10ª Edição da Tribuna da Imprensa Digital

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Pilar desta Tribuna, Soberania Nacional só pode ser compreendida com respeito aos Direitos Humanos, o que o Brasil está longe de contemplar e há três anos vive um retrocesso sem precedentes. É afirmar o Estado Laico dando voz a todas as religiões e denunciar, diuturnamente, a violência estatal contra pretos e indígenas.

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LUTA ANTIRRACISTA

Rio de Janeiro, domingo, 14, a quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Ano 1 | N0 10

CRIME CONTRA OS DIREITOS HUMANOS

Contrariando a estatística – genocídio, juventude negra e participação política Racismo estrutural leva à maior mortalidade materna entre mulheres negras O dia em que o governo Médici proibiu notícias sobre discriminação racial no país Pág.6 e 7 ESPIRITUALIDADE

Pastor Ariovaldo Ramos: para superar a fome que assola o país, Reforma Agrária No Dia Nacional da Umbanda, artistas entoam um ponto para o orixá ‘Exú Papa agradece jornalistas por ajudarem a expor crimes sexuais na Igreja Católica Pág.8 POLÍTICA PÚBLICA

João Sicsú: Bolsonaro troca Bolsa Família por programa ‘emergencial e desestruturante’ Paulo Guedes admite que Auxílio Brasil não tem fonte permanente de recursos Pág.10 ARTIGO

No Brasil, líder indígena ovacionada na COP26 sofre ataque político Alessandra Korap Munduruku, uma das mulheres indígenas brasileiras que se destacaram na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, sofre um novo ataque em Santarém, no sudoeste do Pará. ACORDO GLOBAL PEDE A REDUÇÃO DO USO DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS ‘EMERGÊNCIA CLIMÁTICA ESTÁ ACIMA DE TUDO’, DIZ ELIANE BRUM FOCO DA COP26 DEVERIA SER COMO FINANCIAR A TRANSIÇÃO ENERGÉTICA Págs. 2 a 5 PROTESTOS CONTRA A FOME E A MISÉRIA

20 mil pessoas tomam as ruas de São Paulo

DR. LUIZINHO Financiamento do SUS é um debate que não pode mais esperar Pág.11

FISCALIZAÇÃO RESGATA 76 TRABALHADORES ESCRAVIZADOS EM FAZENDA Pág.9


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COP26

O cacique Adílio Kanamari, cujo nome na sua língua é Arabonã na aldeia Bananeira, Terra Indigena Vale do Javari, Brasil. Dezembro de 2018 por Bruno Kelly/ Amazônia Real

Rio de Janeiro, domingo, 14, a quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Madona Negra. Porto Velho, 2015 pela lente de Marcela Bonfim

Fotógrafos levam o olhar amazônico para a COP26

Imagens de Bruno Kelly, Marcela Bonfim, Nailana Thiely e José Rodrigues estão expostas em dois espaços da conferência do clima, em Glasgow, na Escócia. Acima, o curador Eduardo Carvalho na exposição no Brazil Climate Action Hub

Queimada em Lábrea, sul do Amazonas, esta é a imagem premiada no concurso ‘Amazoniar’ realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) pelo olhar de José Rodrigues

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otografias de Bruno Kelly, do Amazonas, e Marcela Bonfim, de Rondônia, ambos colaboradores da agência Amazônia Real, fazem parte da exposição fotográfica “Para quem está por vir”, iniciativa do Brazil Climate Action Hub, da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2021,a COP26. Além deles, a fotógrafa Nailana Thiely, do Pará, também faz parte da exposição que foi desenvolvida exclusivamente para a COP26. A exposição tem curadoria dos brasileiros Eduardo Carvalho,curador de desenvolvimento e projetos, e Vanessa Gabriel-Robinson, presidente do conselho da Latin American Women Resource Center (LAWRS). Já o fotógrafo José Rodrigues, do município de Lábrea (AM), também terá uma foto exposta no espaço do Brazil Climate Action Hub COP26. Com uma imagem das queimadas, ele ganhou o concurso ‘Amazoniar’,

Diretor-Presidente: Ralph Lichotti

Autorretrato de Nailana Thiely

realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Leia mais no final do texto. Todas as imagens selecionadas pelo concurso ficarão expostas no Brazil Climate Action Hub até esta sexta-feira (12 de novembro), data em que a conferência do clima termina. Porém, a partir do 17 de novembro as imagens de ‘Amazoniar’ poderão ser vistas no Museu do Amanhã ao lado da exposição “Fruturos – Tempos Amazônicos”, que tem duração de seis meses, no Rio de Janeiro.

Edição e design: Ricardo de Souza, Rochinha, Anabella Landim, Mel de Moraes

Tratamento de Imagens: Carlos Júnior https://www.tribunadaimprensadigital.com.br/


Rio de Janeiro, domingo, 14, a quarta-feira, 17 de novembro de 2021

COP26

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Alessandra Munduruku sofre ataque político após chegar da COP26

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ntre a noite de sexta-feira (12) e manhã deste sábado (13),sua residência foi invadida e furtada por criminosos.Alessandra, que chegou de Glasgow, na Escócia, na terça-feira (9), não estava em casa, com os dois filhos e o marido no momento do ataque, justamente por temer pela segurança. A Terra de Direitos, uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa,na promoção e na efetivação de direitos,especialmente os econômicos, sociais,culturais e ambientais (Dhesca), disse à agência Amazônia Real que Alessandra Munduruku sofreu um novo crime político. Leia mais neste texto. Nesta manhã de sábado,agentes da Polícia Federal fizeram uma perícia na residência da liderança em busca de provas e pistas dos criminosos. Há suspeitas de crimes de furto e invasão de domicílio, dano, ameaças e intimidação por motivação política. Segundo o Boletim de Ocorrência (BO), que a reportagem teve acesso, para entrar na residência de Alessandra Munduruku os criminosos quebraram uma janela e“subtraíram o cadeado, um equipamento DVR [que é a memória da câmera de segurança],uma pasta roxa com documentos de prestação de contas e R$ 4.000 em espécie, dinheiro que seria utilizado para assembleia do Povo Munduruku”, denunciou a líder em depoimento à polícia.“Solicito providências legais e cabíveis”, pediu ela. Após o ataque, Alessandra enviou uma mensagem por Whastsapp para um grupo de amigos apoiadores relatando os fatos,conforme a reportagem teve acesso. Não é o primeiro ataque contra a líder e seu povo. Em 2019, a líder Munduruku teve sua residência invadida,também em Santarém.Documentos e relatórios pessoais e de trabalho foram furtados. Ninguém foi preso. “Entraram de novo lá em casa, de novo,eu estava sentindo que ia acontecer alguma coisa, por isso que eu tinha que sair de Santarém.Tinha uma coisa estranha acontecendo ao redor e eu [pensei] não vou dormir aqui com essas crianças não”, disse Alessandra aos amigos. Em outro ponto da mensagem, ela relatou aos amigos um fato anterior,que aconteceu no dia 10 de novembro.“No outro dia que eu cheguei [da COP26], chegou um carro da Celpa [hoje empresa Equatorial de distribuição de energia] e cortou a energia e [o funcionário]. Um funcionário disse que iria fazer arrumação em todas [as casas] e que não era só a nossa que seria desligada”, contou ela,que desconfiou do funcionário,pois a conta de energia estava paga.

No alto, foto da segunda invasão à residência da líder indígena que teve documentos, dinheiro e equipamentos de segurança furtados, em Santarém, no sudoeste do Pará ; Ainda esse ano a casa de Maria Leusa Kaba Munduruku foi incendiada por garimpeiros; A sede da Associação de Mulheres Indígenas Munduruku – Wakomborum, foi depredrada

Na ocasião,Alessandra estava na residência com os dois filhos e o marido.“Que estranho mesmo vir cortar a energia,só a nossa casa? Achei estranho essa atitude do funcionário, pois tem cara que para disfarçar se veste até de policial”,revelou a líder ao amigos. Com a casa no escuro, Alessandra contou que decidiu não dormir na residência.“Eu não vou dormir nessa casa com tudo no escuro. Só, na minha casa, vou dormir nada”, disse ela, que passou a reclamar por telefone com a empresa Equatorial. “De tardezinha eles vieram [religaram

a energia]. Mesmo assim, eu estava sentindo algo, o meu corpo estava falando para eu sair dali”,contou ela,dizendo que seu marido retornou a casa neste sábado e encontrou“tudo revirado”. Alessandra também relatou aos amigos outro fato que aconteceu no mês de setembro.“Hoje (13) acontece isso.É gente me vigiando. Já faz uns dois meses, eu acho,que parou uma caminhonete preta, perguntando para o vizinho onde morava um índia. Aí o vizinho disse:‘mora uma índia aqui do meu lado, a vizinha’’, revelou Alessandra dizendo que o homem perguntou o nome dela para o vizinho.

