Sétima Edição da Tribuna da Imprensa Digital

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No dia em que o Governo passou a boiada para o “Bolsa-Reeleição” ao aprovar nesta madrugada a PEC dos Precatórios, nossa edição é dedicada ao tema da Soberania sob vários aspectos. Soberania alimentar, energética, trabalhista, social e ambiental sob um governo que é contra a soberania nacional.

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Rio de Janeiro, quinta-feira, 4, a domingo, 7 de novembro de 2021

Ano 1 | N0 7

ENTREVISTA | TEREZA CAMPELLO

“O Governo colocou em risco 39 milhões de famílias no Brasil, colocou em risco todas as políticas públicas” Págs. 4 e 5

E A N R T A E P N S D A E R R V AC A L A

ERICS DO MUNDO

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ESCRAVIDÃO

ERIC ADAMS

Nos EUA, um ex-policial e legítimo filho do Brooklyn é o novo prefeito de NY Pará é o Estado que mais escravizou seres humanos em 15 anos Pág.5 ARTIGO

DEYVID BACELAR

Um glossário para entender os termos do debate e as agendas apresentadas pelos diversos estados: 26 palavras, siglas e expressões que fazem parte da lin-

guagem científica e institucional. Conhecê-las é o primeiro passo para vigiar sobre o respeito das promessas que serão assumidas.

Transição justa: “Mudança energética precisa incluir as pessoas”

Revisão do Brasil para meta de emissões é “compromisso vazio”

Pág.6

Págs. 2 e 3

ERIC ZEMMOUR

Na França, um sub produto fascista fabricado pela mídia Págs. 7 e 8


1. COP26 É a 26ª Conferência das Partes (Conference Of Parties) que aderiram à ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, um tratado no qual o Acordo de Paris foi assinado. A cúpula está sendo realizada em Glasgow, Escócia, de 31 de outubro a 12 de novembro próximo: cerca de 120 líderes de todo o mundo são esperados, com mais de 25.000 delegados de 197 países. 2. Acordo de Paris Tratado internacional assinado entre 196 partes na COP21 em Paris, em dezembro de 2015. Estabelece os objetivos que os Estados aderentes devem alcançar para conter os efeitos das alterações climáticas: o principal empenho é manter o aquecimento global abaixo do limiar de 2 °C a mais do que os níveis pré-industriais, mas incentiva-se a limitá-lo a 1,5 °C. Pela primeira vez, tanto os países em desenvolvimento quanto as economias mais avançadas concordaram em cortar as emissões de gases de efeito estufa para controlar o aumento das temperaturas.

4. Protocolo de Kyoto O primeiro instrumento prático da Unfccc foi o Protocolo de Kyoto de 1997: os objetivos de redução das emissões de gases de efeito estufa foram definidos para cada país desenvolvido, prevendo um corte geral de 5%até 2012, enquanto os países em desenvolvimento (incluindo a China) foram autorizados a aumentá-las. Os EUA assinaram o tratado, mas não o ratificaram devido à oposição do Congresso. O Protocolo entrou em vigor em 2005: agora obsoleto, foi no final substituído pelo Acordo de Paris. 5. Ndc As contribuições determinadas em nível nacional (Nationally Determined Contributions) são planos com que os países estabelecem metas de redução de emissões, geralmente fixadas para 2030, e as ações para alcançálas. São um instrumento previsto pelo Acordo de Paris; se os resultados que os Estados almejam são insuficientes para conter o aumento das temperaturas, recorre-se a um mecanismo de salvaguarda: a cada cinco anos, as partes devem reabrir as negociações e ajustar os empenhos. 6. Ipcc O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (Intergovernmental Panel on Climate Change) é um órgão criado em 1988 por decisão da ONU e da Organização Meteorológica Mundial. Reúne importantes cientistas do clima, que produziram cinco relatórios de avaliação sobre o aquecimento global e a crise climática. O sexto será publicada nos próximos meses: a primeira parte, apresentada em agosto passado, descreve os eventos extremos (por vezes irreversíveis e sem precedentes) que o planeta terá de enfrentar e as relativas, graves responsabilidades dos seres humanos. 7. +1,5 °C E é nos relatórios do IPCC que se baseiam os objetivos cruciais estabelecidos pelo Acordo de Paris, a saber, manter o aquecimento global bem abaixo de 2 °C a mais do que na época pré-industriais e implementar todos os esforços para limitar o aumento da temperatura para 1,5 °C. O quarto relatório de 2007 sugeria que o mundo teria se aquecido em 1,8 °C se algumas medidas fossem tomadas para cortar as emissões, e 4 °C se as emissões não fossem controladas. O limiar de 2 °C foi considerado extremo: além disso, o impacto das mudanças climáticas seria catastrófico. O relatório de 2018, no entanto, concluiu que as consequências seriam trágicas já com +1,5 °C. 8. Aquecimento global O aumento progressivo da temperatura

