVALHO, Maria Irene – Serviço social no envelhecimento. Lisboa: Pactor, 2013, pp. 177-200. RIVERO, Catarina et al. – Manual: práticas colaborati-

3. A resposta do SAD na SCML funciona 365 dias por ano, num horário compreendido entre as 8h00 e as 21h00.

vas e positivas na intervenção social. Leiria: Rede Europeia Anti-Pobreza, 2014.

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| DIREITO |

O acolhimento institucional

DE CRIANÇAS E JOVENS

nas legislações nacional, comunitária e internacional* Nas últimas duas décadas emergiu um novo olhar sobre a criança, enquanto protagonista da sua própria vida e sujeito de direitos próprios. As legislações nacional, comunitária e internacional são um espelho desta evolução, nomeadamente em matéria de acolhimento institucional de crianças e jovens. Texto de Sofia Macedo [EQUIPA DE ADMISSÃO E APOIO TÉCNICO DA UNIDADE DE ADMISSÃO EM ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL_SCML]

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proteção da infância é uma das obras que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa abraça desde sempre. Os Estatutos da Santa Casa consagram “a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos […], de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular actuação em prol da comunidade”, prosseguindo “modalidades de acção social em todas as valências, nomeadamente nas áreas de infância e juventude” e exercendo “competências legais em matéria de protecção de crianças e jovens em perigo” (artigos 4.º/1 e 3, alíneas b) e p) do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro). O acolhimento institucional de crianças resulta da necessidade de, por razões de estrita impossibilidade de manter a criança no seio da sua família, fazê-la ser acolhida num contexto de proteção e segurança. Se antes esta realidade se apresentava de caráter marcadamente assistencialista, nas últimas duas décadas um novo olhar recaiu sobre a criança, tornando-a protagonista da sua própria vida e sujeito de direitos próprios.

*Este artigo foi elaborado ao abrigo da anterior legislação nacional de Promoção e Proteção – Lei n.º 147/99, de 1 de setembro – que sofreu algumas alterações, agora plasmadas na Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro.

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1. O DIREITO INTERNACIONAL Em matéria de infância e juventude importa, por isso, relembrar a evolução que se verificou, ao longo do século xx, nos direitos da criança, designadamente na forma de acolher em instituição. O superior interesse da criança passou a ser a pedra-de-toque para qualquer intervenção. Embora normalmente se relacione este conceito com o texto da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, a ideia não nasceu com este diploma. Já a Declaração Internacional dos Direitos da Criança, de 1959, fazia menção à proteção especial de que deveria beneficiar a criança, através da criação de condições para que esta se desenvolvesse “física, intelectual, moral, espiritual e socialmente, de forma saudável e normal”. Referências aos direitos específicos das crianças foram depois plasmadas em diplomas como os Pactos Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais, de 1966. Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, e a Carta Social Europeia, de 1961, fazem menção à especial proteção de que as crianças deverão ser alvo. Interessa referenciar o papel de algumas organizações internacionais, como a UNICEF – criada em dezembro de 1946 –, cuja primeira missão foi a de ajudar as crianças da Europa vítimas da Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950, a sua atividade disseminou-se, passando a responder às necessidades das crianças e das progenitoras nos chamados países em desenvolvimento. Em 1953, surge como agência permanente das Nações Unidas, passando a ocupar-se das crianças dos países mais pobres da África, Ásia, América Latina e Médio Oriente. A sua designação modificou-se, sendo agora o Fundo das Nações Unidas para a Infância, mas manteve-se a sigla UNICEF, pois esta tinha já ganho destaque em todo o mundo. Também a preocupação relativamente a uma especial proteção judiciária devida às crianças já era, há muito, preconizada. O primeiro documento internacional que estabelece normas sobre a relação da criança com a administração da justiça data de 1985 – Regras de Beijing (ONU).

O SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA PASSOU A SER A PEDRA-DE-TOQUE PARA QUALQUER INTERVENÇÃO” O Conselho da Europa – organização internacional com 47 Estados membros, fundada em 1949, cuja missão primeira é a de promover os direitos do homem, da democracia e do Estado de direito, com base, designadamente, nas regras da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – adotou diretrizes sobre justiça, tendo em vista especificamente as crianças, com o intuito de assegurar que estas são olhadas como tal, independentemente dos atos que tenham praticado. “Considerando que um amigo é alguém que nos trata bem e em quem podemos confiar, que ouve o que temos para dizer e a quem damos ouvidos, que nos compreende e que compreendemos, e também que um verdadeiro amigo tem a coragem de o dizer quando estamos errados e nos apoia na procura de uma solução, um sistema de justiça adaptado às crianças deve esforçar-se por reproduzir estes ideais. Um sistema de justiça adaptado às crianças não pode caminhar à frente das crianças; não pode deixá-las para trás… trata-as com dignidade, respeito, cuidado e equidade. É acessível, compreensível e fiável. Ouve as crianças, leva a sério os seus pontos de vista e assegura que os interesses daquelas que 79


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não se podem exprimir (como os bebés) também são protegidos. Ajusta o seu ritmo ao das crianças: não é expedito nem demorado, antes razoavelmente rápido” (In Diretrizes do Comité dos Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, adotadas a 17 de novembro de 2010, com a finalidade de alcançar uma união mais estreita entre os Estados membros, designadamente promovendo regras comuns sobre matérias jurídicas). A Convenção sobre os Direitos das Crianças – que em novembro de 2014 comemorou 25 anos de existência – é o instrumento jurídico internacional mais referenciado, enquadrador das ações que os Estados deverão promover quando estão em causa os direitos da criança. No que concerne às crianças que vivenciam um acolhimento institucional (relembrando que, nos termos da Convenção mencionada, criança é todo o ser humano com menos de 18 anos), a Convenção preconiza ações específicas que os Estados membros deverão levar a cabo para cumprir o seu desígnio: c omeça logo por colocar especial ênfase no facto de que as diferenças étnicas, culturais ou económicas não poderão significar discriminação e diferença de tratamento (artigo 2.º); consagra o conceito de superior interesse da 80

criança, relembrando que este deve guiar os decisores e responsáveis nacionais de cada Estado para, de alguma forma, defender a criança que se encontre num contexto de desproteção (artigo 3.º); em matéria de acolhimento institucional, a Convenção estabelece princípios muito concretos relativamente à possibilidade de a criança poder ser afastada da sua família de origem, matéria que tem de ser sempre ponderada como recurso em casos de especial gravidade e pensada à luz do superior interesse da criança (artigo 9.º); a liberdade de expressão e a efetiva possibilidade de a criança emitir opinião sobre a sua vida e outras questões do seu interesse e, mais importante, de ver essa opinião tomada em consideração, designadamente nos processos judiciais, é outro conceito muito caro à Convenção (artigos 12.º e 13.º); a criança, na família, mas ainda mais quando se encontra acolhida, tem o direito a ser protegida de intromissões na sua vida privada, tem direito à sua correspondência preservada e à proteção da sua honra e reputação (artigo 16.º); o s Estados membros estão também obrigados a


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promover por todas as vias a proteção da criança de qualquer forma de violência, abusos ou abandono. Tal obrigação é extensiva às crianças acolhidas em instituições (artigo 19.º); q uando se encontra acolhida, a criança tem direito a uma especial proteção pelo Estado, de forma a beneficiar dos cuidados de que necessita, mas também de forma a que a sua origem cultural, étnica, linguística ou religiosa possa ser igualmente preservada, na medida em que o desenvolvimento harmonioso da criança poderá estar intimamente ligado aos valores e às tradições culturais nas quais ela se reconhece (artigo 20.º); r elativamente à medida de colocação ou acolhimento propriamente dita, a Convenção determina que os Estados deverão aferir, no cumprimento dos prazos legais anteriormente determinados, se tal medida de afastamento da família continua a ser necessária ou se a reunificação familiar poderá voltar a ser o projeto de vida da criança (artigo 25.º). Esta norma relativa ao cuidado que se deve imprimir na revisão/aferição da decisão de afastamento da criança da sua família, ou de uma vivência familiar mais alargada em contraposição à vivência em instituição, prende-se também com um outro conceito muito relevante – o do tempo útil de cada criança. Assim, bem se compreende esta ideia de que “o tribunal tem de deixar de ser um edifício de criação de moldes, para ser um atelier de costura à medida do corpo de cada criança” (Susan Salgueiral, auditora de justiça do XIX Curso Normal de Formação de magistrados do CEJ, in “O Novo Direito das Crianças e Jovens, Um Recomeço”, de Paulo Guerra e Leonor Furtado), indicando, pois, a todos os intervenientes em matéria de infância e juventude, que cada caso deve ser olhado como único e especial. 2. O DIREITO COMUNITÁRIO A criação das Comunidades Europeias deu origem a uma ordem jurídica própria, tendo por base o direito comunitário originário – aquele que decorre

NA RECOMENDAÇÃO (2005) 5/UE, DE 16 DE MARÇO DE 2005, ACONSELHAVA-SE A EXISTÊNCIA DE UMA INSTÂNCIA QUE SE APRESENTASSE COM INDEPENDÊNCIA E IMPARCIALIDADE, E QUE TIVESSE COMO OBJETIVO A DEFESA E A INFORMAÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA” do estabelecido nos próprios Tratados constituintes – e o direito comunitário derivado – o resultante da adoção por parte das instituições comunitárias de diversos atos legislativos. Portugal, como Estado membro da União Europeia, está obrigado a aplicar e a transpor para o seu ordenamento jurídico as normas de direito comunitário, com a finalidade de cumprir os objetivos estabelecidos nos Tratados. Sobre esta matéria, importará ter presentes os principais atos de direito comunitário derivado, que produzem regras com relevância em matéria de direitos da criança: Regulamentos: atos legislativos vinculativos, aplicáveis em todos os seus elementos e em todos os países da UE; Decisões: só são vinculativas para os seus destinatários específicos (por exemplo, um país da UE ou uma empresa), sendo-lhes diretamente aplicáveis; Pareceres: são instrumentos que permitem às instituições fazer uma declaração de forma não vinculativa, ou seja, sem impor qualquer obrigação legal aos seus destinatários; Diretivas: são atos legislativos que fixam um objetivo geral e que vinculam os Estados membros a alcançarem determinado resultado, atribuindo competência às instâncias nacionais para decidir quanto à forma e aos meios a utilizar para alcançar o objetivo previsto. Não são aplicadas 81


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NA GÉNESE DA LEI DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO ESTÁ A PROMOÇÃO DOS DIREITOS E A PROTEÇÃO DA CRIANÇA, AFASTANDO-A DE SITUAÇÕES DE PERIGO E VISANDO A SUA RECUPERAÇÃO FÍSICA E PSICOLÓGICA, BEM COMO A DEFINIÇÃO DE UM PROJETO DE VIDA PRÓPRIO” diretamente no ordenamento jurídico interno dos Estados membros, devendo antes passar por um processo legislativo próprio: a transposição para o direito interno. Recomendações: não são vinculativas, apenas permitem às instituições dar a conhecer o seu posicionamento sobre determinada matéria, bem como sugerir uma linha de conduta, não existindo, por isso, uma obrigação legal aos seus destinatários. É nesta matéria que têm surgido documentos com relevância no que concerne aos direitos das crianças, e que carreiam para o ordenamento jurídico comunitário as normas que atrás se elencaram, plasmadas no texto da Convenção sobre os Direitos da Criança. No que concerne à matéria do acolhimento institucional, o Conselho da Europa emitiu a Recomendação (2005) 5/UE, de 16 de março de 2005, em que se reforçava a importância dos direitos das crianças acolhidas em instituição, designadamente em matéria de privacidade, de proteção e de garantia da confidencialidade dos processos. Nesse âmbito, recomendava-se a existência de uma instância que se apresentasse com independência e imparcialidade e que tivesse como objetivo a defesa e a informação sobre os direitos da criança. 82

Mais recentemente, a Recomendação da Comissão Europeia de 20 de fevereiro de 2013 – Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade (2013/112/UE), aconselhava que os Estados membros elaborassem e aplicassem políticas destinadas a lutar contra a pobreza infantil e a exclusão social, promovendo o bem-estar das crianças através de estratégias multidimensionais – saúde, habitação, educação, recursos básicos, etc. – em conformidade com determinadas orientações explanadas no texto da mesma Recomendação. Realça-se a disposição contida no pilar 2.1., “Acesso a Recursos Adequados”, em que se recomenda a “melhoria aos serviços de apoio às famílias e a qualidade dos serviços de cuidados alternativos”, designadamente “pondo termo à multiplicação das instituições destinadas a crianças privadas de cuidados parentais, privilegiando soluções de qualidade no âmbito de estruturas de proximidade e junto de famílias de acolhimento, tendo em conta a voz das crianças”. A discussão sobre a necessidade de acolher – em instituição ou em família de acolhimento – tem sido uma constante nas instâncias nacionais e internacionais, tanto na perspetiva da psicologia, como da educação ou da proteção à infância. Refira-se o exemplo de países como a Espanha que, nos últimos anos (em algumas regiões autonómicas), instituiu a proibição de acolhimento institucional de crianças com idade inferior a 3 anos. Em Portugal está consagrado legalmente o acolhimento familiar, na vertente de “atribuição da confiança da criança ou do jovem a uma pessoa singular ou a uma família, habilitadas para o efeito, e visa a integração da criança ou do jovem em meio familiar e a prestação de cuidados adequados às suas necessidades e bem-estar e a educação necessária ao seu desenvolvimento integral” (Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro). A realidade revela, todavia, que a sociedade portuguesa ainda não se apresenta preparada para acolher esta forma de estar na comunidade, de viver a entreajuda e de ser solidário. As experiências positivas que se identificam decorrem de realidades geograficamente circunscritas,


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designadamente no Norte do país (veja-se a experiência da Associação Mundos de Vida, no distrito do Porto – www.mundosdevida.pt). Na Recomendação – pilar 2.1., “Acesso a Recursos Adequados”, em que se recomenda a “melhoria aos serviços de apoio às famílias e a qualidade dos serviços de cuidados alternativos” – vem ainda identificada a necessidade de “garantir que as crianças privadas de cuidados parentais têm acesso a serviços de qualidade (tanto tradicionais como específicos) em matéria de saúde, educação, emprego, assistência social, segurança e habitação, nomeadamente durante a transição para a idade adulta”. Nos dias de hoje, se é certo que a bondade da decisão de acolhimento institucional de crianças com menos de 3 anos tem vindo a ser questionada, menos não tem sido a do acolhimento de jovens entre os 12 e os 18 anos, oriundos de contextos familiares cada vez mais disfuncionais, a um nível tal que não permite pensar que estes regressarão um dia à família biológica. Para esses, a autonomização da família de origem é o único projeto de vida que lhes resta, com os constrangimentos inerentes

ao facto de não existirem respostas residenciais de autonomização compatíveis com as necessidades identificadas. Deve também destacar-se a cada vez maior fragilidade que estes jovens apresentam a nível da saúde mental. Na fase de transição da infância para a adolescência, essa situação implica determinado tipo de comportamentos e de necessidades que a maioria das equipas técnicas dos lares de infância e juventude e casas de acolhimento temporário não está preparada para trabalhar, nem lhes caberá acolher e conter. 3. A LEGISLAÇÃO PORTUGUESA A Constituição da República Portuguesa de 1976 consagra preceitos conformes aos diplomas internacionais atrás citados, em matéria de direitos da criança. Princípios basilares como a igualdade de todos perante a lei, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à liberdade e à segurança, à livre expressão do pensamento e à educação, tal como outros mais focados na criança, designadamente, a criança privada de um ambiente familiar normal, que a Constituição consagra como sendo 83


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a principal destinatária de uma especial proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições (artigo 69.º). A respeito da lei ordinária, destaca-se, naturalmente, a Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei n.º 147/99, de 1 de setembro) que contém no seu articulado todos os princípios basilares da Convenção sobre os Direitos da Criança. Na sua génese está a promoção dos direitos e a proteção da criança, afastando-a de situações de perigo e visando, desde logo, a sua recuperação física e psicológica, bem como a definição de um projeto de vida próprio. Relembram-se aqui os princípios consagrados no artigo 4.º da referida lei: a) interesse superior da criança e do jovem – a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos

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interesses presentes no caso concreto; b) privacidade – a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada; c) intervenção precoce – a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida; d) intervenção mínima – a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo; e) proporcionalidade e atualidade – a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; f) responsabilidade parental – a intervenção deve ser efetuada de modo a que os pais assumam os seus deveres para com a criança ou o


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jovem; g) prevalência da família – na promoção de direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem na sua família ou que promovam a sua adoção; h) obrigatoriedade da informação – a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa; i) audição obrigatória e participação – a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção; j) subsidiariedade – a intervenção deve ser efetuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais. Nas últimas duas décadas é notório o esforço do Estado no sentido de cumprir a sua missão nesta matéria. Todavia, não se poderá ainda afirmar que toda a criança acolhida vê serem-lhe reconhecidos, na prática, todos os direitos e recomendações emitidos para sua defesa e proteção que atrás se foram referenciando. Em jeito de conclusão, recorda-se aqui a sessão especial das Nações Unidas dedicada às crianças, que decorreu em Nova Iorque, em 2002. Aí foram reafirmados pelos 189 Estados membros das Nações Unidas os compromissos assumidos para com as crianças e definidas as etapas necessárias para construir “um mundo para as crianças”. Os objetivos de desenvolvimento das Nações Unidas para o milénio, que deveriam ter sido atingidos até ao corrente ano de 2015, são os que a seguir se referenciam: 1. erradicar a pobreza extrema e a fome; 2. assegurar o ensino primário universal; 3. promover a igualdade entre sexos e a autonomia da mulher; 4. reduzir a mortalidade

infantil; 5. melhorar a saúde materna; 6. combater o VIH/Sida, a malária e outras doenças; 7. garantir a sustentabilidade do ambiente; 8. criar uma parceria global para o desenvolvimento. Se em relação a alguns destes desígnios poder-se-á, com alguma segurança, dizer que o mundo se tornou num lugar melhor para as crianças nesta última década, muito terá ficado por fazer no que respeita à situação da criança, à sua posição no mundo e ao respeito que lhe é devido como sujeito de direitos. A legislação portuguesa consagra bem muitos destes direitos da criança e dos deveres para com ela. Caberá a todos os que decidem, atuam e executam a lei o seu cumprimento da melhor forma possível. E as crianças são cada vez mais conhecedoras dos seus direitos: como recentemente referiu Quino, o criador da célebre personagem de banda desenhada: a rebelde, inconformada e contestatária Mafalda – que em 2014 celebrou cinquenta anos de vida, “as crianças hoje em dia estão tão informadas sobre tudo o que acontece no mundo. Quando era criança, não tinha ideia de quem eram pessoas como, por exemplo, o Papa. Hoje em dia, as crianças sabem tudo”.

BIBLIOGRAFIA Constituição da República Portuguesa Convenção sobre os Direitos das Crianças, 1989. Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro. Diretrizes do Comité dos Ministros do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, de 17 de novembro de 2010. Lei n.º 147/99, de 1 de setembro. LEOTE, Maria João – Sistema nacional de acolhimento de crianças e jovens. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. Recomendação da Comissão Europeia (2013/112/ UE), de 20 de fevereiro de 2013. Recomendação do Conselho da Europa (2005) 5/UE, de 16 de março de 2005. www.unicef.pt www.europa.eu

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CONVITE

À LEITURA

PARTILHADA 86


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Conscientes de que o trabalho entre diferentes equipas é enriquecedor, pela partilha de saberes e experiências/ vivências, três estabelecimentos de infância da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – Creche Bairro Quinta das Laranjeiras, Centro de Acolhimento Infantil Vale Fundão 1 e Centro de Acolhimento Infantil Dr. José Domingos Barreiro – propuseram-se a desenvolver um projeto em parceria, envolvendo ativamente todos os intervenientes (crianças, famílias e equipas) das diferentes respostas sociais. Texto de Florbela Costa1, Isabel Mourato2, Rosa Lourenço3 e Rute Alves4 1. DIRETORA DO CENTRO DE ACOLHIMENTO INFANTIL VALE FUNDÃO 1; 2. TÉCNICA DE EDUCAÇÃO NA DIREÇÃO DE AÇÃO SOCIAL; 3. DIRETORA DO CENTRO DE ACOLHIMENTO INFANTIL DR. JOSÉ DOMINGOS BARREIRO; 4. DIRETORA DA CRECHE BAIRRO QUINTA DAS LARANJEIRAS_SCML]

C

onsiderando a leitura um bem essencial – e tendo em conta que os resultados de estudos nacionais e internacionais efetuados nos últimos anos revelam que, em Portugal, existem baixos níveis de literacia, tanto na população adulta como entre crianças e jovens em idade escolar –, surgiu o projeto “Convite à Leitura Partilhada”. A iniciativa tinha por base um objetivo comum às equipas envolvidas: incentivar e desenvolver hábitos de leitura nas crianças, desde a primeira infância, e, simultaneamente, promover o envolvimento parental nas atividades desenvolvidas nos estabelecimentos de infância e juventude. «A palavra “leitura” deriva do latim – lectura (lição) – e consiste na “ação de decifrar o que está representado pelos signos gráficos [...], o ato de apreender o conteúdo de uma mensagem escrita [...], a maneira como cada pessoa compreende, interpreta um texto, uma obra, um acontecimento em função de determinados códigos, principais teorias [e a] ação de decifrar quaisquer sinais

que foram traçados com a intenção de representar alguma coisa ou aos quais se atribui alguma significação» (CASTANHEIRO, 2001, p. 2245). Segundo Oliveira (2005), para as classes sociais mais desfavorecidas, a prática da leitura parece envolver uma ideia de “cultura” (sentido comum), uma ideia de poder “inteligente”. Para indivíduos de classes sociais mais favorecidas, a leitura encontra-se mais relacionada com o saber prático e utilitário, segundo o mesmo autor. Com a implementação deste projeto, pretendemos contribuir para o desenvolvimento cultural e social das famílias, procurando eliminar lacunas porque: acreditamos que “a promoção da aprendizagem da cidadania passa não apenas pela aquisição do conjunto de saberes, capacidades e atitudes que lhe estão associados, mas igualmente por viver a cidadania”1; acreditamos que “formar ‘cidadãos capazes’, com base na democracia e nos valores democráticos, com consciência crítica e social, é situar a

1. PORTUGAL, Ministério de Educação e Ciência – Recomendação n.º 1/2012 – Recomendação sobre educação para a cidadania. Lisboa: Ministério de Educação e Ciência, Conselho Nacional de Educação, 2012.

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A APRESENTAÇÃO DOS LIVROS À CRIANÇA, NO MEIO FAMILIAR E NOS ESTABELECIMENTOS DE EDUCAÇÃO DESDE A PRIMEIRA INFÂNCIA, PROPICIA O SUCESSO ESCOLAR E AMPLIA O INTERESSE LÚDICO PELA LEITURA E ESCRITA, PROMOVENDO A CONSTRUÇÃO DE CIDADÃOS ATIVOS” cidadania na perspetiva das competências práticas, da intervenção e ação concretas. Ao acentuar-se este caráter prático, valoriza-se a participação dos indivíduos na comunidade e nas interações que aí se estabelecem”2; acreditamos que a leitura é uma atividade permanente da condição humana, uma habilidade a ser adquirida desde cedo. Através do contacto com o livro a criança tem oportunidade de ampliar, transformar e enriquecer a sua experiência de vida. Lê-se para sonhar, para viajar com a imaginação; lê-se por prazer e curiosidade; lê-se para aprender e ficar informado; lê-se para questionar e resolver problemas; lê-se para formar cidadãos participativos e comprometidos; acreditamos que “educar para a cidadania passa, entre outros aspetos, pela criação de oportunidades de desenvolvimento nas crianças de um autoconceito positivo e por aprender a conhecer e a respeitar o outro. ‘Aprender a viver juntos

e a viver com os outros’ apresenta-se, neste sentido, como um dos pilares em que deve assentar a educação do presente e do futuro”3; acreditamos que a reflexão sobre as práticas pedagógicas possibilita às equipas educativas mudar os modos de fazer e introduzir novas dimensões nas atividades já habitualmente realizadas; acreditamos que promover momentos de reflexão e análise sobre práticas educativas é uma mais-valia para o desenvolvimento pessoal e profissional das equipas. O contributo de cada elemento é fundamental para o enriquecimento de todos, visando assim a melhoria da qualidade das diversas respostas educativas dos três estabelecimentos; acreditamos que “um projeto de educação para a cidadania só se torna eficaz quando a organização e modo de funcionamento do contexto em que se aplica se concebem com intencionalidade educativa segundo os mesmos princípios”4. Sendo os livros parte integrante do mundo – e contribuindo estes de forma significativa para o desenvolvimento pessoal, social, emocional e cognitivo da criança, influenciando o seu percurso de vida –, elegemos a leitura partilhada como mote para a implementação de diferentes projetos interligados e partilhados pelos três estabelecimentos da Direção Oriental. LIVRO NA INFÂNCIA As crianças devem ter acesso ao livro desde muito cedo. Devem poder manipulá-lo, segurá-lo, mesmo que seja de “pernas para o ar”. A criança deve poder fazer “um encontro entre o livro, a imagem e ela própria” (DURANT, 1985). Segundo Faucher, a imagem, só por si, é transmissora de uma mensagem já descodificável pela criança pequena. Ao “ler”, a criança efetua um ato de compreensão e interpretação do mundo. Através dessa compreensão pode modificar ou dar outro significado ao contexto no qual está inserida (Cit. por COELHO, 2000).

2. AFONSO, Maria Rosa – Guião de Educação para a Cidadania em Contexto Escolar… Boas Práticas. Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, Ministério da Educação. Setembro de 2007. p. 15. 3. LEITE, Carlinda; RODRIGUES, Maria de Lurdes – Jogos e Contos numa Educação para a Cidadania. Instituto de Inovação Educacional, Ministério da Educação. 2001. 4. PORTUGAL, Ministério de Educação e Ciência – Recomendação n.º 1/2012 – Recomendação sobre educação para a cidadania. Lisboa: Ministério de Educação e Ciência, Conselho Nacional de Educação, 2012.

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Frente às possibilidades oferecidas pelo livro, Abramovich (1991) refere que nele se pode descobrir um mundo vastíssimo de conflitos e impasses, cujos problemas são enfrentados e solucionados pelas personagens da história. Ao imergir neste ambiente imaginário, a criança poderá identificar-se com algumas personagens presentes na história e resolver assim dificuldades pessoais. Os benefícios da criação do gosto pela leitura na criança traduzem-se num processo lúdico de interação, socialização, criatividade e emoção. A apresentação dos livros à criança, no meio familiar e nos estabelecimentos de educação desde a primeira infância propicia o sucesso escolar e amplia o interesse lúdico pela leitura e escrita, promovendo a construção de cidadãos ativos. Numa primeira fase do projeto procurou fazer-se, através da realização de um inquérito, um diagnóstico sobre o perfil das famílias, quanto aos seus hábitos de leitura e à importância que atribuem aos momentos de leitura em contexto familiar. Assim, em outubro de 2012, foram realizados inquéritos a 245 encarregados de educação de crianças que frequentavam a Creche Bairro Quinta das Laranjeiras, o Centro de Acolhimento Infantil (CAI) Vale Fundão 1 e o Centro de Acolhimento Infantil (CAI) Dr. José Domingos Barreiro. Da análise dos inquéritos realizados, identificámos que os encarregados de educação inquiridos, maioritariamente pais jovens (62% encontra-se na faixa etária dos 19-30 anos), possuíam o 3º ciclo de escolaridade. Destes, a maior parte ocupava os seus tempos livres a ver televisão, sendo que apenas 88 dos 245 inquiridos dedicava o seu tempo livre à leitura. É de realçar que, dos 88 indivíduos que mencionaram ter hábitos de leitura, 39,3% referiram ler por prazer, 38,9% por considerarem um meio de valorização pessoal e apenas 6,7% lia por obrigação. No que respeita ao tipo de leitura, 54% liam revistas e jornais, 46% livros não escolares, selecionando os livros que leem pelo assunto/tema. A maioria dos inquiridos não tinha por hábito procurar informação sobre livros na internet. Relativamente ao tempo disponibilizado para a leitura,

constatámos que 23,6% liam ao fim de semana; 23,2% todos os dias; 12,7% nas férias; 8% ao fim de semana e nas férias; e 2,1% nunca tentou ler livros. Contudo, 10,1% dos inquiridos nunca leram um livro até ao fim. Quanto à quantidade de livros que os inquiridos liam por ano, pudemos concluir que 48% liam, no máximo, entre um e dois livros por ano e 6% nem sequer liam um livro por ano.

NO QUE SE REFERE À ESTIMULAÇÃO DE PRÁTICAS DE LEITURA DOS FILHOS PELOS ENCARREGADOS DE EDUCAÇÃO, 90% DESTES JÁ TOMARAM A INICIATIVA DE PROMOVER O CONTACTO DIRETO DO FILHO COM O LIVRO-BRINQUEDO E 86% DOS INQUIRIDOS JÁ LEU PARA OS FILHOS” Constatámos ainda que, na maioria dos agregados familiares, existiam poucos livros (não escolares). No que se refere à estimulação de práticas de leitura dos filhos pelos encarregados de educação, 90% destes já tomaram a iniciativa de promover o contacto direto do filho com o livro-brinquedo e 86% dos inquiridos já leu para os filhos. É de realçar que existe uma grande concordância sobre a importância dos livros para bebés. Relativamente a visitas a bibliotecas, a grande maioria menciona que já o fez, embora apenas 20% o tenha feito com os filhos. Somente 11,8% estão inscritos numa biblioteca e apenas 30% já requisitou um livro numa biblioteca. Somente 9% dos inquiridos referiram ter participado em programas de 89


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DINAMIZAÇÃO da biblioteca itinerante

APÓS A REALIZAÇÃO DO PROJETO “CONVITE À LEITURA PARTILHADA” VIMOS REFORÇADOS OS VÍNCULOS ENTRE CRIANÇAS, FAMÍLIAS E EQUIPAS, ATRAVÉS DO ENVOLVIMENTO E PARTILHA DE SABERES E PRÁTICAS, NUM CLIMA DE PARTICIPAÇÃO ATIVA EM QUE A LITERATURA INFANTIL FOI O MOTOR” estímulo à leitura promovidos por bibliotecas públicas. Quanto à participação em programas de estímulo à leitura promovidos pelos estabelecimentos de ensino, 44% referem que já participaram, enquanto 36% nunca participaram neste tipo de iniciativas. Constatámos também que apenas 13% dos inquiridos conhecem o Projeto Leitura a Par e 66% não conhecem o Programa Nacional de Leitura. Da população inquirida, 69% tem por hábito oferecer livros.

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CONSTRUÇÃO de histórias com jogo de dados “Três dados, três histórias / Cinco dados, cinco histórias PROJETO Leitura a Par

SENSIBILIZAR, PROMOVER E DIVULGAR Numa segunda fase do projeto, face ao diagnóstico obtido e às necessidades identificadas, foram programadas diversas ações a desenvolver durante o ano letivo. Estas tinham o objetivo de sensibilizar, promover e divulgar a importância e a utilização do livro na primeira infância, levando ao envolvimento e participação das nossas crianças, famílias, colaboradores e comunidade. Das ações desenvolvidas nos estabelecimentos, salientamos as seguintes:


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HORA DO CONTO… Quem conta?

OFICINAS de leitura

Workshop para a construção de livros infantis Realizou-se um workshop destinado a elementos das equipas educativas da Creche Bairro Quinta das Laranjeiras, do CAI Vale Fundão 1 e do CAI Dr. José Domingos Barreiro com o objetivo de aprender diferentes técnicas/métodos de construção de livros e, simultaneamente, despertar os participantes para a mais-valia desta atividade na interação adulto/criança.

AMBICIONÁMOS DESENVOLVER VÍNCULOS AFETIVOS, SEGUROS E POSITIVOS ENTRE PAIS E FILHOS, BEM COMO O GOSTO PELA LEITURA NO CONTEXTO FAMÍLIA”

Implementação da biblioteca itinerante e dinamização das bibliotecas nos estabelecimentos Possibilitando às crianças/famílias que frequentam os estabelecimentos o usufruto de uma maior diversidade de livros, retomou-se a dinâmica de os requisitar semanalmente nas bibliotecas dos estabelecimentos, podendo levá-los para casa. A biblioteca itinerante foi organizada, estruturada e dinamizada em função dos seus utilizadores. Os livros requisitados foram usados preferencialmente pelos educadores de infância, auxiliares de educação e amas, procurando responder aos gostos e preferências das crianças em geral, mas também ir ao encontro das necessidades e interesses de cada criança, de acordo com a sua idade e o seu nível de desenvolvimento.