“O vizinho disse:‘parece que o nome dela é Alessandra’”. À Amazônia Real, a assessora jurídica Luísa Câmara Rocha, da Terra de Direitos,que defende a líder,disse que a empresa Equatorial informou que não houve aviso de corte de energia para a residência de Alessandra Munduruku, no dia 10 de novembro, o que levantou suspeitas de uma relação entre os fatos e o ataque. “Me parece uma nítida intimidação, um crime político em referência a repercussão nacional e internacional do discurso que Alessandra fez na COP26 enquanto liderança”, afirma a advogada, lembrando que a primeira invasão que a líder sofreu foi após ela voltar de Brasília, em 2019, quando fez denúncias sobre as invasões aos territórios Munduruku e os ´projetos de mineração que tramitam no Congresso Nacional. A reportagem procurou a líder Munduruku para ela falar sobre as ameaças, mas,no momento da ligação,ela se encontrava na sede da Polícia Federal formulando a denúncia. Alessandra Korap Munduruku é representante do seu povo,vice-coordenadora da Associação Indígena Pariri e vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa). Nas duas últimas semanas,ela participou da delegação de 40 indígenas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) na COP26.Na conferência,ela sofreu um ataque direcionado de um homem branco,

não identificado, que questionou o fato dos indígenas estarem“misturando política e meio ambiente”.Os seguranças do evento precisaram intervir e pedir para o homem sair do local. Outra indígena que foi atacada por sua projeção na COP26 foi a jovem Walelasoetxeige Paiter Bandeira Suruí, mais conhecida como Txai Suruí,única brasileira a discursar na abertura da conferência.Ela está sendo perseguida nas redes sociais depois que o presidente Jair Bolsonaro incitou seus apoiadores a atacá-la. Em uma das suas falas na COP26,Alessandra Munduruku criticou o governador do Pará,Helder Barbalho (MDB),que também esteve na conferência,e os projetos que ele apoia como de mineração,hidrelétricas e a ferrovia o Ferrogrão,obra para escoar a produção de portos graneleiros (para grãos),que causará mais desmatamentos e impactos socioambientais dentro e no entorno dos territórios. Enquanto as terras indígenas da Amazônia Ocidental enfrentam a mais severa ação de destruição por garimpos ilegais nos estados do Amazonas, Rondônia,Roraima e Pará,Helder Barbalho criou o Dia do Garimpeiro para ser comemorado na data em 11 de dezembro, segundo o Diário Oficial do estado. Leia a série“Ouro do SangueYanomami”. “O Helder Barbalho [governador do Pará] fala que respeita o meio ambiente, mas criou uma lei para ter o Dia do Garimpeiro”,afirmou ela em discurso na conferência em Glasgow.(Da Amazônia Real)


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COP26

Rio de Janeiro, domingo, 14, a quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Aprovado acordo global que pede a redução do uso de combustíveis fósseis Documento foi fechado com o objetivo de intensificar os esforços para combater as mudanças climáticas, conclamando os governos a reduzirem suas emissões

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erca de 200 países aprovaram o acordo global com o objetivo de diminuir o aquecimento global neste sábado (13/11), dia de encerramento da 26ª Conferência do Clima da Organização

das Nações Unidas (ONU), a COP26. O acordo foi fechado com o objetivo de intensificar os esforços para combater as mudanças climáticas, conclamando os governos a retornarem no próximo ano com planos mais fortes para reduzir suas emissões.

A aprovação pede uma eliminação acelerada da energia a carvão e dos subsídios aos combustíveis fósseis.O documento também reafirmou a meta global de longo prazo de manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2º C e continuar os esforços para limi-

tar os aumentos de temperatura a 1,5º C. Tal medida seria a única que realmente salvaria o planeta, uma vez que ultrapassado o 1,5º C se desencadearia um extremo aumento do nível do mar e catástrofes, incluindo secas, tempestades, incêndios florestais,de acordo com cientistas. O texto também pediu esforços para reduzir o uso de carvão, assim como a interrupção dos enormes subsídios que governos ao redor do mundo dão ao petróleo, carvão e gás que abastecem fábricas e aquecem casas,algo que nenhuma conferência climática anterior tinha conseguido concordar. No entanto,a Índia,cujas necessidades de energia dependem enormemente do carvão,fez objeções de última hora a esta parte do acordo, e pediu para que trocasse a palavra“eliminação”por“redução”gradual das emissões de carbono,o que deixou diversos representantes desapontados e levou o presidente da conferência,Alok Sharma, a pedir desculpas. Ainda segundo o pacto,países desenvolvidos se comprometeram a financiar U$S 100 bilhões (R$ 545 bilhões) por ano até 2025 para ajudar países mais pobres no combate ao aquecimento.Entretanto, de acordo com ativistas,o martelo sobre o valor de fato ainda não foi batido. Segundo a agência de notícias Reuters, além disso, a quantia estaria muito aquém das necessidades reais

das nações mais desfavorecidas, que podem chegar a US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhões) até 2030. O valor era um dos principais entraves. Esse instrumento é previsto pelo Acordo de Paris, assinado em 2015, e deveria ter entrado em vigor em 2020, com uma revisão dos valores em 2025, mas hoje não está nem perto de sair do papel. O presidente da COP26,Alok Sharma, havia afirmado neste sábado que o rascunho mais recente da declaração final da cúpula climática é“equilibrado”e reflete o“compromisso de todos os países”. “O mundo está olhando para nós. Minha intenção é acabar essa COP hoje”, disse o britânico durante uma plenária informal em Glasgow. “Acredito que o texto apresentado nesta manhã responde de modo equilibrado às expectativas que os Estados mostraram aqui em Glasgow,sem deixar questões para trás.O texto reflete o compromisso de todos”,acrescentou Sharma. Segundo o presidente da COP26, é preciso garantir que “os resultados correspondam ao tamanho e à urgência de nossa situação”. “Chegamos no momento da verdade para o nosso planeta,nossos filhos e nossos netos.E saibam todos que o mundo quer que sejamos audazes e ambiciosos”, disse. (Do Ópera Mundi)

‘Emergência climática está acima de tudo’, diz Eliane Brum A escritora Eliane Brum,que se dedica à cobertura da Amazônia, afirmou em entrevista que a região, bem como as outras florestas e oceanos, são os atuais centros do mundo devido à crise climática e, para ela,“se a gente não perceber isso logo e atuar de acordo, as próximas gerações terão uma vida muito mais difícil em um planeta muito mais hostil”. A jornalista denunciou os projetos do atual governo de transformar a Amazônia em pasto e em legalizar os crimes na região com projetos como o Marco Temporal e a Lei da Grilagem.Na prática,ela afirmou que o crime já foi legalizado,com lideranças e militantes dos movimentos ribeirinho,indígena e quilombola sendo ameaçados e mortos. Entretanto, de acordo com a jornalista, a violência contra esses povos não é de agora. Surgiu na época da ditadura militar brasileira (1964-1985) o mito de que era um território a ser explorado e ele predominou, inclusive, durante os governos petistas.A hidrelétrica de Belo Monte,por exemplo,deslocou a população ribeirinha da região,“condenando-a à pobreza e à memória do corpo, porque perderam tudo, só restam as cicatrizes no corpo”. Apesar das evidências,Brum denunciou a existência de um “negacionismo sincero”:“Os que aceitam a obviedade da crise climática, mas não vivem segundo

Para ter meu voto é preciso se comprometer com o enfrentamento da crise climática, proteção da Amazônia, demarcar todas as terras indígenas, quilombolas e territórios de conservação.” Eliane Brum ela, que é a maioria de nós. Se a gente está vivendo uma situação de calamidade ambiental, com a Amazônia chegando ao ponto de não retorno,como a gente não está pensando e vivendo para enfrentar isso?”. Brum rejeitou que existam outras questões mais emergenciais a serem resolvidas ou abordadas antes de passar para os temas ambientais, pois este atravessa todos os outros. “Não existe nada acima da emergência climática porque ela afeta todas as

outras questões. As pessoas estão mais pobres por causa da emergência climática. A população indígena está sendo perseguida por defender a Amazônia, enfim.Uma emergência desse porte atravessa tudo,classe,raça e gênero”,enfatizou. Para combater o cenário atual,Brum argumentou que não se pode contar“com quem colocou fogo na casa”e lamentou que boa parte da esquerda não tenha percebido isso, dando continuidade ao imaginário da época militar e mantendo seu olhar colonizador sobre a Amazônia.

Ela reconheceu, contudo, que essa tendência parece estar mudando.“Estamos entendendo que a ideia de que crescimento infinito num planeta finito não é viável”, disse. O ideal, para a jornalista, seria a superação da sociedade capitalista, que ela apontou como grande responsável pela destruição do planeta. “Imagino uma vida de menos consumo, uma vida em comunidade com a comunidade, semelhante à dos povos originários.Uma democracia para humanos e não humanos, em nome da natu-

reza”, discorreu. Dentro dos marcos do capitalismo, entretanto, a mudança deve se dar com políticas públicas e mudanças no estilo de vida.Assim,Brum destacou a importância de tirar Jair Bolsonaro do poder,apesar de ponderar que“não dá para esperar até 2022 ou 2023”,alertando que,mesmo com um governo de esquerda,os ruralistas seguirão extremamente poderosos. Ela não quis anunciar em quem votará no próximo pleito, mas disse que sempre votará “contra todas as pessoas que representam o que Bolsonaro representa, na opção mais democrática possível”, e listou o que espera de um programa de esquerda. “Para ter meu voto é preciso se comprometer com o enfrentamento da crise climática,proteção da Amazônia,demarcar todas as terras indígenas,quilombolas e territórios de conservação; fiscalizar o cumprimento das leis ambientais; escutar os povos da floresta e construir uma estratégia com eles; não construir mais hidrelétricas e não deixar que entrem mais mineradoras, apostando por uma mudança da matriz energética focada na energia solar”, citou. Brum ainda reiterou que todos devem lutar pela Amazônia,não apenas brasileiros ou os povos indígenas que nela vivem, pois é um bem mundial e cuja destruição afetaria todo o planeta.(Do Ópera Mundi)


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Foco da COP26 deveria ser como financiar a transição energética, diz Gabrielli Para o ex-presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, o tema envolve interesses diferentes e por isso sua discussão ainda é incipiente