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Cop26, a conferência da ONU sobre as mudanças climáticas aparece como uma última chamada para a salvação do planeta. Os poderosos da Terra se reúnem para atualizar, reafirmar ou anunciar seus empenhos na luta contra o aquecimento global. Porque a crise já chegou e só pode piorar. Aqui está, então, um glossário

para entender os termos do debate e as agendas apresentadas pelos diversos estados: 26 palavras, siglas e expressões que fazem parte da linguagem científica e institucional, mas às vezes não são familiares à opinião pública. Conhecê-las é o primeiro passo para vigiar sobre o respeito das promessas que serão assumidas.

E N A R T E A P N D S E A R R V A A C L O A P

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3. Unfccc A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudança Climáticas (ou Acordos do Rio) é um tratado internacional produzido pela Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ou Cúpula da Terra), realizada no Rio de Janeiro em 1992; foi assinado por 154 estados com o objetivo de limitar as concentrações de gases de efeito estufa e evitar as consequências mais dramáticas das mudanças climáticas. No entanto, as medidas a serem implementadas não foram especificadas concretamente. Um glossário “climático” está disponível no site da Convenção.

COP26

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ao Artigo 6º do Acordo de Paris, que permite a criação de “mercados de carbono”. Ativistas e representantes de alguns setores temem que a compra e venda de créditos não se traduza em cortes reais nas emissões ou esconda cálculos inflacionados. Portanto, pediram a abolição dessa norma. Pelo contrário, o Brasil e outros estados com grandes florestas querem que seja mantida. Os conflitos já comprometeram o desfecho da COP25, realizada em Madri em 2019. 20. Captura e armazenamento de CO2 Antes de se espalhar para a atmosfera, o dióxido de carbono é capturado (ou sequestrado) na saída de uma grande fonte (como uma central elétrica ou planta industrial); eventualmente é transportado e armazenado em reservatórios artificiais ou naturais. O processo, por exemplo, muitas vezes comporta a injeção do gás no subsolo, onde fica preso. É um método para reduzir as concentrações e a poluição no ar. 21. Pegada ecológica Também chamada de pegada de carbono. É uma medida que se refere à quantidade de CO2 emitida por uma empresa ou qualquer outro sujeito em um determinado período de tempo, através da sua produção ou através de suas ações e hábitos de vida (consumo de energia, meios de transporte...). 22. “Climate positive” Expressão usada para definir todas aquelas atividades ou realidades que têm um impacto positivo do ponto de vista climático. Na prática, superam a meta do zero líquido: absorvem e removem mais CO2 da atmosfera do que geram. 23. “Escopo” 1, 2, 3 Os âmbitos delimitados pelo Protocolo Ghg para calcular a pegada ecológica de uma empresa (e para distinguir entre as fontes de emissão que podem ser diretamente controladas ou não). O número 1 avalia as emissões diretas, como aquelas criadas pela queima de combustível ou processos industriais. O 2 considera as emissões indiretas, associadas à eletricidade ou aquecimento.