Implementação do projeto “Leitura a Par” Com este projeto, realizado em parceria com a Associação A PAR, ambicionámos desenvolver vínculos afetivos, seguros e positivos entre pais e filhos, envolvendo as famílias na satisfação das necessidades das crianças em cada etapa do desenvolvimento, bem como o gosto pela leitura no contexto família. Este projeto operacionalizou-se com a constituição de um grupo de crianças e famílias de dois estabelecimentos (CAI Vale Fundão 1 e CAI Dr. José Domingos Barreiro). Realizaram-se 22 sessões semanais entre março e julho de 2013.

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| INFÂNCIA |

FORMAÇÃO às amas das creches familiares Vale Fundão 1 e Dr. José Domingos Barreiro

EXPOSIÇÃO de livros no estabelecimento OFICINA de livros com famílias

imagens que retratam objetos do quotidiano, animais, pessoas, emoções e sítios. Depois de lançados os dados, há que criar/imaginar histórias, proporcionando momentos de lazer em interação.

OS MOMENTOS DA CONSTRUÇÃO DE LIVROS PELAS FAMÍLIAS E COMUNIDADE FORAM MOMENTOS DE PARTICIPAÇÃO, APRENDIZAGEM, PARTILHA E COOPERAÇÃO” Construção de histórias com jogo de dados “Três dados, três histórias / Cinco dados, cinco histórias” De acordo com a faixa etária das crianças, foram realizadas oficinas com os pais/comunidade para a elaboração da prenda do Dia Mundial da Criança, onde se construiu um jogo com dados. Este jogo tem como objetivo criar histórias a partir de 92

A “Hora do conto” Quem conta? As crianças, os pais, os avós, os elementos da comunidade, as amas, as educadoras de infância, as auxiliares de educação… Utilizaram-se todas as formas de expressão que se conseguiram imaginar e todos os materiais que se consideraram adequados… especialmente os recicláveis. Foi dar asas à imaginação! Oficinas de leitura / Elaboração de histórias com as crianças Com estes momentos pretendemos proporcionar às crianças a possibilidade de dar um final à história, de continuar uma história já iniciada ou simplesmente de completar parte de um texto que está em falta. A criança pode ainda introduzir um novo herói ou fazer as personagens viajar no tempo. Os registos destas novas histórias constituíram um novo e importante documento para o acervo da biblioteca.


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Formação às amas Em conjunto, as duas creches familiares da Direção Oriental realizaram uma dinâmica de formação destinada às amas, com o objetivo de capacitar e desenvolver competências por forma a: Utilizar com mais frequência o livro na sua ação pedagógica. Adequar os livros que utilizam à faixa etária das crianças do seu grupo. Utilizar os livros de forma lúdica e agradável junto das crianças e suas famílias. Criar histórias de forma estruturada. Usar diversas técnicas pedagógicas para promover hábitos de leitura nas crianças e famílias. Nesta formação foram privilegiados métodos ativos, que reforçaram o envolvimento das amas e a autorreflexão sobre o seu processo de aprendizagem-ação, a partir da partilha de pontos de vista e de experiências individuais.

Conclusão Constatámos que, após a realização do projeto Convite à Leitura Partilhada, vimos reforçados os vínculos entre crianças, famílias e equipas, através do envolvimento e partilha de saberes e práticas, num clima de participação ativa em que a literatura infantil foi o motor. Verificámos que, de alguma forma, os objetivos traçados contribuíram para sensibilizar, promover e divulgar a importância do livro na primeira infância. A creche configura-se assim como um espaço excecional de aprendizagens estruturantes, significativas e decisivas no desenvolvimento de competências e na construção de cidadãos comprometidos.

BIBLIOGRAFIA ABRAMOVICH, F. (1997). Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. São Paulo: Scipione.

Oficinas de livros com as famílias Os momentos da construção de livros pelas famílias e comunidade foram momentos de participação, aprendizagem, partilha e cooperação. Com esta ação pretendemos: maior envolvimento das famílias no processo educativo das crianças; promover competências, nomeadamente na escolha de livros para os seus filhos; combater o consumismo através da reutilização de materiais na construção de livros; bem como desenvolver a autoestima das famílias no processo de construção do livro (prenda para o filho), salientando ainda que este livro poderia ser utilizado como objeto de interações positivas entre pais e filhos.

AFONSO, Maria Rosa (2007). Guião de Educação para a Cidadania em contexto escolar… Boas Práticas. Direção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, Ministério da Educação. Setembro de 2007. p. 15. CASTELEIRO, J.M. (2001). Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea: Academia das Ciências de Lisboa. Lisboa: Editorial Verbo. COELHO, N.M. (2000). “A literatura infantil! Abertura para a formação de uma nova mentalidade”. In Literatura Infantil: teoria-análise-didática. São Paulo: Moderna. DURAND, Gilbert (1997). As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes. LEITE, Carlinda; RODRIGUES, Maria de Lurdes (2001). Jogos e Contos numa Educação para a Cidadania. Instituto de Inovação Educacional, Ministério da Educação.

Exposições Como forma de valorizar a participação e o envolvimento das famílias no processo educativo, realizaram-se exposições dos livros construídos nos estabelecimentos. Nestas exposições foram partilhadas ideias e técnicas e reveladas habilidades e competências.

OLIVEIRA, C. (2005). Hábitos de Leitura e Sucesso Escolar. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Tecnológicas; Sociologia da Educação. OLIVEIRA, N.A. (2012). A importância do saber contar histórias na educação infantil. PALO, M.J.; OLIVEIRA, M.R. (1998). Literatura Infantil: Voz de Criança. São Paulo: Ática. Recomendação n.º 1/2012 – Recomendação sobre Educação para a Cidadania – Conselho Nacional de Educação – Ministério de Educação e Ciência.

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A NATUREZA: GOSTAR PARA MIMAR… Texto de Maria João Melo Gomes1, com a participação de Sónia Salgado2 [1. DIRETORA DA CRECHE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO; 2. EDUCADORA DE INFÂNCIA_SCML]

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Por acreditar que a educação ambiental contribui para a construção de valores sociais, conhecimentos e competências desde a primeira infância, a equipa da Creche Nossa Senhora da Conceição concebeu e montou uma exposição dedicada à natureza. Destinada às crianças, conjugou elementos da natureza, sons e imagens para criar um ambiente mágico. Quando eu nasci nunca tinha brincado com pedras, nunca tinha mexido na terra, nem feito túneis na areia. As minhas mãos nunca tinham tocado em nada, só uma na outra. Quando eu nasci nem sonhava que havia céu e que o céu mudava de cor e que as nuvens eram tão bonitas. Quando eu nasci era tudo novo. Tudo por estrear. Isabel Martins (2007)

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uando pensamos nos novos paradigmas da educação, tentamos compreender e refletir sobre qual deverá ser o papel do educador na construção de um currículo centrado num desenvolvimento sustentável. “O desenvolvimento sustentável, mais do que um conceito, é hoje uma ideia mobilizadora à escala mundial, descobrindo um novo ‘cidadão ambiental’ (GUTIÉRREZ, 1994). Também a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) aposta na sustentabilidade como um valor para a vida. Segundo o Departamento de Qualidade e Inovação da instituição, “a SCML definiu como rumo a sustentabilidade e como valores a responsabilidade social e ambiental” (2012). Satisfazer as nossas necessidades sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas deverá ser um objetivo pre-

sente em todas as nossas ações. Só assim será possível atingir um nível satisfatório de desenvolvimento. É nosso dever transmitir às gerações que se seguem modos de estar e agir que respeitem profundamente a natureza. A equipa da Creche Nossa Senhora da Conceição, consciente da necessidade de coerência com os valores da instituição a que pertence e porque acredita que só através de estratégias ecologicamente corretas e da adoção de ações de sustentabilidade poderemos garantir, a médio e longo prazo, um planeta em boas condições, tomou como princípio orientador da sua ação a sustentabilidade. Desta forma, a equipa tentou adotar a ecopedagogia (GUTIÉRREZ, 1996:26) como uma abordagem curricular que, através de ações integradas, fosse capaz de criar as bases para gerar nas crianças a consciência da responsabilidade de se tornarem cidadãos exemplares no respeito pelo ambiente. Acreditamos que sem uma pedagogia de desenvolvimento sustentável de nada servirão grandes projetos de preservação do meio ambiente. A educação ambiental constrói valores sociais, conhecimentos, atitudes e competências, tornando-nos os maiores responsáveis pela conservação do meio ambiente. Ela tem como objetivo “promover a religação do homem com a natureza através da razão e da emoção, é uma educação fundada na ética do cuidado, do respeito pela diversidade cultural e pela biodiversidade” (TIRIBA, 2005). 95


| ECOPEDAGOGIA |

Também Thomas Berry Brazelton, famoso pediatra norte-americano e autor de inúmeras publicações, defende a importância fulcral da formação precoce para a cidadania. “Prover as necessidades reais dos bebés e das crianças e das famílias é o primeiro passo para a formação de cidadãos do mundo que possam alargar suficientemente o seu sentido de humanidade […], um sentido de humanidade suficientemente alargado para englobar todos os outros […]. Sem esta perspetiva, não poderemos iniciar o esforço de planear a longo prazo a redução do risco de uma catástrofe biológica, ecológica e nuclear, nos próximos 50 anos” (BRAZELTON, 2003).

Há que “desemparedar” as crianças, como nos diz Tiriba: “Não basta contar histórias… é preciso colocar as crianças em contacto direto com a natureza. As crianças não podem aprender a amar e preservar uma coisa que não conhecem.” Quanto mais cedo tivermos contacto com a natureza, mais dependentes nos vamos tornando dela e das sensações que nos oferece. Se colocarmos a semente da futura nostalgia, talvez se consiga criar a necessidade do conforto do meio ambiente da nossa infância. “As crianças aprendem fazendo… O seu envolvimento ativo com adultos atentos e responsivos e com materiais interessantes e desafiantes proporciona-lhes

A EQUIPA TENTOU ADOTAR A ECOPEDAGOGIA COMO UMA ABORDAGEM CURRICULAR QUE, ATRAVÉS DE AÇÕES INTEGRADAS, FOSSE CAPAZ DE CRIAR AS BASES PARA GERAR NAS CRIANÇAS A CONSCIÊNCIA DA RESPONSABILIDADE DE SE TORNAREM CIDADÃOS EXEMPLARES NO RESPEITO PELO AMBIENTE RESPEITAR, VALORIZAR, PROTEGER, CUIDAR… Mas como despertar uma consciência ecológica em crianças pequenas? Pensamos que, acima de tudo, é necessário um olhar de respeito e admiração pelo que nos rodeia. É preciso estabelecer de novo uma ligação frequente e profunda com os elementos naturais. Uma crença que vai ao encontro dos textos de diversos autores do campo da psicologia ambiental. Por exemplo, Profice afirma que “as crianças apresentam uma tendência à aproximação e familiaridade com os elementos da natureza, uma afeição pelas coisas vivas, denominada biofilia; na medida em que são afastadas dos ambientes naturais, esta afeição pode não se desenvolver, gerando, ao contrário, sentimentos de desapego e indiferença perante o mundo natural” (2010). 96

uma base de experiência para interpretarem o mundo…” (POST e HOHMAN, 2003). Acreditamos que, para haver sustentabilidade ambiental que afete as crianças a longo prazo e em idades tão precoces, há que investir no gosto e na sensibilidade pela natureza. Gostar, respeitar, valorizar, proteger e cuidar têm sido os princípios transmitidos às crianças da Creche Nossa Senhora da Conceição através de práticas concretas e significativas. Sabemos que a vivência destas experiências produz mudanças ativas nos padrões de comportamento nas crianças, tal como nos adultos. O conhecimento das caraterísticas das crianças na primeira infância tem-nos permitido sistematizar propostas pedagógicas que incidam essencialmente no desenvolvimento sensorial. É através dos sentidos que a criança capta o


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mundo. São estas interações sensoriais e motoras que lhe permitem descobrir, experimentar e sentir. Assim, junto das famílias, amigos e comunidade envolvente, unidos num projeto que não tem data nem hora marcada – mas que evidencia comportamentos e ações que queremos para todos os dias das nossas vidas –, acreditamos firmemente que estas gerações de crianças marcarão a viragem. Acreditamos nos benefícios de transformar “as relações e interações com a natureza, rejeitando propostas curriculares que propõem um conhecimento intelectual, descritivo, que fazem da natureza um simples objeto de estudo” (FERRAZ e USARI, 1999). Se conhecermos, gostamos, cuidamos e mimamos. Muito do que a natureza nos oferece pode constituir um estímulo adequado às caraterísticas, necessidades, interesses e potencialidades

das crianças neste período sensório-motor. Cheirar, pôr na boca, mexer, observar, partir, conhecer, são gestos que despertam os sentidos, que provocam sensações e perceções. É com esta premissa que vamos “desemparedando” as crianças e, em pequenos grupos, partimos à descoberta do mundo que nos rodeia – os outros, a rua, os comerciantes, o museu, a igreja, os jardins.

APRENDIZAGEM: ver para conhecer o mundo

“QUANDO EU NASCI, AS MINHAS MÃOS NUNCA TINHAM TOCADO EM NADA, SÓ UMA NA OUTRA” Foi então que surgiu a vontade de realizar, pela primeira vez, uma exposição de impacte visual, totalmente dedicada à primeira infância, usando imagens da natureza e implicando todos os parceiros – equipa, famílias, todos os estabeleci97


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mentos de infância da SCML e comunidade envolvente. Tínhamos como objetivo incutir o gosto e a sensibilidade pela natureza, provocando a inteligência naturalista (GARDENER). “Mime esta ação e traga uma imagem da natureza que tenha significado para si”, foi o desafio e o convite que fizemos. Não imaginávamos onde esta viagem nos levaria! Tivemos o mundo na mão, com toda a sua beleza e esplendor: as cores, as formas, os sons, a luz. Sabíamos que tudo tinha de ser preparado com cuidado, ao pormenor, com coerência face às ideias que defendíamos e aos objetivos que vínhamos traçando. Desde logo, foram pensadas estratégias para que os materiais utilizados respeitassem os

pelo que recorremos a candeeiros e projetores, estrategicamente colocados, de forma a proporcionar uma iluminação suave. As imagens que solicitámos teriam de ser reais, dado que eram destinadas a bebés e crianças pequenas. Teriam de ser colocadas à sua escala – para aqueles que apenas gatinhavam, para os que já se colocavam de pé com apoio e para os mais crescidos, com outro grau de autonomia na locomoção. Para tal, além das paredes, usámos o chão e uma mesa, conseguindo assim três perspetivas. Optámos por forrar as paredes de pano cru (com um tom neutro e suave ao tato). As fotografias foram aí colocadas sobre cartão canelado (económico e reciclável), formando as-

MAS COMO DESPERTAR UMA CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA EM CRIANÇAS PEQUENAS? PENSAMOS QUE, ACIMA DE TUDO, É NECESSÁRIO UM OLHAR DE RESPEITO E ADMIRAÇÃO PELO QUE NOS RODEIA

BRINCAR com os elementos da natureza

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ideais da sustentabilidade – materiais recicláveis, pouco dispendiosos, acessíveis à colaboração de todos. O espaço não tem apenas uma dimensão física, ele comunica uma linguagem, valores e perceções, obedece a uma estética, em suma, atua sobre todos os sentidos. Com o espaço também estabelecemos relações e experimentamos emoções. “As imagens pregadas nas paredes de creches e pré-escolas não são neutras, contêm um discurso, contam histórias […], modulam os nossos modos de ver” (OSTETTO, 2007). Impunha-se assim um espaço acolhedor, limpo e agradável, sem recurso à sobreiluminação fluorescente do teto. Os bebés são particularmente sensíveis à luz. Ao mesmo tempo que precisam de luz para ver, também se sentem mais confortáveis em espaços iluminados por luz suave e natural. O espaço onde foi organizada a exposição não conseguia oferecer uma iluminação natural,


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DESCOBRIR o uso dos sentidos no contacto com os elementos

MUITO DO QUE A NATUREZA NOS OFERECE PODE CONSTITUIR UM ESTÍMULO ADEQUADO ÀS CARATERÍSTICAS, NECESSIDADES, INTERESSES E POTENCIALIDADES DAS CRIANÇAS NESTE PERÍODO SENSÓRIO-MOTOR sim uma moldura. Foram organizadas por tons, com um dégradé agradável (segundo o conselho de um pai, artista plástico), na tentativa de construir uma composição harmoniosa. Tentámos criar um ambiente calmo, propício à descoberta e à imaginação. No ambiente criado, ouvíamos a água a correr, o tilintar das conchas, o vento nas folhas. Víamos as estrelas a brilhar e, ao fundo, ouvíamos uma música suave (Chopin). Creio que – e de acordo com as palavras de muitos colegas que nos visitaram – conseguimos criar um ambiente mágico. O espaço que criámos promoveu a partilha de experiências entre os bebés/crianças e os

adultos. Não ganhará tudo mais sentido quando temos alguém com quem partilhar as experiências de cada momento? Como escreve Gabriela Portugal, “a organização do espaço pode facilitar aprendizagens, criar desafios, provocar a curiosidade, potenciar autonomia e relações interpessoais positivas”. SIGNIFICADOS Uma avaliação rigorosa é um aspeto central no planeamento de qualquer projeto ou atividade. Através dela saberemos qual o impacte das ações delineadas. Importa avaliar os resultados, mas também todo o processo. Estamos a agir de 99


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TESTEMUNHO da Simone, mãe da Lhanna

TESTEMUNHO da Sónia, mãe da Leonor

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acordo com o que sabemos e aprendemos? Estamos a ser coerentes? Foi esta atitude de permanente interrogação/reflexão/planeamento que permitiu projetar esta exposição com mais rigor. Rentabilizaram-se saberes, experiências e práticas, aproveitando aptidões e habilidades, quer na equipa quer nas famílias. Descobriram-se e redescobriram-se talentos, que se traduziram na criação de um espaço onde tentámos que a estética e o belo estivessem presentes em cada recanto. Tudo isto só foi possível porque pudemos contar com a colaboração de inúmeras pessoas, de dentro e fora da Creche Nossa Senhora da Conceição. Aquelas que se empenharam na montagem da exposição, que nos trouxeram uma ima-


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gem com significado, carregada de sentimentos e emoções; aquelas que connosco foram “estreando” a exposição.

Melhor do que qualquer explicação são os testemunhos deixados no livro da exposição. Aqui ficam alguns.

TESTEMUNHO do Guilherme

BIBLIOGRAFIA BRAZELTON, T. Berry; GREENSPAN Stanley, I. – A Criança e o Seu Mundo. 3.ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 2003. CARDOSO, M.F.; SILVA, M.F.; BASTOS, P. – A Educação pela Arte. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional, 2002. CULTIVAR BIODIVERSIDADE. Voltando à natureza com as crianças [online]. 2012. Disponível em cultivarbiodiversidade.blogspot.com. FERRAZ, Maria Heloísa; FUSARI, Maria F. de Rezende – Metodologia do Ensino de Arte. São Paulo: Cortez, 2002. GUIMARÃES, Daniela – Educação de Corpo Inteiro. 2008. Disponível em http://www.redebrasil.tv.br/salto/. PORTUGAL, Gabriela – Finalidades e práticas educativas em creche: das relações, actividades e organização dos espaços ao currículo na creche. Porto: Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade. POST, Jacalyn; HOHMAN, Mary – Educação de Bebés em Infantários – Cuidados e primeiras aprendizagens. 3.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. OSTETTO, Luciana Esmeralda – Encontros e encantamentos na educação infantil. São Paulo (Brasil): Papirus Editora, 2007. READ, Herbert – A Educação pela Arte. São Paulo (Brasil): Martins Fontes, 1997. TIRIBA, Léa – “Educar e cuidar: buscando a teoria para compreender discursos e práticas”. In KRAMER, Sonia. Profissionais de educação infantil – Formação. São Paulo (Brasil): Ed. Átila, 2005.

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Ricardo Vieira

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TESOUROS DA

AMEIXOEIRA o património na promoção do desenvolvimento local Texto de Fátima Freitas e Sónia Gaspar [TÉCNICAS DO PROJETO TESOUROS DA AMEIXOEIRA]

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Na Ameixoeira, o património foi o ponto de partida para construir um novo olhar sobre o território e a comunidade. Conhecer o vizinho, descobrir a história local e recuperar memórias funcionam como ferramentas de reforço da coesão social e de desenvolvimento local. O PONTO DE PARTIDA m 2009, o n.º 22 da revista Cidade Solidária publicava um artigo sobre um projeto que estava a dar os seus primeiros passos na Ameixoeira. Esse artigo, intitulado “Tesouros escondidos na Ameixoeira – A inovação social na transformação da imagem de um território”, identificava o território e a problemática de partida para o projeto, que retomamos agora. A Ameixoeira, freguesia situada no limite norte da cidade de Lisboa, é caraterizada por uma grande heterogeneidade social e urbanística, fruto de uma construção desregrada e do crescimento da cidade que foram redefinindo e reescrevendo a identidade deste território. Marcadamente rural e inscrita nas “freguesias do Termo”1 de Lisboa, a Ameixoeira foi, até inícios do século xx, lugar de quintas agríco-

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las e destino de veraneio das famílias lisboetas abastadas. Com o acentuar do êxodo rural para territórios mais próximos das grandes cidades (Lisboa e Porto) durante as décadas de cinquenta, sessenta e setenta do século xx, os terrenos baldios pertencentes a explorações agrícolas entretanto abandonadas tornaram-se o recurso possível para abrigar esta população do interior rural2. Por consequência, aqui foram crescendo bairros clandestinos que marcaram e transformaram irreversivelmente a paisagem e imagem deste território periférico relativamente à malha central da cidade. Noutra fase, o crescimento urbano da própria capital foi-se impondo e dilatando. Nos anos 1970 e 1980 começaram a aparecer diversos empreendimentos, agora habitados por uma nova classe média e média-alta. Na última década a Ameixoeira sofreu enormes transformações sociais. No ano 2000 foi abrangida pelo Programa Especial de Realojamento (PER). Foram construídos 1067 fogos e realojadas cerca de 3300 pessoas – umas já residentes na freguesia e outras provenientes de zonas diferentes da cidade. Esta realidade vincou a heterogeneidade sociourbanística já existente: população multiétnica com diferentes origens, percursos e experiências de vida, sem rotinas de convívio e sujeitas a mobilidades forçadas; deficientes acessibilidades a estes novos bairros, que dificultam o contacto e a ligação com outras zonas da cidade; reduzida oferta de comércio e serviços, que contribui para a desqualificação social. Este território foi acolhendo todas estas exigências e transformações, muitas delas sem os devidos acompanhamentos institucionais e sem qualquer avaliação sobre os impactes ocorridos nas paisagens físicas e vivenciais. Hoje coexistem fragmentos das antigas quintas, vilas e

1. O Termo de Lisboa correspondia à coroa Norte e Ocidental de Lisboa e foi variando os seus limites e fronteiras ao longo de cinco séculos de história. O Termo de Lisboa foi extinto em 11 de setembro de 1852, e a área a incluir no concelho de Lisboa foi ampliada em 1886. 2. Uma população que vira os seus meios de sustento comprometidos pela transformação dos meios de produção e progressiva industrialização do país e percebera no crescimento da Lisboa do Estado Novo uma “solução” alternativa à consequente debilitação socioeconómica. A partir dos anos 1930, Lisboa era planeada e construída como capital do Império, e as obras da cidade atraíam e empregavam largos contingentes de mão-de-obra desempregada dos campos.

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| INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA |

pátios, agora degradados, os bairros de génese ilegal, os prédios de classe média e alta, os condomínios fechados e as zonas de realojamento social. A Ameixoeira do pós-realojamento ficou marcada por um ambiente social de grande conflitualidade e tensão interétnica, um baixo sentido de pertença ao território e um sentimento generalizado de insegurança. Porém, existe uma nova e recente perspetiva. Todas estas “variáveis problemáticas” foram relidas e (re)entendidas a uma outra escala, fruto de um novo olhar. A paisagem, quer física quer vivencial, passou a ser pensada como o grande desafio ao desenvolvimento local: conhecer e explorar a heterogeneidade cultural, ler e aprofundar a história local, resgatar memórias e es-

O DESAFIO: (RE)OLHAR A AMEIXOEIRA E surpreendeu. Entre o lixo, pedras e ervas secas dos terrenos baldios, só usados pelo senhor Abel para pastorear as suas ovelhas, os fósseis foram timidamente emergindo para se tornarem atores desta história. Num primeiro momento houve necessidade de identificar o interesse geológico destas rochas. A validação científica chegou através do Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que informou tratar-se de fósseis do Miocénico inferior, datados de um período situado entre 18 e 15 milhões de anos atrás, revelando que a Ameixoeira tinha sido um grande mar tropical. A equipa do Centro de Desenvolvimento Comunitário da Ameixoeira da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) acreditou que esta valiosa descoberta poderia ser uma das chaves para problemas tão prementes como a conflitualidade entre antigos e novos moradores e a falta de sentido de pertença. Neste contexto, mais que uma ação de promoção e valorização do

Ricardo Vieira

A AMEIXOEIRA, FREGUESIA SITUADA NO LIMITE NORTE DA CIDADE DE LISBOA, É CARATERIZADA POR UMA GRANDE HETEROGENEIDADE SOCIAL E URBANÍSTICA”

cutar as estórias que podem ser contadas, levou a querer descobrir o que mais a terra esconde. E que ainda nos pode surpreender.

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património local, as iniciativas que começaram a desenvolver-se a partir dos fósseis cumpriam um objetivo maior: por um lado, mostrar que a Ameixoeira também é detentora de “boas coisas”, que possui um capital patrimonial de relevo (de interesse científico) e, por outro, consciencializar para a existência de outros habitantes, anteriores aos do tempo presente: os animais marinhos que fossilizaram e aqui encontraram morada permanente. Assim nasceu o primeiro grande desafio lançado por esta equipa da SCML à comunidade local. Percebeu-se também que qualquer projeto a criar, para além de ser desenhado para a comunidade, deveria ser construído pela comunidade. Várias pessoas e entidades da Ameixoeira foram desafiadas a constituir um grupo que trabalhasse na identificação, valorização e promoção do património local. A partir daqui, os objetivos, de âmbito

social, multiplicaram-se: contribuir para a consolidação de uma marca territorial e para a mudança da imagem interna e externa; fortalecer os laços de vizinhança através do conhecimento e respeito pelas várias culturas coabitantes; aumentar a autoestima da comunidade através do reforço da identidade coletiva; e criar condições para a emergência de um sentido de comunidade, mobilizador dos seus ativos mais preciosos: as pessoas. Foi sobre estas bases orientadoras e fundadoras que nasceu o projeto Tesouros da Ameixoeira.

NA PRIMEIRA VISITA guiada à Ameixoeira, o professor Mário Cachão aponta vestígios fósseis encontrados em ombreiras de portas

UMA AMEIXOEIRA DESVENDADA EM TRÊS TEMPOS A primeira grande atividade promovida pelo Tesouros da Ameixoeira serviu simultaneamente para lançar o projeto, em julho de 2009, e para captar as atenções e interesses por parte da comunidade local. 105


| INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA |

CARTAZ DA EXPOSIÇÃO “Ameixoeira, um território a 3 tempos”

HOJE COEXISTEM FRAGMENTOS DAS ANTIGAS QUINTAS, VILAS E PÁTIOS, AGORA DEGRADADOS, OS BAIRROS DE GÉNESE ILEGAL, OS PRÉDIOS DE CLASSE MÉDIA E ALTA, OS CONDOMÍNIOS FECHADOS E AS ZONAS DE REALOJAMENTO SOCIAL” Contudo, apesar da indiscutível pertinência dos fósseis (que lhes valeu a representatividade de “símbolos do território”), eles foram entendidos pelo novo projeto como um dos possíveis recursos – entre outros – a valorizar e a usar estrategicamente para atingir os objetivos subjacentes a um projeto de intervenção para o desenvolvimento local. Com esta intenção, montou-se, desde o início, uma larga rede de parceiros, internos e externos ao território: a Junta de Freguesia da Ameixoeira; o Departamento de Geologia da FCUL, o Centro de Geologia da Universidade de Lisboa, através do professor Mário Cachão; a ERA – Arqueologia; a Associação Salamandra Dourada; a Ative, Património Vivo; o Agrupamento de Escolas do

Alto do Lumiar; a Câmara Municipal de Lisboa/ Divisão de Educação e Sensibilização Ambiental; o Programa para a Inclusão e Cidadania; entre outros. Neste processo de construção em parceria, muitos foram os contributos de moradores interessados, que acrescentaram ao grupo de trabalho as suas preocupações pessoais, experiências académicas e profissionais. Apoiado pela inúmera e valiosa literatura já editada sobre a relação património/desenvolvimento das comunidades, este grupo de trabalho acredita, tal como Hugues de Varine3, que o património pode ser a base estruturante de qualquer proposta de desenvolvimento local. Neste sentido, valorizar as potencialidades endógenas de um determinado território implica promover a sua atratividade e, simultaneamente, impulsionar o respetivo desenvolvimento. Os relatos de experiências de desenvolvimento local com base na promoção do património e na valorização de territórios deprimidos são já inúmeros por todo o mundo, em especial na América Latina. Alguns projetos de museologia de comunidade surgiram como resposta de diferentes comunidades aos problemas sociais e económicos e, em muitos casos, os ganhos para a população foram maiores do que os esperados, nomeadamente com a promoção de empregos locais, o aumento da coesão social e a visibilidade positiva de territórios estigmatizados, tornando-se polos de atração turística. São os casos do Centro INAH do estado de Oaxaca, no Sul do México, do Museu Treze de Maio, em Rio Grande do Sul ou do Museu de Favela e do Museu de Maré, ambos no Rio de Janeiro, Brasil. Este último foi especialmente inspirador para o projeto Tesouros da Ameixoeira. A convite do projeto Tesouros da Ameixoeira, a direção do Museu da Maré visitou o território em setembro de 2009 e partilhou o êxito da sua experiência, relatando como a intervenção na favela da Maré4 fez mudar a imagem do território. Assente numa metodologia de participação comunitária, aquele projeto partiu

3. VARINE, Hugues de – As Raízes do Futuro: O Patrimônio ao Serviço do Desenvolvimento Local. Porto Alegre: Editora Medianiz, 2012, p. 35. 4. O Museu da Maré nasceu do desejo da comunidade desta favela do Rio de Janeiro de preservar a memória e de afirmar a sua identidade. Mais informações em www.museudamare.org.br.

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| SOCIAL |

Os fósseis, que inicialmente apareceram como elementos estranhos à comunidade, são hoje tidos como um ex-líbris local e cada vez mais pessoas reconhecem estes pequenos vizinhos.

das memórias locais e da história da construção da favela para montar um museu no qual as pessoas figuram como protagonistas. O interesse pelo conhecimento do lugar onde vivem foi o mote para a valorização das dinâmicas, humanas e territoriais, inscritas nas vivências da favela. A partir deste contacto com a direção do Museu da Maré reforçou-se a convicção de que a Ameixoeira reunia as condições de partida para a conceção de um projeto semelhante – um projeto que integrasse o envolvimento e a valorização das especificidades do território e da comunidade local. Inspirados pela metodologia usada no Museu da Maré, o grupo de trabalho Tesouros da Ameixoeira reconheceu potencialidades patrimoniais que concorreram para o desenvolvimento das atividades, que foram estruturadas em torno de três grandes tempos. O primeiro é o “tempo do mar”, que remonta à idade do Miocénico, há 18-15 milhões de anos, quando a Ameixoeira era um mar tropical. Neste tempo promovemos o património geológico, mas também alertamos para um novo olhar sobre o território. Outro grande período que marca profundamente a história da Ameixoeira é o “tempo rural”, que se reporta à memória agrícola desta terra “saloia”5, de gentes dedicadas ao amanho dos campos. Famosas eram as quintas e os produtos desta zona, tal como o vinho, os olivais, produtos artesanais, para além das tradicionais festas e romarias. Finalmente, o “tempo urbano” agrega a multiculturalidade do presente. No contexto deste “mapa dos tempos” estruturaram-se diferentes propostas de trabalho con-

PORMENOR de fóssil no afloramento localizado nas traseiras da Junta de Freguesia da Ameixoeira

A descoberta de fósseis de mamíferos marinhos nas unidades sedimentares da região da Ameixoeira, no caso concreto de um fragmento de uma costela de sirénio, eleva o estatuto do valor do património geológico e paleontológico desta região. Este achado veio confirmar interpretações científicas que associam ao Miocénico inferior a existência nesta região de uma baía marinha, de pequena profundidade e águas quentes, similar às que ocorrem hoje em dia nos golfos da Guiné (Bijagós) e do México (Florida). creto: atividades ao nível da educação patrimonial, com diversas oficinas temáticas (geologia, arqueologia, azulejaria, entre outras), junto das escolas e da população em geral; promoção do diálogo intercultural com a realização do festival comunitário “Caldeirão”; criação de um roteiro local com a identificação dos pontos culturais de interesse; produção e montagem de uma exposição sobre o território; criação da biblioteca “Livros Vivos”, que dá voz à população. Importa sublinhar que esta última atividade tem despertado peculiar interesse, dentro da comunidade e fora dela. Um estudo recente, realizado na Ameixoeira no âmbito de uma pós-graduação em cidades sustentáveis6, confirmou

5. Durante séculos esta ampla área que abrangia seis concelhos da Grande Lisboa (Lisboa, Oeiras, Cascais, Loures, Sintra e Mafra) e respetivas freguesias de limite (no caso de Lisboa, as freguesias rurais da Ameixoeira, Benfica, Carnide, Charneca, Lumiar e Olivais) fazia parte do sistema abastecedor da capital. 6. BISMARK, Ana; FERNANDES, Olímpio; MARQUES, Marlene; SERRA, Graça – Os Bairros do Vale da Ameixoeira. Auditoria Urbana. Lisboa: Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2011 [tese de pós-graduação].