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Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26) que caminha para o seu final nesta sexta-feira (12), em Glasgow, na Escócia, não deverá ter o financiamento da transição energértica em sua agenda principal. Ou seja, a discussão sobre quem deve pagar pelo desenvolvimento e implementação de fontes alternativas nos países pobres, justamente os que menos jogam para a atmosfera gases de efeito estufa causadores do aquecimento global, deverá continuar na pauta dos movimentos ambientalistas e da sociedade como um todo. É o que pensa o presidente da Petrobras nos governos Lula e Dilma, José Sergio Gabrielli. Para ele, a COP26 não deve avançar muito nessa linha porque o 1% mais rico do mundo é responsável pela emissão de 17% de gases de efeito estufa desde 1970, enquanto que os 50% mais pobres emitem apenas 9%. “De um lado nós temos um problema de (busca incessante de) crescimento econômico, levando ao aumento das emissões.E de outro,uma desigualdade nas emissões.É um problema de cresci-

mento e distribuição associado a essa questão da mudança climática. É por isso que a COP26 não consegue avançar muito nessa linha”. Para ele, o grande problema é que o capital ainda está concentrado nas grandes empresas de petróleo.A maior do mundo, por exemplo, a Saudi Aramco, com valor de mercado superior a R$ 2 trilhões, tem compromisso com o governo da Arábia Saudita de fazer uma transição energética até 2030, mas não assume mudança substancial em sua atividade principal, a extração e o refino de petróleo. A companhia tem caminhado para usar fortemente parte de seu valor para estimular a transição da economia da Arábia Saudita – o que é interessante segundo Gabrielli. Por um lado, acena para utilização de fontes renováveis, como a captação de energia solar. E por outro não vai deixar de produzir e refinar petróleo, atrelado à indústria petroquímica. “A empresa entende que o petróleo vai diminuir sua aplicação na mobilidade, mas vai aumentar no setor petroquímico.A Shell está sendo forçada,por decisões judiciais,a ampliar suas metas

de transição energética, mas por ação de acionistas. Do mesmo jeito a Exxon, a maior totalmente privada, que foi derrotada na última assembleia de acionistas,sendo obrigada a substituir três membros do conselho de administração por pessoas ligadas ao desenvolvimento de alternativas energéticas”, comentou Gabrielli,em participação no webnário “COP26: das boas intenções à dura realidade”,promovido pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) na noite da terça-feira (9).Assista íntegra do programa no final da reportagem. As europeias Shell, Repsol e outras estão sentindo grande pressão dos fundos financeiros acionistas, cuja percepção é de que a regulação contra o uso de combustíveis fósseis vai aumentar. Isso, avaliam,pode levar os países a limitar a possibilidade de exploração de reservatórios já descobertos e reduzir o valor de mercado dessas companhias. “Parte do capital financeiro está pressionando as empresas a aumentar a sua exposição junto a fontes alternativas de combustíveis. A Galp já anunciou que vai parar a atividade exploratória, vai se concentrar na expansão da pro-

dução de parques eólicos e solares. A Petrochina e a Gaspro dificilmente vão mudar a lógica. A Petrobras, ao contrário, está se concentrando na exportação de petróleo cru Saiu do refino, saiu do gás natural, e está se tornando uma empresa ‘suja’ de exportação de petróleo cru”, disse Gabrielli. Na avaliação de Gabrielli,que é pesquisador do Ineep, o mundo vive a“versão século 21 da Guerra Fria”, em uma disputa entre dois modelos de produção e de sociedade,representados pelos Estados Unidos e China. As crescentes tensões entre as duas nações têm a ver com desenvolvimento tecnológico e o uso de energia. Ao vencer Donald Trump em 2020, o presidente Joe Biden mantém um discurso que indica uma tentativa de recuperar o papel do seu país no protagonismo da agenda climática,retirado pelo antecessor. Por sua vez, Rússia e China estão muito tímidas na COP26.Sem a presença desses dois países, conforme Gabrielli, dificilmente haverá avanços significativos, pelo menos no momento em que a economia mundial sai da pandemia e tem retomada assimétrica. Como o

maior crescimento é o da China,há muitas alterações no mercado de energia, inclusive com o uso do carvão, já que o preço do gás natural subiu por causa da demanda chinesa e dos países europeus. Para o ex-presidente da Petrobras, o melhor resultado da COP26 será a chegada a um acordo sobre a redução das emissões de metano,gás de efeito estufa causador do aquecimento global. Suas principais fontes de emissão são os vazamentos nas unidades de processamento de petróleo, de gás e de refino.Além da emissão de gases por animais ruminantes, especialmente bovinos. “A indústria já tem tecnologias.E nem é muito caro reduzir as emissões.É uma meta possível, economicamente viável. O que não se pode dizer é que seja a mesma coisa do ponto de vista da pecuária. O gás produzido no processo de ruminação de rebanhos – nos arrotos – gera um volume de metano na atmosfera.Não tem muita tecnologia para avaliar esse tipo de coisa.Exige transformação tecnológica, o que dificulta que o agronegócio se envolva nisso”,disse,ressaltando que mais da metade das emissões de metano vem da natureza e não da atividade humana.

Quatro tópicos para entender a COP26 O principal objetivo da reunião é definir uma trajetória clara até o fim desta década, para que os países consigam atingir as promessas do Acordo de Paris sobre o Clima. O tratado estabelece as linhas gerais para que seja possível limitar o aquecimento do planeta a no máximo 2°C e, tendo como ideal uma alta de 1.5°C até o fim do século, em relação ao período pré-industrial. A conferência trouxe avanços, ao incluir pela primeira vez a intenção de promover o abandono progressivo de energias fósseis – como carvão, petróleo e gás – e mencionar a necessidade de os países aumentarem a ambição das suas metas nacionais de redução de emissões de gases de efeito estufa já no ano que vem. Entretanto, esses dois aspectos permanecem vagos e não resultaram em compromissos concretos em Glasgow.“O que importa mesmo para termos avanços é a gente ter mais ambição.Ter os países dizendo quanto vão fazer, como vão fazer, com qual estratégia de implementação, quais os valores envolvidos, de onde virão os recursos. O que se consegue fazer nessas conferências é dar uma melhorada nesse panorama geral, detalhar como esses caminhos serão seguidos”, resume Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, que reúne 70 organizações e especialistas em mudanças climáticas.

1. FINANCIAMENTO

A questão do financiamento climático acirrou as tensões nas negociações ao longo da COP26 – as nações mais pobres perderam a paciência com as ricas,que até hoje não cumpriram a promessa de liberar US$ 100 bilhões por ano. A COP26 reconheceu que esse valor,que sequer foi liberado,já é insuficiente e será necessário atualizar o aporte de recursos para que as nações em desenvolvimento sejam capazes de promover transições econômicas que custam caro, como a energética.O Brasil,por exemplo,insiste na liberação de mais dinheiro para ajudar a controlar o desmatamento da Amazônia, maior fonte de emissões do país. Ao mesmo tempo, os países africanos e pequenas ilhas, os mais vulneráveis às mudanças climáticas, também não abrem mão de compensações pelos danos que eles já sofrem por causa do aquecimento global – provocado pelas emissões históricas dos países desen-

volvidos. “Na concepção dos países ricos,seria como se eles assumissem a culpa de tudo que aconteceu no planeta e criassem uma espécie de jurisprudência sobre qualquer coisa que vier a acontecer. É uma visão extremamente mesquinha e na defensiva dos países desenvolvidos”, frisa Astrini.“A gente vê os países se unindo para garantir os seus próprios interesses,e não para atacar o problema da crise climática.”

2. VOLTA DOS ESTADOS UNIDOS

O retorno dos norte-americanos às negociações climáticas foi um ponto fundamental para a retomada de avanços nas Conferências do Clima.A saída do país do Acordo de Paris, promovida pelo ex-presidente Donald Trump, e a ausência dos Estados Unidos na última cúpula, em Madri, influenciaram países importantes no jogo climático, como o Brasil, e levaram o encontro de 2019 a

um fracasso. Desta vez, porém, foram as tensões políticas com a China que atrapalharam avanços maiores.Os dois países,responsáveis por 40% dos gases que causam o aquecimento global,chegaram a assinar uma declaração conjunta prometendo “fortalecer a ação climática”, mas não colocaram mais metas sobre a mesa. “Sempre que tivemos avanços mais significativos,como no Acordo de Paris,tínhamos uma movimentação mais decisiva e enfática dos norte-americanos junto com os chineses, promovendo acertos meses antes da conferência, que geraram uma pressão muito grande sobre o restante do mundo”, relembra Astrini. O especialista chama a atenção para um aspecto importante do documento, que pode atingir diretamente o Brasil: a intenção de acabar com“importações ilegais”de desmatamento – o que significa parar de comprar produtos que resultem da devastação das florestas. “Isso deve mexer muito com a percepção nacional, no Brasil, sobre o desmatamento. O agronegócio já é muito preocupado com as restrições que a Europa já impõe e que vão ser endurecidas,com as restrições parciais nos Estados Unidos que poderão ser ampliadas para além da madeira.A China agora cita essa intenção pela primeira vez”,analisa Astrini.“Isso deve estar tirando o sono de muita gente lá.”

3. BRASIL MAIS CONCILIADOR

A cúpula foi usada pelo governo brasileiro para tentar melhorar a sua imagem no exterior, degradada pelos sucessivos aumentos do desmatamento da Amazônia, entre outros retrocessos na área

ambiental. O Brasil se apresentou com uma postura mais“construtiva”na COP e reiterou ter trabalhado por um consenso em todos os principais tópicos discutidos na conferência. Logo no início do encontro, o país aderiu a dois compromissos importantes: um acordo internacional para a proteção de florestas e outro para reduzir em 30% as emissões mundiais de metano, num tópico que repercute na pecuária brasileira. Sobre a regulamentação de um mercado global de carbono, previsto no Artigo 6 do Acordo de Paris, o Brasil fez concessões que até pouco tempo atrás não eram negociáveis para Brasília. Na última conferência,o governo brasileiro foi um dos que bloqueou um acordo sobre essa questão, insistindo num instrumento que permitiria a dupla contagem dos créditos de CO2 negociados – tanto para o país vendedor,quanto para o comprador, nas suas metas nacionais de redução de emissões.Agora, o Brasil aceitou o chamado mecanismo de ajustes correspondentes, que impede essa anomalia no cálculo. Entretanto, embora mais conciliador, o atual ministro do Meio Ambiente insistiu em utilizar dados duvidosos para afirmar que o Brasil está combatendo adequadamente o desmatamento – a principal missão ambiental do país em termos de compromisso internacional. Nesta sexta,Ricardo Leite chegou a dizer que não tomou conhecimento dos últimos dados,revelados pelo sistema Deter, apontando que a área de alertas de desmatamento em outubro foi a maior para o mês em cinco anos, num total de 877 km2 de floresta derrubada na Amazônia.