média da superfície registrada em nível planetário. É medido sobretudo em comparação com a época pré-industrial, para entender como as atividades humanas afetam esse processo e interagem com outros fatores. A principal causa do fenômeno, de fato, são as emissões de gases de efeito estufa na atmosfera. O fato de a Terra aquecer provoca mudanças no clima e eventos climáticos particularmente intensos. 9. Mudança climática Conjunto de fenômenos que dizem respeito ao clima em nível global e que se materializam tanto na forma de eventos meteorológicos extremos quanto por meio de outros mecanismos físicos. Exemplos? Elevação do nível médio do mar, derretimento de geleiras, aumento das temperaturas, maior f requência e intensidade das precipitações, secas persistentes e cada vez mais generalizadas. Desastres das quais muitas vezes dependem carestias e incapacidade de acesso à água potável. 10. Adaptação A resiliência exigida dos seres humanos, assim como dos animais e das plantas, para aprender a viver em temperaturas mais altas. O planeta já aqueceu cerca de 1,2 °C em relação aos níveis pré-industriais, em todas as latitudes estamos enfrentando as consequências da mudança climática. No futuro, mesmo que conseguíssemos reduzir parcialmente as emissões poluentes, ainda teremos que nos preparar para eventos meteorológicos ainda mais extremos. Muitos setores - das infraestruturas à construção e à agricultura - terão que se adequar e se equipar de meios para enfrentar enchentes, calor escaldante e seca. 11. Gases de efeito estufa (Ghg) Categoria dos gases atmosféricos que contribuem para o aquecimento global por meio de sua capacidade de gerar o efeito estufa. A lista daqueles cujas emissões devem ser limitadas, inclui dióxido de carbono (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O), hidrofluorocarbonos (HFC), perfluorocarbonos (PFC) e hexafluoreto de enxofre (SF6).

os planos para a extensão da superfície florestal.

12. Equivalente de Dióxido de Carbono (CO2e) A unidade de medida usada para agrupar e calcular de maneira uniforme as emissões de gases de efeito estufa. Na prática, os outros gases que contribuem para o aquecimento global são convertidos em dióxido de carbono com base nesse seu efeito potencial; mede-se a quantidade correspondente de CO2, o que provocaria o mesmo nível de aquecimento. 13. Metano É um gás de efeito estufa ainda mais poderoso do que o dióxido de carbono: pode reter o calor de maneira 80 vezes mais eficaz do que o dióxido de carbono. Enquanto o CO2 permanece na atmosfera por cerca de um século após ser liberado, o metano permanece por algumas décadas e depois se decompõe justamente em dióxido de carbono. As principais fontes são as perdas geradas pela extração e processamento de combustíveis fósseis (como no caso dos poços de petróleo), mas também pela pecuária e outras atividades agrícolas. 14. Biomassa e fontes renováveis Biomassa é matéria orgânica que vem de plantas e animais; pode ser usado para produzir energia limpa ou biocombustíveis. As fontes renováveis, em geral, são aqueles fatores presentes na natureza sem limites (sol, vento, água) a partir dos quais se pode obter energia de baixo impacto ambiental (fotovoltaica, eólica, hidrelétrica). 15. Mitigação No âmbito da UNFCCC, entende-se todas aquelas intervenções realizadas para reduzir as fontes de gases de efeito estufa ou para potencializar os instrumentos capazes de absorvê-los. Por exemplo: o consumo mais racional de combustíveis fósseis nos processos industriais, a passagem para a energia solar ou eólica, a melhoria do isolamento dos edifícios,