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Ricardo Vieira

| INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA |

O GRUPO DE TRABALHO TESOUROS DA AMEIXOEIRA RECONHECEU POTENCIALIDADES PATRIMONIAIS QUE CONCORRERAM PARA O DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES, QUE SE ESTRUTURARAM EM TORNO DE TRÊS GRANDES TEMPOS: O DO MAR, O RURAL E O URBANO”

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o capital humano, ou seja, as pessoas como a grande mais-valia do território. O projeto Tesouros da Ameixoeira procura integrar esse capital, entendendo-o (e capacitando-o) como recurso fundamental para (re)escrever a história da Ameixoeira. Com este objetivo, foram identificadas pessoas com ligação à Ameixoeira – seja porque aqui vivem e trabalham ou porque um dia o caminho as trouxe até este lugar –, cuja diversidade de histórias permite abordar a Ameixoeira de diferentes perspetivas e que corporizam criativamente os nossos “Livros Vivos”. Todo este conjunto de iniciativas, que se deseja cada vez mais fortalecido e diversificado, pretende contribuir para valorizar o património humano da Ameixoeira, sensibilizar e educar para os valores da diversidade e da coesão social, assim como para potenciar a autoestima da comunidade através do reforço do sentimento de pertença.


| SOCIAL |

Na biblioteca “Livros Vivos” os livros são pessoas. Para os ler, basta conversar com eles. É possível requisitar qualquer um dos 13 livros disponíveis para leitura, consultando o catálogo ou escrevendo-nos para tesouros.ameixoeira@gmail.com.

O projeto Tesouros da Ameixoeira procura ainda promover espaços de reflexão e debate em torno de temáticas como o desenvolvimento local e a sua relação com o património. Num destes momentos, Hugues de Varine8, Rogério Roque Amaro9 e Luís Raposo10 salientaram a importância que um projeto desta natureza assume num território como a Ameixoeira. UM NOVO TEMPO SURGE Tem-se verificado um efetivo e crescente interesse e entusiasmo por parte da população face a este projeto, porque se percebe envolvida e parceira no resgate de estórias para a construção da história da Ameixoeira. Acredita-se que o Tesouros da Ameixoeira possa contribuir estrategicamente para o desenvolvimento local, a curto e médio prazo. Um contributo que implica reconstruir criativamente a comunidade. Nesta reconstrução – que se deseja cada vez mais participada – situamos os princípios fundadores: a valorização das diferentes formas de conhecimento (científicas e não científicas) e de experiências e capacitações (individuais e coletivas); a participação cidadã, sensível à diferença

OS FÓSSEIS FORAM ENTENDIDOS COMO UM DOS POSSÍVEIS RECURSOS A VALORIZAR E A USAR ESTRATEGICAMENTE PARA ATINGIR OS OBJETIVOS SUBJACENTES A UM PROJETO DE INTERVENÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL”7 mas criativa na proximidade; a rede de parcerias solidárias em empenhos e vontades. Vivemos um tempo que também nos faz acreditar e investir estrategicamente neste projeto fundamentando-o como âncora identitária de uma comunidade. Assim, neste mapa, inscrevemos um novo tempo: o da Ameixoeira ComUnidade.

BIBLIOGRAFIA BISMARK, Ana; FERNANDES, Olímpio; MARQUES, Marlene; SERRA, Graça – Os Bairros do Vale da Ameixoeira. Auditoria Urbana. Lisboa: Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2011 [tese de pós-graduação].

7. ESPÍRITO SANTO, Eugénio do – Ameixoeira – Um Núcleo Histórico. Lisboa: Edição de autor. 1997. 8. Consultor francês na área de desenvolvimento local. Foi vice-diretor e diretor do Conselho Internacional de Museus (ICOM), fundou o ecomuseu Le Creusot-Montceau e trabalhou no Ministério da Cultura de França, na área de desenvolvimento cultural e de avaliação de políticas culturais. Participa em missões de desenvolvimento cultural, social e económico de comunidades urbanas e rurais um pouco por todo o mundo, incentivando práticas culturais e de consolidação do desenvolvimento local. 9. Presidente da ANIMAR – Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Local. 10. Diretor da comissão portuguesa do ICOM – Conselho Internacional de Museus.

ESPÍRITO SANTO, Eugénio do – Ameixoeira – Um Núcleo Histórico. Lisboa: Edição de autor. 1997. VARINE, Hugues de – As raízes do futuro: O patrimônio ao serviço do desenvolvimento local. Porto Alegre: Editora Medianiz, 2012. UNIVERSIDADE DE LISBOA, Centro de Estudos Geográficos – Ameixoeira, Análise da Situação de Partida. Lisboa: K’CIDADE, 2006. CENTRO DE ESTUDOS E DESENVOLVIMENTO REGIONAL E URBANO – Avaliação Socioeconómica Intercalar – Relatório Final, Lisboa: K’CIDADE, 2010.

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| BIOCIÊNCIAS |

Prémios Santa Casa Neurociências

UMA “ILHA DE

ESPERANÇA”

[ENTREVISTA REALIZADA POR BERNARDO CHAGAS E RITA ROSA DA EQUIPA DA UNIDADE DE INVESTIGAÇÃO & DESENVOLVIMENTO DO DEPARTAMENTO DA QUALIDADE E INOVAÇÃO DA SCML]

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| SAÚDE |

Em 2014, os Prémios Santa Casa Neurociências foram atribuídos às equipas de Moisés Mallo – do Instituto Gulbenkian de Ciência – e de Rodrigo Cunha – do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra. Os investigadores falam sobre os seus projetos, a importância destes prémios e a conjuntura científica nacional.

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riados em 2013, os Prémios Santa Casa Neurociências visam promover o trabalho de investigação científica ou clínica nas áreas multidisciplinares das biociências. Incluem o Prémio Mantero Belard, galardão que tem por objetivo a promoção e dinamização da investigação científica ou clínica no âmbito das doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento, possibilitando novas estratégias no tratamento e restabelecimento das funções neurológicas; e o Prémio Melo e Castro, destinado a distinguir projetos que potenciem a recuperação e tratamento de lesões vertebro-medulares. Cada prémio tem o valor de 200 mil euros. Na segunda edição dos Prémios Santa Casa Neurociências, realizada em 2014, o Prémio Mantero Belard foi atribuído à equipa do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra, liderada por Rodrigo Cunha, pela investigação que tem vindo a desenvolver com o objetivo de estabelecer uma nova terapêutica baseada na cafeína para a redução dos défices de memória na doença de Alzheimer. Já o Prémio Melo e Castro foi entregue à equipa de Moisés Mallo do Instituto Gulbenkian de Ciência, responsável pelo projeto que visa o desenvolvimento de novos substratos celulares para terapias de regeneração espinal. Em entrevista à Cidade Solidária, os investigadores responsáveis explicam os objetivos dos projetos premiados e olham para o panorama da investigação no domínio das neurociências.

Quais os avanços que os Prémios Santa Casa Neurociências irão possibilitar aos vossos projetos de investigação? Moisés Mallo (M.M.) – O projeto premiado tem origem numa ideia que surgiu na sequência de dados obtidos no nosso laboratório no percurso de um outro projeto. A sua realização tinha sido adiada pela ausência de financiamento. Portanto, o Prémio Melo e Castro foi essencial para poder, finalmente, dar andamento às nossas ideias. O nosso objetivo final é obter um tipo de células que melhorem significativamente a capacidade regeneradora do tecido da medula espinal danificado, quando empregadas em terapêuticas baseadas no transplante celular. Uma das abordagens terapêuticas mais promissoras para as lesões meduloespinais consiste no transplante de células que consigam restabelecer as conexões perdidas como consequência da lesão. Experiências realizadas em vários laboratórios com esta finalidade mostraram que o tipo de células utilizadas para o transplante é um dos fatores determinantes da sua eficiência. Sabendo isto, a nossa ideia é que um dos tipos de células que melhor podem atingir esta função reparadora podem ser as que fazem a medula espinal de forma natural, isto é, as que originam este tecido quando o mesmo está a formar-se no embrião. Queremos, portanto, identificar as caraterísticas que tornam estas células diferentes de quaisquer outras. Sabendo isto, poderemos produzir células com estas caraterísticas a partir 111


| BIOCIÊNCIAS |

A IDEIA DO PROJETO DISTINGUIDO COM O PRÉMIO MANTERO BELARD 2014 BASEIA-SE NA EVIDÊNCIA DE QUE O CONSUMO DE CAFEÍNA SE CORRELACIONA INVERSAMENTE COM A DETERIORAÇÃO COGNITIVA, NOMEADAMENTE NA DOENÇA DE ALZHEIMER”

MOISÉS MALLO, coordenador da equipa de investigadores do Instituto Gulbenkian de Ciência que foi distinguida com o Prémio Melo e Castro

de vários tipos de células estaminais em cultura, que possam ser usadas como matéria-prima para terapias de regeneração do tecido afetado. Para além disso, temos no laboratório mutantes de ratinho que, por motivos que ainda desconhecemos, estão a produzir mais medula espinal do que os ratinhos normais, mantendo ainda as 112

caraterísticas do tecido normal. Pretendemos perceber a origem da maior produção de medula espinal nestes ratinhos e tentar reproduzir estas circunstâncias nas culturas, para melhorar e incrementar a produção das células e, assim, facilitar a sua utilização terapêutica. Rodrigo Cunha (R.C.) – A ideia do projeto distinguido com o Prémio Mantero Belard 2014 baseia-se na evidência de que o consumo de cafeína se correlaciona inversamente com a deterioração cognitiva, nomeadamente na doença de Alzheimer. Mas o objetivo do projeto é dar um passo à frente, colocando a hipótese de serem os recetores A2A para a adenosina (que se sabe serem bloqueados pela cafeína) os responsáveis por este efeito. Isto implica mostrar que a ativação acima do normal dos recetores A2A para a adenosina, por um lado, está envolvida nas modificações de circuitos neuronais no início da deterioração de memória em modelos de Alzheimer; e por outro lado, é suficiente para causar a deterioração da memória. São estes os principais objetivos deste projeto, que se espera que forneçam a justificação para avançar com estudos clínicos, de modo a confirmar a capacidade de antagonistas seletivos dos recetores A2A da adenosina diminuírem a evolução da doença de Alzheimer. De que maneira poderá este projeto vencedor do Prémio Mantero Belard vir a contribuir para a compreensão de mecanismos comuns a outras doenças neurodegenerativas para além da doença de Alzheimer? R.C. – Acreditamos que estamos a explorar um processo comum ao desencadear de várias doenças neuropsiquiátricas. A hipótese de trabalho é que o desbalanceamento da comunicação de contactos sinápticos obriga a um esforço extra dos sistemas afetados, num esforço de compensação. Em termos de funcionamento celular, mais esforço significa um maior uso de ATP. Este uso de ATP leva a uma maior produção de adenosina (o ‘A’ do ATP) e à maior ativação


| SAÚDE |

de recetores A2A da adenosina. A ativação recorrente e acima do normal poderá representar um processo de feedback positivo para aumentar a plasticidade adaptativa do sistema que, em esforço, levará à sua falência. Dentro desta hipótese, foi já confirmado que o consumo de cafeína (em humanos) e de bloqueadores de recetores A2A da adenosina (em modelos animais) são benéficos noutras doenças neurodegenerativas (e.g. na doença de Parkinson) ou neuropsiquiátricas (e.g. depressão). Qual o panorama da investigação na área das neurociências em Portugal? Em que nível é que esta se encontra no cenário internacional? R.C. – Tenho a perceção de que a evolução da qualidade da atividade de investigação nacional na área das neurociências tem sido exponencial na última década. É hoje uma comunidade que, embora ainda pequena, é respeitada no espaço europeu, sendo os líderes dos principais grupos figuras de referência nas suas áreas de intervenção. Mas é uma comunidade jovem – a esmagadora maioria dos líderes tem menos de 50 anos – e pequena, o que limita o seu “peso político” e visibilidade a nível internacional. M.M. – A investigação em neurociências está a mudar rapidamente como consequência dos desenvolvimentos concetuais e tecnológicos dos últimos anos, que permitem abordagens totalmente diferentes das que eram possíveis há uns anos. Estas mudanças têm também acontecido na investigação na área das neurociências em Portugal, liderada sobretudo por investigadores jovens que estão a realizar projetos competitivos a nível internacional. Também é de salientar o aparecimento de novos centros dedicados quase exclusivamente às neurociências, que estão a contribuir não só para incrementar a massa crítica nas neurociências em Portugal, mas também para dar um impulso qualitativo à investigação nesta área.

DE SALIENTAR O APARECIMENTO DE NOVOS CENTROS DEDICADOS QUASE EXCLUSIVAMENTE ÀS NEUROCIÊNCIAS, QUE ESTÃO A CONTRIBUIR NÃO SÓ PARA INCREMENTAR A MASSA CRÍTICA NAS NEUROCIÊNCIAS EM PORTUGAL, MAS TAMBÉM PARA DAR UM IMPULSO QUALITATIVO À INVESTIGAÇÃO NESTA ÁREA” Qual a importância deste investimento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa na investigação científica nacional e, particularmente, nas áreas das doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento e das lesões vertebro-medulares? Qual o impacto que este tipo de investigação pode vir a ter na vida de alguns utentes da Santa Casa? R.C. – Os últimos anos (desde 2011) foram simplesmente dramáticos para a comunidade científica. Tal como as crianças são mais suscetíveis do que os adultos à falta de comida, também as comunidades científicas jovens são mais suscetíveis à desagregação do que as comunidades maduras e estabelecidas. Daí o impacto dramático do desaparecimento de financiamento público que, nos últimos três anos, causou danos dramáticos numa comunidade científica em processo de maturação, como a portuguesa. Sendo o investimento em investigação científica reconhecido como o principal fator de desenvolvimento sustentado em países ocidentais, o preço a pagar por esta política será certamente sentido a médio prazo. Neste 113


| BIOCIÊNCIAS |

A EVOLUÇÃO DA QUALIDADE DA ATIVIDADE DE INVESTIGAÇÃO NACIONAL NA ÁREA DAS NEUROCIÊNCIAS TEM SIDO EXPONENCIAL NA ÚLTIMA DÉCADA”

RITA AIRES, investigadora da equipa liderada por Moisés Mallo, do Instituto Gulbenkian de Ciência

contexto, o financiamento disponibilizado pela Santa Casa é uma ilha de esperança para todos e uma boia para os poucos felizes contemplados. Quero acreditar – e é para isso que todo o grupo se esforça – que a translação para humanos das ideias desenvolvidas neste projeto poderá representar um real aumento da qualidade de vida dos idosos e, em particular, de indivíduos com doenças neuropsiquiátricas. Mas a atividade de investigação é explorar o desconhecido e só Deus sabe que barreiras encontraremos pela frente. 114

M.M. – Na minha opinião, esta iniciativa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pode ter um impacto real, em grande parte pela decisão de centrar os recursos disponíveis em poucos projetos bem financiados e não ter optado pela fragmentação do orçamento disponível em pequenas quantidades atribuídas a um maior número de projetos. Naturalmente, esta estratégia vai deixar de lado projetos de grande potencial. No entanto, em campos científicos onde a investigação é cada vez mais cara, os pequenos orçamentos não permitem realizar as abordagens mais inovadoras. Por isso, acho que financiar um menor número de projetos com orçamentos que podem, de facto, permitir a sua realização a um elevado nível pode ser a fórmula mais eficiente para marcar a diferença. É claro que esta estratégia implica também escolhas difíceis porque, ao apostar-se em projetos inovadores com potencial para produzir um avanço significativo no campo, há uma dose de risco, já que não é possível ter certezas sobre se vão ou não ser bem-sucedidos. No nosso caso, acho que um fator importante da nossa estratégia é a incorporação de novas tecnologias genéticas que estão a revolucionar o panorama da investigação e da clínica biomédica, que permitem abordagens experimentais impensáveis há apenas três anos. Por isso, temos grande esperança de que a nossa investigação resulte, de facto, na melhoria das condições de vida de alguns utentes da Santa Casa, mais concretamente daqueles que são o alvo do Prémio Melo e Castro: os pacientes com lesões vertebro-medulares. Neste sentido, é sempre importante relembrar que a cooperação entre laboratórios com abordagens científicas diferentes mas complementares é, com frequência, um dos fatores que podem aumentar o impacto final de um projeto. Nesta perspetiva, estabelecemos uma colaboração com o Doutor António Salgado – vencedor do Prémio Melo e Castro no passado ano – que vai permitir avaliar o potencial terapêutico das células produzidas no nosso laboratório e proporcionar ao laboratório do Doutor Salgado novos subs-


| SAÚDE |

tratos que possam facilitar as suas técnicas de regeneração dos tecidos medulares danificados. Os Prémios Santa Casa Neurociências tiveram um papel fundamental no estabelecimento desta colaboração. Consideram que o passo que a Misericórdia de Lisboa tomou com a criação destes prémios pode, de alguma forma, incentivar outras instituições a ganhar consciência da necessidade de apostar na investigação científica em Portugal? R.C. – Portugal não tem uma tradição de mecenato. Pouco de mecenato cultural e quase nada de mecenato científico. A minha esperança é que esta iniciativa seja copiada por outras instituições, mas não passa de esperança... M.M. – Eu gostaria muito de acreditar numa resposta positiva a essa pergunta. Este tipo de investimentos, tão incomum em Portugal, tem associada uma elevada componente cultural e de tradição. De facto, o investimento em projetos de investigação científica – quer por iniciativas privadas quer por instituições públicas que estejam para lá dos canais normais de financiamento científico – são muito mais frequentes em países anglo-saxónicos do que em países de tradições latinas, como Portugal. Isto quer dizer que, em geral, nestas questões, a mudança de hábitos precisa de tempo e de estratégias de atuação direcionadas às caraterísticas específicas da nossa sociedade, muito pouco virada para temas científicos. Iniciativas como as da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa podem, de facto, ser um importante fator nesta mudança, por ser um dos primeiros exemplos de que as coisas podem ser feitas de uma forma diferente. Qual a vantagem/importância de realizar estes projetos em instituições como o Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra ou o Instituto Gulbenkian de Ciência? R.C. – A investigação de qualidade só pode ser feita num ambiente de excelência. O Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universida-

O FINANCIAMENTO DISPONIBILIZADO PELA SANTA CASA É UMA ILHA DE ESPERANÇA PARA TODOS E UMA BOIA PARA OS POUCOS FELIZES CONTEMPLADOS” de de Coimbra é um reconhecido centro de excelência e, mais importante, o único focado em doenças neurodegenerativas. Por isso, acredito ser a instituição mais bem equipada para levar a cabo estudos em doenças neurodegenerativas. Foi essa a minha leitura quando decidi mudar-me de Lisboa para este Centro. M.M. – A vantagem principal é que o Instituto Gulbenkian de Ciência tem as infraestruturas necessárias para a realização de projetos com as caraterísticas próprias do nosso. Uma das componentes essenciais do nosso projeto é a análise das células que fazem os tecidos da medula espinal no embrião e a identificação dos genes responsáveis pelo funcionamento destas células. Por motivos éticos, isto não pode ser feito em embriões humanos, o que implica a utilização de modelos animais apropriados. No nosso caso, utilizamos embriões de ratinho, que têm um desenvolvimento semelhante ao humano e permitem o controlo da atividade dos genes, possibilitando avaliar como estes genes regulam a formação de tecidos, no nosso caso a medula espinal. As técnicas utilizadas com este fim são altamente sofisticadas. Há poucas instituições em Portugal onde possa ser realizado o estudo que estamos a desenvolver e o Instituto Gulbenkian de Ciência está entre as que oferecem as melhores condições para permitir este tipo de abordagens experimentais. Para além da infraestrutura de ponta, o ambiente científico que se vive no Instituto Gulbenkian de Ciência 115


| BIOCIÊNCIAS |

é um fator preponderante na capacidade de um cientista fazer as perguntas certas e colocar as ideias em cima da mesa. Dado o envelhecimento da população e o aumento da esperança de vida na sociedade europeia, o impacto socioeconómico da demência é considerado um dos grandes desafios do futuro da Europa. Quais os avanços que considera mais significativos em termos da investigação que está a ser feita nacional e internacionalmente nesta área? R.C. – Em termos de investigação, a maior necessidade é a identificação de biomarcadores para um diagnóstico precoce de doenças neurodegenerativas. Isto implica um refoco da doença estabelecida para as fases iniciais da doença. Passa por estudos detalhados em modelos animais antes de dar saltos quânticos, com grande ambição mas sem bases científicas, para doentes. Possivelmente, a maior causa de falhanço de ideias provavelmente válidas é sofrerem pressões demasiado precocemente para serem testadas em doentes.

AS CÉLULAS que fazem os tecidos da medula espinal no embrião são objeto da análise da equipa de Moisés Mallo

ACREDITAMOS QUE ESTAMOS A EXPLORAR UM PROCESSO COMUM AO DESENCADEAR DE VÁRIAS DOENÇAS NEUROPSIQUIÁTRICAS”

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Os resultados que têm sido obtidos em investigação científica e clínica na área das lesões vertebro-medulares transmitem a esperança – tanto aos médicos e profissionais da área como aos doentes – de que o tratamento para a lesão vertebro-medular poderá ser um objetivo atingível. Em termos de investigação científica a nível mundial, quais os avanços que considera mais inovadores nesta área? M.M. – Não se pode dizer que exista uma linha de investigação que esteja a ser claramente a melhor, mas sim que, nos últimos anos, têm surgido novas abordagens que começam a dar resultados animadores. Uma destas abordagens baseia-se em promover a regeneração do tecido danificado a partir das próprias células da medula espinal, através da utilização de hidrogéis, nanotubos ou nanofibras de diferentes composições, com a capacidade de estimular e/ou dirigir a regeneração de axónios (algo como os cabos que conectam uns neurónios


| SAÚDE |

com outros). A otimização e desenvolvimento deste tipo de substâncias e a forma de as aplicar no tecido danificado é uma das abordagens mais promissoras que existe na atualidade. Uma outra estratégia que parece ter boas perspetivas de futuro são as terapêuticas baseadas no transplante de células pluripotentes (com capacidade de formar múltiplos tipos de tecido), de forma que estas células produzam a regeneração do tecido danificado. A ideia mais generalizada é que células estaminais de diferentes origens, pela sua capacidade para produzir uma grande variedade de tecidos, podem ser as células de eleição para estes transplantes. Grande parte das células estaminais conhecidas têm origem no embrião ou existem em quantidades muito reduzidas em zonas do organismo pouco acessíveis, o que levanta problemas éticos e práticos quando as células a utilizar têm origem humana. No entanto, em 2007 conseguiu-se produzir no laboratório células similares às estaminais a partir de células de qualquer pessoa adulta, o que abriu a possibilidade real para a utilização terapêutica deste tipo de células que não só têm origem humana, mas que podem inclusivamente ser do próprio paciente, o que resolve também o problema da compatibilidade imunológica. De facto, este tipo de células já foi utilizado com algum sucesso em ensaios animais, ainda que os resultados distem de ser ótimos. É por isso que existe grande interesse em encontrar o tipo celular mais adequado para os transplantes e em perceber as suas caraterísticas, para as poder produzir eficientemente em cultura a partir destas células estaminais derivadas do paciente. Não devemos esquecer que é possível que a combinação de células estaminais com hidrogéis ou nanofibras possa ser uma das estratégias com maior potencial, porque cada uma das estratégias parece dar resposta a algumas das dificuldades e limitações da outra. Uma abordagem totalmente diferente e de grande atualidade baseia-se em ultrapassar a necessidade da medula espinal para que o paciente possa dirigir os movimentos das par-

UMA ABORDAGEM TOTALMENTE DIFERENTE E DE GRANDE ATUALIDADE BASEIA-SE EM ULTRAPASSAR A NECESSIDADE DA MEDULA ESPINAL PARA QUE O PACIENTE POSSA DIRIGIR OS MOVIMENTOS DAS PARTES DO CORPO PARALISADOS PELA LESÃO. O PRINCÍPIO CONSISTE EM CRIAR INTERFACES CÉREBRO-COMPUTADOR QUE PERMITAM AO PACIENTE DAR ORDENS ESPECÍFICAS A PARTIR DA SUA ATIVIDADE CEREBRAL QUE SÃO TRADUZIDAS EM AÇÕES PELO COMPUTADOR” tes do corpo paralisados pela lesão. O princípio consiste em criar interfaces cérebro-computador que permitam ao paciente dar ordens específicas a partir da sua atividade cerebral que são traduzidas em ações pelo computador. Um tipo de ação é a geração de impulsos elétricos que estimulem os músculos envolvidos a gerar os movimentos desejados. A outra opção típica é traduzir as ordens cerebrais em movimentos dum “exoesqueleto”, uma espécie de fato robot que pode suprir o corpo do paciente na realização das diversas atividades físicas. Este tipo de estratégias já deu alguns resultados promissores, mas precisa de considerável desenvolvimento para conseguir que estes sejam viáveis dentro da prática médica. 117


| ESTUDO |

IGUALDADE DE GÉNERO

E CONDIÇÕES DE TRABALHO 118


| SAÚDE |

As questões de género continuam a assumir uma importância crucial na União Europeia e em Portugal, atentas as diferenças que ainda subsistem e não obstante os esforços empreendidos para esbater questões associadas, como a discriminação no acesso ao emprego ou as divergências retributivas. O presente artigo apresenta uma pesquisa em curso sobre a igualdade de género em matéria de segurança e saúde no trabalho. Texto de Luís O. Duarte1 e Maria João Goldschmidt2 [1. DOUTOR EM SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO, GABINETE SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO; 2. PSICÓLOGA DE EDUCAÇÃO, UNIDADE DE APOIO À AUTONOMIA_SCML]

APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO m Portugal, só em 1974, após o fim da ditadura, se abriram algumas portas no mercado de trabalho para as mulheres, que alcançaram, em 1979, a definição legal da igualdade de condições e tratamento no emprego (Decreto-Lei n.º 392/79, de 20 de setembro). Este, visando “garantir às mulheres a igualdade com os homens em oportunidades e tratamento no trabalho e no emprego”, foi posteriormente revogado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto (MACEDO & SANTOS, 2009). Ao longo dos anos, a legislação europeia de Segurança e Saúde no Trabalho (SST) evoluiu de uma abordagem centrada no trabalho dos homens, em que se registava uma preocupação de foco nos riscos prevalecentes nas profissões de maioria masculina (num momento em que havia trabalhos dos quais as mulheres estavam excluídas), para um corpo normativo pautado pela Diretiva-Quadro de SST, em que os grupos particularmente sensíveis e a proteção do património genético passaram a ter consagração plena, à medida que a investigação científica e os dados epidemiológicos passaram a aferir, com mais ri-

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gor, o grau de exposição de grupos específicos de trabalhadores (FREITAS, 2011). Na ótica de Vogel (2011), estas problemáticas já tinham sido abordadas em 2001 pelo Conselho para a Igualdade entre Mulheres e Homens, no parecer n.º 45, através da análise do impacte de género na saúde e condições de trabalho, conduzindo a uma série de recomendações para combater a discriminação, sem efeitos visíveis na prática. A abordagem das questões de género versus condições de trabalho ganha particular acuidade nas mulheres, face aos diversos tipos de desigualdade, patentes nos diferentes graus de exposição a riscos, na evidência de maiores problemas de saúde emergentes do trabalho nas mulheres, na baixa perceção do risco, nas consequências para a sua saúde mental e nas condições laborais desencadeadoras de riscos psicossociais, designadamente o assédio moral e sexual, a violência no trabalho e várias situações de stress laboral (DUARTE & FREITAS, 2014; FREITAS, 2011; BURCHELL et al., 2007). A análise dos estudos europeus sobre género e condições de trabalho revela uma situação híbrida, com a prevalência da exposição a riscos 119


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A ABORDAGEM DAS QUESTÕES DO GÉNERO VERSUS CONDIÇÕES DE TRABALHO GANHA PARTICULAR ACUIDADE NAS MULHERES” ocupacionais mais associados à carga física do trabalho no caso masculino, com consequências mais expressivas para os riscos decorrentes do prolongamento do tempo de trabalho no caso feminino (BURCHELL et al., 2007). Estes autores referem que o quarto Estudo sobre as Condições de Trabalho, numa visão abrangente sobre 31 países, Portugal incluído, forneceu uma visão de largo espectro do estado das condições de trabalho na Europa, bem como do tipo e extensão das mudanças que afetam a força e a qualidade do trabalho, salientando alguns aspetos em torno da avaliação de riscos. Assim, no geral, não há diferenças quanto ao género em termos de violência física, ameaças, discriminação ligada à idade, nacionalidade, origem étnica, religião, deficiência ou orientação sexual. As mulheres são, no entanto, mais propensas a experimentar assédio moral ou sexual e atenção sexual indesejável, com especial incidência em mulheres com cargos de topo. O inquérito procurou averiguar em que medida os respondentes se consideravam ou não bem informados sobre os riscos de SST relacionados com o seu trabalho. As respostas – numa escala de quatro pontos, variando desde “muito bem informado” até “nada bem informado” – não indicaram grandes diferenças entre mulheres e homens. Uma elevada proporção de trabalhadores (mais de 80%) responderam positivamente, à exceção de mulheres em funções em cargos elevados, das quais apenas cerca de três quartos relataram “estar bem informados”. Outra das questões colocadas foi se os inquiridos sentiram que a sua saúde era, na verdade, afetada – e não que estava meramente em risco – no seu trabalho. Em resposta, cerca de um 120

terço das mulheres e dois quintos dos homens responderam afirmativamente. Colarinhos azuis (com funções fisicamente exigentes), masculinos e femininos relataram que o seu trabalho afeta a sua saúde. As mulheres em gestão de topo são mais propensas a relatar o que afeta a sua saúde no trabalho, enquanto os homens em trabalho de part-time são menos propensos a relatar um impacte sobre a sua saúde ou segurança do que os seus homólogos a tempo integral. Contudo, Tieves (2011) refere que, em 2005, cerca de 36% das mulheres na União Europeia tinha uma das seis ocupações seguintes: vendedoras de loja; profissionais de limpeza; cuidadoras pessoais e trabalho relacionado; trabalho de escritório; profissionais de saúde; serviços de restauração. Uma das maiores preocupações neste momento é o controlo do potencial de trabalho, devido a condições económicas conjunturais. A intensidade do trabalho, à qual as mulheres parecem ser mais vulneráveis, está diretamente ligada ao acréscimo de doenças e absentismo laborais, constituindo uma das prioridades da política de SST da UE. Daí que, se efetuarmos o cotejo com a população laboral em geral, as mulheres apresentam as lesões músculo-esqueléticas como doenças profissionais prevalecentes (85%), enquanto se considerarmos o universo de ambos os géneros o valor é mais reduzido (59%) (BELIN et al., 2011; TIEVES, 2011). Constatamos que, com a transformação progressiva do modelo económico consubstanciada na forte predominância do setor dos serviços, as mulheres representam a maioria da força de trabalho em setores como a saúde, o turismo e a educação. Quando avaliamos os riscos profissionais nestes setores e os comparamos com os fatores prevalecentes nos setores primário e secundário da economia (e.g., indústrias transformadoras), constata-se a incidência expressiva de riscos psicossociais, designadamente o assédio moral e


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sexual, a violência no trabalho e várias situações de stress laboral. As questões de género são também relevantes perante estruturas organizacionais reconhecidas como inadequadas e com culturas discriminatórias. A concentração em certos setores conduz a um padrão específico de doença ou lesão ocupacional, não tornando, necessariamente, eficazes as medidas generalistas, que não atendem à especificidade de género e, por consequência, à banda larga de responsabilidades sociais e económicas atribuídas às mulheres (OIT, 2013). Para as políticas de promoção da SST alcançarem maior efetividade é essencial melhorar a informação acerca da relação entre o género e a saúde laboral. Os efeitos de cada atividade ou função na saúde de homens e mulheres exigem um estudo segmentado, no quadro da política nacional de SST, que terá de incluir a definição clara da proteção das mulheres no trabalho. Uma abordagem futura mais positiva consistiria num incremento da consciência das diferenças do género nos locais de trabalho. Tal implicaria uma pesquisa mais aprofundada das razões, em torno das diferenças claras de notificações de doenças profissionais que se registam em diferentes Estados da União Europeia (TIEVES, 2011). Para esta autora, a falta de consciência para o género poderá ser uma razão explicativa para essas diferenças. O reconhecimento da especificidade, em matéria de exposições e de interação da vida profissional com a vida privada – a “dupla presença” –, poderia produzir melhorias significativas na prevenção. Promover a consciência significa também sugerir diversas formas de proteção dos trabalhadores expostos a potenciais danos para a sua saúde reprodutiva. Embora a questão dos riscos para a reprodução tenha sido em grande medida estigmatizada como sendo um problema feminino e, sobretudo, respeitante às mulheres grávidas, de facto, as substâncias reprotóxicas podem afetar a saúde reprodutiva tanto das mulheres como dos homens, conforme revelam os estudos de investigação sobre a matéria (VOGEL, 2011). Entre os

seus possíveis efeitos figuram desde a redução da libido até à diminuição da fertilidade de mulheres e homens, incluindo a perturbação dos ciclos menstruais e os problemas hormonais. Um aspeto importante a ter em conta seria a revisão crítica da lista de doenças profissionais a partir de uma perspetiva de género. Apesar de não ser o suficiente para eliminar a discriminação, poderia ajudar a reduzi-la, se esta revisão fosse acompanhada de um debate político e ampliado pelos sindicatos. Neste sentido, importa fornecer instrumentos adequados a empregadores, trabalhadores, estruturas sindicais e empresariais, e representantes dos trabalhadores no âmbito da SST, para que, em conjunto com as autoridades públicas e as universidades, possam desenvolver programas e estudos que considerem as especificidades do trabalho das mulheres nos domínios da conceção e aplicação da legislação, formação, informação, investigação e participação nas estruturas de representação.