De concreto, o que o governo apresentou nesta COP26 foi o maior aumento em 12 anos da devastação da Amazônia. Resultado: o Brasil estava apagado na conferência em Glasgow – longe de ter a relevância diplomática que costumava ter antigamente.

4. PARITICIPAÇÃO INDÍGENA

A COP de Glasgow também marca uma nova era da participação dos povos indígenas nas negociações internacionais sobre o futuro do planeta.Eles sempre atraíram olhares e flashes nas cúpulas da ONU, mas pela primeira vez as suas vozes ecoaram nas plenárias principais do evento,discursando diante de chefes de Estado. A fala da jovem brasileira Txai Suruí na abertura da cúpula dos líderes, na semana passada,sensibilizou os participantes e consolidou o devido lugar dos indígenas nas COPs: junto à mesa de negociações.“Não é em 2030 ou 2050, é agora.Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática e precisamos estar no centro das decisões que acontecem aqui”, disse Txai, em inglês. Lideranças indígenas como Sônia Guajajara foram recebidas por nomes como o norte-americano John Kerry, enviado especial do governo norte-americano para as questões de clima, e o príncipe Charles, do Reino Unido. Um sinal claro deste reconhecimento foi o anúncio de um fundo inédito de US$ 1,7 bilhão especificamente para os povos originários, para ajudá-los a proteger as florestas. Os recursos serão financiados por governos como Reino Unido,Alemanha,Noruega e Estados Unidos,além de grandes multinacionais.


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LUTA ANTIRRACISTA

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livro que chega a um público para além dos universitários e acadêmicos é resultado de uma pesquisa de mestrado que acompanhou, a partir da criação do Movimento Negro Unificado, 1978, a violência socialmente exercida pelas instituições brasileiras contra a juventude. O trabalho, ao distinguir adolescência – o indivíduo como ser psíquico – de juventude – a leitura da experiência coletiva de um segmento e/ou grupo –, tem o mérito de descongelar a própria concepção vigente de juventude ao expandi-la para juventudes. A juventude negra aparece, portanto, como sujeito na sua articulação com os processos sociais mais gerais e como resultado das relações sociais produzidas ao longo da história mediada pela experiência, individual e coletiva, de um grupo racializado em uma sociedade racialmente estruturada em dominância. Assim, ao considerar o próprio descompasso da discussão brasileira que enfatizava a existência de juventude no singular, quando muito recortada pela origem social na chave da classe, o texto, por um lado, desafia a homogeneidade e, por outro lado, demonstra que aquele descompasso estimulou os próprios jovens negros/negras a encontrarem caminhos para canalizarem suas reivindicações e demandas em uma sociedade que se nega a reconhecer tanto a sua existência enquanto grupo quanto suas demandas especificas, em especial aquela denunciada internacionalmente, primeiro, por Abdias Nascimento em O Brasil na Mira do Pan-Africanismo“contra o genocí¬dio da população negra (1978). Florestan Fernandes ao ressaltar a contribuição de Nascimento observa que dentre outras contribuições do livro está aquela que usa “sem restrições do conceito de genocídio aplicado ao negro brasileiro. Trata-se de uma palavra terrível e chocante para a hipocrisia conservadora”.E,ao mesmo tempo, se pergunta:“O que se fez e se continua a fazer com o negro e com seus descendentes merece outro qualificativo?” A resposta é não. Em especial, quando analisada à luz de duas definições de genocídio seja como,“o uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, condições de vida insatisfatórias, prevenção de nascimentos), calculadas para a exterminação de um grupo racial, político ou cultural, ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo” (WEBSTER’s Third New International Dictionary of the English Language). Ou ainda como a “recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros,pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas,sociais,culturais,linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos” (Dicionário escolar do professor). O livro de Paulo Ramos se insere dentre aqueles que procuram dar visibilidade ao problema de um verdadeiro genocídio que atravessa a história social e política do país e ganha visibilidade na sua formação urbana e industrial que, embora denunciado por intelectuais e ativistas, persiste e se amplia. É, portanto, na constituição da juventude negra enquanto sujeito de luta política que Ramos, de forma um tanto otimista, enxerga a possibilidade de contrariar as estatísticas sobre o número crescente de morte de jovens negros abandonados à própria sorte nas periferias urbanas e nos diferentes recantos do país. Tal protagonismo é revestido, primeiro, pela luta pela própria sobrevivência física e psíquica, segundo, pela consciência de uma existência atravessada de preconceitos, discriminações e negações do acesso às políticas públicas que se recusam a reconhecer a especificidade de suas práticas culturais – criminalizando-as com a repressão policial ostensiva e letal – e, ao mesmo tempo, são a prova concreta de uma segmentação estratégica no plano do direito a ter direitos, transformando-os em um “problema social” tentando incutir em suas perspectivas,horizontes e pulsões pela vida que nada ou pouco importam para os poderes públicos constituídos.

Contrariando a estatística – genocídio, juventude negra e participação política Por VALTER SILVÉRIO Prefácio do livro recém-lançado de Paulo César Ramos

O protagonismo, também, se articula com a própria resistência na chave da percepção de que não há saídas fora da luta política. Daí a importância digna de nota do livro de Ramos: ao acompanhar a construção de uma agenda de luta política pelos próprios jovens negros/negras por meio de participação direta nos eventos, e nas elaborações que deles resultaram, como, por exemplo, o Plano Juventude Viva (de 2012 a 2013), o Grupo de Trabalho Juventude Negra e Políticas Públicas do Conselho Nacional de Juventude (de 2008 a 2010) e dos Encontros Nacionais de Juventude Negra (entre

2005 e 2008). As articulações entre o jovem acadêmico e o militante resultam em um trabalho no qual a intersecção entre aquisição de conhecimento e agência política generativa podem possibilitar a outros o contato com um tema que se relaciona diretamente com as possibilidades de transformação do país em uma democracia. Não podemos esquecer que a dissertação que dá origem ao livro foi defendida em 2014. O “otimismo” é, portanto, justificável quando consideramos que todas as iniciativas do período foram pautadas em um ambiente de extrema ebulição e de atualiza-

ção de pautas políticas em uma perspectiva rumo à construção da democracia com ênfase na participação da sociedade civil organizada nunca antes vivenciada nas diferentes fases delineadas pela literatura sociológica e política no país. Desta forma, outro mérito do livro é que é um retrato instantâneo, portanto, um documento de um campo de possibilidades que se abria e, em sua abertura, o próprio sujeito político juventude negra ganhou visibilidade e materialidade. Um tempo que em termos de duração foi muito curto.Talvez possamos pensar que sua interrupção

tenha uma relação direta com as poucas conquistas da própria juventude negra.Lido nesta chave,o presente livro é,também,um manifesto que pode estimular a construção de novos caminhos e/ou rotas por meio dos quais se dará a retomada do processo de democratização tão brusca e violentamente interrompido. Lembrando, analogamente, a contínua interrupção prematura de milhares de vidas negras como resultado do racismo nosso de cada dia. *Professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).


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LUTA ANTIRRACISTA

Racismo estrutural leva à maior mortalidade materna entre mulheres negras, aponta pesquisadora Durante o último ano, morreram 78% mais mulheres negras grávidas do que mulheres brancas em razão da pandemia de Covid-19

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pandemia de Covid19 descortinou a desigualdade que marca a mortalidade materna de mulheres negras e brancas, é o que explica é Emanuelle

Góes, pesquisadora de pós-doutorado do CIDACS/Fiocruz/Bahia, doutora em Saúde Pública e integrante do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Durante o último ano, morreram 78%

mais mulheres negras grávidas do que mulheres brancas por Covid,de acordo com levantamento feito pela ONG Criola. A pesquisadora explica que a mortalidade materna, de maneira geral, é um evento evitável e que vinha diminuindo

ao longo dos anos, com uma estagnação nesta queda a partir de 2014. Emanuelle Góes observa, porém, que essa diminuição se deu de forma desigual, sendo maior para as mulheres brancas e em menor proporção para mulheres