16. Zero líquido Uma das metas climáticas que governos e empresas buscam. Consiste em reduzir ao máximo as emissões de gases de efeito estufa e em compensar as residuais que não podem ser eliminadas (por exemplo, aquelas produzidas por algumas indústrias ou setores como a aviação). Como? Protegendo e potencializando os instrumentos de captura de CO2 e os locais de armazenamento do CO2. Ambientalistas atacam o conceito de “emissões líquidas zero”, ou “neutralidade de carbono”, porque seria um álibi para justificar a poluição que não se quer reduzir. 17. Compensação de CO2 Como o dióxido de carbono gera o mesmo impacto ambiental independente da fonte, acredita-se que, ao absorver certa quantidade em um ponto do planeta, o efeito consequente possa ser anulado em outro lugar. Estados e empresas compensam parcialmente a poluição atmosférica produzida, investindo em projetos que visam reduzir as emissões ou armazenar CO2. Quais? Conservação de florestas, plantio de árvores, transição dos combustíveis fósseis para energias renováveis, técnicas de cultivo sustentáveis. Para cada empenho mantido, é atribuído o número correspondente de “créditos de carbono”. Uma prática controversa. 18. Créditos de carbono Podem ser ganhos, precisamente, compensando o CO2. Cada crédito, que deve ser certificado pelos órgãos competentes, representa uma redução de emissões equivalente a uma tonelada de dióxido de carbono. Esses bônus também podem ser adquiridos por uma empresa ou país para serem contabilizados em seu balanço patrimonial e para alcançar as metas climáticas. Daí as críticas dos ambientalistas: a medida agrava a disparidade entre ricos e pobres. 19. Artigo 6º Um problema a resolver é o que diz respeito

O 3 se refere às emissões no começo e no final da cadeia de valor. As primeiras incluem aquelas devidas a transporte, distribuição, deslocamento de funcionários, resíduos, produção de bens e serviços adquiridos. As segundas incluem aquelas relacionadas ao uso do produto da empresa, seu tratamento até o fim de vida ou aos investimentos. 24. Eco-imposto Tipo de imposto cobrado pelas autoridades administrativas em nível central ou local sobre atividades prejudiciais ao meio ambiente. Indiretamente, incentiva os comportamentos virtuosos e leva as empresas ou os indivíduos a aumentarem sua sustentabilidade, penalizando aqueles que fazem escolhas com altas emissões (exemplos são o imposto sobre veículos altamente poluentes ou o “carbono tax”). 25. Finança para o clima e justiça climática Na Cop15, realizada em Copenhague em 2009, ficou estabelecido que os países em desenvolvimento receberiam financiamento para o clima correspondentes a pelo menos US $ 100 bilhões por ano, a partir de 2020. Assim, as economias mais avançadas os ajudariam a reduzir as emissões e enfrentar os desastres naturais cada vez mais frequentes. Mas a promessa não foi cumprida: em 2019 os fundos concedidos pararam em 80 bilhões de dólares. É por isso que o clima é uma questão de justiça social. As populações mais ameaçadas pelos efeitos das mudanças climáticas são frequentemente aquelas mais pobres e menos responsáveis pelo aquecimento global. 26. “Greenwashing” Termo que indica as iniciativas adotadas por empresas e especialistas em marketing para chamar a atenção para seus alardeados planos de sustentabilidade, que consistem apenas em medidas de fachada e não incidem (aliás, tendem muitas vezes a ocultar) sobre as práticas consolidadas mais prejudiciais ao meio ambiente.

ERRATA: Na edição passada, na página 11, por um erro de edição o título foi grafado como caminheiros e a forma correta é caminhoneiros. Pedimos desculpas aos leitores. Diretor-Presidente: Ralph Lichotti

Edição e design: Ricardo de Souza, Rochinha, Anabella Landim, Mel de Moraes

Tratamento de Imagens: Carlos Júnior https://www.tribunadaimprensadigital.com.br/