A INTENSIDADE DO TRABALHO, À QUAL AS MULHERES PARECEM SER MAIS VULNERÁVEIS, ESTÁ DIRETAMENTE LIGADA AO ACRÉSCIMO DE DOENÇAS E ABSENTISMO LABORAIS” A este propósito, Tieves (2011) acrescenta que incluir neste esforço para uma difusão mais ampla a formação de todas as classes anteriormente citadas, a colaboração dos médicos no entendimento da situação mais particular das mulheres na força de trabalho, bem como uma pesquisa tipo investigação-ação que pode ser mobilizadora de alguns dos atores intervenientes, nomeadamente os sindicatos, são medidas que revelam ter um papel importante e decisivo neste périplo. O presente estudo consagra assim estas linhas de referência, tendo permitido identificar as prin121


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cipais questões que hoje se colocam no domínio da igualdade de género na SST em Portugal, por reporte a um universo que abrange vários setores de atividade e um conjunto exaustivo de domínios de abordagem. OBJETIVO DO ESTUDO O estudo procura conhecer, em matéria de política das organizações, se o género é diferenciador no domínio da participação nas atividades preventivas de segurança e saúde no trabalho, relativamente a: estrutura sindical, gestão da SST, avaliação de riscos no trabalho e implementação de soluções.

PARA AS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO ALCANÇAREM MAIOR EFETIVIDADE É ESSENCIAL MELHORAR A INFORMAÇÃO ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE O GÉNERO E A SAÚDE LABORAL” METODOLOGIA Desenho do estudo Trata-se de um estudo do tipo transversal, analítico-quantitativo e, como tal, realizado num único momento. O estudo encontra-se em curso, sendo o seu alvo trabalhadores de diferentes empresas e de diferentes setores de atividade. Dado o alvo ser disperso, optou-se pela utilização de um questionário – inquérito como instrumento de medida. Este questionário aplicado aos trabalhadores engloba as dimensões anteriormente citadas. Através das perceções expostas pelos trabalhadores são identificados os fatores diferenciadores no género relativamente à participação na prevenção da SST nos seus postos de trabalho. 122

Instrumento de medida Todas as variáveis serão medidas numa escala de resposta intervalar de cinco níveis, tipo Likert (escalas de concordância e escalas de frequência), em que 1 corresponde à opinião mais desfavorável, 3 reflete uma opinião neutra e 5 corresponde à opinião mais favorável. As escalas para a medição dos conceitos utilizados no presente estudo foram de adaptação própria, realizada a partir das dimensões identificadas na revisão de literatura efetuada e construída seguindo a abordagem de indicadores múltiplos, de modo a que cada variável fosse medida através de vários itens. O inquérito possui um total de 36 itens, perfazendo duas páginas. Operacionalização de variáveis As cinco primeiras questões do inquérito procuram identificar as caraterísticas sociodemográficas e profissionais. As restantes dizem respeito aos 31 itens relacionados com as dimensões em estudo. Género na estrutura sindical. Este fator refere-se à existência de discriminação ao género feminino quanto a representatividade e discussão nas atividades sindicais. Esta variável foi operacionalizada através de quatro itens (e.g.: as avaliações de risco estão contempladas na consulta de SST a todos os trabalhadores e representantes dos trabalhadores para a segurança e saúde no trabalho (RT’ SST) – homens e mulheres, conforme a legislação em vigor). Gestão da Segurança e Saúde no Trabalho. Sob este fator são acolhidos aspetos relativos à maior ou menor participação do género feminino nas atividades de SST, como a formação específica em SST ou o equilíbrio numérico do género em função de requisitos técnicos e de representatividade. Esta variável é operacionalizada através de oito itens (e.g.: os técnicos creditados em SST são conhecedores dos requisitos técnicos aplicados ao género em SST). Avaliação de riscos. Este fator pretende contribuir para perceber em que medida as mulheres e os homens são diferenciados na avaliação de


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riscos, quer no seu desempenho quer quanto à participação igualitária do género feminino em matéria de consulta de opiniões, riscos próprios quanto a saúde, violência, assédio, entre outros fatores que podem afetar o trabalho em termos de segurança. Esta variável foi operacionalizada utilizando 13 itens (e.g.: nas avaliações de riscos são normalmente considerados os perigos prevalecentes, quer nos chamados trabalhos masculinos quer nos femininos). Implementação de soluções. Este fator procura avaliar em que medida o género feminino é consultado e incentivado a apresentar soluções de SST. Esta variável foi operacionalizada considerando seis itens (e.g.: são garantidas às mulheres e aos homens informações relativas às possíveis consequências para a sua saúde face ao trabalho que executam).

problemáticas associadas à igualdade de género no trabalho. Em função das suas implicações práticas, o estudo visa dar contributos para os responsáveis de gestão das empresas, utilizando um instrumento simples e de fácil aplicação na avaliação das questões de género em SST.

BIBLIOGRAFIA BELIN, A.; ZAMPARUTTI, T.; TULL, K.; HERNANDEZ, G.; GRAVELLING, R. – Occupational health and safety risks for the most vulnerable workers. Brussels:

TESTES PSICOMÉTRICOS O estudo compreende uma investigação uni e multivariada. Para avaliação das propriedades psicométricas das escalas, prevê-se o estudo da validade de constructo das mesmas, recorrendo à análise fatorial. Esta permitirá avaliar a dimensionalidade do conjunto de itens utilizados, pela identificação do número de fatores que compõem cada conceito e os pesos de cada variável em cada fator (DUARTE, 2012), bem como determinar os valores de teste de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO). A confiabilidade das escalas será avaliada pelo nível de consistência interna, ou seja, pelo grau de uniformidade e de coerência existente entre as respostas dos sujeitos a cada um dos itens, através do cálculo do coeficiente alfa de Cronbach.

European Parliament, Directorate-General for Internal Policies, Policy Department, Economic and Scientific Policy, 2011. BURCHELL, B.; FAGAN, C.; O’BRIEN, C.; SMITH, M. – Working conditions in the European Union: the gender perspective. Dublin: European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 2007. DUARTE, L.; FREITAS, L. – Determinants of psychosocial risks. In AREZES, P.; BAPTISTA, J. S.; BARROSO, M.P.; CARNEIRO, P.; COSTA, N.; MELO, R.; MIGUEL, A.S.; PERESTRELO, G.P. (eds.) – Occupational safety and hygiene II. London: Taylor & Francis Group, 2014, pp. 37-41. DUARTE, Luís Filipe de Oliveira – La formación como vector del cambio de la cultura de la seguridad. León (Espanha): Universidade de León, Departamento de Ciências Biomédicas, 2012. Tese de Doutoramento em Higiene, Saúde e Segurança no Trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Constatou-se a escassez de estudos em Portugal sobre a dimensão de género e as suas implicações no âmbito da segurança e saúde do trabalho. Assim, teoricamente, o presente estudo pretende ser um contributo neste universo específico, acrescentando conhecimento para o tema abordado e auxílio para uma melhor clarificação das

FREITAS; L. – Manual de segurança e saúde do trabalho. Lisboa: Edições Sílabo, 2011. TIEVES, Daniela – Women and occupational diseases in the European Union - Report 118. Brussels: European Trade Union Institute, 2011. VOGEL, Laurent – Women and occupational diseases. The case of Belgium. Report 122. Brussels: European Trade Union Institute, 2011.

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Sociedade Portuguesa de Cardiologia

uma sociedade científica de excelência

O Prémio Nunes Correa Verdades de Faria, destinado a distinguir aqueles que mais contribuíram para o progresso no tratamento das doenças do coração, foi atribuído pela Misericórdia de Lisboa em 2013 a José Silva Cardoso, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Um balanço das estratégias e ações levadas a cabo por esta sociedade científica no biénio 2013-2015. Texto de José Silva Cardoso, José Ribeiro, Graça Castro, Dulce Brito, Susana Martins, Luísa Moura Branco, Quitéria Rato, Cristina Cruz, Rui Pires, Maria José Loureiro [DIREÇÃO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA, BIÉNIO 2013-15]

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a comemoração dos seus 65 anos de existência, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia apresenta-se uma das mais relevantes sociedades científicas portuguesas da atualidade, fruto da cooperação generosa e consistente dos seus membros, fundamento da solidez do seu presente. A nossa história coletiva mos124

tra o continuado esforço da edificação do que hoje somos. Sobretudo, firma em nós a clara consciência do caráter de excelência da sociedade a que pertencemos, incitando-nos a assumi-la, com revigorada força interior, como um modelo de colaboração e competência a transmitir à realidade portuguesa pelo salutar contágio do exemplo.


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INTRODUÇÃO Em abril de 2013, a 33.ª direção da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC) assumiu-se herdeira do passado prestigioso da nossa Sociedade, motivo de justificado orgulho para todos os seus membros. Contudo, refletindo sobre o problemático contexto socioeconómico e político de Portugal – então em pleno auge de uma das mais graves crises económicas e de valores da sua história – e da Europa, considerou os novos desafios que tais circunstâncias colocavam e ainda colocam à SPC, exigindo uma evolução. Consequentemente – e não obstante a fortíssima tradição na área da educação médica continuada –, aquela direção estabeleceu como prioridades para o seu plano de ação o reforço de três outros eixos fundamentais: a investigação, a intervenção e a cooperação. Fê-lo por ter considerado ser necessário lançar as bases futuras da sustentabilidade da SPC nesta conjuntura de mudança e porque, num contexto de limitação de recursos, achou ser um imperativo ético as sociedades científicas reclamarem um papel na definição das políticas de saúde para que, baseadas na melhor ciência, aquelas possam ser mais equitativas e justas.

Concluídos dois anos sobre aquela data fazemos neste artigo um balanço do que se concretizou desse plano, por forma a poder-se perspetivar equilibradamente o futuro. A nossa ação decorreu do entendimento que temos da missão multifacetada da SPC. Referimo-la de acordo com os seus diferentes eixos.

A 33.ª DIREÇÃO da SPC e seus colaboradores, durante o XXXV Congresso Português de Cardiologia, em Albufeira

INVESTIGAÇÃO Um dos projetos de maior relevância estratégica daquela direção foi a criação do novo departamento de investigação da SPC, em junho de 2013, que visa a promoção do desenvolvimento da investigação clínica a nível da SPC. Sediado na delegação do Norte, nele estão já integrados quatro estudos de larga escala, da iniciativa de investigadores portugueses independentes. O departamento conta com o Prof. Roberto Ferrari (past-president da European Society of Cardiology) como conselheiro científico e com o Prof. Filipe Almeida (membro da Academia Pontifícia para a Vida) como conselheiro para a ética na investigação. Articula-se com o CINTESIS, departamento de investigação pertencente à Universidade do Porto. 125


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Adicionalmente, o Centro Nacional de Coleção de Dados em Cardiologia, sediado em Coimbra, manteve um extraordinário dinamismo durante o biénio 2013-2015, contando-se no seu âmbito 28 registos sobre patologias cardiovasculares em Portugal, em curso ou já concluídos.

O XXXV Congresso Português de Cardiologia, realizado em 2014 sob o lema “Dos limites da ciência ao estado da arte”, e o XXXVI Congresso Português de Cardiologia, ocorrido em 2015 sob o lema “O coração no mundo em mudança”, tiveram um elevado nível, registando cada um deles

UM DOS PROJETOS DE MAIOR RELEVÂNCIA ESTRATÉGICA FOI A CRIAÇÃO DO NOVO DEPARTAMENTO DE INVESTIGAÇÃO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA, EM JUNHO DE 2013

O PROGRAMA “Exercício no Parque”, com Ana Almeida, o Grupo de Estudos de Fisiologia do Esforço e Reabilitação Cardíaca e população de Lisboa

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FORMAÇÃO Durante o biénio demos um impulso adicional à liderança da SPC na formação continuada na área cardiovascular, criando, em 2014, a Escola de Formação Pós-Graduada em Medicina Cardiovascular da SPC. Semiprofissionalizada, com programas preferencialmente práticos e destinados essencialmente a não-sócios da SPC, a escola integra já seis cursos de formação.

cerca de 1700 participantes. Revelaram uma sociedade científica fervilhante de projetos, privilegiando o diálogo com as outras sociedades nacionais e internacionais, e orgulhosa do seu passado enquanto passaporte para o futuro. Adicionalmente, os órgãos especializados da SPC e a sua direção realizaram, ao longo do biénio, 37 outras reuniões científicas, entre as quais se salienta a 1.ª Cimeira Ibérica de Cardiologia. O conjunto de


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todas as ações formativas que a SPC levou a cabo durante o biénio envolveu cerca de 6000 formandos. De grande relevo e criados através de cooperações internacionais são os novos cursos de suporte avançado de vida em insuficiência cardíaca (SAVIC) e de insuficiência cardíaca aguda. Finalmente, o Heart Failure 2013 – o maior congresso mundial sobre insuficiência cardíaca – foi realizado pela Heart Failure Association da European Society of Cardiology em Lisboa com a colaboração da direção da SPC. INTERVENÇÃO No cumprimento da sua responsabilidade social, durante o biénio a SPC desenvolveu numerosas ações referentes às políticas de saúde. Sem pretender enveredar por um caminho de fratura ou de guerrilha institucional, a SPC procurou encontrar caminhos de confluência e diálogo que permitissem uma colaboração assente no respeito e na harmonia. Entre aquelas realizações contam-se: a tomada de posição junto do ministro da Saúde relativamente ao Decreto-Lei n.º 14/2014; o parecer emitido relativamente ao Processo Assistencial Integrado (PAI) do Risco Cardiovascular no Adulto; a reunião da Associação Portuguesa de Intervenção Cardiovascular (APIC) da SPC com a comissão parlamentar de saúde; a parceria estabelecida entre a SPC, por intermédio da APIC, e os serviços partilhados do Ministério da Saúde; o documento conjunto da Sociedade Portuguesa de Cardiologia / Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular relativo às listas de espera em cirurgia cardíaca; o documento conjunto da Sociedade Portuguesa de Cardiologia / Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular relativo às listas de espera em cirurgia vascular; o papel impulsionador na criação do Conselho das Sociedades Científicas Médicas Portuguesas; a participação enquanto membros do Pilot Group on Cardiopolicy na Health Week da European Society of Cardiology (ESC), em Bruxelas, em novembro de 2013.

A intervenção da SPC visou também o público em geral e os doentes – sobretudo nas áreas da prevenção cardiovascular, controlo de fatores de risco e divulgação de comportamentos saudáveis –, utilizando quer o contacto pessoal quer meios de suporte como o Portal SPC, a Cardio TV e os media. Dentre as várias iniciativas desenvolvidas ao longo deste biénio destacam-se: a Loja do Coração; a campanha colesterol-LDL; a campanha “Procuram-se”, relativa aos fatores de risco cardiovascular; a ação na escola “Prevenção Cardiovascular: de Filhos para Pais”; a campanha “Não perca tempo. Salve uma Vida” da APIC; a parceria APIC-GEFERC HeartsGetWell para a reabilitação cardíaca; o programa “Exercício no Parque”; o programa “7 Dias do Coração”; o programa “Dia Mundial do Coração”; o programa “Dia da Insuficiência Cardíaca”; o jogo “Prevenir é o melhor remédio” – validação científica; o livro Dieta Mediterrânica – patrocínio científico; o filme Com o Coração nas Mãos, do GEFERC; o s filmes Minuto de Saúde – Doenças Cardíacas; a avaliação de uma colaboração na área do pedestrianismo; a tradução para português do website Heart Failure Matters da ESC. COOPERAÇÃO Reforçaram-se as relações estabelecidas por direções anteriores com várias entidades científicas, particularmente com a Fundação Portuguesa de Cardiologia, a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, a Sociedade Portuguesa de Cirurgia Cardiotorácica e Vascular, a Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, a Sociedade Portuguesa de Hipertensão, a Sociedade Portuguesa de Nefrologia, a Sociedade Portuguesa de Neurologia e a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Instituíram-se novos protocolos de cooperação com instituições universitárias e da área da 127


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saúde, das quais se destacam a Universidade de Aveiro, a Associação Portuguesa de Engenharia e Gestão da Saúde, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge/Museu da Saúde, a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, o CINTESIS – Center for Research in Health Technologies and Information Systems/FMUP e os serviços partilhados do Ministério da Saúde. Em 2013, a SPC integrou o Consórcio Português de Registos de Saúde, que participou na criação de um roteiro nacional de infraestruturas de investigação de interesse estratégico. Estreitaram-se laços de cooperação com várias sociedades científicas internacionais, entre as quais se destacam a European Society of Cardiology, a Sociedade Brasileira de Cardiologia e a Sociedade Espanhola de Cardiologia. Por proposta da SPC, enviada às mais de sessenta sociedades médicas científicas portuguesas,

implementação de programas de benchmarking. Durante este biénio, a SPC organizou a realização do European Examination in General Cardiology em Portugal. A SPC integrou o grupo de trabalho de elaboração, seleção e validação de questões e respostas para este exame. A harmonização do treino da cardiologia europeia será baseada numa plataforma de treino, acessível a todos os cardiologistas membros da Sociedade Europeia de Cardiologia. A plataforma online de treino foi designada por ESCeL (ESC e-Learning). O projeto, liderado por um cardiologista português, tem como objetivo assegurar um padrão de treino de excelência dos profissionais envolvidos nos cuidados cardiológicos a nível europeu. A SPC estava interessada em participar neste projeto desde o seu início e deu todo o apoio à sua divulgação e implementação durante o biénio 2013-2015.

NO CUMPRIMENTO DA SUA RESPONSABILIDADE SOCIAL, A SOCIEDADE PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA DESENVOLVEU NUMEROSAS AÇÕES REFERENTES ÀS POLÍTICAS DE SAÚDE constituiu-se o Conselho das Sociedades Científicas Médicas Portuguesas, estrutura que promoverá a coordenação de ações de cooperação em torno de problemas comuns. Foi ainda registada a Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa, eleitos os corpos sociais e definido o programa de ação e respetivo orçamento. QUALIDADE A comissão de acreditação da SPC iniciou o seu funcionamento em regime experimental. Constituiu-se a partir de um grupo de trabalho para o benchmarking (sistema de aferição), com o objetivo de estabelecer indicadores e valores de benchmarking rigorosos e credíveis, a nível regional e nacional. Este grupo realizou uma reunião com o American College of Cardiology sobre a metodologia norte-americana de 128

ÓRGÃOS ESPECIALIZADOS: ASSOCIAÇÕES, GRUPOS DE ESTUDO E NÚCLEOS PROFISSIONAIS Durante o biénio, os órgãos especializados da SPC realizaram, no seu conjunto, 37 reuniões científicas que totalizaram 2600 participantes. Estes órgãos estiveram também envolvidos na investigação científica através da participação em registos nacionais e internacionais. Adicionalmente, desenvolveram atividades de intervenção junto do público em geral – promovendo um estilo de vida saudável ou educando para a deteção precoce de condições patológicas como a hipertensão arterial e os fatores de risco cardiovasculares, o enfarte agudo do miocárdio, a fibrilação auricular, ou a insuficiência cardíaca, entre outras –, dos media – constituindo um núcleo de peritos para


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a clarificação de assuntos solicitada por órgãos da comunicação social – ou ainda dos decisores políticos –, quer colaborando na revisão de documentação legal quer alertando para situações gravosas para a saúde dos cidadãos, decorrentes de falhas na organização dos serviços públicos.

p articipação no programa EORP de registos clínicos; adoção e tradução de 12 recomendações clínicas da ESC; a doção do White Paper on Heart Failure da ESC; participação no grupo piloto referente à Cardiopolicy;

EM 2013, A SOCIEDADE PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA INTEGROU O CONSÓRCIO PORTUGUÊS DE REGISTOS DE SAÚDE, QUE PARTICIPOU NA CRIAÇÃO DE UM ROTEIRO NACIONAL DE INFRAESTRUTURAS DE INVESTIGAÇÃO DE INTERESSE ESTRATÉGICO RELAÇÕES INTERNACIONAIS No que concerne às relações internacionais, esta direção da SPC considerou estratégico o reforço dos laços com as Sociedades de Cardiologia brasileira, europeia e espanhola, bem como com a Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa. Dentre os projetos de cooperação realizados salientam-se, por mais relevantes, as seguintes parcerias: Sociedade Brasileira de Cardiologia curso de suporte avançado de vida em insuficiência cardíaca (SAVIC); tradução para português do site Heart Failure Matters da HFA da ESC; início da produção conjunta de um livro de reabilitação cardíaca; consolidação da Federação das Sociedades de Cardiologia dos Países Lusófonos; Sociedade Espanhola de Cardiologia; criação do curso luso-espanhol de insuficiência cardíaca aguda; realização da 1.ª Cimeira Ibérica de Cardiologia; Sociedade Europeia de Cardiologia; curso de suporte avançado de vida em insuficiência cardíaca (SAVIC/AHFALS) – versão em inglês; apoio à implementação em Portugal da plataforma de formação pós-graduada ESCeL;

articipação no grupo piloto referente à elabop ração do ESC Atlas; salienta-se a participação de 36 cardiologistas portugueses nos vários boards e constituent bodies da ESC; Federação das Sociedades de Cardiologia de Língua Portuguesa; implementação do registo notarial da Federação; participação em duas assembleias gerais para eleição dos corpos sociais da Federação e aprovação do plano de ação do primeiro mandato e do respetivo orçamento. COMUNICAÇÃO A necessidade de aproximar a direção da SPC dos sócios e colaboradores, bem como de intervir junto do público em geral, dos media, da indústria farmacêutica e dos decisores políticos, levou à criação do departamento de comunicação. Os objetivos foram o reforço da eficiência da SPC e o aumento da sua visibilidade, por forma a incrementar a intervenção estratégica na sociedade civil. A agregação de uma agência de informação permitiu profissionalizar a relação com os media. Em cooperação com os secretariados dos órgãos especializados, foi criado um conselho de peritos da SPC integrando, em cada área da cardiologia, os peritos designados para interagir com os media. 129


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NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO O Portal SPC consolidou a sua posição de destaque, chegando a cerca de 170 mil visitantes por trimestre. A CardioTV-SPC viu triplicar o acervo documental em vídeo da SPC para mais de quatrocentos vídeos, tendo atingido, só no ano de 2014, um total de 58 725 vídeos visualizados. A SPC reforçou a sua presença no Facebook, tendo somado mais de seis mil likes à sua página (facebook.com/spcardiologia) durante este período. A direção privilegiou o Boletim da SPC como meio de divulgação aos sócios. Abriu-se um concurso para aquisição de serviços para implementação do novo portal da SPC, atualmente a decorrer. PLANO EDITORIAL A Revista Portuguesa de Cardiologia viu consolidados a sua qualidade e o seu fator de impacte. Com uma nova diretora, a Revista Fatores de Risco foi totalmente remodelada, reforçou a sua componente científica e a sua posição de charneira na promoção da cooperação entre sociedades científicas e peritos de diversas áreas cardiovasculares.

UMA SOCIEDADE DE EXCELÊNCIA A análise realista da nossa história revela uma sociedade de excelência ao nível da educação continuada, da investigação, da intervenção e da cooperação. Daí este programa, ao qual chamámos “Sociedade Portuguesa de Cardiologia – uma

FOI CRIADO UM CONSELHO DE PERITOS DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA INTEGRANDO, EM CADA ÁREA DA CARDIOLOGIA, OS PERITOS DESIGNADOS PARA INTERAGIR COM OS MEDIA Ao longo deste mandato foram editados pela SPC oito livros, isoladamente ou em colaboração, cujos títulos se seguem: Suporte Avançado de Vida em Insuficiência Cardíaca (3.ª edição), Acute Heart Failure Advanced Life Support (4.ª edição), Ciclo de Formação Avançada em Cardiologia (2.ª edição), Sociedade Portuguesa de Cardiologia: a missão, Sociedade Portuguesa de Cardiologia – Investigação, Sociedade Portuguesa de Cardiologia – Formação, Sociedade Portuguesa de Cardiologia – Intervenção e Sociedade Portuguesa de Cardiologia – Cooperação. 130

sociedade científica de excelência”. O seu objetivo foi trazer aquela verdade à consciência efetiva dos sócios da SPC. Este programa materializou-se através de um conjunto de ações entre as quais se contam o recurso ao conselho de reflexão sempre que julgado necessário no caso de decisões estratégicas fundamentais, a homenagem aos presidentes da SPC durante o XXXV Congresso Português de Cardiologia, a homenagem às equipas das direções da SPC durante o XXXVI Congresso


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NO BIÉNIO 2013-2015, A REVISTA PORTUGUESA DE CARDIOLOGIA VIU CONSOLIDADOS A SUA QUALIDADE E O SEU FATOR DE IMPACTE Português de Cardiologia, o Fórum “Analisar o Passado, Construir o Presente, Perspetivar o Futuro” (pela celebração do 65.º aniversário da Sociedade Portuguesa de Cardiologia), a criação do Museu Digital da SPC (em colaboração com o INSA), a publicação de cinco livros sobre a história da SPC, a produção de dois vídeos para o portal e a de uma peça medalhística intitulada Mensagem. EPÍLOGO Ao terminar este mandato impõe-se à direção cessante da Sociedade Portuguesa de Cardiologia uma palavra de agradecimento aos que, acreditando nela, lhe confiaram a coordenação desta grande sociedade científica. As realizações que acima se relatam não são, contudo, obra isolada dos poucos que constituíram a direção. Foram sim um ato de colaboração participada de todos os membros da SPC, tendo-

A 33.ª DIREÇÃO com colaboradores e presidentes da SPC, durante a celebração do seu 65.º aniversário, no auditório da Casa do Coração

-se a direção sempre entendido como um mero fermento facilitador do envolvimento daqueles. Por esse motivo, um agradecimento é ainda devido aos muitos que, a título individual, aceitaram generosamente participar na atividade da Sociedade – nomeadamente nos congressos anuais e noutras realizações científicas –, aos grupos especializados por se terem mantido a espinha dorsal da SPC, ao conselho de reflexão pelo suporte esclarecido nos momentos mais difíceis e cruciais desta jornada, à direção que nos antecedeu pela sua visão inspiradora, ao atual presidente da SPC pelo companheirismo e continuada participação nesta caminhada e aos trabalhadores da SPC pelo profissionalismo e dedicação totais. Para a equipa que cessa agora funções, estes dois anos constituíram um raro privilégio, mas foram, acima de tudo, uma incrível jornada de crescimento interior que marcou de forma indelével as nossas vidas. 131


©Museo Galileo, Firenze - Archivio Fotografico

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A Misericórdia de Lisboa e a ASSISTÊNCIA

MÉDICA AOS DOENTES POBRES Do socorro domiciliário aos primeiros dispensários clínicos (1498-1900)

Desde a sua fundação, a Misericórdia de Lisboa assumiu a missão da assistência médica a doentes pobres. Um percurso de quatro séculos, da assistência domiciliária das “visitadas” ao nascimento dos primeiros postos médicos, sem esquecer os cuidados prestados aos presos da capital ou às crianças expostas e pensionistas. Texto de Luísa Colen [HISTORIADORA, DIREÇÃO DA CULTURA_SCML]

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VISITAR E CURAR OS ENFERMOS, UMA OBRA DE MISERICÓRDIA ma das obras de misericórdia corporais1 que a Confraria da Misericórdia deveria cumprir era a de visitar e curar os enfermos. Desde o primeiro Compromisso da Misericórdia de Lisboa2 que se estabelecia o modo de a praticar: “Outros dois conselheiros […] terão carrego de visitar os doentes pobres assim presos como da cidade e visitarão com mezinhas e vestidos, camas e pousadas, como pelo Provedor e físico da confraria lhe for ordenado. […] Aos quais dois conselheiros será dado dinheiro para despenderem com os ditos doentes”3. É sobre a assistência médica aos doentes pobres – os da cidade e os presos – referidos neste excerto do Compromisso, que nos debruçaremos neste artigo. No entanto, incluímos ainda a questão da assistência clínica às crianças expostas e pensionistas, função que a Santa Casa assumiu em épocas posteriores à redação e reforma do seu Compromisso original.

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ASSISTÊNCIA MÉDICA AOS PRESOS NAS CADEIAS A prisão entendida como pena de privação de liberdade não existia até meados do século xviii4, funcionando as cadeias apenas como o local onde os presos aguardavam julgamento ou a execução da pena, situações que podiam arrastar-se por vários anos. As condições das cadeias eram geralmente muito

precárias, as zonas de reclusão eram enxovias, situadas nos pisos térreos ou caves de castelos, câmaras, palácios ou casas particulares, em espaços muito reduzidos, com excesso de presos e sem condições de higiene e habitabilidade. O sustento do preso era assegurado pelo próprio quando dispunha de meios económicos, ou através da caridade de particulares, no caso dos presos pobres. A assistência médica aos presos pobres da capital, a sua alimentação e acompanhamento espiritual ficou, desde a sua fundação, a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML)5. A Misericórdia recorria a peditórios periódicos para arranjar esmolas, vestuário e roupa de cama para os detidos pobres nas cadeias, para o que lhe foram concedidos privilégios de exclusividade em relação a peditórios destinados a presos e cativos na cidade de Lisboa6. Além do tratamento médico dos presos pobres, a Santa Casa possuía ainda as obrigações de fornecer as rações aos presos pobres, de remissão dos cativos, de livramento dos presos e de acompanhamento espiritual e enterramento dos condenados à morte. No Compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1618 recomendava-se aos mordomos dos presos7 que tivessem especial cuidado com os presos doentes, devendo estes informar-se das suas necessidades e averiguar se eram visitados pelo físico e pelo cirurgião, e ainda se existiam faltas no fornecimento de medicamentos ou outras necessidades

REPRESENTAÇÃO da obra de misericórdia – assistir aos enfermos na fachada do Ospedale Santa Maria del Ceppo (Pistoia, Itália). O conjunto das sete obras de misericórdia em cerâmica colorida foi atríbuído a Santi Buglioni e Filippo Paladini

1. As 14 obras de misericórdia são sete espirituais (ensinar os simples, dar bom conselho, corrigir com caridade os que erram, consolar os que sofrem, perdoar os que nos ofendem, sofrer as injúrias com paciência e rezar a Deus pelos vivos e pelos mortos) e sete corporais (remir os cativos e visitar os presos, curar e assistir os doentes, vestir os nus, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar pousada aos peregrinos e sepultar os mortos). 2. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Compromisso da Misericórdia de Lisboa, Livro 1 (1502). 3. Idem, ibidem, fl. 4 v. 4. As Ordenações do Reino e Leis Extravagantes, que vigoraram em Portugal até 1852, previam penas corporais (açoites, mutilação de membros), penas pecuniárias (como a perda ou confisco de bens), o degredo, as “galés” ou a expulsão do reino e as penas de morte (cremação, esquartejamento, degolação ou forca). Com a Revolução Liberal, e logo desde a primeira reunião das Cortes Gerais em 1821, na Constituição de 1822 e legislação subsequente, mas sobretudo com a publicação do primeiro Código Penal Português em 1852-12-10, as penas aplicadas tornaram-se mais leves, deixando de se recorrer aos castigos corporais. As penas mais frequentemente aplicadas começam a ser as multas e a prisão, mantendo-se os trabalhos forçados e a pena de morte até 1867. 5. Na cidade de Lisboa existiam, em finais do século xviii, quatro cadeias: da Corte ou Limoeiro; da Cidade ou do Tronco; do Aljube ou dos eclesiásticos e do Castelo. 6. Vejam-se, por exemplo, os alvarás de 1499-02-15 e de 1540-08-24, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Privilégios e Mercês, Livro 1 (1760-1767), fls. 19 v.-20 v. e 37-38. 7. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, Compromisso da Misericórdia de Lisboa [de 1618], Lisboa, por Pedro Craesbeeck, 1619, Cap. XI, fl. 11 v.