Há 52 anos, o governo Médici proibia notícias sobre discriminação racial no país Há exatos 52 anos,em 10 de novembro de 1969,o então presidente da república, General de Exército Emílio Garrastazu Médici, conhecido apenas como ‘Médici’, proibia veiculação de notícias sobre discriminação racial e feitos do movimento negro. A decisão também se estendeu à indígenas e articulações de guerrilha no país. Não foi a primeira e nem a última vez que a imprensa sofreu com repressão e censura.Entretanto,é importante relembrar quando e quem articulou o silenciamento da mídia afim de se manter no poder e invisililizar as pautas da popu-

lação negra e indígena. Médici foi o 28º presidente da República e governou entre 30 de outubro de 1969 e 15 de março de 1974.O então gestor ficou conhecido como responsável pelos“Anos de Chumbo”- período dos mais repressores do regime militar -, e pela euforia implementada sobre a economia, o “Milagre Econômico”, que,na teoria,prezava pelo desenvolvimento financeiro do país,mas se embasava em empréstimos e dívidas com o mercado exterior. No mesmo período, a repressão aos órgãos de imprensa também foi

intensificada, tendo um controle massivo sobre as matérias publicadas e as investigações trabalhadas dentro dos veículos. Médici foi responsável por ser o “fantasma” do desemprego, na época, para os jornalistas, por exercer poder e determinar a demissão de diversos profissionais que atuavam em jornais assim como promover o corte de peças publicitárias veiculadas nos meios de comunicação, entre outras ações arbitrárias. Entretanto,o mesmo governo se utilizou da imprensa para trazer uma visão positiva do regime militar. Os conteú-

dos e campanhas tinham, em comum, teores que induzem a população a um pensamento exagerado sobre orgulho da nação,além de“prezar pela moral e bons costumes”.Emblemático à época, o discurso “Brasil: ame ou deixe-o” foi um dos ‘slogans’ usados na construção desse discurso. A situação entre governo e imprensa se agravou quando, em janeiro do ano seguinte,Médici decretou a Lei 077,que determinava que,se um jornal descumprisse a medida - com uma série de proibições sobre o teor das notícias - seria multado e teria que pagar pela incine-

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negras. E que esta questão piorou no contexto da pandemia. Os profissionais e pesquisadores de saúde coletiva já previam que a Covid19 iria impactar de forma diferenciada as gestantes.“Obviamente que ia impactar mais as gestantes negras,das regiões mais distantes dos centros,das periferias, da região norte e nordeste”, explica a pesquisadora. Ela conta ainda que o Estado brasileiro até o momento não apresentou nenhuma iniciativa para superação desses índices.“Não há qualquer iniciativa para redução da mortalidade materna com um olhar de enfrentamento ao racismo. As mulheres negras morrem porque o racismo é estruturante, ele é institucional”. Desta forma, para a pesquisadora Emanuelle Góes,a fim de se reverter esse cenário é preciso implementar políticas de enfrentamento ao racismo nos espaços da saúde, e em particular na atenção obstétrica.“As mulheres precisam parar de morrer de uma morte prevenível.Parar de morrer em um momento e que elas estão dando a vida”, finaliza. (Do Brasil de Fato)

ração de todos os exemplares publicados com a informação proibida.Fora a possibilidade de prisão, tortura e retaliações à comunicadores e gestores de empresas de comunicação da época. Fato curioso é que, para não “arruinar a imagem do país”, o governo chegou a proibir notícias sobre a grande crise de meningite sofrida nos anos 70 no Brasil. Preocupado com seu plano econômico para época, Médici preferia esconder o número de vítimas e o descontrole com a doença na nação para não ter interferências sobre investimentos internos e externos. A gestão de Médice representou a repressão de debates importantes para a população negra, como o racismo, o que se seguiu durante os anos de ditadura militar no país. Sem dúvida, um período que até hoje reverbera e influenciou diretamente na manutenção de uma sociedade estruturalmente desigual. (Do Alma Preta)


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ESPIRITUALIDADE

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Por detrás da fome, para a transformação do Brasil a reforma agrária se impõe PASTOR ARIOVALDO RAMOS* Isaías 5.8-10 “Ai de vocês que compram todas as casas e se apossam das terras, expulsando os antigos moradores, fixando placas de ‘Não entre’, tomando conta do país e deixando a população sem abrigo e sem terra. Ouvi, por acaso, o Senhor dos Exércitos de Anjos dizer:‘Esses casarões vão ficar vazios”. Essas propriedades imensas ficarão desertas. Uma vinha de dez alqueires produzirá apenas uma jarra de vinho, um barril de semente produzirá dez quilos de trigo” Na estrada da transformação do Brasil uma medida se impõe, a reforma agrária.O país tem sofrido de aguda injustiça fundiária desde o seu nascedouro:as chamadas capitanias hereditárias,onde portugueses recebiam incomensuráveis glebas de terra no país,foram as medidas escolhidas pela Coroa portuguesa para

incentivar a colonização do país.Desde então, a nação brasileira sofre a desdita de ver grande parte de seu ativo fundiário na mão de poucos proprietários,isso sem contar que muitos destes proprietários galgaram essa posição por meios violentos e ilegais.Nada é tão confuso e tão eivado de corrupção no país quanto

a questão da posse da terra. Uma das questões subjacentes nesse desafio nacional é o princípio de que,uma vez tendo dinheiro,você pode ter quanta terra e casa quiser. Como se pode perceber,o princípio que norteia o texto é contrário a esse paradigma.Isto é,o texto impõe limites,ninguém pode ter tudo o que quer só porque pode. O princípio das escrituras impõe limites ao poder aquisitivo. E esse é o primeiro padrão que precisa ser atacado no país. É preciso impor um limite à posse, ao número de propriedades,ao tamanho das mesmas. Segundo as escrituras, ninguém pode concentrar propriedades a ponto de ameaçar a moradia ou direito a terra de todos. Justamente como acontece no Brasil. Concentrando-nos na questão agrária,nos damos conta de que o país sofre,ainda,a agravante de que o latifúndio pratica a monocultura.Movido pelo que o mercado internacional melhor pague, que é o princípio do chamado agronegócio. Esse princípio compromete a agricultura de subsistência, responsável pela produção de alimentos. É causador do êxodo rural,do aprofun-

damento da pobreza, da opção pelos transgênicos,pelo excesso de agrotóxicos.Atenta contra a economia popular e contra a soberania nacional.No caso do agronegócio porque vendemos os grãos e depois os readquirimos beneficiados pelos nossos antigos clientes, agora credores. E tem a questão dos transgênicos, porque acabamos por pagar royalties por algo em que, até então,éramos soberanos.Ainda,há que se considerar que os transgênicos transformam seres humanos em cobaias. E submetem o meio ambiente a impacto não prognosticável. No Brasil, a realidade da possibilidade de acumulação desmedida no mundo rural transferiu-se para a realidade urbana. Na cidade, uma pessoa pode, em tese, ser dona de todas as moradias, transformando todos os possíveis moradores da cidade em seus inquilinos. Em princípio, a Bíblia não é simpática com a ideia de posse. E, sem dúvida, é totalmente contrária a acumulação e a concentração. De modo a que alguém tenha a possibilidade de ser a única moradora do lugar,ou seja,a única proprietária. Em outras palavras, a Bíblia limita a posse de proprieda-

des, porque questiona a lógica da propriedade privada. Logo, esse pretenso direito não pode ser usufruído às custas do direito de moradia a que todos os seres humanos fazem jus. Portanto, na Escritura Sagrada, direito à moradia é superior ao direito à propriedade. O objetivo de Deus é que todos tenham moradia. Na fala de Jesus Cristo, isso está contemplado na fala sobre a nudez, em Mateus 25.36, quando disse.“Estava nu e me vestistes”.Ou seja,não me deixastes exposto a minha fragilidade.E o que cobre o ser humano,na vida em sociedade,é o usufruto do direito à moradia. Assim, uma sociedade cristã prioriza a função social da propriedade urbana,portanto,à moradia.E no mundo rural dá prioridade à produção de alimentos porque dá prioridade à segurança alimentar. Que só é possível em pequenas propriedades – via reforma agrária.Até porque a Bíblia,como disse o profeta, não apoia o latifúndio. (*) Coordenador da Frente Nacional de Evangélicos pelo Estado de Direito e apresentador do programa Daqui pra Frente, toda quarta, às 20h, na TVT

Em celebração ao Dia Nacional da Umbanda, Lia de Itamaracá e André Moraes lançam “Mar de Fogo” Neste 15 de novembro, os artistas entoam um ponto para o orixá ‘Exú’, responsável por abrir caminhos e por facilitar a comunicação mundo carnal e espiritual “Para chegar aqui,atravessei um mar de fogo.Pisei no fogo,o fogo não me queimou”. É com esses versos de um ponto dedicado a Exu que a Rainha da Ciranda, Lia de Itamaracá e o produtor musical André Moraes lançam a faixa “Mar de Fogo”. Em celebração ao Dia Nacional da Umbanda, comemorado todo dia 15 de novembro, os artistas entoam um ponto para o orixá Exú,responsável por

abrir caminhos e facilitar a comunicação entre o mundo carnal e espiritual. “Essa música representa, pra mim, uma corrente de fé e traz uma parte espiritual maravilhosa,traduzindo uma força total de umbanda, candomblé, como uma ciranda que junta toda matéria espiritual”, comenta a cantora, conhecida por levar adiante e com maestria a cultura popular de Pernambuco. Lia

complementa afirmando que a canção retrata a potência dos orixás, das religiões de matrizes africanas e é uma forma de resistência sobre os preconceitos levantados à cultura negra.“Junta-se tudo e eu enfrento essa barreira pesada todinha”, declara. André comenta que a canção vem de um momento crítico do ponto de vista socioeconômico e político, então o tra-

balho, para ele, chega como um fôlego; um ponto de força através da música e da religião para quem ouve.“Estamos nesse mar de fogo e nós vamos atravessá-lo. Essa é a principal mensagem da música”, comenta o artista. Sobre ritmos, ele garante uma mistura da influência da sua relação com o Heavy Metal e com nuances do grave e da batucada presente na ciranda.

O caráter agregador da Umbanda,religião homenageada pela faixa também se faz presente no videoclipe,que reúne nomes como dos atores Silvero Pereira, Bruno Garcia,Vanessa Pascalle, da cantora Daúde e do Bloco Ilú Oba de Min. “Mar de Fogo” está disponível em todas as plataformas de streaming. O clipe pode ser visto através do canal do YouTube de André Moraes.

Papa agradece jornalistas por ajudarem a expor crimes sexuais na Igreja Católica

Imagem de 13 de novembro de 2021 mostra o papa Francisco em cerimônia para homenagear os jornalistas Valentina Alazraki e Philip Pullella, veteranos correspondentes no Vaticano — Foto: Simone Risoluti/Vatican Media

O papa Francisco agradeceu a jornalistas neste sábado (13) por ajudarem a revelar os escândalos de abuso sexual por parte do clero que a Igreja Católica Romana inicialmente tentou encobrir. O pontífice elogiou o que chamou de “missão do jornalismo” e disse ser vital que repórteres saiam de suas redações e descubram o que está acontecendo no mundo exterior para conter a desinformação muitas vezes encontrada on-line. “Agradeço vocês pelo que nos dizem sobre o que está errado na Igreja, por nos ajudarem a não esconder isso embaixo do tapete, e pela voz que vocês deram às vítimas de abuso”,

disse o papa. Francisco falou em cerimônia para homenagear dois correspondentes veteranos – Philip Pullella, da Reuters, e Valentina Alazraki, da mexicana Noticieros Televisa – por suas longas carreiras cobrindo o Vaticano. Os escândalos de abuso sexual chegaram às manchetes em 2002, quando o jornal norte-americano “The Boston Globe”escreveu uma série de artigos expondo um padrão de abuso de menores por clérigos e uma cultura disseminada de ocultar esse tipo de ação dentro da Igreja. O caso inspirou o longa“Spotlight – Segredos revelados”(2015),que ganhou o Oscar de melhor filme de 2016.


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Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Frente Povo Sem Medo e outras organizações sociais promoveram em inúmeras cidades do país, neste sábado (13), uma mobilização batizada de Marcha contra a Fome. Através de passeatas, manifestantes denunciaram a volta da miséria no país. Em São Paulo (SP), onde aconteceu o maior ato, manifestantes saíram da estação Paraíso do Metrô e seguiram em marcha até a Praça da Sé, no centro da capital, onde foi realizado um ato ecumênico com a presença do Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua.O líder do MTST e político do PSOL, Guilherme Boulos, também esteve presente, bem como o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP). “A marcha quer sensibilizar a sociedade para a situação de insegurança alimentar vivida por milhões de pessoas. Mais do que uma tragédia, a fome é projeto desse governo genocida. E é só com o fim do bolsonarismo que milhões de brasileiros poderão voltar a comer dignamente”, disse Boulos. A organização calcula que cerca de 20 mil pessoas compareceram ao

Marcha contra a fome: 20 mil pessoas tomam ruas de SP em protesto contra a volta da miséria Mobilização aconteceu também em outras cidades; na capital paulista, estiveram presentes Guilherme Boulos e Padre Júlio Lancellotti, entre outras lideranças sociais e políticas protesto. Além da capital paulista, marchas contra a fome foram realizadas no Rio de Janeiro,Aracaju,Maceió,Recife,Ceilândia,Goiânia,Porto Alegre,Belo Horizonte e Montes Claros.Volta da fome Pesquisa divulgada em outubro

pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN) revela que, no período abrangido pelo levantamento (5 a 24 de dezembro de 2020), apenas 44,8% dos lares tinham seus moradores e moradoras em situação de segu-

rança alimentar, ou seja, 55,2% dos lares conviviam com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%). Em números absolutos, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a ali-

DIREITOS HUMANOS

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mentos, desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave). O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 foi realizado em 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais, entre 5 e 24 de dezembro. De acordo com os pesquisadores, a fome é um problema histórico no Brasil, mas destacam que entre 2004 e 2013, o programa Fome Zero conseguiu reverter o quadro de miséria endêmica. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2004, 2009 e 2013, revelou uma importante redução da insegurança alimentar em todo o país. Em 2013, a parcela da população em situação de fome havia caído para 4,2% – o nível mais baixo até então. Isso fez com que a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura finalmente excluísse o Brasil do Mapa da Fome que divulgava periodicamente. (Da Fórum)

Fiscalização resgata 76 trabalhadores escravizados em fazenda de alho em MG Uma ação conduzida pelo grupo móvel de fiscalização e combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho (SRTb/MG) resgatou, esta semana, 76 trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma fazenda de alho em Tapira (MG), que fica 400 km a oeste de Belo Horizonte (MG). Os auditores-fiscais, que atuaram em conjunto com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Polícia Militar de Minas Gerais, constataram condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas. Os empregados não tinham remuneração fixa: recebiam conforme a produção. Os alojamentos eram precários e apertados, com dez em cada quarto. Eram apenas quatro banheiros para quase 80 trabalhadores. Sem opção, muitos deles faziam as necessidades no mato, a céu aberto. Leia também:“Resgates de escravi-

Auditores-fiscais encontraram alojamentos precários e falta de equipamentos de proteção individual, entre outras violações - SRT-MG zados já batem os de 2020 e ganham a cara da pandemia”, diz Sakamoto Segundo as informações levan-

tadas até o momento, os trabalhadores eram aliciados de forma irregular no norte de Minas Gerais. O nome da

fazenda ou do empregador ainda não foi divulgado. O trabalho na propriedade era rea-

lizado de domingo a domingo, em jornadas superiores a 70 horas semanais. Os empregados tinham que pagar pelas ferramentas de trabalho, e nem todos dispunham de equipamentos de proteção individual. Não foi verificada nenhuma medida de prevenção à covid-19,e os empregados tinham que compartilhar as garrafas térmicas porque não havia reposição de água durante a jornada. Trabalhadores que tiveram que se deslocar para tomar vacina contra o novo coronavírus tiveram as horas de trabalho descontadas, segundo informações apuradas no local. Após a ação, o empregador foi notificado e cada trabalhador da fazenda recebeu uma indenização de R$ 4,5 mil por danos morais, além das verbas rescisórias e guias que dão direito a três parcelas de seguro-desemprego. Todos os resgatados voltaram a suas cidades de origem. (Da RDBA)


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POLÍTICA PÚBLICA

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Sicsú: Bolsonaro troca Bolsa Família por programa ‘emergencial e desestruturante’ Economista e professor da UFRJ lembra que o programa criado por Lula, que existiu por 18 anos, era de Estado e atravessou governos. Já o Auxílio Brasil tem prazo para acabar

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Auxílio Brasil, criado pelo governo para substituir o exitoso Bolsa Família, tem sido duramente criticado por ser um programa com data para acabar e servir para alavancar a popularidade do chefe de governo e seus aliados, com vistas às eleições de 2022. Mas as diferenças entre o benefício criado no governo de Luiz Inácio Lula da Silva em 2003 e o “novo Bolsa Família”, como alguns o chamam, vão muito além. O programa que durou 18 anos e foi considerado referência mundial não era apenas monetário. “O Bolsa Família era um programa

social, abarcando diversas dimensões: a educação, a área da saúde, e inclusive a econômica. Envolvia transferência de renda,mas também obrigações”, diz João Sicsú,professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para receber o benefício, os filhos das beneficiárias (que eram as mães) tinham de estudar e ser vacinados. As mães precisavam fazer exames regulares no SUS. “Era um programa global, estruturante das famílias, tanto que quem recebia os recursos eram prioritariamente as mães.Existia contrapartida em relação à saúde e educação. Por isso chama-se Bolsa Família, e não bolsa do indi-

víduo”, acrescenta. Na quinta-feira (11), Jair Bolsonaro sancionou a Lei 14.236, que abre ao Orçamento da Seguridade Social da União, em favor do Ministério da Cidadania, crédito especial no valor de R$ 9,4 bilhões para o pagamento do Auxílio Brasil.O benefício está previsto para vigorar até dezembro de 2022, pouco mais de um mês após as eleições presidenciais. O programa criado por Lula não se tornou referência por acaso. Estudos divulgados recentemente em veículos internacionais atestam que ele reduziu taxas de mortalidade materna e na infância. Num desses trabalhos (leia aqui), publicado no final de setembro na revista eletrônica Plos Medicine,pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) mostraram o Bolsa Família reduziu em 16% a mortalidade de crianças de 1 a 4 anos entre a população mais pobre, principalmente filhos de mães negras e também prematuros. Como observa Sicsú, o “novo Bolsa Família” de Bolsonaro é, na verdade, “um programa emergencial e deses-

truturante” em relação às necessidades das famílias, células fundamentais da sociedade, independentemente de como são estruturadas. Para o economista da UFRJ, ao transformar o Bolsa Família em um programa meramente econômico,a visão estruturante é substituída por uma perspectiva de“socorro”, que permitirá às pessoas comprarem alimentos. Além de não estimular cidadãos, e principalmente cidadãs, a terem uma renda regular,um emprego,e não pedir nada em contrapartida,o Auxílio Brasil não é permanente e é exclusivamente econômico. “Portanto,é muito limitado do ponto de vista da construção e organização de uma sociedade.É necessário,porque as pessoas estão famintas.Mas elas precisam de um pagamento regular para comprar produtos básicos e também de uma vida organizada, na escola e no sistema de saúde.” O Bolsa Família, lembra o professor, atravessou governos. Era um programa de Estado. O de Bolsonaro“traz insegurança às famílias e reduz a presença do Estado na organização da vida familiar, no sentido de

apontar os caminhos na área da saúde e também na educação”. Já o deputado Enio Verri (PT-PR) destaca outro aspecto perverso da iniciativa de Bolsonaro:“Além de acabar com um projeto estruturante de 18 anos para construir outro de um ano, diminui o número de pessoas atendidas”. O auxílio emergencial, criado pelo Congresso no contexto da pandemia de covid-19, atendia 39 milhões, incluindo os quase 15 milhões do Bolsa Família. O Auxílio Brasil vai chegar a 17 milhões.“Então, 22 milhões não vão receber absolutamente nada”, diz o parlamentar. O Auxílio Brasil começa a ser pago na próxima quarta-feira (17), ironicamente seguindo o calendário do Bolsa Família. As famílias receberão um tíquete médio de R$ 217,18. Para vigorar em definitivo (até dezembro de 2022), o Congresso precisa aprovar a Medida Provisória 1.061/2021,que instituiu o programa, até 7 de dezembro. Assim, para chegar aos R$ 400 prometidos por Bolsonaro, a chamada PEC dos Precatórios tem de ser aprovada e entrar em vigor.