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| SAÚDE |

LIVRO DA BOLSA do Mordomo dos Presos (1770)8

OS VISITADORES, QUE PRESTAVAM ASSISTÊNCIA DOMICILIÁRIA, TERIAM DE TER PELO MENOS 40 ANOS DE IDADE E SER HOMENS PRUDENTES, CARIDOSOS E DE BOA REPUTAÇÃO E CONFIANÇA” essenciais à sua cura. Deveriam reportar à Mesa da Confraria qualquer negligência de que tomassem conhecimento, para que esta providenciasse o que fosse necessário. Os presos doentes ficavam a cargo do mordomo da Botica9, o qual deveria, como

princípio de cura, mandá-los confessar, chamando o cura da paróquia para lhes ministrar os sacramentos necessários ao seu bem espiritual. Para o bem temporal do preso doente, o mordomo deveria, em pessoa, entregar-lhe as refeições, providenciando para que os alimentos fossem confecionados na cozinha da Misericórdia, segundo as indicações dos médicos e velando para que a estes doentes não fosse fornecida comida por outra via que pudesse prejudicar a sua saúde. O mordomo da Botica deveria ainda instalar os presos doentes na enfermaria da cadeia (se a houvesse), providenciando para que: houvesse um enfermeiro para os tratar10; fossem visitados por médico ou cirurgião duas vezes ao dia; o sangrador viesse quando houvesse necessidade dele; os remédios lhes fossem administrados e com a pontualidade devida. Era ainda o mordomo da Botica que

8. Idem, ibidem, Cap. XXIII. 9. AHSCML, Gestão Financeira, Documentos de despesa do Cofre, Cx. 20, cap.03, Documento de despesa n.º 745, maio de 1770. 10. A Misericórdia de Lisboa recebera o privilégio de poder eleger, de entre os presos da cadeia, um que servisse de enfermeiro, por alvará de 1563-02-08. Cf. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA, Regimento que se fez para os mordomos dos presos seruirem conforme a elle, como no compromisso nouo se ordena, s.l., s.n., post. a 21 de abril de 1628 e traslado do alvará referido em AHSCML, Constituição e Regulamentação, Privilégios e Mercês, Livro 1 (1760-1767), fl. 190, datado de 1670-04-09.

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controlava as receitas emitidas pelo médico e cirurgião enviadas à botica, devendo ser previamente assinadas por ele, passando ainda as certidões das despesas realizadas com sangrias e outros tratamentos, bem como a aquisição de pão e de carne. Esta modalidade de assistência aos presos pobres alterou-se substancialmente na primeira metade do século xix com a nomeação, em 1833, de uma comissão incumbida da distribuição da sopa de caridade nas cadeias, ficando a Santa Casa obrigada à entrega de uma prestação mensal em dinheiro à referida comissão11, destinada à alimentação dos presos. A Santa Casa continuou a assegurar a celebração das missas nos oratórios ou capelas das cadeias de Lisboa, a libertação dos presos indigentes e ainda o acompanhamento dos condenados à morte12. ASSISTÊNCIA DOMICILIÁRIA: AS VISITADAS DA SANTA CASA Para a assistência domiciliária às chamadas visitadas, a cidade de Lisboa estaria dividida em três distritos, como se depreende pela leitura do Compromisso de 161813, pelos quais se distribuíam, dois a dois, os seis visitadores que tinham a incumbência de visitar as pessoas inscritas no rol de visitadas da Santa Casa. Estes três distritos correspondiam às três zonas em que estavam distribuídas as visitas da Misericórdia: Visita de Nossa Senhora, Visita de Santa Cruz e Visita de Santa Catarina. Estes visitadores teriam de ter pelo menos 40 anos de idade e ser homens prudentes, caridosos e de boa reputação e confiança. Deveriam visitar semanalmente, a pé e sempre os dois de cada visita juntos, as pessoas pobres do seu distrito, providenciando-lhes dinheiro, vestido e cama. Especial cuidado teriam com os doentes pobres

A ASSISTÊNCIA MÉDICA ÀS CRIANÇAS EXPOSTAS RESIDENTES NO HOSPITAL DOS EXPOSTOS PASSA A SER ASSEGURADA POR UM MÉDICO ESPECIFICAMENTE CONTRATADO PARA O EFEITO” e desamparados, providenciando para que fossem assistidos pelo físico ou cirurgião da Santa Casa e procurando, sempre que possível, que estes doentes fossem assistidos no hospital, de forma a terem o auxílio médico mais adequado. Deviam ainda providenciar para que fossem socorridos também espiritualmente, pedindo ao cura da paróquia mais próxima que os assistissem com os sacramentos que fossem necessários. Para serem admitidas no rol das visitadas da Santa Casa era necessário tratar-se de pessoas14: • recolhidas, virtuosas e de boa fama; • pobres e necessitadas, mas de tal qualidade que não andassem pelas ruas ou casas a pedir esmola; • que não pudessem servir ou ter outro estado de vida que lhes permitisse sustentar-se, por razões de doença, filhos ou da sua qualidade. As visitadas podiam ter casa onde morar e alguns bens e rendimentos, desde que estes não ultrapassassem os seis mil réis. Com a aprovação do Compromisso de 1618 deixam de ser os visitadores a recolher as informações relativas aos requerimentos para visitadas15, passando a ser irmãos da Irmandade, escolhidos de entre os que não tinham cargos na Mesa, devendo ser nobres

11. Decreto de 25 de novembro de 1833, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Avisos, Decretos e Consultas, Livro 4 (1831-1834), fls. 71-72. A Misericórdia entregava à Comissão das Cadeias (designada também de Comissão da Sopa da Caridade), a quantia anual de dois mil e quatrocentos réis. 12. Portaria de 14 de abril de 1835, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Diplomas da Comissão Administrativa, Livro 1 (1834-1835), fls. 27-27 v. O acompanhamento dos condenados pela Misericórdia termina com a abolição da pena de morte em Portugal por lei de 1 de julho de 1867. 13. Compromisso … de 1618, Cap. XII, fl. 14. 14. Apesar da designação de visitada, no feminino, incluíam-se no rol pessoas dos dois sexos. 15. Cf. Compromisso … de 1618, Cap. XII. Segundo o Compromisso da Misericórdia de 1502, seriam os irmãos visitadores dos “envergonhados” que estariam encarregues de fazer a inquirição acerca da necessidade destas pessoas, junto dos curas, confessores e vizinhança.

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DIPLOMA DE VISITADA de Maria Leonor, da Visita de Nossa Senhora, concedido em 183416

e oficiais, mais velhos e mais experimentados, com boa reputação relativamente ao seu entendimento, zelo e cristandade. Os irmãos visitadores deveriam, no entanto, inquirir duas vezes ao ano, uma no início e outra no meio do ano, relativamente à continuação da situação de pobreza e modo de viver das pessoas que já constavam do rol de visitadas, informando o Provedor e Mesa de alguma alteração. Os irmãos visitadores possuíam um livro particular da sua visita, onde assentavam as moradas e nomes das visitadas e registavam as visitas que lhes faziam e os pagamentos efetuados.

Através das Instrucções para o Governo da Santa Casa17 podemos vislumbrar como estaria organizado, antes do terramoto de 175518, o designado Serviço das Visitadas. Segundo se descreve nestas Instruções, existiam quatro “classes” de visitadas: 1. As visitadas ordinárias ou do número, a quem a Mesa da Misericórdia concedia semanalmente as chamadas “piedades”, uma espécie de subsídio atribuído a cada uma das visitadas, conforme as suas necessidades e favorecendo as mulheres viúvas e as filhas dos irmãos da Confraria da Misericórdia e as mulheres com maior número de filhos. Concedia-se-lhes ainda a assistência de médico, cirurgião e sangrador e todos os remédios de que necessitassem em caso de doença. Este serviço era suportado financeiramente pelos legados de vários testadores e a assistência médica através dos rendimentos aplicados a obras pias. 2. As visitadas da Cruz recebiam todas um subsídio da mesma quantia mensal, quer tivessem ou não filhos. Os rendimentos provinham também de diversos legados, mas estes destinados exclusivamente a cegos ou entrevados. 3. As visitadas do Costa beneficiavam de uma “esmola” anual de seis mil réis cada uma, distribuída por altura do Natal e legada por Manuel Rodrigues da Costa, destinada a cegos, entrevados, coxos e aleijados. Nesta classe incluíam-se outras visitadas que beneficiavam de legados de proveniência mais antiga, como as entrevadas de Nossa Senhora da Vitória e as 120 visitadas que se costumavam prover com subsídio na noite de Natal. 4. As visitadas do Souto, providas por conta do legado de Domingos Ferreira Souto, eram em número de dezasseis, obrigatoriamente escolhidas entre os residentes da freguesia de São Julião da cidade de Lisboa. Recebiam também uma quantia certa anual, paga aos quartéis pelos visitadores do respetivo distrito, mas sem direito a assistência médica ou da botica.

16. AHSCML, Gestão Administrativa, Requerimentos, Caixa 02, Letra F. 17. AHSCML, Gestão Financeira, Instrução Precisa para o Governo e Administração da Fazenda, Livro 3 (sem data, post. 1755), fls. 108 v.-111 v. 18. A organização do serviço nestas visitas aqui enumeradas é já de finais do século xvii e início do século xviii, posterior ao testamento e legado de Manuel Rodrigues da Costa (1684) e de Domingos Ferreira Souto (1701).

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LIVRO DE REGISTO das Visitas de Santa Catarina (1756-1757)20

O alvará de 31 de janeiro de 1755 vem modificar esta organização, destinando a quantia anual de 2000$000 réis para as visitadas, reduzindo-as em número e concedendo-lhes uma esmola fixa, igual para todas19. VISITAS AOS EXPOSTOS DOENTES NOS SEUS DOMICÍLIOS A criação dos expostos na cidade de Lisboa ficou a cargo do Hospital de Todos-os-Santos desde a sua criação, encargo decorrente da integração no Hospital Real, em 1503, dos hospitais e albergarias que tinham obrigação de criar enjeitados21. Segundo

o Regimento do Hospital de Todos-os-Santos de 150422, os expostos entrados no hospital eram ali batizados e entregues a amas que os criavam por um período de três anos, após os quais regressavam ao hospital, onde permaneciam até aos 7 anos, idade em que eram entregues a mestres para aprenderem um ofício. Em 1564 a gestão do Hospital de Todos-os-Santos é entregue à Misericórdia de Lisboa23, tendo a gestão direta do serviço dos expostos permanecido a cargo da administração do hospital. Após 1637 cria-se a Mesa dos Enjeitados ou dos Santos Inocentes, dependente da Mesa da Misericórdia, mas continuan-

19. Alvará de 31 de janeiro de 1775, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Decretos, Avisos e Ordens, Livro 1 (1756-1783), fls. 110-113. 20. AHSCML, Visitadas, Registo das Visitas de Santa Catarina, Livro 1 (1756-1757), fls. 21 v.-22. 21. Nomeadamente do Hospital dos Meninos, situado na Mouraria, que se destinava a acolher órfãos e enjeitados. Cf. alvará de 28 de março de 1635, transcrito em PAIVA, José Pedro (coord. científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa / União das Misericórdias Portuguesas, 2002-2011, vol. 4, pp. 217-218, doc. 143. Ver também CARMONA, Mário, O Hospital Real de Todos-os-Santos da Cidade de Lisboa, Lisboa, 1954, pp. 153-154. 22. Regimento do Hospital de Todos-os-Santos, de 1504, ANTT/HSJ, Livro 938, Registo dos Reinados de D. João II e D. Manuel I, fls. 102 v.-103 v. 23. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Privilégios e Mercês, Livro 1 (1760-1767), fls. 106-110, Carta Régia de 28 de Junho de 1564, confirmada na Carta de 14 de agosto de 1665.

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FOI ESTABELECIDO, EM CADA DISTRITO, UM POSTO DE CONSULTA, NUM LOCAL DETERMINADO PELA MESA OU ESCOLHIDO PELO RESPETIVO FACULTATIVO”

do o acolhimento das crianças a funcionar nas instalações do Hospital Real24. Em 1750 ocorreu um grande incêndio no Hospital de Todos-os-Santos que obrigou à transferência temporária dos expostos e suas amas para casas cedidas ou alugadas. Com o terramoto de 1755 e o desmoronamento do edifício, todas as dependências do hospital foram provisoriamente instaladas noutros locais, até à doação do edifício do Colégio de Santo Antão, onde se instalou o Hospital Real25. O Hospital dos Expostos é transferido para as novas instalações da Misericórdia em São Roque no ano de 176826, extinguindo-se a Mesa dos Enjeitados e passando a responsabilidade da sua criação para a gestão direta da Mesa da Misericórdia27. A assistência médica às crianças expostas residentes no Hospital dos Expostos passa a ser assegurada por um médico especificamente

contratado para o efeito, assim como o exame e aprovação das amas de fora que vinham buscar as crianças, pelo menos desde 178728. O tratamento das crianças doentes entregues a amas externas era responsabilidade das mesmas, excetuando as residentes na cidade de Lisboa, para as quais estava previsto, desde 1716, existir um médico com a obrigação de “visitar todos os dias as amas e os meninos que estiverem doentes”29. A partir de 1796 iniciam-se, por ordem da rainha, as primeiras experiências relativas à inoculação das “bexigas” em Portugal, como método preventivo dos ataques graves da varíola, em crianças expostas da Santa Casa, residentes na cidade de Lisboa30. A vacinação passou a ser prática corrente nos estabelecimentos da Santa Casa, como forma de controlar a enorme mortalidade que as doenças contagiosas provocavam, agravadas pela acumulação num mesmo espaço de grande quantidade de gente. No século xix a vacinação das crianças tuteladas pela Santa Casa estende-se também de forma regular aos expostos criados fora da cidade de Lisboa. Em 1835, com a gerência da Santa Casa entregue a uma comissão administrativa, são enviadas aos párocos das freguesias onde residiam amas que criavam expostos da Misericórdia de Lisboa umas Instrucções31 para servirem de guia à inspeção da criação dos expostos. Segundo as referidas Instrucções, aos párocos

24. AHSCML, Criação de Expostos, Registo de Escrituras dos Expostos, Livro1 (1637-1765), fls. 5-10 v. (traslado datado de 1732-12-22): a SCML assume a administração direta da criação dos enjeitados na cidade de Lisboa com a escritura celebrada com a Câmara Municipal de Lisboa em 23 de junho de 1637. A Mesa dos Enjeitados passou a ser composta por membros que tinham acabado de servir na Mesa da Santa Casa. Cf. Prólogo do Compromisso da Mesa dos Enjeitados, de 1716, in SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Compromisso da Meza dos Engeytados, de 1716, Cap. 10 (BNP, Códice 8968). 25. Cf. Carta Régia de 26 de setembro de 1769, que faz doação à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa do antigo Colégio de Santo Antão, da Companhia de Jesus, para aí instalar o Hospital de Todos-os-Santos, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Decretos, Avisos e Ordens, Livro 2 (1784-1828), fls. 206-225. 26. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Decretos, Avisos e Ordens, Livro 2 (1766-1786), fls. 65-70, Carta Régia de 8 de fevereiro de 1768, que doa a igreja e antiga Casa Professa de São Roque à Irmandade da SCML. 27. Idem, ibidem, fl. 61, Decreto de 4 de janeiro de 1768, que extingue a Mesa dos Enjeitados. 28. Os expostos e amas da casa eram assistidos anteriormente, sempre que necessário, por médicos do Hospital de Todos-os-Santos. Pelo alvará de 13 de março de 1787 é criado o lugar de facultativo dos expostos da Misericórdia de Lisboa. 29. Compromisso da Meza dos Engeytados, de 1716, Cap. 10 – não se sabe se ficou em execução este capítulo do Compromisso, acrescentado posteriormente à sua aprovação (ver nota marginal). Segundo o referido neste capítulo, o médico tinha também obrigação de visitar a Casa dos Enjeitados três vezes por semana, para acompanhar as suas criações e examinar o leite das amas. 30. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Decretos, Avisos e Ordens, Livro 2 (1784-1828), fls. 134-134 v., Aviso de 1796-05-2.

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competia atestar a capacidade das amas de criar os expostos que pretendiam, devendo confirmar se estas tinham os meios suficientes de subsistência, se eram de bom comportamento e de confiança e outras condições que dependiam do tipo de criação: leite, seco ou de vestir32. Quando algum exposto a cargo de uma ama adoecia, esta deveria procurar médico ou cirurgião para o seu tratamento e aplicar-lhe os remédios e tratamentos necessários33. As amas dos expostos residentes na cidade de Lisboa eram inspecionadas pelos Visitadores da Casa, que cuidavam de comprovar se os expostos estavam a ser bem tratados e educados. A ASSISTÊNCIA ÀS CRIANÇAS PENSIONISTAS E SUAS MÃES A Mesa da Santa Casa, face ao número cada vez maior de crianças entradas na roda da Misericórdia de Lisboa, agravado ainda mais com o encerramento gradual de todas as outras rodas do distrito de Lisboa a partir de 1867, decidiu regulamentar o respetivo serviço34. Segundo as informações fornecidas à Misericórdia pelo Governo Civil de Lisboa, as crianças expostas seriam cerca de 47% dos nascimentos da capital. Com o novo regulamento, fechou-se a roda durante a noite e as admissões diurnas eram acompanhadas pelo fiscal da roda, funcionário encarregue de inquirir sobre a filiação e residência dos enjeitados junto das recoveiras35 que vinham entregar as crianças. Simultaneamente, a Santa Casa restabeleceu uma modalidade de as-

sistência, já experimentada nos anos cinquenta do século xix, que consistia em conceder um socorro pecuniário às mães durante o período de lactação, pretendendo com este apoio auxiliar aquelas mulheres que enjeitavam os filhos devido à miséria, evitando a sua exposição. As crianças até 1 ano de idade podiam ser subsidiadas desde que estivessem numa das seguintes circunstâncias: • t erem sido expostas a cargo da Santa Casa, reclamadas entretanto pela família; • s erem gémeas, filhas de pais indigentes; • a mãe tivesse falecido durante o período de lactação e o pai não tivesse possibilidade de pagar a uma ama de leite ou tivesse também ele falecido; • a mãe, solteira ou viúva, fosse indigente e o pai não pudesse ser obrigado a prover ao seu sustento; • fi lhas legítimas, sendo a mãe honesta e pobre e que tivesse sido abandonada pelo marido, ou caso este se encontrasse preso ou a cumprir pena no degredo36. A pensão concedida durante o período de lactação, que durava apenas até a criança atingir 1 ano de idade, implicava, para a sua continuação, a inspeção periódica das crianças pensionistas, assegurada pelos facultativos37 da Misericórdia. A Santa Casa assegurava ainda o acompanhamento clínico das crianças em caso de doença e, às suas mães, concedeu o direito de serem visitadas durante o ano de lactação, o que lhes permitia poupar nas despesas de médico e botica, em caso de doença38.

31. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Instrucções para servirem de guia aos muito Reverendos Parochos na Inspecção dos Expostos a cargo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1835, 6 p. 32. A criação de leite referia-se ao período de amamentação da criança ao peito pela ama, período que variou entre 12 e 18 meses. A criação de seco decorria desde quando a criança já se encontrava desmamada até aos 7 ou 10 anos, conforme as épocas. A criação de “vestir” (alimentar, educar e vestir) ocorria entre os 7/10 anos e a emancipação do exposto. Também as famílias dos jovens expostos dados a servir como criados eram objeto de avaliação antes da entrega. Em anexo às Instrucções foram enviados os formulários necessários aos párocos para a passagem dos atestados referidos nas mesmas. 33. Instrucções para servirem de guia aos muito Reverendos Parochos …, p. 2, Capítulo 6.º – “Das obrigações das Amas”, Art.º 20.º 34. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1870-1871. Lisboa: Imprensa Nacional, 1871, p. 6 35. Pessoa que vinha buscar o exposto, com a obrigação de o entregar a outrem. 36. Instrucções para servirem de guia …, p. 11, “Circumstancias que se exigem para uma creança ser subsidiada”.. 37. Médicos.

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AS REFORMAS DO SERVIÇO DE SOCORRO DOMICILIÁRIO (1854-1900) A Misericórdia de Lisboa, preocupada com a enorme mortalidade das crianças expostas que residiam fora do Hospital dos Expostos, apresenta em 1854 um projeto de regulamento destinado ao serviço clínico das crianças a cargo das amas residentes em Lisboa39. As estatísticas mostravam que a mortalidade das crianças entregues a amas era muito superior à normal para estas idades e ainda mais agravada nas crianças com idades até 7 anos. Apesar de existir uma consulta médica, estabelecida no edifício da Santa Casa, destinada ao tratamento dos expostos doentes, muitas vezes as amas não acorriam com a prontidão necessária ou não continuavam os tratamentos essenciais para a cura da doença quando regressavam a casa. A culpa não foi, porém, imputada apenas ao descuido das amas. O sistema de as amas terem de se deslocar com as crianças doentes para o local da consulta, percorrendo por vezes longos trajetos, sobretudo nos dias de muito frio ou húmidos, só por si explicava um aumento da mortalidade destas crianças e a constituição débil de muitas das sobreviventes. Outra das razões apontadas era a de que os remédios receitados no ato da consulta médica deveriam, como era costume, ser aviados numa única botica, o que obrigava as amas a deixar as crianças a seu cargo desamparadas, precisamente nestas alturas em que mais precisariam da sua assistência e cuidados. Pôs-se assim em vigor um regulamento provisório que permitiria aos expostos enfermos serem tratados nos seus domicílios pelos facultativos da Misericórdia, aproveitando-se os clínicos que realizavam o serviço de assistência às visitadas doentes. Foi igualmente ampliado o número de boticas onde as amas e as visitadas poderiam re-

correr para obter os medicamentos prescritos. O regulamento de 185440 reuniu então os dois serviços: o da assistência clínica aos expostos doentes com o das visitadas da Santa Casa. Os expostos assistidos seriam aqueles que estivessem a cargo das amas de leite e os que tivessem até à idade de 7 anos, residentes na cidade de Lisboa. Para efeitos deste serviço, em vez dos três antigos distritos do Serviço Clínico das Visitadas, criam-se seis distritos, cada um servido por um médico, um cirurgião e uma botica. Para este Serviço Clínico dos Expostos e Visitadas seriam escolhidas as boticas melhores e mais centrais de entre as existentes em cada distrito. Aos facultativos de cada distrito competia acudir imediatamente ao chamamento das amas das crianças enfermas e acompanhar o seu curativo, com o cuidado e assiduidade que exigisse a natureza e gravidade das doenças, receitando os medicamentos necessários. Se alguma das crianças não devesse ser tratada na sua residência, pelas condições da habitação, estado de saúde das amas ou outra circunstância, deveriam providenciar para que fossem recolhidas no Hospital dos Expostos, para ali serem assistidas. Os facultativos deveriam ainda verificar os óbitos das crianças a cargo da Santa Casa, passando as respetivas certidões. Os visitadores dos expostos receberiam diariamente da Contadoria da Misericórdia uma relação das amas que levavam expostos para criar e respetivas moradas, a fim de serem inspecionadas. Esta inspeção devia ser levada a cabo pelo facultativo do respetivo distrito, avisado pelo visitador, dando conhecimento daquelas que não tivessem as necessárias condições de salubridade, de forma que o visitador providenciasse a sua transferência para melhor habitação. As amas teriam o dever de chamar imediatamen-

38. Instrucções para servirem de guia …, p. 11. 39. A Mesa da SCML enviara uma Consulta com a proposta de regulamento para o Serviço Médico dos expostos enfermos residentes em Lisboa, datada de 11 de julho de 1854, in AHSCML, Constituição e Regulamentação, REGISTO DE CONSULTAS E REPRESENTAÇÕES, Livro 5 (1850-1856), fls. 124-126 v. Foi pedida ao Conselho Geral de Beneficência a restituição desta Consulta, que foi substituída por outra, datada de 31 de agosto de 1854, in idem, ibidem, fls. 130 v.-132, com algumas alterações. 40. Regulamento aprovado por Decreto de 10 de outubro de 1854, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Portarias e mais Diplomas, Livro 4 (1850-1858), fls. 92-93.

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7000

ENFERMOS assistidos entre 1864 e 190042

6500 6000 5500 5000

Nº DE ENFERMOS

4500 4000 3500 3000 2500 2000 1500 1000

Expostos

Pensionistas

te o facultativo do seu distrito assim que a criança a seu cargo adoecesse, prestando-lhe todos os cuidados necessários e realizando os tratamentos prescritos pelo médico, recebendo uma gratificação ao arbítrio da Mesa, que seria estabelecida de acordo com as informações prestadas pelos facultativos. Ainda em 1854 são nomeados os seis médicos e os seis cirurgiões destinados ao novo Serviço Clínico dos Expostos e das Visitadas da Santa Casa, escolhidos pelas suas habilitações e pelo serviço prestado41. Passados poucos anos, face às dificuldades que foram surgindo com a prática, a Mesa da SCML solicita a alteração deste regulamento, entendendo que os dois facultativos que existiam para cada distrito (um médico e um cirurgião) deviam ser só um cirurgião, com as habilitações que tinham os formados pelas Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto e com a responsabilidade

1898 - 1899

1899 - 1900

1896 - 1897

1897 - 1898

1895 - 1896

1893 - 1894

1894 - 1895

1891 - 1892

1892 - 1893

1890 - 1891

1888 - 1889

1889 - 1890

1886 - 1887

1887 - 1888

1885 - 1886

1883 - 1884

1884 - 1885

1881 - 1882

1882 - 1883

1880 - 1881

1878 - 1879

1879 - 1880

1876 - 1877

1877 - 1878

1874 - 1875

1875 - 1876

1873 - 1874

1871 - 1872

1872 - 1873

1870 - 1871

1869 - 1870

1868 - 1869

1866 - 1867

1867 - 1868

1865 - 1866

0

1864 - 1865

500

Visitadas

de todo o serviço do seu distrito: tratamento clínico e fiscalização higiénica sobre os expostos43. As crianças entregues a amas de Lisboa deviam ser todas, mesmo as maiores de 7 anos, assistidas pelos facultativos da Santa Casa. Estes deviam residir na área do seu distrito, no local o mais central possível, de forma a acudir rapidamente nos casos urgentes. Só em 1863 a Mesa aprova novo regulamento deste serviço, para cumprimento do decreto de 23 de setembro do mesmo ano44. Com este regulamento, a cidade ficou dividida em 12 distritos, onde se incluíam as freguesias de Belém e Ajuda, havendo para cada um deles um facultativo, que tinha obrigatoriamente de residir na área do seu distrito. Os facultativos eram nomeados pela Mesa da Santa Casa por um período de três anos, que podia ser prolongado.

41. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Portarias e mais Diplomas, Livro 4 (1850-1858), fls. 93 v.-94, Decreto de 10 de outubro de 1854. 42. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1863-1864 [ao ano de 1899-1900]. Lisboa: Imprensa Nacional [Typographia da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa], 1864 [a 1901]. 43. AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Consultas e Representações, Livro 6 (1856-1869), fls. 77 v.-79, Consulta de 28 de maio de 1861. 44. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Serviço das Visitas. Regulamento para execução do decreto de 23 de setembro de 1863. Lisboa: Typographia do Futuro, 1863, 26, [4] pp.; AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Portarias e mais Diplomas, Livro 5 (1859-1889), fls. 80 v.-82 v., Decreto de 23 de setembro de 1863.

141


| SAÚDE |

20000

VISITAS nos domicílios entre 1864 e 190045

18000

Nº DE VISITAS

16000 14000 12000 10000 8000 6000 4000

Expostos

As maiores alterações deram-se relativamente ao serviço clínico das visitadas. As pessoas com diplomas de visita, concedidos até à data do novo regulamento, mantinham os vencimentos atribuídos, desde que se mantivessem nas mesmas circunstâncias de não poder recorrer à caridade pública. Os novos diplomas de visita, atribuídos a pessoas pobres, passavam a dar direito apenas às visitas dos facultativos e aos remédios prescritos, enquanto durasse a enfermidade (por tempo determinado) ou enquanto a Mesa da SCML julgasse conveniente (por tempo indeterminado). Com estas alterações, verificadas nas consultas ao domicílio, pretendia-se estender os socorros clínicos a maior número de pessoas necessitadas, evitando a grande acumulação nos hospitais. Com esta finalidade fora estabelecido, em cada distrito, um posto de consulta, num local determinado pela Mesa ou escolhido pelo respetivo facultativo, onde este, duas vezes por semana e em dias e horas fixas, examina-

1898 - 1899

1899 - 1900

1896 - 1897

1897 - 1898

1895 - 1896

1893 - 1894

1894 - 1895

1891 - 1892

1892 - 1893

1890 - 1891

1888 - 1889

1889 - 1890

1886 - 1887

1887 - 1888

1885 - 1886

1883 - 1884

Pensionistas

1884 - 1885

1881 - 1882

1882 - 1883

1880 - 1881

1878 - 1879

1879 - 1880

1876 - 1877

1877 - 1878

1874 - 1875

1875 - 1876

1873 - 1874

1871 - 1872

1872 - 1873

1870 - 1871

1869 - 1870

1868 - 1869

1866 - 1867

1867 - 1868

1865 - 1866

0

1864 - 1865

2000

Visitadas

ria os doentes que aí acorressem, prescrevendo-lhes o tratamento necessário46. A partir de 1864 a Santa Casa difunde, em anexo aos relatórios e contas de gerência, a estatística referente a este serviço. Todos os anos a Santa Casa provia pessoas pobres de ambos os sexos com novos diplomas de visitadas, assegurando a assistência clínica e os medicamentos gratuitos em caso de enfermidade. Tinham ainda direito a ser visitadas nos seus domicílios em casos de doença as amas que tinham expostos da Santa Casa a seu cargo e as mães das crianças pensionistas da Misericórdia. Foi aprovado novo regulamento para este serviço em 187447, criando condições mais favoráveis ao exercício do serviço por parte dos facultativos e melhorando o serviço prestado ao doente. Como se pode observar nos gráficos, a partir de 1875 assistimos a uma diminuição das visitas ao domicílio e a um aumento do número de consultas nos postos

45. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1863-1864 [ao ano de 1899-1900]. Lisboa: Imprensa Nacional [Typographia da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa], 1864 [a 1901]. 46. O aumento do número de diplomas concedidos pela Santa Casa aos doentes pobres fora uma exigência do Governo, de forma que os enfermos da cidade pobres evitassem a ida ao hospital. Como o Hospital de São José poupasse com este serviço prestado pela Misericórdia de Lisboa, ficou obrigado a pagar à Santa Casa uma quantia anual, como compensação do maior encargo para os cofres da Santa Casa – Cf. Decreto de 23 de setembro de 1863, AHSCML, Constituição e Regulamentação, Registo de Portarias e mais Diplomas, Livro 5 (1859-1889), fls. 80 v.-82 v. 47. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Serviço Clinico das visitadas, expostos, e mais enfermos da Santa Casa da Misericordia de Lisboa: Regulamento approvado por Portaria de 29 de janeiro de 1874. Lisboa: Typographia do Futuro, 1874, 9 [15] p.