Deputados,na noite de terça-feira (9) em segundo turno. O texto segue para análise do Senado, onde também precisa ser aprovado em dois turnos, com, pelo menos, dois terços de votos favoráveis. “O senador [Rodrigo] Pacheco se comprometeu, porque a PEC dos Precatórios,80% dela foi feita na casa dele. Nós nos sentamos lá, o [Arthur] Lira, ele, eu, nos sentamos e conversamos

sobre isso e desenhamos a estrutura. Então ele se comprometeu conosco de botar em votação.” O ministro disse que agora é preciso achar uma fonte permanente para o programa.“Eu faria uma reforma administrativa agora na Câmara, tentaria aprovar os precatórios no Senado esse ano ainda. O ano que vem temos [privatização dos] Correios, temos [privatiza-

ção da] Eletrobras,isso aí não tem problema nenhum fazer em janeiro, fevereiro, março, o que você tem que aprovar agora são os programas sociais,porque tem que entrar rodando esse ano, não pode criar em ano eleitoral”,disse. Segundo Guedes, a reforma administrativa e a aprovação da PEC dos Precatórios manteriam “os fundamentos fiscais sólidos”.

Paulo Guedes admite que Auxílio Brasil não tem fonte permanente de recursos e pode acabar depois da eleição O ministro da Economia,Paulo Guedes, disse nesta quinta-feira (11) que estava tudo programado para um Auxílio Brasil de R$ 300, respeitando o teto de gastos e que teria como fonte os recursos oriundos de mudanças no Imposto de Renda (IR). No entanto, segundo o ministro, como a questão está parada no Senado Federal e o presidente Jair Bolsonaro ampliou o valor em R$ 100, o programa ainda não tem fonte permanente de custeio. “Embaixo da lei de responsabilidade fiscal,dentro do teto e com a fonte que seria o IR. Bloquearam o IR, ele foi aprovado na Câmara [dos Deputados], não avançou ainda no Senado. Sem a fonte,isso não permite a criação de um programa permanente,então nós fomos empurrados para um programa transitório”, afirmou Guedes, em participação no evento Itaú Macro Vision 2021. Sobre o IR, Guedes se refere à taxação da distribuição de lucros e dividendos,incluída na segunda fase Reforma Tributária concebida pelo Ministério da Economia,que não avançou no Senado. “Houve a questão da sensibilidade social, que é aquele negócio ‘vamos

dar então 400 [reais]’, já que não é permanente, dá um pouco mais. Passamos seis, sete meses falando que as pessoas estavam comendo ossos, que era uma fome generalizada, que as pessoas estavam desamparadas, a pressão política foi imensa em cima da economia”, acrescentou. O ministro disse que não foi sua a ideia de ampliação do teto de gastos para garantir os recursos para o Auxílio Brasil. “A economia queria fazer R$ 300 dentro do orçamento,tudo certinho.A [ala] política pressionando R$ 600. O presidente cortou ali e falou R$ 400.Nem os R$ 600, nem os R$ 300,vamos criar um programa transitório. Eu alertei à época dizendo o seguinte ‘isso vai ser fora do teto’”, disse. A garantia da fonte de recursos para o programa passa ainda pela proposta de emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que permitiria o parcelamento de precatórios e alteraria o cálculo do teto de gastos,liberando R$ 91,5 bilhões para o Orçamento do próximo ano.Desse total,cerca de R$ 50 bilhões seriam usados para bancar a elevação do benefício para R$ 400. A PEC foi aprovada na Câmara dos


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DIREITO À SAÚDE

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ARTIGO

Financiamento do SUS é um debate que não pode mais esperar

Petição popular com mais de 34 mil assinaturas foi protocolada, nesta quartafeira (10), no Ministério Público Federal, em Brasília

Anistia Internacional exige cumprimento dos inquéritos da CPI da Covid

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s organizações de sociedade civil que compõem a campanha Omissão Não é Política Pública (ONPP), lideradas pela Anistia Internacional Brasil,protocolaram,nesta quarta-feira (10), uma petição popular com mais de 34 mil assinaturas para exigir que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras,cumpra os inquéritos apontados no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. O documento foi entregue ao Ministério Público Federal (MPF), em Brasília. A CPI sugeriu a acusação de 80 pessoas, dentre elas o presidente Jair Bolsonaro, por crimes de responsabilidade, contra a humanidade e delitos comuns. A petição menciona que a Comissão, iniciada em abril de 2021, foi um passo concreto e importante nas investigações das possíveis ações e omissões que levaram o Brasil a alcançar mais de 600 mil mortes em decorrência da pandemia.Porém,afirma que“este é apenas o primeiro passo”e exige que as pessoas listadas no relatório final sejam processadas judicialmente e devidamente responsabilizadas “em todos os níveis hierárquicos”. “Só assim não abriremos um perigoso precedente de legitimação de violações de direitos em nosso país. Por isso, pedimos para que cumpra com seu papel constitucional e garanta a devida responsabilização, combatendo a impunidade”, ressalta o texto. De acordo com o documento, o colapso do sistema único de saúde, a demora na aquisição e distribuição de insumos,testes e vacinas e a“corrupção na negociação das doses foram determinantes para que tantas vidas tenham sido perdidas”.  A entrega da petição com exatamente 34.807 assinaturas foi marcada por manifestações em diversos pontos da capital federal. Representantes das 20 entidades envolvidas pediram celeridade nas apurações dos inquéritos registrados pela CPI. Fabiana Carioca, coordenadora do SOS Amazonas, de Manaus, durante o protesto, relembrou que o estado do Amazonas foi o primeiro que entrou em colapso durante a pandemia. O estado soma mais de 13,7 mil óbitos, segundo

DR. LUIZINHO* Sem reajuste há muito anos,a Tabela SUS,que precifica o reembolso de procedimentos médicos no serviço público e conveniado, não cobre os custos da maioria dos itens nela previstos. Uma biópsia de mama,por exemplo, vale R$ 35, menos do valor da agulha usada para a coleta do material. Uma ressonância magnética do crânio está tabelada em R$ 268,75,enquanto uma ultrassonografia mamária ou obstétrica vale apenas R$ 24,20. Pior é a radiografia de tórax: R$ 6,88. Num mercado em que produtos e equipamentos são cotados em dólar, a situação se torna ainda mais dramática. Paga-se por uma cesariana R$ 545,73 reais,quando seu custo real ultrapassa dos R$ 2 mil. Não é por outra razão que tantas maternidades conveniadas ao SUS tenham fechado as portas nos últimos anos. Poucas são as prefeituras dispostas a bancar esse custeio. Na Baixada Fluminense, há cidades onde não há anos não nascem bebês. A Maternidade Mariana Bulhões, em Nova Iguaçu, que ajudei a reinaugurar quando fui secretário municipal de Saúde, atende a parturientes até da região dos Lagos. A superlotação resulta num atendimento pior e numa equipe médica à beira de um ataque de nervos. Para quem não sabe, o SUS pagou R$ 367,06 à equipe médica da Santa Casa de Juiz de Fora que fez a delicada cirurgia de emergência que salvou a vida do presidente da República Jair Bolsonaro, durante a campanha em 2018. O valor permanece inalterado. Isso é o retrato do subfinanciamento que o Sistema Único de Saúde sofre há anos e a realidade de médicos em todo o país.

O colapso do sistema único de saúde, a demora na aquisição e distribuição de insumos, testes e vacinas e a “corrupção na negociação das doses foram determinantes para que tantas vidas tenham sido perdidas”. Trecho da Petição

o Ministério da Saúde.“Hoje eu venho pedir justiça ao procurador Augusto Aras. Se o Governo tivesse aplicado todas as políticas públicas e tivesse se importado com a cidadania e os direitos do povo brasileiro essa tragédia não teria acontecido”, afirmou. Paola Falceta, presidente da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (AVICO Brasil), afirmou que o MPF não vem cumprindo com seu papel constitucional de investigar e punir os possíveis responsáveis pelos milhares de óbitos no país.“É o que a gente espera de uma instituição responsável e que tem o mínimo de respeito pela população brasileira”, disse. Já Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, apontou que, neste momento,quem tem a responsabilidade

de dar continuidade às ações da CPI é o procurador da República.“O responsável para que essas 600 mil vidas perdidas não tenham sido normalizadas é Augusto Aras.A sociedade não pode normalizar essas mortes”, ressaltou. No dia 26 de outubro, o relatório final da CPI da Covid foi aprovado pelo Senado.A partir de então, o Procurador Geral da República, Augusto Aras, teria até 30 dias para decidir se acatará as acusações e avançará com os processos contra os possíveis responsáveis pela má gestão da pandemia ou se vai engavetar as denúncias. O prazo termina em 16 dias. Em 28 de outubro, a Procuradoria-Geral da República determinou a abertura de uma apuração preliminar para analisar os dados da CPI contra 13 pessoas com foro privilegiado, entre elas,

os do Presidente da República. O relatório, de 1.299 páginas, inclui o indiciamento de Bolsonaro por nove crimes que vão desde delitos comuns, previstos no Código Penal, a crimes de responsabilidade, conforme a Lei de Impeachment. Há também citação de crimes contra a humanidade,de acordo com o Estatuto de Roma, do Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Além do chefe do Executivo, mais 77 pessoas são citadas, entre elas três filhos do presidente, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e o atual, Marcelo Queiroga,deputados federais,médicos e empresários.Há ainda duas empresas: a Precisa Medicamentos e aVTCLog, operadoras logísticas do segmento fármaco. Com isso, são 80 pedidos de indiciamento no relatório, no total.