142


| HISTÓRIA E CULTURA |

34000 32000

CONSULTAS nos postos médicos (1864-1900)49

30000 28000

Nº DE CONSULTAS

26000 24000 22000 20000 18000 16000 14000 12000 10000 8000 6000 4000

médicos, resultado da medida tomada pela Santa Casa de autorizar os facultativos a mandar ir às consultas nos postos todos os doentes que não estivessem impossibilitados de sair de suas casas, ou seja, no caso de doenças menos graves48. Com a reforma do serviço da roda, em finais de 1870, assistimos ainda a uma progressiva diminuição do número de expostos entrados na Santa Casa e, consequentemente, dos enfermos assistidos nesta categoria. Desde 1878, as consultas avulsas referidas nas estatísticas dizem apenas respeito às realizadas a pessoas pobres doentes que não possuíam diploma de visita e a quem a Santa Casa não fornecia medicamentos gratuitos. Pretendendo diminuir a despesa com o fornecimento de medicamentos aos doentes pobres, pela primeira vez a Misericórdia adota um formulário farmacêutico, semelhante

Visitadas

1898 - 1899

1899 - 1900

1896 - 1897

1897 - 1898

1895 - 1896

1893 - 1894

1894 - 1895

1891 - 1892

1892 - 1893

1890 - 1891

1888 - 1889

1889 - 1890

1886 - 1887

1887 - 1888

1885 - 1886

1883 - 1884

1884 - 1885

1881 - 1882

Pensionistas

1882 - 1883

1880 - 1881

1878 - 1879

1879 - 1880

1876 - 1877

1877 - 1878

1874 - 1875

Expostos

1875 - 1876

1873 - 1874

1871 - 1872

1872 - 1873

1870 - 1871

1869 - 1870

1868 - 1869

1866 - 1867

1867 - 1868

1865 - 1866

0

1864 - 1865

2000

Avulsas

àqueles utilizados nos hospitais públicos, em 188350. Reorganizando-se o serviço das consultas em 1900, a Mesa da Misericórdia pretendeu que as consultas dos postos médicos passassem a realizar-se em casas próprias da Santa Casa, mas mantendo em vigor as disposições relativas a este serviço que haviam sido aprovadas pelo Regulamento de 1863 e alterações introduzidas em 187451. Com a criação da Direcção-Geral de Saúde e Beneficência Pública52, em outubro de 1899, os serviços de assistência médica na cidade de Lisboa são também reorganizados, continuando a Misericórdia de Lisboa a assegurar a assistência médica aos doentes pobres, recebendo ainda a gestão do antigo serviço municipal de subsídios e socorros a “crianças desvalidas e abandonadas”, a “enfermos e pessoas miseráveis” e a estudantes pobres53.

48. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1876-1877. Lisboa: Imprensa Nacional, 1878, p. IX. 49. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1863-1864 [ao ano de 1899-1900]. Lisboa: Imprensa Nacional [Typographia da Lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa], 1864 [a 1901]. 50. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA – Relatorio que a Mesa da SCML dirigiu ao Excellentissimo Senhor Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Reino com as Contas de Gerência do Anno Economico de 1883-1884. Lisboa: Imprensa Nacional, 1885, p. IV. 51. “Instruções para o Serviço de Consultas”, aprovadas e em anexo à Ata de Mesa de 1900-06-07, AHSCML, Órgãos de Administração, Actas das Sessões da Mesa, Livro 16 (1899-1904), fls. 77 v.-78. 52. Aprovação da Organização Superior dos Serviços de Saúde, Higiene e Beneficência Pública por decreto de 1899-10-04, publicado no Diário do Governo n.º 226, de 6 de outubro de 1899. 53. Decreto de 24 de dezembro de 1901, art.º 337, publicado no Diário do Governo n.º 292 de 26 de dezembro de 1901.

143


| BRASIL |

Santa Casa da Bahia

O património cultural como instrumento de

INTEGRAÇÃO SOCIAL Na Santa Casa de Misericórdia da Bahia, no Brasil o património cultural é utilizado como ferramenta de promoção da saúde cultural e da qualidade de vida. O projeto Saúde Cultural, ocorrido na enfermaria São Cristóvão do Hospital Santa Isabel, é um exemplo desta estratégia de sucesso. Texto de Heloisa Fernandes Gonçalves da Costa [PROFESSORA TITULAR DE MUSEOLOGIA NA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, MEMBRO DO FÓRUM UNESCO UNIVERSIDADES E PATRIMÓNIO E MORDOMA DIRETORA DO PATRIMÓNIO CULTURAL DA SANTA CASA DA BAHIA, BRASIL]

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| HISTÓRIA E CULTURA |

A

o longo dos seus 466 anos de atividade, a Santa Casa da Bahia, Brasil, tem procurado integrar os serviços de saúde, ação social e formação especializada em vários temas e níveis. Nesse sentido, o património cultural tem sido utilizado como instrumento de vinculação entre os serviços, promovendo a saúde cultural e a qualidade de vida dos usuários e dos fornecedores que trabalham como funcionários ou voluntários nessa antiga e enriquecedora instituição filantrópica. Este artigo pretende dar a conhecer um pouco mais das ações integradas da Santa Casa da Bahia e mostrar os resultados do projeto Saúde Cultural na enfermaria São Cristóvão do Hospital Santa Isabel, em Salvador, no ano de 2013. UMA PITADA DE HISTÓRIA No seu mais recente portfólio, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia afirma que a história da agora denominada Santa Casa da Bahia se confunde com a própria história da cidade de Salvador. Ambas foram fundadas em 1549, pelo governador-geral Thomé de Souza, que aportou no Brasil recém-conquistado com os mesmos ideais da Santa Casa de Lisboa. Nesse sentido, pode ler-se, na página 4 do do referido portfólio: “Ao longo dos séculos, a Santa Casa viveu de perto a história dos baianos, acolhendo enfermos, apoiando famílias carentes, abrindo espaço para celebrações sociais, investindo em novas tecnologias ligadas à saúde e na capacitação de profissionais.” Das atividades que vêm sendo realizadas pela Santa Casa da Bahia, respeitando o ideal das 14 obras de misericórdia, são de referir as seguintes: Área da saúde: Complexo Hospitalar contendo a Unidade de Oncologia Pediátrica Eric Loeff; Unidade Joaquim Neto; Instituto Baiano do Câncer-IBC; Ambulatório Silva Lima; Hospital Santa Izabel, antigo Hospital da Caridade, e suas unidades externas – a Clínica Mover, a Casa de Saúde Solange

Fraga e a Casa da Ladeira. Ainda administra unidades públicas por meio de convénios: Maternidade Prof. José Maria de Magalhães Netto; Multicentro do Vale das Pedrinhas e Multicentro de Amaralina, bairros bastante populosos no centro da cidade. Área sociocultural: programa Avançar (jovens adultos) e Centro de Educação Infantil (CEI) – com 6 unidades, atendendo cada uma 100 crianças, ambos no Bairro da Paz, populoso e periférico; Museu da Misericórdia; Centro de Memória Jorge Calmon (arquivo documental) e a Escola Materno Infantil da Pupileira. Outras áreas de atividade: Cemitério do Campo Santo; Cerimonial Rainha Leonor (grande espaço preparado para eventos diversos) e património imobiliário. Em cada um dos espaços acima referidos há um rico património cultural, muitas vezes desconhecido, até mesmo de quem trabalha na Santa Casa da Bahia. Refletindo sobre isso, voltamos ao pensamento de Milton Santos1. Ele já se expressava sobre o espaço, indicando que este é, ao mesmo tempo, forma e função. Ou seja, não existe espaço que possa ser compreendido apenas como território físico, como forma geométrica bem definida em polígonos, retângulos, mapas de ruas, avenidas, casas, entre outros. Qualquer espaço é, segundo o mestre, inseparável da gente que o habita, que o utiliza, que o modifica, que faz dele um ambiente de trabalho, de lazer, de moradia, enfim, um espaço de vida. Assim, “o espaço é um conjunto de objetos e um conjunto de ações”. As instituições culturais, educativas e científicas são espaços onde circula a vida e que, quotidianamente, passam por mudanças, transformam e ampliam os horizontes do conhecimento. Os seus objetos, móveis ou imóveis, estão interligados ao fazer humano, às descobertas científicas, artísticas, históricas, arqueológicas, entre outras. Assim, tanto o espaço interno como o externo tornam-se ricos, híbridos, interdisciplinares, estéticos, transbordan-

1. Geógrafo e brilhante professor interdisciplinar, perseguido pela ditadura militar no Brasil após o golpe de 1964, tendo vivido muitos anos exilado.

145


| BRASIL |

VISITA à sede do projeto Avançar, destinado a jovens adultos, no bairro da Paz, realizada no âmbito da atividade Caravana, da Santa Casa da Bahia

BANDA sinfónica infantil do bairro da Paz, em Salvador da Bahia

SALA de informática, destinada às crianças, que funciona no Centro de Referência em Promoção Social e Capacitação do projeto Avançar

146

tes. Por isso, também é necessário pensarmos sobre o espaço externo às instituições, a rua onde elas se encontram instaladas, o bairro, a cidade. Ainda acompanhando o raciocínio de Milton Santos, Pablo Argolo Maurutto diz: “A compreensão do conceito de espaço para a análise da diluição espaço-sociedade se faz essencial sob a ótica do todo ou de sistema. Dentro desse conceito o espaço expressa-se, segundo Milton Santos, como instância da sociedade; e, como tal, interage num conjunto de instâncias (economia, política, cultura) agindo dialeticamente como continente e conteúdo, paradigma e sintagma. O espaço é muito mais um evento que um elemento físico. Ele define-se segundo uma multiplicidade de conceitos que interagem na e com a forma. É como se forma tivesse corpo e alma. Ela é resultante e resultado de um conteúdo e é alterada com o movimento social de modo que um conteúdo se encaixa e interage a cada nova forma que por sua vez renova a sua concepção formal. Isso exemplifica-se na


| HISTÓRIA E CULTURA |

transgressão tipológica que se deu na cidade do Salvador.” Acerca da cidade de Salvador, o mesmo autor esclarece: “Quando ela era tida como Cidade do Comércio, nos sobrados estabeleciam-se moradias e comércio numa ocupação mista. Com a dinâmica urbana, o centro da cidade passou a adquirir uma especificação como zona do trabalho. Essa passagem da Cidade do Comércio para Cidade do Trabalho modificou o contexto social na região do centro e os donos dos estabelecimentos comerciais deslocaram-se para outras áreas e passaram a habitar os solares. Os antigos sobrados tornaram-se exclusivamente reservados ao comércio, sugerindo uma nova concepção tipológica e formal dentro e fora dos seus limites físicos. Essa segregação se deu em forma e função e ocasionou um novo conteúdo social. A interação é a essência do conceito de espaço, é o seu movimento dialético que o define como sistema” (MAURUTTO, 2002). Dessa forma, o delicado trabalho de tecer relações entre os patrimónios e a sociedade que os acolhe e nas quais estão inseridos é, na verdade, a elaboração de uma tessitura em que, à semelhança da costura de uma colcha de retalhos, cada parte inserida na trama tem uma função que contribui para que outra função se complete. Isso significa que o património cultural, as coleções dos museus ou o meio ambiente, ao serem compreendidos como objetos de vida quotidiana, mostram as faces e as almas dos seres humanos, seja a dos que construíram e/adaptaram, seja a dos que lhes deram usos diversos, seja a dos pesquisadores que desvelam os mistérios e segredos de cada objeto estudado. E cada um desses seres, em tempos históricos precisos ou menos exatos, imprimiram as suas marcas culturais e sociais nos objetos produzidos. Imprimiram até mesmo as caraterísticas espaciais dos territórios onde viviam, tal como se fosse possível obter uma genética do espaço, um senso do lugar ou território, do qual um gene possa ser isolado para estudo e que torna único o objeto que retém essa energia do ser e do espaço conjuntamente impregnada. Em verdade, os autênticos

FACHADA do Museu da Misericórdia, da Santa Casa da Bahia

O PATRIMÓNIO CULTURAL, AS COLEÇÕES DOS MUSEUS OU O MEIO AMBIENTE, AO SEREM COMPREENDIDOS COMO OBJETOS DE VIDA QUOTIDIANA, MOSTRAM AS FACES E AS ALMAS DOS SERES HUMANOS” patrimónios culturais são, em primeira instância, os seres humanos portadores de memória e da capacidade de criar e recriar valores e bens culturais. Refletindo dessa forma e verificando as inúmeras ações que a Santa Casa da Bahia promove, o setor cultural vem desenvolvendo desde 2005 uma atividade chamada Caravana, para apresentar todos os espaços da Santa Casa da Bahia aos funcionários e aos representantes da sociedade civil organizada, convidados a passarem um dia percorrendo as unidades de trabalho. Desse modo, inscrevem-se funcionários e 147


| BRASIL |

convidados para visitarem, desde as 07h30 e transportados em autocarro, o bairro da Paz – onde estão os CEI (600 crianças da escola fundamental) e o Avançar (120 jovens em momento de decisão profissional). Depois vão até o Complexo da Pupileira (sede da Provedoria e administração geral), onde almoçam no salão da imponente mesa em M. Em seguida, visitam o Hospital Santa Izabel e ouvem relatos ilustrados sobre as demais unidades. Partem depois em direção ao CamPORMENOR do Hospital Santa Izabel, propriedade da Santa Casa da Bahia

FACHADA do Hospital Santa Izabel, onde foi implementado o projeto Saúde Cultural, no espaço da enfermaria São Cristovão

148

po Santo (cemitério mais antigo da cidade), que possui um circuito cultural bem sinalizado, para terminarem a visita com um lanche no Museu da Misericórdia, ao fim da tarde. Durante o percurso, os participantes vão dando conta da influência marcante da Santa Casa da Bahia no projeto urbano e viário da cidade colonial que foi Salvador. Uma cidade que exerceu a função de primeira capital do Brasil, assim permanecendo de 1549 a 1763, quando Portugal decidiu a mudança da capital para o Rio de Janeiro. A Santa Casa da Bahia, ao iniciar os serviços num qualquer espaço da cidade, estimulava a expansão imobiliária e o surgimento de pequenas vilas de casas simples cujos moradores acorriam face à vizinhança “de uma irmandade a serviço do bem [...] para cuidar da pessoa e estimular a sua dignidade”. Confortados por essa vizinhança que lhes dava segurança e apoio na saúde, no convívio social e cultural, os habitantes de Salvador iam adensando o tecido urbano e familiarizando-se com a Santa Casa da Bahia , que ganhou um status preponderante na vida dos baianos. Pouco a pouco, esses espaços iam-se tornando bairros, povoando o território soteropolitano para transformá-lo no que é hoje: cidade capital (da Bahia) e cidade património (mundial).


| HISTÓRIA E CULTURA |

O PROJETO SAÚDE CULTURAL A enfermaria São Cristóvão do Hospital Santa Izabel é um dos espaços que acolhe pacientes através do Sistema Nacional de Saúde-SUS. Possui quartos amplos, que recebem seis pessoas cada. Tem janelas através das quais se pode ver árvores frutíferas centenárias, os prédios mais antigos e o jardim central. Neste jardim há uma pequena gruta e muitos eventos acontecem em torno dela, tais como música, contar de estórias, grupos de poesia. Conscientes de que o património cultural é um substancial instrumento para congregar as pessoas em torno da memória – em especial da memória afetiva –, possibilitando diálogo de gerações e elevação da autoestima, alunas do curso de Museologia e de História da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação de Heloisa Helena Costa, prepararam-se para testar as teses de Eric Kandel, neurologista e biólogo que partiu em busca da descoberta do local de fabricação de memória no ser humano, legando ao mundo as suas convicções sobre as memórias de curta e de longa duração. De facto, os estudos de Eric Kandel comprovaram que as memórias de longa duração são fundamentais para a saúde integral do ser humano e são capazes de promover a interação e também a criação de novas sinapses, estimulando positivamente o cérebro para o trabalho quotidiano de rememoração e de criação. Em paralelo, essas memórias garantem a saúde cultural dos indivíduos, porque se tornam possíveis a partir de estímulos emocionais e afetivos, dentre os quais o de ser capaz de reconhecer espaços e/ou objetos com significados simbólicos, portanto passíveis de serem patrimónios. Assim, em 2013 houve a oportunidade de propor ações culturais com o património do hospital e de outros espaços da Santa Casa da Bahia. Os estudantes que participaram receberam capacitação em educação patrimonial e em saúde integral. Dessa forma, conheceram mais profundamente aquilo que a Santa Casa da Bahia possui de bens culturais e aprenderam técnicas de animação cul-

A ENFERMARIA SÃO CRISTÓVÃO PASSOU A SER COMENTADA NOS CORREDORES E OS PACIENTES MOSTRAVAM-SE ORGULHOSOS DOS CONHECIMENTOS ADQUIRIDOS, FALANDO SOBRE ISSO COM OS AMIGOS E PARENTES EM HORÁRIO DE VISITA” tural para interagirem com os pacientes da referida unidade. Também receberam instruções sobre a forma de se comportarem no ambiente hospitalar, a partir de vídeos documentários e educativos, com questionários para respostas fechadas e abertas. O grupo de estudantes criou objetos de aprendizagem para uso nas sessões de conversa com os pacientes que puderam participar. Surgiram caça-palavras, jogos de memória, quebra-cabeças, poesias e músicas com temas históricos e patrimoniais advindos do saber popular. Todo esse material de trabalho foi feito para ser usado em ambiente hospitalar, isto é, com produtos não tóxicos, com ímanes para aqueles que só podiam participar na posição deitada e com pranchas de apoio ao quebra-cabeças de 30x40 cm. Participaram nesse projeto 40 pacientes, 12 membros do corpo médico e auxiliar. O projeto teve a duração de um semestre e o processo foi supervisionado pela equipa de psicologia do hospital. Os resultados foram surpreendentes. Muitos pacientes que estavam desanimados e preocupados com as suas doenças passaram a interagir mais com os outros, demonstraram interesse e disposição para trocas diversas e até manifestaram o desejo de conhecer a capela e o salão preto e branco, situado ao lado da escada de ferro feita na Inglaterra no século xix. Levando em consideração as constatações de 149


| BRASIL |

CENTRO de Educação Infantil Juracy Magalhães, da Misericórdia de Salvador da Bahia, no bairro da Paz

MUITOS PACIENTES QUE ESTAVAM DESANIMADOS E PREOCUPADOS COM AS SUAS DOENÇAS PASSARAM A INTERAGIR MAIS COM OS OUTROS” Mikhail Bakhtin e Carlos Fuentes sobre o facto de o romance histórico ser mais rapidamente absorvido pelo leitor e de a disseminação dos factos históricos ter maior eficácia através da ludicidade inerente ao contar de histórias, as estudantes exercitaram uma mediação cultural sob essas bases. Sentavam-se junto ao leito dos pacientes, às vezes reuniam dois ou três em torno delas, e contavam histórias da Santa Casa da Bahia, de personagens e de talentos, enfatizando que aquele 150

espaço era feito de objetos e de ações, enfim, de histórias de vida. Outras vezes faziam pequenos textos de teatro e envolviam os pacientes na cena, dando a cada um a possibilidade de ser uma personagem das histórias contadas. Não é de surpreender que a mais desejada tenha sido a da rainha D. Leonor de Lencastre, sua vida de menina, jovem e depois rainha, seus sofrimentos e resiliência, seu interesse pelas pessoas e pela cultura. Apoiadas no texto de Isabel dos Guimarães Sá sobre a história das relações culturais e artísticas da rainha D. Leonor com seu primo, o imperador Maximiliano, abordaram o interesse da rainha D. Leonor de Lencastre em estimular uma escola de pintura em Portugal a partir do ensino de pintores flamengos contratados a seu mando. Falaram acerca da sua extraordinária participação no surgimento do teatro português, mostraram aos participantes a personalidade mobilizadora, empreendedora, solidária e humana da rainha que criou o projeto das Santas Casas na recôndita Capela da Terra Solta, em Lisboa. As alegrias e sofrimentos da rainha D. Leonor tocaram profundamente os ouvintes. Percebia-se que eles se entregavam àquela figura histórica, igualando-se nos sentimentos, e começavam a fazer uso da palavra para contarem as suas próprias histórias de vida. Falavam das suas cidades de origem e das suas infâncias, deixando aflorar a memória afetiva. Isso trazia-lhes um grande bem-estar. As mediadoras escutavam com atenção e sensibilidade e a enfermaria parecia inundada de luz e de energia regeneradora. Os resultados da melhora física e emocional foram constatados pela equipa médica e declarados em reuniões de avaliação do projeto. A enfermaria São Cristóvão passou a ser comentada nos corredores e os pacientes mostravam-se orgulhosos dos conhecimentos adquiridos, falando sobre isso com os amigos e parentes em horário de visita. Um facto interessante foi a solicitação da irmã de um paciente idoso para poder gravar as sessões de mediação cultural. Pretendia assim que que o paciente pudesse rever estes momentos quando tivesse alta e que ela


| HISTÓRIA E CULTURA |

O CENTRO de Educação Infantil Juracy Magalhães tem capacidade para 100 crianças da escola fundamental

própria conseguisse aprender mais dessa história para dialogar com ele, pois antes disso ele pouco comunicava e ela estava encantada por poder conversar com ele. Outro facto encorajador para a equipa, mas também triste, foi o do jovem engenheiro que ali chegou, aguardando uma vaga na enfermaria oncológica. Este explicou que tinha feito engenharia por motivação familiar mas gostava muito mais de história. Então, afirmou que havia descoberto uma situação boa para a sua profissão: quando saísse, iria trabalhar no restauro de prédios históricos e assim contribuir para salvaguardar a história da Bahia. Mas antes que isso tivesse sido possível, partiu para outra dimensão cósmica, embora tenha tido dias muito alegres de integração com o grupo. Este projeto Saúde Cultural levou o grupo à compreensão de estar a cumprir bem a missão da Santa Casa da Bahia de “desenvolver ações de solidariedade nas áreas de saúde, educação, cultura e ação social inspiradas nos ideais de misericórdia”.

CIDADES SOLIDÁRIAS E SAUDÁVEIS Nestes anos iniciais do século XXI, as questões contemporâneas que vêm ganhando espaço nos ambientes de debate político, económico, social e cultural têm sido a da cidade como espaço afetivo e da vivência cultural nas cidades. Essa discussão leva-nos a relembrar uma antiga canção infantil, muito cantada nas rodas de brincar: “Se essa rua, se essa rua fosse minha eu mandava, eu mandava ladrilhar com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes só prá ver, só prá ver meu bem passar”. A metáfora da rua parece bem interessante para se repensar a ação social e o desenvolvimento humano como objetivo de trabalho dos profissionais que atuam com o património, tendo em conta que o património cultural é como uma raiz que permite ao indivíduo situar-se, estabelecer-se no espaço e sentir-se pertencente a alguma coisa muito maior do que sua simples e rápida existência humana. A situação do património cultural urbano em 151


| BRASIL |

SALAS de trabalho dos Centros de Educação Infantil Coração de Maria (em cima) e Nossa Senhora da Misericórdia (em baixo), geridos pela Santa Casa da Bahia, no bairro da Paz

desalinho – em estado de arruinamento ou tombado por terra para dar lugar a prédios que não têm significado para determinada sociedade – também adoece na alma e no espírito. Ao adoecer, apresenta sintomas físicos que podem ser confundidos apenas com doenças do corpo e, por isso mesmo, são difíceis de ser tratadas, porque não se dá atenção holística aos doentes, isto é, não se procura realizar uma anamnese integrada de corpo e alma, estado físico e emocional, conhecimento e sentimento. Ao esclarecer o que é património, a Declaração de Caracas de 1992 diz que o património cultural de uma nação, de uma região ou de uma comunidade é tudo aquilo que material, imaterial, ambiental e espiritualmente tem significado para aquele conjunto de pessoas. Essa afirmação indica que haverá sempre possíveis vínculos a ser estabelecidos entre os objetos, a sociedade e a vida quotidiana dos indivíduos, e que, através das ações museológicas memorialistas, os indivíduos podem vir a tomar consciência dos seus papéis como atores sociais. Se a rua da instituição cultural – isto é, o espaço que ela habita – fosse compreendida como a rua de todos os cidadãos, talvez existisse um consenso sobre a qualidade do território. Assim, as pedrinhas 152

de brilhante – que na canção infantil serviriam para enfeitar o caminho onde o amor fosse passar – poderiam ser calçadas dignas para o cidadão caminhar. Poderiam ser a iluminação correta que daria o brilho adequado para a segurança e a beleza, flores e fontes onde o olhar e o sentimento pudessem repousar nas idas e vindas entre o trabalho e a casa, música nas esquinas para alegrar a alma e despertar talentos. Poderiam ser o baixo índice de violência, porque a afetividade estaria a ser aplicada em primeiro plano. Poderiam ser a elevação da autoestima, porque todos, e cada qual, seriam valorizados nas suas atitudes cidadãs. Poderiam ser ainda o conhecimento compartilhado, porque haveria diálogo entre gerações, ou a leveza de espírito, porque o humor contagiaria as conversas ao pé dos elementos e espaços patrimoniais. Destas reflexões resulta a necessidade de criar ações de educação patrimonial que estejam voltadas para o desenvolvimento social, nas quais o caráter humano da ação técnica se sobreponha, pois os espaços preservam, como fiéis guardiões, uma parcela da cultura. Importa perguntar constantemente: para que se guardam monumentos e coleções? E para quem? Quem tirará proveito delas? Para que sociedade se estará contribuindo ao preservarmos o património cultural ali exposto? Dessa forma, os mais diversos tipos de património cultural, com seus elementos seculares, não se tornarão um peso “irremediavelmente necessário” a ser carregado, mas uma verdadeira herança que motiva e agrega cidadãos e com os quais a sociedade terá sempre possibilidade de estreitar um diálogo. Afinal, este património cultural é a extensão do talento, da habilidade, da genialidade humana, e uma grande contribuição ao desenvolvimento pleno e integrado dos seres humanos. As Santas Casas de Misericórdia são oriundas do talento, da perceção e da sensibilidade de uma mulher de pensamentos avançados em relação à sua época. Uma mulher dotada de grande saúde cultural, pois conseguiu manter o equilíbrio nas piores situações e foi capaz de produzir feitos de elevada relevância social, apesar das pressões de toda a ordem que sofreu.


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Essa rainha, de personalidade e caráter marcantes, ainda estimula a sociedade do século XXI a agir e produzir ações e relatórios como se ainda estivesse fisicamente presente, aguardando do outro lado da porta, mesmo que, muitas vezes, os executores sejam apenas voluntários ao serviço do bem. A rainha D. Leonor inspira ao compromisso, à lealdade, ao empreendedorismo e à esperança. É nesse sentido que o projeto Saúde Cultural na enfermaria São Cristóvão do Hospital Santa Izabel está a ser replicado noutras unidades hospitalares na cidade de Salvador, porque, tanto a rainha como os atuais seguidores dos seus princípios, encaram o ser humano como um património digno de ser cuidado e de ser amado. Todos os símbolos a que chamamos património são apenas a extensão da alma, do sentimento e da sensibilidade de cada ser criador. Por isso, são símbolos e não a essência plena e integral de cada ser; são instrumentos da memória para fazer que os seres humanos sejam lembrados, de geração em geração. São símbolos carregados de significados que, para serem descodificados, necessitam da união, do diálogo, da cumplicidade afetiva de seres de épocas posteriores, já que se trata de trabalhar com a energia de quem os fez. A contribuição do património cultural às cidades contemporâneas, em benefício do desenvolvimento humano – portanto afetivo –, tem por base a formação científica, técnica e humanística das equipas de trabalho, com aprofundamento holístico e transdisciplinar constante. A complexa estrutura das sociedades não tem permitido que os profissionais que atuam com os exemplares patrimoniais percebam a riqueza das coleções, a possibilidade de diálogo entre os objetos, entre pesquisadores, tal como entre esses e o público. Muitos ainda atuam com um olhar centrado nos seus próprios campos disciplinares quando, na realidade, as instituições são por natureza sistémicas, orgânicas e interdisciplinares. Nestas, o conhecimento integrado de várias disciplinas pode desvendar um universo infinito de novas vinculações entre áreas do saber. Essa atitude aberta e interessada de divulgar o conhecimento ao público e compartilhar com ele, permitindo que ações interativas

COMPLEXO da Pupileira, sede da provedoria e administração central da Santa Casa da Bahia, onde funciona também a Escola Materno Infantil (edifício na foto)

A RAINHA D. LEONOR INSPIRA AO COMPROMISSO, À LEALDADE, AO EMPREENDEDORISMO E À ESPERANÇA” aconteçam nos espaços de memória, parece apontar para um caminho objetivo, adequado e contributivo às ações sociais e ao desenvolvimento humano a partir do uso adequado do espaço patrimonial. Então, a rua de cada um poderia vir a ser a rua de todos nós, limpa, brilhante e bela e, quem sabe, poderíamos decretar que “agora vale a verdade, agora vale a vida, e de mãos dadas, trabalharemos todos pela vida verdadeira”.

BIBLIOGRAFIA BAKHTIN, Mikhail – O dialogismo. Rio de Janeiro: Editora Tempo, 2001. FUENTES, Carlos – A morte de Artêmio Cruz. http://br.geocities.com/pauloargolomaurutto2000 [Consult. 6 maio 2015]. KANDEl, Eric – Em busca da memória. São Paulo: Editora Cultrix, 2012. MELO, Thiago de – Estatutos do homem. São Paulo: Vergara & Riba Editoras. SANTOS, Milton – O espaço cidadão. 12.ª ed. Salvador: Editora UFBA, 2010.

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PAIAÇÚ,

um cântico pela interculturalidade Texto de Mónica Brito [TÉCNICA SUPERIOR DO SERVIÇO DE PÚBLICOS E DESENVOLVIMENTO CULTURAL, DIREÇÃO DA CULTURA_SCML]

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Encenação de textos do Padre António Vieira, Paiaçú volta a estar em cena na Igreja de São Roque. Encenador, atores e público testemunham as experiências, os desafios e as descobertas desta performance singular que é também um hino ao diálogo entre os povos.

VISTA DA IGREJA de São Roque durante uma das encenações de Paiaçú, com a cantora Sílvia Filipe

P

aiaçú significa “pai grande”, a forma como os índios do Brasil de Seiscentos chamavam o Padre António Vieira. Esta expressão foi o mote para uma encenação da autoria de Miguel Abreu e João Grosso que teve lugar na Igreja de São Roque, entre outubro de 2014 e maio de 2015, e que promete regressar em 2016. A performance teve a participação dos atores João Grosso e F. Pedro Oliveira, acompanhados pela voz de Sílvia Filipe e (por duas vezes) da de Sofia Portugal. Um trabalho destinado ao público em geral, nomeadamente ao público escolar, mais especificamente aos alunos do 11.º ano, cujos programas curriculares incluem o estudo desta grande figura da portugalidade e da interculturalidade, autor maior da língua portuguesa do século xvii. Paiaçú inicia com uma breve introdução de Miguel Abreu, esclarecendo que o nome da peça não se refere ao título de nenhum sermão do Padre António Vieira. A encenação parte da recolha de “excertos de vários sermões e também de algumas cartas ao rei e ao Papa, textos onde Vieira exprime o seu desejo de lutar pela libertação dos escravos índios do Grão-Pará e do Maranhão no Brasil”, explica o encenador. Nesta apresentação, Miguel Abreu mostra um chicote, afirmando que o Padre António Vieira foi o primeiro português a lutar publicamente contra este “instrumento de remuneração do trabalho” aplicado aos indígenas daqueles territórios explorados pelos portugueses. Esta bandeira valer-lhe-ia alguns anos de perseguição e a expulsão do Brasil.

JOÃO GROSSO como Padre António Vieira, do alto do púlpito da Igreja de São Roque, em Paiaçú

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| TEATRO |

ENCENAÇÃO de Paiaçú destinada ao público em geral, protagonizada pelo ator João Grosso

O encenador relata ainda como o projeto apresentado nasceu da vontade de mostrar a visão do Padre António Vieira em defesa do diálogo entre os povos e chama a atenção para o facto de o Conselho da Europa continuar a defender, como método de compreensão entre os povos, os mesmos princípios e valores que Vieira defendia: a justiça elementar do respeito pelo homem. Miguel Abreu remata a sua apresentação com a conclusão de que nós, portugueses, devemos ter muito orgulho na figura deste padre que, há 350 anos, lutou para que todos os homens, independentemente da sua cor, credo ou raça, fossem tratados justamente como irmãos. GÉNESE Em entrevista ao encenador, descobrimos mais pormenores acerca do nascimento de Paiaçú. A ocasião que deu origem ao projeto foi o “Todos. Caminhada de Culturas”, festival que dirige com

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EM CENA Graças ao seu êxito, haverá novamente oportunidade para os grupos escolares assistirem ao Paiaçú, em cena na Igreja de São Roque, às segundas-feiras pelas 10h00, de 19 de outubro 2015 até 30 de maio de 2016 (exceto períodos de férias escolares), interpretado por João Grosso ou F. Pedro Oliveira e Sofia de Portugal. Para o público em geral houve apresentações nos dias 14, 21 e 28 de novembro de 2015 e repetir-se-ão em 16, 23 e 30 de abril de 2016, com elenco composto por João Grosso e Sílvia Filipe. O custo é de 5 euros, com entrega dos textos encenados. Será necessária a marcação prévia no Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, através dos telefones 213240869/887/866.


| HISTÓRIA E CULTURA |

A MÚSICA FOI UMA FORMA DE EXTRAVASAR O ASPETO LITERÁRIO DA PEÇA, TRABALHANDO UMA DIMENSÃO INTERCULTURAL QUE NUNCA TINHA SIDO EXPLORADA” a empresa Cassefaz, desde 2009, para a Câmara de Lisboa, destinado a sensibilizar a população portuguesa – em particular a lisboeta – para o valor da interculturalidade, ou seja, do diálogo intercultural e inter-religioso. O ponto de partida foi a tese de doutoramento de Manuel Lopes Cardoso, que explora a dimensão intercultural do Padre António Vieira. Foram reunidos diversos textos com a mesma perspetiva. Depois, na Igreja de São Domingos – tão ligada à Inquisição – teve lugar uma encenação com o ator João Grosso. Não faltou a atuação de um grupo coral alentejano, recordando a emigração para o Brasil de muitos alentejanos contemporâneos de Vieira. O sucesso revelou-se na assistência de mil espectadores reunida na única sessão realizada. Mais tarde, por ocasião do lançamento da obra completa do Padre António Vieira, patrocinada pela Misericórdia de Lisboa, depois de Miguel Abreu, enquanto diretor da Cassefaz (ver caixa) ter enviado o projeto para a instituição, a diretora da Cultura, Margarida Montenegro, desafiou-o a adaptar a peça, não apenas para adultos mas também para o público escolar. Este foi o desafio tão magnanimamente conseguido. Para isso, a atuação do cante alentejano foi substituída pela interpretação de cânticos do mundo, feita pela cantora Sílvia Filipe. Estes cânticos conseguem expressar as lutas do povo contra ditadores e exploradores, sobretudo na América Latina, surgindo, “através da música, a

criação de um link com o século xx-xxi, na contemporanização do discurso e dos sermões do Padre António Vieira”, refere Miguel Abreu. Através de uma atitude de voz que nesta apresentação se assume claramente como espiritual e meditativa, todas as canções refletem a preocupação de afirmar a dignidade humana, os valores do homem. No fundo, foi uma forma de extravasar o aspeto literário da peça, trabalhando uma dimensão intercultural que nunca tinha sido explorada. Sendo esta temática tão pertinente

JOÃO GROSSO representando Padre António Vieira, no púlpito da Igreja de São Roque, numa das encenações de Paiaçú

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PADRE ANTÓNIO VIEIRA: BREVE BIOGRAFIA

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Nascido em 1608 na freguesia da Sé, em Lisboa, em 1614 embarcou para o Brasil com o seu pai, escrivão da corte, e aí ingressou no Colégio dos Jesuítas, na Bahia. Em 1623 professou na Companhia de Jesus, onde rapidamente foram reconhecidas as suas capacidades, sendo incumbido de reger a cadeira de Retórica e iniciando a pregação em 1635. Em 1641 viaja para Lisboa, integrando uma comitiva que foi manifestar a D. João IV a sua adesão à causa da Restauração. Sendo apadrinhado pelo monarca, torna-se pregador da corte e diplomata, encarregando-se de várias e delicadas missões relacionadas com a Restauração. O Padre António Vieira recomendou ao rei uma política fundada no poder económico da burguesia mercantil encarnada pelos cristãos-novos e, nesse sentido, opôs-se seriamente à Inquisição, à repressão e à discriminação deste grupo social. Voltou para o Brasil em 1653, para o estado do Maranhão. Na sua atividade como superior dos missionários da Companhia, chegou a usar, para a catequização, sete idiomas nativos, quer

no discurso oral quer na escrita de catecismos. Mais uma vez, a sua ação não se limitou à evangelização. Insurgiu-se fortemente contra a exploração dos indígenas e lutou pela liberdade dos nativos, o que opôs os jesuítas aos colonos na questão da mão-de-obra escrava e levou à expulsão de Vieira do Brasil em 1661. Em 1665, já sem o apoio do seu defensor, D. João IV, o Santo Ofício processa Vieira, condenando-o como herético pelo seu livro Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo, onde profetizava um império de conciliação judeu e cristão, inspirado nas Trovas de Bandarra. É amnistiado três anos depois, seguindo para Roma na procura de adeptos para as suas causas. Com a sua ação, consegue obter um breve papal que o protegia dos ataques da Inquisição, muito embora este tenha sido um sucesso de pouca durabilidade. Em 1681 retira-se para a Bahia, onde se dedica ao trabalho de compor e editar os seus sermões e outros escritos. Falece com 89 anos, sendo sepultado na Igreja da Companhia de Jesus em São Salvador da Bahia.

nos tempos em que vivemos, é possível mostrar aos jovens como a obra do Padre António Vieira se mostra tão à frente do seu tempo, como afirmou o encenador. Os dois atores escolhidos interpretam a pregação de Vieira, a partir de um dos púlpitos da igreja tal como da própria nave, perto dos seus interlocutores. João Grosso é um ator muito treinado na retórica e na dicção. Pela sua presença física e interpretação, Miguel Abreu considera-o mais próximo da imagem de um Padre António Vieira estadista, homem da corte e político. O encenador refere que F. Pedro Oliveira transmite uma energia mais paternal e próxima, pois tem muita prática com o público adolescente. Assim, foram exploradas duas dimensões de Vieira que se complementam.

EXPERIÊNCIAS E DESAFIOS Para João Grosso, a experiência de representar do púlpito foi extraordinária. Segundo o ator, é totalmente diferente estar no púlpito ou no coro da igreja. O tempo de reverberação é menor. “O som bate na parede lateral mais rapidamente e depois espalha-se pela nave. É muito interessante, porque existe um envolvimento físico, porque este som envolve o corpo todo. Esta componente emocional é muito importante no século xvii. Existia muitíssimo essa componente representacional, emocional e dramática. O som ajuda muito, porque não se trata de falar de boca a ouvidos, trata-se de falar de corpo para corpo. O som envolve tudo, unifica tudo. Em teatros isso não é possível, só em determinados espaços de igrejas, e a Igreja de São Roque tem essa caraterística.”


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Para os atores foi um desafio conquistar um público adolescente com textos do Padre António Vieira. F. Pedro Oliveira conta-nos como foi: “Há sempre aqueles risinhos, aquelas ‘bocas’. Mas isso é natural e não me perturba absolutamente nada. Depois de começar, a maior parte deles concentra-se e estão mesmo a ouvir. Sinto-os a seguir o texto quando os ouço a virar a página e estão todos a seguir com atenção. Já tenho bastante experiência de trabalhar para públicos mais novos. É um público diferente do adulto, não tem contemplações. Se não gosta, não gosta. Não está ali a aguentar o ‘pastel’ como um adulto. Felizmente, aqui tem sempre acontecido que os conseguimos conquistar.” Para este ator é espantoso que, mais de trezentos anos depois de o Padre António Vieira ter proferido os seus sermões, a sociedade continue

a precisar de ouvi-los. Neste sentido, F. Pedro Oliveira deseja que “as palavras não caiam em saco roto” num público que está a formar a sua personalidade. O desejo profundo partilhado por todos os atores desta peça é o de que as palavras de Vieira, de alguma forma, toquem estes pequenos espectadores e os ajudem na sua formação, de modo a que todos se tornem melhores cidadãos e cidadãs, inspirados a construir um mundo melhor. “É por isso que nós fazemos teatro”, conclui o ator.

A CANTORA Sílvia Filipe interpreta um cântico latino-americano, na peça Paiaçú

SUCESSO ENTRE O PÚBLICO ESCOLAR A reação dos alunos foi muito positiva. Para a Antónia Honrado, aluna do Colégio Moderno, foi apresentada uma perspetiva mais humana do Padre António Vieira. “O texto teve vida e foi encarnado por alguém”, explica. Também a seleção de textos foi uma surpresa de que os alunos gostaram, pois estes 159


| TEATRO |

eram-lhes totalmente desconhecidos, com exceção do Sermão de Santo António aos Peixes, que faz parte do curriculum escolar. Todos os entrevistados mencionaram o impacte que produziu a representação

numa igreja como a de São Roque, com todo o barroco que prolifera nas capelas. Um dos momentos altos de emoção foi quando as suas faces foram pintadas como se de índios se tratasse.

PAIAÇÚ: A EQUIPA Miguel Abreu, direção artística Com estudos em Direito e Teatro, estreou-se como ator em 1984 em Deseja-se Mulher, com encenação de Fernanda Lapa, no Centro de Arte Moderna – Fundação Calouste Gulbenkian. Fundou e dirige desde 1987 a produtora cultural Cassefaz e desde 2009 é diretor do festival TODOS – Caminhada de Culturas para a Câmara Municipal de Lisboa. Foi diretor do Teatro Municipal Maria Matos (1999-2004), programador de teatro do Centro Cultural de Belém (2000-2004), programador de teatro e diretor de produção de Faro – Capital Nacional da Cultura (2005). Até à data produziu e encenou mais de 120 espetáculos. Em 2012 concebe e dirige o projeto Paiaçú. João Grosso, ator João Grosso integra o elenco do Teatro Nacional de D. Maria II, onde foi diretor artístico entre 2001 e 2003. De salientar os seus desempenhos em Fausto, Fernando, Fragmentos, a partir de Fernando Pessoa, Barcas e Serviço d’Amores, de Gil Vicente, Berenice, de Racine, Medeia, de Eurípides, e Orgia, de Pasolini, desempenho que lhe valeu um Globo de Ouro para melhor ator em 2005. Em 1987 interpretou pela primeira vez Ode Marítima, de Fernando Pessoa, poema a que regressou em junho de 2012, com espetáculos em cena no Teatro Nacional de D. Maria II. Sílvia Filipe, atriz e cantora Formada pela Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e pela Escola de Música do Conservatório Nacional, trabalhou com diversos criadores na área teatral e musical, nomeadamente com os Artistas Unidos e com o Teatro Meridional. Inte-

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grou os elencos de O Burguês Fidalgo, de Molière, e Cândida, de André Murraças. Trabalhou como professora de Voz na Universidade de Évora, na Escola de Circo – Chapitô, na Escola Superior de Teatro e Cinema, na RTP e na associação SOU. Trabalha regularmente em séries e telenovelas de televisão. F. Pedro Oliveira, ator Concluiu o curso de Formação de Atores da Escola Superior de Teatro e Cinema em 1989. Participou em espetáculos, como: Dos Horácios e Curiácios à Noite, com encenação de Antonino Solmer, no ContraRegra; A Terceira Margem do Rio e Bichos, ambos com encenação de João Brites, n’O Bando; No Tempo em Que os Instrumentos Falavam, criação coletiva com Joana Amorim e Joana Bagulho, entre outros. Desde 1996 tem criado e participado em espetáculos, ateliers e animações dedicados às crianças. Desde 2003 é diretor artístico do projeto de teatro interativo Salto no Escuro. Sofia de Portugal, atriz, cantora e encenadora Licenciou-se no curso de Formação de Atores e Encenadores da Escola Superior de Teatro e Cinema e frequentou aulas de canto na Escola de Música do Conservatório de Lisboa. Estreia-se profissionalmente na ópera Blimunda, no Teatro Nacional de São Carlos, tendo trabalhado desde então com inúmeros encenadores. Faz encenação desde 2003. Desde 1992 participa como atriz e diretora de atores em diversas telenovelas, séries e telefilmes. Desenvolve trabalho como cantora profissional desde 1992.


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Todos os professores são unânimes em declarar que o estudo da obra do Padre António Vieira é central no âmbito do estudo da literatura portuguesa no ensino secundário. Segundo Ricardo Calado, professor da Escola Secundária Passos Manuel, estamos cada vez com menos orientação para o estudo da linguagem portuguesa menos próxima daquilo que é a linguagem do presente e, por isso, é frequente que os alunos tenham muita dificuldade em termos de vocabulário, uma vez que não temos acesso a

CASSEFAZ A Cassefaz é a primeira produtora cultural independente criada em Portugal, em 1987. Tem vindo a coordenar um conjunto de projetos artísticos, estruturais e de concetualização na área da produção cultural, em geral, e do teatro, em particular. É responsável e corresponsável pela criação de estruturas como CENTA (Vila Velha de Ródão), Fórum Dança (Lisboa), Centro Internacional de Teatro (Lisboa) ou Academia de Produtores Culturais (Lisboa). A Cassefaz levou também a cabo diversos projetos editoriais, como os da revista O Actor, Guia das Artes do Espetáculo I e II, Guia das Artes Visuais e do Espetáculo, Carta Estratégica dos Teatros de Lisboa, As Fronteiras do Travesti no Trabalho do Actor, entre outros. Simultaneamente, foi produzindo dezenas de espetáculos de teatro que refletem preocupações estéticas e ideológicas de diversos artistas e públicos, na afirmação de que a massa crítica só se desenvolve no confronto com a diversidade. No que a textos de autores eruditos diz respeito, a Cassefaz apresentou Auto da Sibila Cassandra e As Barcas – Viagens de Vida e de Morte, de Gil Vicente; As Alegres Comadres, de Shakespeare; Fedra, de Racine; O Misantropo e O Burguês Fidalgo, de Molière; A Relíquia, de Eça de Queiroz, e Paiaçú, de Padre António Vieira.

textos intermédios. “Começam com a Literatura de Amigo, segue-se para Gil Vicente e depois salta-se para o presente. O Padre António Vieira é, espantosamente, a melhor referência intermédia, porque, sendo um cultor da língua purista, é um clássico e, por isso, obriga os alunos a uma reflexão sobre a gramática da língua”, esclarece. Para Isabel Melo, professora da mesma escola, o Paiaçú foi uma oportunidade para estudar o estilo barroco, fazendo uma ponte entre a literatura, as artes plásticas e a arquitetura, que tanto impressionou os jovens. Para isso muito contribuiu a visita às capelas barrocas da Igreja de São Roque, que contextualizou os discursos de Vieira. Assim, tornou-se mais fácil aos espectadores terem uma dimensão completa da época e imaginarem o impacte das palavras do orador. Na opinião de Miguel Abreu, num tempo assolado por tantas conflitualidades religiosas, vê-se que as pessoas estão disponíveis e motivadas para “ouvir palavras bem ditas e pensamentos com valores associados” a este nível. O público, no geral, quer ter algum tempo para a reflexão interior, sem precisar de um grande aparato na performance. A sobriedade deste espetáculo apelou, quer pelas canções quer pelas palavras, a uma reflexão pacífica que proporcionou a muitos uma aparente paz interior e, ao mesmo tempo, alertou para um sentido de responsabilidade social e humanista.

O ENCENADOR Miguel Abreu, o ator João Grosso e a cantora e atriz Sílvia Filipe

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| PARTICIPAÇÃO |

OS IMPACTES DO

VOLUNTARIADO DA SCML PELA VOZ

DE BENEFICIÁRIOS, VOLUNTÁRIOS E SERVIÇOS

O voluntariado tem vindo a assumir protagonismo na conceção das políticas para o desenvolvimento sustentável. Na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa meio milhar de voluntários desempenha trabalho reconhecido e apreciado. Texto de Madalena Matos1, Teresa Amor2 e Sónia Costa2 [1. DOCENTE DO ISCTE – IUL, INVESTIGADORA DINÂMIA’CET – IUL; 2. INVESTIGADORA DINÂMIA’CET – IUL]

É

reconhecida internacionalmente a importância do voluntariado na sociedade atual, nomeadamente enquanto eixo de participação cívica democrática. Acompanhando de perto os processos de mudança social, o trabalho voluntário adquire dimensões e contornos novos que é necessário conhecer e analisar. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), onde meio milhar

de voluntários desempenha trabalho reconhecido e apreciado, acompanha este movimento de reflexão que valoriza o voluntariado. Este artigo tem por base os resultados de um estudo sobre o voluntariado na SCML1, realizado pelo DINÂMIA’CET – IUL / ISCTE – IUL para o Gabinete de Promoção do Voluntariado da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Globalmente, o objeto de

1. Estudo de avaliação dos impactes no âmbito do voluntariado da SCML ao nível dos beneficiários, serviços e voluntários, maio de 2015.

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| SOLIDARIEDADE |

estudo do projeto são os impactes – ao nível dos beneficiários, dos serviços e dos próprios voluntários – do trabalho voluntário na Misericórdia de Lisboa. Foram incluídas também dimensões de análise que, não estando, no sentido mais estrito, centradas na análise de impactes, aportaram elementos que possibilitam melhor compreender a complexidade da realidade do voluntariado na SCML. O voluntariado desenvolvido na SCML é de tipo formal e institucional, regular e de execução. Ou seja, é desenvolvido de forma sistemática, numa organização formalizada e de acordo com

compromissos assumidos entre as duas partes; desenvolvido de forma regular, no mínimo mensal, com intensidade variável, de acordo com a disponibilidade do voluntário e as necessidades dos serviços e dos beneficiários; garante a realização de tarefas relacionadas com o apoio direto aos beneficiários, como a dinamização de atividades e o funcionamento interno da organização; opera em três áreas – ação social, saúde e cultura – e tem como público-alvo crianças, jovens, adultos e idosos. Abrange 103 equipamentos e integra 516 voluntários que dão apoio a 8486 beneficiários2.

2. À data de 31 de março de 2014.

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| PARTICIPAÇÃO |

REVELADOR DA COMPLEXIDADE INTRÍNSECA À INTERVENÇÃO DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA É A DIVERSIDADE DOS PÚBLICOS JUNTO DE QUEM INTERVÉM, MAS TAMBÉM A DIVERSIDADE DE ESTRUTURAS, SERVIÇOS, EQUIPAMENTOS E MODELOS ORGANIZATIVOS INTERNOS” Metodologicamente, o estudo alicerçou-se em duas abordagens principais, complementares entre si. Por um lado, uma abordagem de natureza quantitativa, por via da realização de inquéritos por questionário representativos dos universos em estudo que possibilitaram caraterizar as motivações, os níveis de satisfação, os constrangimentos, as expectativas, a perceção sobre os resultados e os impactes dos três tipos de atores enquadrados no âmbito do projeto: beneficiários, voluntários e os próprios serviços da SCML. A aplicação dos inquéritos por questionário assumiu diferentes formatos, para responder às necessidades e caraterísticas dos vários destinatários. Assim, a aplicação dos questionários aos beneficiários do trabalho voluntário foi feita presencialmente por uma equipa de inquiridores. Os funcionários/colaboradores da instituição e os voluntários, por sua vez, responderam a um inquérito por questionário de autopreenchimento, disponibilizado tanto por via eletrónica (plataforma online) como em papel3.

Por outro lado, foi desenvolvida também uma abordagem de natureza qualitativa, por via da qual se pretendeu aprofundar, compreensivamente, o conhecimento relativo a cada uma das dimensões de análise. Esta abordagem traduziu-se na realização de entrevistas exploratórias a informantes privilegiados, entrevistas coletivas a beneficiários e focus-groups com os voluntários e os serviços da SCML. A opção por esta triangulação metodológica resultou da complexidade da realidade do voluntariado na SCML. Na verdade, o próprio decorrer do processo de pesquisa foi, para a equipa de investigação, revelador da complexidade intrínseca à intervenção da Santa Casa da Misericórdia de

3. Foram aplicados inquéritos por questionário aos beneficiários de voluntariado da SCML com mais de 14 anos, num total de 769 indivíduos, donde foi retirada uma amostra aleatória de 192 indivíduos, assumindo um erro amostral na ordem dos 5%. Foram igualmente aplicados inquéritos por questionário ao universo de voluntários da SCML, 516 pessoas, tendo sido recolhidos 246 inquéritos. Finalmente, foram aplicados inquéritos por questionário aos funcionários da SCML, uma população de 5364 pessoas, para um erro amostral de 5%. Neste caso, a amostra a extrair correspondia a 360 indivíduos. Todavia, uma vez que nem sempre foi possível respeitar estritamente o princípio da aleatoriedade e tendo em conta que se trata de uma amostra estratificada a vários níveis, a amostra foi alargada e foram recolhidos 643 inquéritos.

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Lisboa. Neste âmbito, coloca-se não só a diversidade dos públicos junto de quem intervém, mas também a diversidade de estruturas, serviços, equipamentos e modelos organizativos internos. Tanto quanto possível, procurou-se enquadrar essa diversidade no objeto empírico, de modo a que os resultados revelassem as práticas e representações dos vários atores, fossem elas mais ou menos coincidentes. Tendo por base quer a informação quantitativa quer a qualitativa, a primeira conclusão a retirar é a do elevado nível de satisfação com o trabalho voluntário de todos os atores contactados no âmbito do projeto e, sobretudo, a sua perceção deles sobre o impacte positivo do trabalho voluntário junto dos beneficiários da SCML. Considerando que neste estudo foram enquadrados três grandes grupos de inquirição (serviços, voluntários e beneficiários), importa destacar que aquele nível de satisfação é manifesto não só nos três grupos considerados isoladamente, como também na perceção que cada um deles tem sobre o

grau de satisfação dos outros. Deste ponto de vista, a informação recolhida qualitativamente nos focus-groups e entrevistas corrobora amplamente os resultados dos inquéritos por questionário. Os funcionários da SCML fazem uma avaliação globalmente positiva sobre o contributo dos voluntários para a intervenção da instituição. Apesar de identificarem alguns fatores de vulnerabilidade (por exemplo, a rotatividade dos voluntários), assumem globalmente o voluntariado como uma mais-valia. Para os funcionários, a perceção do voluntariado como uma mais-valia assenta em dois fatores principais: em primeiro lugar, o contributo para a gestão dos serviços, que se traduz, em grande medida, pelo reforço, alargamento e diversificação das respostas sociais oferecidas pela instituição aos seus utentes e pelo alívio da sobrecarga do trabalho dos funcionários; em segundo lugar, o apoio prestado aos utentes, designadamente pela possibilidade de prestar um apoio psicológico e emocional mais individualizado, bem como maior ajuda em tarefas/ atividades domésticas, ou ainda pela capacitação em diferentes domínios, como sejam os sociais, pessoais, linguísticos ou informáticos. Reconhecendo estes benefícios, ainda assim, os funcionários da SCML alertam também para a importância de se reforçarem os mecanismos de enquadramento e de motivação dos voluntários, otimizando, por esta via, a possibilidade de concretizar todo o potencial que o voluntariado encerra. Os representantes institucionais da SCML tendem a apontar também a integração de voluntários como uma mais-valia para os serviços. Neste caso, destacam, sobretudo, a aprendizagem a nível organizacional, decorrente da integração de pessoas externas à instituição, que os “confrontam” ou sugerem outras possibilidades de intervenção. A dimensão emocional e relacional é entendida como um dos principais impactes do voluntariado, quer em termos de apoio psicológico e emocional quer em termos de humanização dos serviços. O crescimento do voluntariado ao longo dos últimos anos é uma tendência identificada por quase todos os representantes institucionais da Santa 165


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Casa da Misericórdia de Lisboa. Considerando-o uma mais-valia para os serviços e para os utentes, manifestam-se maioritariamente favoráveis a que a instituição possa acolher ainda mais voluntários. As reservas a este crescimento, manifestadas por alguns entrevistados, baseiam-se em apreciações sobre a falta de tempo dos técnicos para enquadrar e acompanhar os voluntários, o receio de perder o emprego e certos obstáculos à gestão do voluntariado (rotatividade e assiduidade dos voluntários). No que respeita aos voluntários, a sua apreciação sobre o voluntariado na SCML, em geral, e no serviço que integram, em particular, é também muito positiva. O grau de satisfação dos voluntários resulta de retirarem da atividade voluntária sentimentos de utilidade, de solidariedade e de realização pessoal. É curioso observar que, a despeito dos obstáculos que enfrentam na sua atividade de voluntariado, isso não afeta de modo significativo o seu grau de satisfação. Os voluntários não deixam, no entanto, de fazer algumas sugestões de melhoria a diferentes níveis. Defendem essencialmente maior contacto entre voluntários e maior acompanhamento no decurso da sua atividade. Em relação aos principais impactes nos idosos, os voluntários destacam, em primeiro lugar, o apoio emocional, que se traduz na minimização do isolamento social e do sentimento de solidão vivenciado por alguns idosos (realização de atividades em comum, passear, conversar, etc.). Em segundo lugar, destacam o apoio funcional que enquadra, entre outros, o acompanhamento do idoso ao médico ou a outros serviços, as idas à farmácia ou à mercearia/supermercado e a organização da medicação. Em relação às crianças e jovens, o apoio emocional continua a destacar-se como o fator mais salientado pelos voluntários, surgindo, em segundo lugar, a criação de referências familiares. Como se afirmou, também os beneficiários (utentes da SCML) manifestam um elevado grau de satisfação com os impactes da ação voluntária nas suas vidas. A maioria destes beneficiários afirma que, com o apoio dos voluntários, a sua “vida 166

mudou para melhor”. Não surpreende por isso que as sugestões que apontam sejam no sentido do reforço e diversificação das atividades voluntárias. Os impactes referenciados pelos beneficiários prendem-se, sobretudo, com mudanças a nível das dimensões social e psicológica. No plano social, as principais mudanças são o menor isolamento social e o alargamento da sua rede social. No plano psicológico, destacam-se a redução de estados depressivos, de frustração, ansiedade, stress e nervosismo, e o aumento de autoestima. Existem algumas diferenças por grupos etários que decorrem, necessariamente, da especificidade da fase do ciclo de vida em que cada um está e que, por sua vez, teria já influenciado o tipo de resposta social em que cada um está enquadrado, incluindo também o apoio de voluntariado que é mobilizado para cada um daqueles grupos etários.


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O GRAU DE SATISFAÇÃO DOS VOLUNTÁRIOS RESULTA DE RETIRAREM DA ATIVIDADE VOLUNTÁRIA SENTIMENTOS DE UTILIDADE, DE SOLIDARIEDADE E DE REALIZAÇÃO PESSOAL”

Assim, as mudanças a nível social e a nível psicológico são apontadas sobretudo por beneficiários idosos e adultos. Na área da saúde, para além destas, acrescem ainda as melhorias ao nível da mobilidade e autonomia funcional (o que se deve ao facto de, no universo da SCML, existirem dois hospitais de referência na área da reabilitação física). Os idosos são os que mais concordam com afirmações como: “Fiz novos amigos”, “Estou mais feliz” e “Agora tenho alguém que se preocupa comigo/que me compreende”. A despeito de a presença do voluntário junto do idoso não ser, evidentemente, permanente, os resultados revelam, ainda assim, a influência positiva que, para estes idosos, o apoio dos voluntários teve em termos da sua perceção de bem-estar e da sua situação de menor isolamento social.

Já os jovens destacam, principalmente, a oportunidade de ter novas experiências (“Agora posso passar alguns dias fora do lar/casa”, “Tenho oportunidade de fazer coisas diferentes”), a alteração em termos de comportamento e rendimento escolar (“Tenho menos problemas de comportamento na escola”, “Melhorei as minhas notas na escola”) e, significativamente, o “Ter ganho novos objetivos de vida” e ter “Melhorado a relação com a família de origem”. Parece especialmente relevante que estas duas últimas categorias sejam mesmo as mais valorizadas por estes jovens. Com efeito, alguns destacam o facto de as saídas com os voluntários lhes permitirem sair para fora do “mundo mais fechado” do próprio lar e de, assim, terem novas experiências. Paralelamente, registaram-se também casos em que as crianças projetam para si mesmas a profissão que o voluntário que lhes é mais próximo tem. Considerando que se trata de jovens institucionalizados e que a pergunta se referia ao impacte da presença dos voluntários nas suas vidas, a resposta “Melhoria da relação com a família de origem” talvez não fosse a mais esperada. Mas a verdade é que alguns deles se referiram explicitamente à relação com a família de origem. Para além de, por vezes, serem eles a desempenhar também uma função de mediação entre os voluntários e a família (por a família recear que o filho/ filha valorize mais as possibilidades que o voluntário lhe oferece), o facto de muitos deles afirmarem explicitamente que os voluntários, e sobretudo os voluntários-amigos, são os seus principais confidentes poderá indiciar que os jovens falam também com eles sobre a sua família de origem. 167


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Simultaneamente, importa não esquecer o objetivo designado por uma representante institucional da SCML no que respeita à integração de voluntários em lares de crianças e jovens: atendendo a que aquelas crianças e jovens são um grupo cuja trajetória de vida tende a ser marcada pela noção de afastamento e/ou de perda, mas também, nalguns casos, pela instabilidade e imprevisibilidade das relações, pretende-se, com a presença dos voluntários, confrontar aquelas crianças com modelos relacionais positivos, designadamente familiares. Os impactes do trabalho voluntário estão longe de se restringir aos apoios funcionais. Se se considerar, por exemplo, os utentes mais vulneráveis do ponto de vista do isolamento social e/ ou familiar, percebe-se que as dimensões simbólicas detêm um lugar central. Para muitos deles, o que está em causa é que o seu sentimento de pertença e de reconhecimento pelos outros é reforçado pela presença do voluntário. Assentando nos laços aprofundados ao longo do tempo, os utentes mais vulneráveis projetam, por vezes, relações familiares na própria relação com os voluntários. Esta é uma dimensão emocional que não deve ser ignorada. O elevado grau de satisfação de todos os interlocutores contactados no âmbito deste estudo – assim como o impacte muito positivo que, maioritariamente, creem que a integração de voluntários tem na vida dos utentes apoiados por eles – não exclui que sejam identificadas também zonas de maior vulnerabilidade no modelo de voluntariado da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A este nível, os elementos mais apontados são a necessidade de reforço da formação dada aos voluntários e o enquadramento e acompanhamento dos mesmos nos serviços. Significativamente, essas referências são feitas no sentido em que, para uma parte dos inquiridos e dos entrevistados, essas vulnerabilidades condicionam a concretização de todo o potencial do voluntariado. De salvaguardar que, de uma forma geral, a formação é avaliada pelos voluntários como muito satisfatória, mas, no entender de parte de168

les, poderá ser ainda melhorada. Subjacente está, então, a ambição de otimizar ainda mais o potencial da ação voluntária, pelo que apelam à promoção de mais ações de formação específica, com vista à melhor capacitação dos voluntários para intervir em áreas específicas, com públicos específicos. O objetivo é, portanto, a aquisição de mais competências nos domínios em que exercem a sua atividade voluntária. O enquadramento dos voluntários é identificado como outra vulnerabilidade na estrutura do voluntariado da SCML. Se, para o s funcionários, esta fragilidade poderá também estar na base da falta de assiduidade ou desistência de alguns voluntários, para os próprios voluntários o principal argumen-


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to é a insegurança que por vezes sentem na sua ação. Se os regulamentos e o compromisso são encarados por eles como instrumentos enquadradores importantes, alguns acham que estes deveriam ser complementados por orientações regulares e de maior proximidade. Este acompanhamento mais regular e mais próximo daria resposta também à necessidade que alguns voluntários sentem de receber mais feedback por parte das equipas dos serviços onde estão colocados. A centralidade deste acompanhamento de proximidade é, de resto, identificada pelos próprios técnicos de enquadramento de voluntários. O exercício das outras funções que lhes

estão atribuídas enquanto funcionários da SCML dificulta-lhes, por vezes, o acompanhar mais de perto os voluntários. Mas são identificados também outros modelos de estruturação interna do voluntariado no próprio universo da SCML que, eventualmente, poderão minorar alguns desses constrangimentos (por exemplo, o acompanhamento por um “voluntário-sénior”). A exposição levada a cabo ilustra a larga experiência de voluntariado na SCML, o volume de pessoas implicadas, assim como a apreciação positiva deste tipo de intervenção. Deve constituir uma base de trabalho, de inspiração e de debate sobre a natureza e o lugar do trabalho voluntário a nível de intervenção social nas sociedades democráticas. As práticas de voluntariado evoluíram e acompanharam de perto os processos de mudança social, diversificando-se tanto em termos dos objetos como dos meios de intervenção, dos públicos como dos atores da atividade voluntária. Esta evolução decorre tanto de uma transformação societal – nomeadamente na relação entre indivíduo-ator e coletivo-sociedade – como da assunção pelos poderes políticos da importância da participação cívica na construção de sociedades democráticas. Na verdade, o reconhecimento institucional da importância social e económica do trabalho voluntário é uma realidade, nomeadamente por parte da Comissão Europeia (CE), que conduziu à instituição de 2011 como sendo oficialmente o Ano Europeu do Voluntariado. Este tipo específico de atividade, não sendo uma prática recente, tem assumido, sobretudo na última década, um especial protagonismo na conceção das políticas (sociais, educativas, económicas e de saúde) orientadas para o desenvolvimento sustentável do espaço europeu (Conselho da União Europeia, 2010). Portugal e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa não são alheios à importância desta reflexão e reconhecimento: Lisboa é, neste ano de 2015, a Capital Europeia do Voluntariado e a SCML uma das entidades que integra a comissão organizadora. 169


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INOVAR

E EMPREENDER,

UMA NECESSIDADE As empresas sociais desempenham um importante papel no futuro da Europa, contribuindo para a construção de um novo caminho para um crescimento inteligente, sustentável e necessariamente inclusivo. A Santa Casa desenvolve ações para um empreendedorismo social virado para a inovação por boas causas. Texto de Alexandra Rebelo [DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE EMPREENDEDORISMO E ECONOMIA SOCIAL_SCML]

“C

apacitar os empreendedores sociais para a inovação, o crescimento inclusivo e o emprego” é o título da Declaração de Estrasburgo, documento que resulta do trabalho de mais de dois mil empreendedores sociais, representativos da economia social em toda a sua diversidade. Reunidos em Estrasburgo no início de 2014, estes empreendedores afirmaram a necessidade de as empresas sociais poderem passar a desempenhar um importante papel no futuro da Europa, identificando ideias e ações capazes de libertar o potencial destes negócios, com o objetivo de iniciar um novo cami-

nho para um crescimento inteligente, sustentável e necessariamente inclusivo. Empreender é, na realidade, e a partir do ponto a que se chegou, começar de novo. “O modelo económico e social da Europa precisa de se reinventar. Necessitamos de um crescimento mais justo, mais verde e arreigado nas comunidades locais. Um modelo que valorize a coesão social enquanto verdadeira fonte de prosperidade coletiva.”1 As estruturas sociais existentes enfrentam grandes desafios com o aumento da longevidade dos cidadãos e com os elevados níveis de desemprego qualificado, jovem e sénior. Ao mesmo tempo, os

1. Declaração de Estrasburgo, 16 e 17 de janeiro de 2014 – http://ec.europa.eu/social-entrepreneurs.

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sistemas de proteção social trabalham com orçamentos e recursos limitados, o que faz que estes desafios precisem de novas medidas. Por isso, a modernização do sistema de proteção social tem sido um importante foco da Comissão Europeia (CE), tendo em vista os objetivos da estratégia Europa 2020 para a inclusão e o crescimento sustentável: a política de inovação social ajuda à identificação e à promoção de novas abordagens2. Impõe-se assim a criação de um tecido empresarial forte, formado por novas empresas sociais capazes de dar resposta aos problemas sociais

que as sociedades enfrentam. Neste novo paradigma, as empresas sociais devem partir para a realidade do mercado tendo sempre presente o bem comum. As empresas sociais unem-se assim em torno do que é mais essencial: “criam emprego, disponibilizam produtos e serviços inovadores e promovem uma economia mais sustentável. Regem-se pelos valores da solidariedade e da responsabilização, criam novas oportunidades e geram esperança para o futuro”3. Com a Declaração de Estrasburgo enveredou-se pela construção de um novo modelo empresarial,

2. Comissão Europeia – Social Policy Innovation Report. Directorate-General for Employment, Social Affairs and Inclusion, janeiro 2015. 3. Declaração de Estrasburgo, 16 e 17 de Janeiro de 2014 – http://ec.europa.eu/social-entrepreneurs.