Quanto aos médicos, até 1999 eles pelo menos conseguiam receber com relativa rapidez os procedimentos que faziam, ainda que com valores abaixo da crítica. Com o fim do Código 7 de reembolso direto ao profissional, a burocracia aumentou e os médicos passaram a receber através da instituição contratante.Além de receberam pouco pelo trabalho, ainda levam tempo para receber.Essa é uma justa reivindicação da categoria: a volta do código 7. Esses são alguns dos assuntos que, como deputado, tenho trabalhado no Congresso Nacional e junto às autoridades competentes. Reajuste da Tabela SUS, fortalecimento das Santas Casas, volta do Código 7 são temas que estão em pauta, mas que fazem parte de um debate muito maior: o financiamento e a gestão do SUS, no qual se insere a Saúde Complementar, os Planos de Saúde. Temos o maior sistema de Saúde Pública do mundo, do qual dependem milhões de cidadãos brasileiros, e sem o qual muito mais gente teria morrido durante a pandemia. É hora de cuidar da saúde do SUS. Antes que ele morra por inanição. Luiz Antônio Teixeira é médico ortopedista e deputado federal pelo Rio de Janeiro


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INTERNACIONAL

Rio de Janeiro, domingo, 14, a quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Político socialdemocrata que venceu a eleição e pode ser o próximo chanceler alemão se encontrou com ex-presidente brasileiro em Berlim

‘Estou muito satisfeito’, diz Scholz após reunião com Lula

O

vice-chanceler e ministro das Finanças da Alemanha, Olaf Scholz, disse neste sábado (13/11) que ficou “muito satisfeito” com o encontro que teve com o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. O político social-democrata alemão, que venceu as eleições de setembro, reuniu-se em Berlim com o petista na sexta-feira.“Estou muito satisfeito com nossas boas discussões e aguardo com expectativa continuar nosso diálogo!”, escreveu Scholz no Twitter em inglês após o encontro. No momento,Scholz lidera as negociações para a formação de uma coalizão de governo que deve tê-lo como

chanceler federal. As conversas envolvem a legenda de Scholz, o Partido Social-Democrata (SPD), o Partido Verde e o Partido Liberal Democrático. O SPD terminou a eleição em primeiro lugar, com 25,7% dos votos. Se as negociações forem bem-sucedidas, Scholz deve ser o sucessor da conservadora Angela Merkel e passar a comandar a maior economia da Europa. Já a Lula aparece no topo das pesquisas para vencer a eleição presidencial de 2022 no Brasil. Lula afirmou na véspera que teve uma“agradável conversa”com Scholz e que eles discutiram “o processo que está em curso para a formação de um

novo governo e sobre a importância de fortalecer a cooperação Brasil Alemanha”. O encontro durou cerca de uma hora, segundo a assessoria de Lula. O PT e SPD mantêm laços há décadas e Lula manteve relações amistosas com figuras históricas da legenda alemã como Willy Brandt, Gerhard Schröder, Johannes Rau e Helmut Schmidt. O encontro e as trocas de gentilezas entre Lula e Scholz contrastam com um recente incidente entre o político social-democrata alemão e o presidente Jair Bolsonaro. No final de outubro,Scholz foi ignorado por Bolsonaro durante uma reunião do G20, em Roma. Na ocasião,

durante uma recepção geral para todos os líderes do G20 presentes, Bolsonaro conversou rapidamente com o presidente da Turquia,Recep Tayyip Erdogan. Na mesma roda, estava Olaf Scholz. Bolsonaro,aparentemente não sabendo quem era Scholz, ignorou completamente o alemão e não lhe dirigiu a palavra. Pouco depois, enquanto Bolsonaro reclamava da mídia brasileira e trocava observações banais com Erdogan, Scholz virou as costas e foi falar com o primeiro-ministro britânico Boris Johnson. A indelicadeza não passou despercebida pela imprensa e foi usada como um exemplo do isolamento e do comportamento errático de Bolsonaro durante seu giro pela Itália.

As relações da Alemanha com o Brasil esfriaram consideravelmente desde 2019, especialmente por causa do desmonte de políticas ambientais pelo governo Bolsonaro. Naquele ano, a chanceler federal Angela Merkel, disse ver com “grande preocupação”a situação no Brasil sob Bolsonaro. Em 2020, o governo alemão ainda admitiu que a cooperação com o governo federal brasileiro em áreas como política ambiental e assistência aos povos indígenas estava sendo cada vez mais difícil. Lula desembarcou em Berlim na quinta-feira, dando início a um giro europeu que vai se estender até a semana que vem, e que tem como objetivo reatar as relações com políticos proeminentes da Europa. Lula também pretende oferecer um contraste com o isolado Jair Bolsonaro, que em três anos de governo não construiu nenhum relacionamento relevante com as potências europeias e se destacou mais pelos ataques que fez a líderes europeus. “Começamos hoje por Berlim com uma intensa rodada de encontros. Outro Brasil é possível. E vamos lembrar o mundo disso”, disse Lula ao desembarcar.

ARTIGO

A nova economia do projetamento ELIAS JABOUR* Desde que abandonei teorias consolidadas, e datadas, do desenvolvimento econômico em prol do conceito de formação econômico-social passei a usufruir de liberdade indescritível.Teorias datadas engessam análise e só podem entregar o “particular no geral”. Os economistas hoje, como acreditam que as teorias já estão aí e que o importante é aplicá-las bem estão esbarrando nos limites de acreditarem que ao estudarem as relações entre Estado e mercado conseguem entregar algo capaz de entender processos complexos. Eis o limite da heterodoxia econômica e que a faz se aproximar, no método, da ortodoxia. Explico. Neste tipo de análise a totalidade é amplamente deslocada com a quase negação da política e da história. Entre os marxistas acadêmicos não e percebe que mudanças institucionais não somente têm garantido o desatamento cíclico de

pontos de estrangulamento na economia; mas também o surgimento de novas relações de produção via novos aportes sob forma de mais e melhor regulação do trabalho quanto aumentos salariais médios de 280% nos últimos dez anos. Não impede a China de se tornar, ainda, uma sociedade menos desigual, mas demonstra que o Estado chinês tem respondido às demandas dos trabalhadores com assertividade. Caso fosse um país capitalista a China poderia elevar a competitividade de seus produtos criando um desemprego artificial de ao menos 10%… Retornando. Como toda teoria este tipo de abordagem perde sentido quando surgem mudanças qualitativas, como ocorrem na China hoje. Daí a pobreza de reduzir as reformas pelas quais estão passando a economia chinesa como “onda regulatória”, “novas fronteiras de acumulação de capital”. Nada mais estático e microeconômico. Na verdade, o que existe

é um movimento real gerando novos conceitos. E acredito que decifrar o conteúdo desses novos conceitos seja o maior desafio presente às ciências sociais, pois a China suscita uma engenharia social de patamar superior comprovada pela vitória inconteste contra a pandemia – expondo as mazelas do capitalismo ocidental. A percepção de que a estava emergindo na China uma nova classe de formações sociais me livrou das camisas de força das teorias estruturalistas e de Estado desenvolvimentista / empreendedor de desenvolvimento. A universalidade do marxismo de Vladimir Lênin e Inácio Rangel aplicado a uma realidade particular nos abriu possibilidades ainda a serem amplamente exploradas. Não fomos pegos de surpresa com a atual onda de inovações institucionais. Rapidamente percebemos a natureza qualitativa e diferente do que estava acorrendo.A contradição entre forças produtivas e relações de produ-

ção chegou a outro patamar. Luta de classes. Uma visão de“bloco de poder” deverá ser desafio diante do que significa a força de mais de 130 milhões de trabalhadores urbanos, ontem camponeses no processo de pressão sobre o Partido Comunista,garantindo a manutenção de uma estratégia socializante ao país. A “Nova economia do projetamento” derivada da dinâmica do “desenvolvimento desequilibrado” mediado por ondas de inovações institucionais têm sido uma descoberta fascinante. A criação do computador quântico mais rápido do mundo é passo decisivo na construção da liberdade humana. Nova economia do projetamento é sinônimo de ampliação da capacidade de planificar, de elevar o domínio humano sobre a natureza e entregar ao ser humano a possibilidade de ser o senhor do seu destino. Confesso que seria mais fácil e prestigioso me apreender a alguns conceitos abstratos e aprioristas como valor, dinheiro, fetiche, mercado e alienação e utilizá-los arbitrariamente.Isso é zona de conforto intelectual. Não combina comigo. Prefiro outro caminho,talvez herético.Observar uma tota-

lidade entre formação econômico-social, modo de produção, o meta modo de produção (quem ler China: o socialismo do século XXI irá entender esse conceito) e a lei do valor como uma totalidade. Observando em conjunto esta totalidade é algo que ao se movimentar vai rearranjando as lógicas de funcionamento da sociedade,gerando formação econômico-social a partir de novos modos de produção a partir de combinações entre diferentes formas/relações de produção e troca. Os resultados até aqui têm sido promissores. Muito ceticismo de nossos interlocutores, mas muita gente já utilizando do arcabouço intelectual por nós construído para construírem suas próprias hipóteses sobre a China. Estamos apenas no começo. *Elias Jabbour é professor dos Programas de pós-graduação em Ciências Econômicas e em Relações Internacionais da UERJ. Autor, entre outros livros, de China hoje – Projeto nacional de desenvolvimento e socialismo de mercado (Anita Garibaldi)


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