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UMA EMPRESA SOCIAL É ECONOMICAMENTE VIÁVEL E OPERA NO MERCADO DE FORMA EMPREENDEDORA E INOVADORA, UTILIZANDO OS SEUS EXCEDENTES FINANCEIROS PARA ATINGIR METAS DE CARIZ SOCIAL” nela se firma um novo paradigma de inovação social, que surge no terreno, resultado de uma década de mudanças no terceiro setor, necessárias ao bom funcionamento das novas empresas sociais. Com o objetivo de serem agentes de mudança nas comunidades onde se inserem, as novas empresas sociais terão de assumir um modelo empresarial que possa garantir um equilíbrio entre as necessidades, os desafios e as exigências que enfrentam hoje no mercado global do século xxi. Se, por um lado, têm de cumprir com as necessidades do negócio, as necessidades económicas e financeiras, com vista à obtenção de resultados e à desejável sustentabilidade, as empresas sociais devem também responder aos desafios do mercado a nível social, cultural e ambiental. Estes conceitos, apesar de nem sempre fáceis de compreender e de implementar, têm de estar presentes na gestão de um negócio social. Por definição, empresa social4 é uma empresa cujo objetivo principal é a produção de impacto social e não a geração de lucros para os seus proprietários. Uma empresa social é economicamente viável e opera no mercado de forma empreende-

dora e inovadora, utilizando os seus excedentes financeiros para atingir metas de cariz social. Em linha com esta definição, a Iniciativa de Empreendedorismo Social5 indica as caraterísticas comuns da realidade empreendedora das empresas sociais: • as receitas são obtidas a partir de uma atividade económica; • têm um objetivo social orientado para o interesse comum, que justifica a atividade económica e que se traduz, frequentemente, num alto nível de inovação social; • os lucros são principalmente reinvestidos na realização do objetivo social; • o modo de organização ou sistema de propriedade reflete a sua missão, baseando-se numa governação democrática ou em princípios participativos, ou visando a justiça social. A Comissão Europeia sublinha ainda “a importância do alinhamento com os interesses da comunidade; a utilização da inovação através dos produtos e serviços; proporcionar emprego aos mais fragilizados; contribuir para a coesão social, emprego e redução das desigualdades sociais”6. O objetivo é contribuir para a criação de ambiente favorável ao desenvolvimento de negócios sociais em larga escala. A diversidade deste movimento de mudança social é tomada como riqueza e é através dela que se entende o conceito de empreendedorismo social. No Journal of Business Ethics, Filipe Santos sugere que “o empreendedorismo social é o processo de procura de soluções sustentáveis para problemas negligenciados da sociedade com resultados positivos”7, o que pode levar à procura de soluções inovadoras, traduzindo-se em inovação social sempre que se criem respostas mais efetivas relativamente às alternativas existentes para os problemas sociais em questão.

4. Comissão Europeia – Programa Easy. http://ec.europa.eu/social/easi 5. Comissão Europeia – Iniciativa de Empreendedorismo Social. http://ec.europa.eu/internal_market/social_business/index_en.htm. 6. Ibidem. 7. Cfr. SANTOS, Filipe – A positive theory of social entrepreneurship. Journal of Business Ethics, n.º 111 (2012), pp. 335-351. Disponível em http://link.springer.com/article/10.1007/s10551-012-1413-4/fulltext.html.

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SESSÃO de capacitação – programas de empreendedorismo Santa Casa

O conceito de empreendedorismo social distingue-se do conceito de empreendedorismo tradicional, uma vez que o primeiro tem como missão criar e maximizar valor social, com a resolução dos problemas da sociedade através de atividades inovadoras, ao passo que o empreendedorismo tradicional tem como objetivo máximo a criação de valor para a obtenção de riqueza: o lucro ou o valor económico. Contudo, e de acordo com a Declaração de Estrasburgo, é necessário avançar com um conjunto de ações que garantam um equilíbrio entre as necessidades de caráter financeiro, social, cultural e ambiental. Inovar para crescer, capacitar, combater as fragilidades sociais e o desemprego

AS EMPRESAS SOCIAIS DEVEM PARTIR PARA A REALIDADE DO MERCADO TENDO SEMPRE PRESENTE O BEM COMUM” para, de forma inclusiva e mediante uma política mais interventiva, viabilizar um empreendedorismo social robusto, ou seja, um empreendedorismo social sustentável. O empreendedorismo e a inovação de cariz social inserem-se assim numa dinâmica de combate à pobreza e à exclusão 173


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O EMPREENDEDORISMO E A INOVAÇÃO DE CARIZ SOCIAL INSEREM-SE ASSIM NUMA DINÂMICA DE COMBATE À POBREZA E À EXCLUSÃO SOCIAL, COM A CRIAÇÃO DE MICRONEGÓCIOS COMO FORMA DE GARANTIR O PRÓPRIO EMPREGO”

social, com a criação de micronegócios como forma de garantir o próprio emprego. Empreendedorismo e inovação são um binómio importante no desenvolvimento e na alavancagem dos negócios do terceiro setor. Como disse Diogo de Vasconcelos, é preciso “assumir o cariz estratégico da inovação”8. O autor considera que, “dada a importância da inovação no crescimento sustentado das economias, a União Europeia, no âmbito da estratégia Europa 2020, define a inovação como um dos três pilares-chave […], criando algumas iniciativas políticas emblemáticas como são a União pela Inovação (Innovation Union)”. Com esta iniciativa, o Conselho Europeu reconheceu o cariz estratégico e transversal da inovação9.

8. Cfr. VASCONCELOS, Diogo de – Temos de fazer de Portugal uma “start up nation”. Público, 25 de julho de 2011. Disponível em http://www.publico.pt/economia/noticia/diogo-vasconcelos-temos-de-fazer-de-portugal-uma-start-up-nation_1504589. 9. Comissão Europeia – Innovation Union. http://ec.europa.eu/research/innovation-union/index_en.cfm.

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O apelo para que se ponha em ação o potencial das empresas sociais não deixa margem para dúvidas: a Europa precisa de mais empresas sociais. “As empresas sociais funcionam. São eficazes. Não há lugar na Europa que não possa beneficiar do empreendedorismo social. No atual momento de crise económica global e face aos desafios do envelhecimento demográfico, do desemprego juvenil, das alterações climáticas e das disparidades crescentes, a Europa precisa de mais empresas sociais.”10 De facto, em muitos dos Estados membros estão a ser tomadas medidas para fomentar o desenvolvimento desta nova realidade empresarial. Ao nível da União Europeia, a Iniciativa de Empreendedorismo Social constituiu um primeiro passo positivo no sentido de promover ecossistemas para as empresas sociais. “Nesta nova Europa, todos os atores devem ver o crescimento e a criação de valor de um ponto de vista mais alargado”11. Cada ação passa por ter em conta e saber jogar com todos os fatores em campo: poder central e poder local, enquadramento jurídico, acessibilidade financeira, potencialidade empresarial, capacitação e desenvolvimento de negócio social, trabalho em rede e parcerias, com partilha de experiências. A Comissão Europeia está a atribuir às empresas sociais um papel mais relevante nas reformas estruturais, nomeadamente nos casos em que a economia social se encontra menos desenvolvida. Como? Com um conjunto de ações bem definidas na Declaração de Estrasburgo12: “A Comissão, os Estados membros e as regiões devem fomentar uma cooperação sem fronteiras entre empresas sociais para permitir a partilha de experiências e boas práticas”; “Os atores públicos e privados devem criar uma gama completa de instrumentos financeiros adequados”;

A COMISSÃO EUROPEIA ESTÁ A ATRIBUIR ÀS EMPRESAS SOCIAIS UM PAPEL MAIS RELEVANTE NAS REFORMAS ESTRUTURAIS, NOMEADAMENTE NOS CASOS EM QUE A ECONOMIA SOCIAL SE ENCONTRA MENOS DESENVOLVIDA” “Os esforços de investigação e de recolha de dados estatísticos a nível nacional sobre as empresas sociais devem ser prosseguidos, para uma melhor compreensão e visibilidade do setor”; “Nesta nova Europa, todos os atores devem ver o crescimento e a criação de valor de um ponto de vista mais alargado”. Para concluir e aprofundar este último item, de destacar os 14 Pilares de Empreendedorismo13, identificados por Acs, Szerb e Autio. São um índice para compreender o desenvolvimento económico, viabilizando uma medida que estabelece a sua relação com o empreendedorismo. Os autores entendem que os níveis de desenvolvimento são mais variados na sua fase de inovação do que nas fases de eficiência e de impulso inicial. As implicações que daqui se retiram para as políticas públicas sugerem que as instituições necessitam de ser reforçadas antes que a fonte empreendedora possa ser plenamente desenvolvida.

10. Comissão Europeia – http://ec.europa.eu/social-entrepreneurs. 11. Ibidem. 12. Ibidem. 13. ACS, Zoltán J.; SZERB, László; AUTIO, Erkko – The Global Entrepreneurship and Development Index. 2013. Ver também: ACS, Zoltán J.; SZERB, László – The Global Entrepreneurship and Devevelopment Index (GEDI). Imperial College London Business School (16-18 junho, 2010).

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SANTA CASA NA EUROPEAN VENTURE PHILANTROPHY ASSOCIATION Por sugestão do Departamento de Empreendedorismo e Economia Social (DEES), a Santa Casa aderiu à European Venture Philantrophy Association (EVPA) como membro associado, por considerar importante o apoio que poderá ser dado por esta associação internacional. A EVPA tem como membros fundos de investimento social e organizações filantrópicas. O seu principal objetivo é reunir conhecimento e promover contactos, fomentar o conceito e a prática da filantropia de impacto e de investimento social na Europa. http://evpa.eu.com/

LINHAS DE ORIENTAÇÃO O Departamento de Empreendedorismo e Economia Social (DEES)14 tem tido um papel ativo no GRAIS – Grupo de Reflexão para a Avaliação do Impacto Social, desde o seu início. Do trabalho conjunto de várias entidades resultou um documento que agrega as “Linhas de orientação para investidores e financiadores socialmente responsáveis”, documento aprovado pela Mesa da Santa Casa. Os próximos passos são comunicar e trabalhar para a implementação de uma verdadeira cultura de avaliação de impacto em Portugal. http://grace.pt/conteudos/linhas_orientacao/linhas-de-orientacao-para-investidores-e-financiadores-socialmente-responsaveis.pdf

Os principais pontos indicados pelos autores e considerados como pilares do empreendedorismo referem-se à perceção da oportunidade (opportunity perception), aos novos talentos (startup skills), à audácia no arriscar (nonfear of failure), ao trabalho em rede (networking), ao apoio cultural (cultural support), às novas oportunidades (opportunity startup), ao setor das tecnologias (tech sector), à qualidade de recursos humanos (quality of human ressources), à competitividade (competition), à inovação da produção (product innovation), à inovação processual (process innovation) à internacionalização (internationalization) e ao capital de risco (risk capital). No contexto de empreendedorismo social virado para a inovação por boas causas, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa desenvolve atividade através do seu Departamento de Empreendedorismo e Economia Social, tendo em linha de conta as orientações europeias e o trabalho científico existente, participando em grupos de trabalho e atividades de associações ligadas ao terceiro setor14.

14. http://www.scml.pt/PT/areas_de_intervencao/empreendedorismo_e_economia_social/.

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Tal como escreveu o Provedor, Pedro Santana Lopes, na coluna que assina no Jornal de Negócios, estas áreas “são das que mais expectativas têm despertado no quase deserto de esperança que têm sido os últimos anos para muitos cidadãos europeus. [….] Estes conceitos de economia social e de empresa social são componentes fundamentais deste novo léxico e deste novo mundo em movimento”15. Muito trabalho há ainda a desenvolver para a autonomia do terceiro setor, há que continuar a empreender e a inovar. Inovar sempre. Portugal tem uma palavra a dizer na diversidade dos seus agentes sociais. A Santa Casa também. Nesse sentido, tal como afirmou o seu Provedor no texto de introdução do Plano e Orçamento 2014, “o desejo de aprender e de fazer de outra forma

MUITO TRABALHO HÁ AINDA A DESENVOLVER PARA A AUTONOMIA DO TERCEIRO SETOR, HÁ QUE CONTINUAR A EMPREENDER E A INOVAR. INOVAR SEMPRE” e com outros meios, sem nos demitirmos daquela que é a vocação desta Santa Casa, define a nossa contribuição para a construção de um mundo que promova a dignidade humana e o bem comum”16.

BIBLIOGRAFIA ACS, Zoltán J.; SZERB, László – The Global Entrepreneurship and Devevelopment Index (GEDI). Imperial College London Business School (16-18 junho, 2010). ACS, Zoltán J.; SZERB, László; AUTIO, Erkko – The Global Entrepreneurship and Development Index. 2013. BUREAU OF EUROPEAN POLICY ADVISERS (BEPA) – Social Innovation. A Decade of Changes. Agosto 2014.

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15. SANTANA LOPES, Pedro – Inovação Social e humildade. Jornal de Negócios, 5 de fevereiro de 2015. 16. SANTANA LOPES, Pedro – Plano e Orçamento 2014 da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa [Introdução]. Lisboa: SCML, 14 de outubro de 2013, p. 8.

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LIVROS | NOSSA SUGESTÃO |

Cuidar na vida e na morte: Memórias antes que a memória se apague Autor: Ana Campos Reis Edição: Edições Mahatma, 2015 ISBN: 978-989-8522-75-7 Preço: ¤13,00

A Casa da Sorte: sua história no âmbito dos jogos de fortuna ou azar em Portugal Autores: Vários Edição: Centro de Estudos Lusíadas (Universidade do Minho), 2005 ISBN: 972-99814-0-X Preço: ¤10,00 Em 1933, Braga assistiu ao nascimento da empresa que, durante décadas, foi nome incontornável em qualquer conversa sobre jogos e apostas: a Casa da Sorte, que abriria sucursais por Portugal e colónias. Vários autores tratam aqui a história desta curiosa empresa que, em 1972, integrou alguns trabalhadores na sua gestão, envolvendo-os “não só na gerência das empresas, mas também nos seus resultados”.

O Jogo em Portugal Autores: José Pereira de Deus, António Jorge Lé Edição: MinervaCoimbra, 2001 ISBN: 972-798-009-0 Preço: ¤29,71 “O hábito de jogar era tão explícito que rapidamente se alastrou. A esta realidade nada havia a fazer”, afirmam os autores desta obra sobre a história do jogo em Portugal. Desde a pena de morte instituída por D. Dinis aos batoteiros ao aparecimento do jogo online, aborda-se a histórica reprovação moral deste fenómeno e como foi crescendo e sendo enquadrado legal e socialmente.

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“Despertou a vontade de guardar alguns momentos. Comecei a escrever as histórias que mais me tocaram”, explica Ana Campos Reis, enfermeira e responsável pela Direção de Intervenção com Públicos Vulneráveis da Misericórdia de Lisboa, que aqui desfia as suas memórias. Desde a infância no concelho de Odemira aos projetos que coordenou no apoio à população com VIH/Sida, o seu percurso reflete uma vida de dedicação e compreensão do outro.

Os Jogos Sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: Ao Serviço das Boas Causas Autores: João Matoso, Pedro Lisboa, Osvaldo Macedo de Sousa Edição: SCML, 2004 ISBN: 972-8761-04-X Preço: ¤13,50 Os jogos sociais cumpriram um papel fundamental na consolidação da missão da Misericórdia de Lisboa. Por isso, ao considerarem que “as atividades lúdicas têm desempenhado um importante papel no desenrolar da vida humana”, os autores narram a história das lotarias, a sua introdução em Portugal e concessão à Santa Casa, o grafismo dos bilhetes e das campanhas e as várias metamorfoses dos jogos.

Historia Ilustrada de las Loterías en España Autor: Roberto Garvía Edição: Lunwerg Editores, 2007 ISBN: 978-84-9785-442-9 Preço: ¤39,50 O conceito de jogos sociais está intimamente ligado à história de Portugal e da assistência, mas não é exclusivamente português. Qual é o cenário em Espanha? Partindo do facto de mais de 50% dos espanhóis jogarem regularmente nas lotarias, Roberto Garvía dá a conhecer o percurso dos jogos de sorte neste país, a sua complexa relação com o Estado e a implantação nos vários grupos sociais.


LEGISLAÇÃO

MARÇO A SETEMBRO DE 2015 | N.OS 34 |

PORTARIA 59/2015, de 02-03 IN: Diário da República, série l, n.º 42/2015, de 02-03, p. 1252-1256 Resumo: Define as condições de organização, funcionamento e instalação de estabelecimentos residenciais, designados por lar residencial e residência autónoma. PORTARIA 60/2015, de 02-03 IN: Diário da República, série l, n.º 42/2015, de 02-03, p. 1256-1258 Resumo: Estabelece as condições de organização e funcionamento do Centro de Atendimento, Acompanhamento e Reabilitação Social para Pessoas com Deficiência e Incapacidade (CAARPD).

os Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de dezembro. PORTARIA 140/2015, de 20-05 IN: Diário da República, série l, n.º 97/2015, de 20-05, p. 2607-2610 Resumo: Regulamenta o funcionamento dos Gabinetes de Inserção Profissional. DESPACHO 5613/2015, de 27-05 IN: Diário da República, série ll, n.º 102/2015, de 27-05, p. 13550-13553 Resumo: Aprova a Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde 2015-2020, que consta do anexo ao presente despacho.

RESOLUÇÃO 12-B/2015, de 20-03 IN: Diário da República, série l, n.º 56, 1.º supl./2015, de 20-03, p. 1654-(2) - 1654-(24) Resumo: Aprova o Plano Estratégico para as Migrações (2015-2020).

PORTARIA 173/2015, de 08-06 IN: Diário da República, série l, n.º 110/2015, de 08-06, p. 3643-3655 Resumo: Aprova o Regulamento do jogo apostas desportivas à cota de base territorial.

PORTARIA 97-A/2015, de 30-03 IN: Diário da República, série l, n.º 62, 1.º supl. /2015, de 30-03, p. 1722-(2) - 1722-(74) Resumo: Adota o regulamento específico do domínio da Inclusão Social e Emprego.

RESOLUÇÃO 60/2015, de 11-06 IN: Diário da República, série l, n.º 112/2015, de 11-06, p. 3700 Resumo: Recomenda ao Governo a definição de uma estratégia para o aprofundamento da cidadania e da participação democrática e política dos jovens.

DECRETO-LEI 44/2015, de 01-04 IN: Diário da República, série l, n.º 64/2015, de 01-04, p. 1731-1732 Resumo: Procede à segunda alteração ao DecretoLei n.º 165-A/2013, de 23 de dezembro, que cria o Fundo de Reestruturação do Setor Solidário e estabelece o seu regime jurídico. DECRETO-LEI 64/2015, de 29-04 IN: Diário da República, série l, n.º 83/2015, de 29-04, p. 2122-2124 Resumo: Procede à sexta alteração ao Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de dezembro, que reformula a Lei do Jogo. DECRETO-LEI 68/2015, de 29-04 IN: Diário da República, série l, n.º 83/2015, de 29-04, p. 2176-2185 Resumo: No uso da autorização legislativa pela Lei n.º 73/2014, de 2 de setembro, aprova os regimes jurídicos da exploração e prática das apostas hípicas mútuas de base territorial e da atribuição da exploração de hipódromos, e altera

DESPACHO 6478/2015, de 11-06 IN: Diário da República, série ll, n.º 112/2015, de 11-06, p. 15399 Resumo: Despacho que estabelece a verba para financiamento dos produtos de apoio destinados às pessoas com deficiência e com incapacidade temporária. RESOLUÇÃO 65/2015, de 17-06 IN: Diário da República, série l, n.º 116/2015, de 17-06, p. 3901-3902 Resumo: Combater o desperdício alimentar para promover uma gestão eficiente dos alimentos. PORTARIA 190-B/2015, de 26-06 IN: Diário da República, série l, n.º 123, 1º supl./2015, de 26-06, p. 4494-(6) - 4494-(26) Resumo: Aprova o Regulamento Geral do Fundo de Auxílio Europeu às Pessoas Mais Carenciadas e o Regulamento Específico do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas.

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LEGISLAÇÃO DECRETO-LEI 120/2015, de 30-06 IN: Diário da República, série l, n.º 125/2015, de 30-06, p. 4530-4532 Resumo: Estabelece os princípios orientadores e o enquadramento a que deve obedecer a cooperação entre o Estado e as entidades do setor social e solidário.

RESOLUÇÃO 115/2015, de 10-08 IN: Diário da República, série l, n.º 154/2015, de 10-08, p. 5672 Resumo: Reforça os meios da Autoridade para as Condições do Trabalho e cria um Plano Nacional de Combate às Discriminações em função da Maternidade e Paternidade.

RESOLUÇÃO 70/2015, de 01-07 IN: Diário da República, série l, n.º 126/2015, de 01-07, p. 4547 Resumo: Recomenda a adoção de medidas de promoção dos direitos das pessoas idosas e de proteção relativamente a formas de violência, solidão e abuso.

DECRETO-LEI 159/2015, de 10-08 IN: Diário da República, série l, n.º 154/2015, de 10-08, p. 5695-5699 Resumo: Cria a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens.

PORTARIA 223/2015, de 27-07 IN: Diário da República, série l, n.º 144/2015, de 27-07, p. 5034-5037 Resumo: Regula o procedimento de pagamento da comparticipação do Estado no preço de venda ao público (PVP) dos medicamentos dispensados a beneficiários do Serviço Nacional de Saúde (SNS). LEI 79/2015, de 29-07 IN: Diário da República, série l, n.º 146/2015, de 29-07, p. 5109 Resumo: Estipula que nenhuma criança fica privada de médico de família. DESPACHO 8376-B/2015, de 30-07 IN: Diário da República, série ll, n.º 147, 1.º supl./2015, de 30-07, p. 21182-(2) - 21182-(16) Resumo: Aprova os regulamentos do Programa de Emprego e Apoio à Qualificação das Pessoas com Deficiência e Incapacidade, criado pelo DecretoLei n.º 290/2009. DECRETO-LEI 149/2015, de 04-08 IN: Diário da República, série l, n.º 150/2015, de 04-08, p. 5361-5371 Resumo: Procede à primeira alteração ao DecretoLei n.º 139/2009, de 15 de junho, que estabelece o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial. RESOLUÇÃO 111/2015, de 07-08 IN: Diário da República, série l, n.º 153/2015, de 07-08, p. 5504-5505 Resumo: Recomenda um conjunto transversal de medidas destinadas a aprofundar a proteção das crianças, das famílias e promover a natalidade.

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RESOLUÇÃO 63/2015, de 25-08 IN: Diário da República, série l, n.º 165/2015, de 25-08, p. 6280-6289 Resumo: Aprova a Estratégia de Proteção ao Idoso. RESOLUÇÃO 65/2015, de 27-08 IN: Diário da República, série l, n.º 167/2015, de 27-08, p. 6421-6427 Resumo: Aprova a Estratégia Operacional de Ação Humanitária e de Emergência. LEI 121/2015, de 01-09 IN: Diário da República, série l, n.º 170/2015, de 01-09, p. 6637 Resumo: Primeira alteração à Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, que aprova o regime de concessão de indemnização às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica. DESPACHO 10041-A/2015, de 03-09 IN: Diário da República, série ll, n.º 172, 1º supl./2015, de 03-09, p. 25660-(2) Resumo: Constituição de um grupo de trabalho para a Agenda Europeia para as Migrações. LEI 135/2015, de 07-09 IN: Diário da República, série l, n.º 174/2015, de 07-09, p. 7056 Resumo: Criação da comissão especializada permanente interdisciplinar para a natalidade. LEI 137/2015, de 07-09 IN: Diário da República, série l, n.º 174/2015, de 07-09, p. 7057-7058 Resumo: Altera o Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, modificando o regime de exercício das responsabilidades parentais.


AGENDA

MARÇO A JULHO DE 2016

MARÇO Maior Empregabilidade: Projeto de promoção da empregabilidade e empreendedorismo, igualdade de oportunidades e inclusão de jovens Promotor: Instituto Padre António Vieira Cofinanciamento: Fundação Calouste Gulbenkian/Programa Cidadania Ativa – EEA Grants. Data: até 31.03 Local: Em todo o país Ações: Vitaminas para o Emprego; Job parties; Europass CV Júnior; Dia aberto nas empresas, Coworking rumo ao emprego; Promoção do Empreendedorismo www.maiorempregabilidade.pt/

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Seminário temático: A negociação em situações humanitárias Data: até 11.03 Local: Geneva Centre for Education and Research in Humanitarian Action Genebra, Suíça

IV Colóquio Nacional de Horticultura Biológica Data: até 19.03 Local: Universidade do Algarve, Faro (Gambelas) Organização: Associação Portuguesa de Horticultura (APH), com o apoio da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Algarve http://ivcolquionacionalde horticulturabiolgica.weebly. com/

10 www.academiccourses. pt/Thematic-SeminarNegotiation-inHumanitarian-Settings/ Suica/Geneva-Centre-forEducation-and-Researchin-Humanitarian-Action/

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6th European Conference for Social Work Research: Reflective social work practices in contemporary societies: dialogues and new pathways between praxis and research Data: até 1.04

Colóquio: Artes de cura – Medicinas tradicionais no século xxi Data: até 11.03 Local: Instituto de Estudos de Literatura e Tradição, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas http://ielt.fcsh.unl.pt/pt/ actividades/1855

Local: Universidade Católica, Faculdade de Ciências Humanas, Lisboa http://eswra.org/2016_ conf.html

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AGENDA ABRIL

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VIII Congresso Nacional de Cuidados Paliativos Data: até 9.04 Local: Universidade Católica Portuguesa, Campus Palma de Cima, Lisboa www.apcp.com. pt/agenda/viiicongresso-nacionalde-cuidadospaliativos.html

VIII Congresso Internacional de Psicologia e Educação (CIPE 2016): Aprendendo, Crescendo e Inovando Data: até 17.06 Local: Alicante, Espanha http://www.cipe2016. com/es/

JUNHO

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5th Centre for Research on Families and Relationships (Crfr) International Conference: Unequal Families and Relationships Data: até 15.06 Local: Universidade

de Edimburgo, Escócia www.crfr.ac.uk/international conference-2016/

3.º Congresso Internacional sobre Património Industrial – Reutilização de Sítios Industriais: Um Desafio para a Conservação Patrimonial Data: até 19.06 Local: Universidade Lusíada de Lisboa

http://news.lis.ulusiada.pt/ In%C3%ADcio/Detalhes/ TabId/3023/ArtMID/2443/ ArticleID/6786/3186Congresso-internacionalsobre-patrim243nioindustrial.aspx

JULHO

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VII Congresso Mundial de Estilos de Aprendizagem: Educação, Tecnologias e Inovação Data: até 6.06 Local: Instituto Politécnico de Bragança http://www.cmea.ipb. pt/indexpt.html

3 International 13 Ess Conference: rd

Understanding Key Challenges for European Societies in the 21St Century Data: até 15.07 Local: Universidade de Lausanne, Suíça Organização: European Social Survey European

Research Infrastructure Consortium (ESS ERIC) and The Swiss Centre of Expertise in the Social Sciences (FORS) www.europeansocialsurvey. org/about/conference/index. html


HOSPITAL DE SANT’ANA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA O Hospital de Sant’Ana está desde o seu início vocacionado para a prevenção, tratamento e reabilitação de patologias no sistema musculoesquelético, nas quais se assume como um hospital de referência nacional. Aqui encontra um corpo clínico altamente qualificado para um melhor atendimento em: Ortopedia Geral | Sub especialidades de Ortopedia (Anca, Coluna, Joelho, Pé e Tornozelo, Mão, Ombro, Ortopedia Geriátrica, Ortopedia Infantil) | Reumatologia | Fisiatria (Fisioterapia e Terapia Ocupacional) Cirurgia Plástica | Dermatologia | Medicina Interna| Nutrição | Oftalmologia| Otorrinolaringologia | Psicologia Pode também realizar e marcar os seguintes exames: Ecografia, Osteodensitometria, RX, TAC e Ressonância Magnética Marcação de exames: T. 21 458 56 21 (14h00 - 17h00) E-mail: imagiologiahosa@scml.pt Presencial: 11h00 - 17h00

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Marcação de consultas: T. 21 458 56 14 (9h00 - 17h00) E-mail: consultashosa@scml.pt Presencial: 11h00 - 17h00

HOSPITAL DE SANT’ANA



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