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ompromisso vazio. As duas palavras sintetizam o sentimento da comunidade internacional e de ambientalistas brasileiros sobre a meta proposta pelo governo Bolsonaro de cortar emissões de gases em 50% até 2030 e a promessa de zerar o desmatamento ilegal em sete anos. No segundo dia da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), o Brasil mostrou que corre sério risco de ficar de fora dos grandes debates e dos arranjos estratégicos para frear o aquecimento global. Para Flávia Bellaguarda, coordenadora de Política e Justiça Climática do The Climate Reality Project Brasil, a nova proposta apresentada pelo governo Bolsonaro apenas deixa claro que o país não tem a ambição necessária para evitar a crise climática.“Mesmo a delegação federal tendo quase 100 pessoas, infelizmente, com as portas fechadas, não sabemos o que esperar. Sabemos que o governo é negacionista com a questão climática. As expectativas não são altas”, declarou ela em Glasgow. A cartada do governo brasileiro de anunciar apenas durante a COP26 um reajuste da meta de emissões se mostrou inócua. Nesta segunda-feira (01/11), o Brasil reajustou de 43% para 50% o corte a ser atingido da emissão de gases do efeito estufa até 2030. Esse índice é a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês), que cada país estabeleceu no Acordo de Paris, em 2015. Em dezembro, na última revisão da NDC, o Brasil manteve sua meta de emissões de 37% para 2025 e 43% para 2030. Na ocasião, o consórcio The Climate Action Tracker rebaixou de“insuficientes”para“muito insuficientes”as ações do governo brasileiro anunciadas para o NDC. Quem anunciou a melhoria da meta de emissões foi o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que falou de Brasília, mas foi transmitido por vídeo no pavilhão do Brasil na COP26. Nessa mesma fala, o governo brasileiro assegurou que vai zerar o desmatamento ilegal de 2030 para 2028. O ministro do Meio Ambiente citou apenas porcentagens e não mostrou qual será a redução real nas emissões dos gases de efeito estufa para esta década. Tampouco ficou clara a base de cálculo utilizada para essa revisão, o que pode, segundo temem os ambientalistas, se tratar de uma manobra contábil que permite relaxar a meta de corte nas emissões de dióxido de carbono (CO2). Essa manobra já está sendo chamada de “pedaladas de carbono”. Leite será o emissário brasileiro na COP26, depois que Bolsonaro desistiu de comparecer presencialmente em Glasgow, ao contrário de outros líderes, como o presidente norte-americano,Joe Biden.Num discurso gravado, o presidente brasileiro afirmou que a posição do país no enfrentamento das mudanças climáticas “sempre foi parte da solução e não do problema”. Isolamento de Bolsonaro Conferencistas e jornalistas, aglomerados em torno do pavilhão que continha a frase “O Futuro verde está no Brasil” estampada na parede, ime-

COP26

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Jornalistas e participantes da COP 26 em Glasgow observam no telão o discurso online de Bolsonaro, exibido somente no Pavilhão do Brasil

Revisão do Brasil para meta de emissões é “compromisso vazio”

País mostrou que corre sério risco de ficar de fora dos grandes debates e dos arranjos estratégicos para frear o aquecimento global

O ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, durante anúncio de intenções do Brasil, no Estúdio da Confederação Nacional da Indústria (CNI) diatamente apontaram para a contradição da fala de Bolsonaro, que trazia a ideia do crescimento verde e a conservação florestal, mas ia no caminho contrário das políticas praticadas pelo governo atual. O isolamento político de Bolsonaro ficou patente, segundo Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima,que resumiu nas duas palavras de abertura desta reportagem a postura do governo brasileiro na COP26. Para ele, o discurso de Bolsonaro não trouxe nenhum avanço, sendo baseado apenas em uma pressão política. “O presidente não tem mais o

guarda-chuva que sempre contou que foi o governo [de Donald] Trump. Bolsonaro está sozinho,muito isolado.Não tem mais quem dê esse suporte para ele internacionalmente, que era um outro negacionista americano”, disse Astrini. Para ele, que participou de uma coletiva de imprensa promovida pela Brazil Climate Action Hub,o presidente não apresentou nenhum ganho, mas mostrou mais um retrocesso. Biden, com um discurso diferente do antecessor Trump, defendeu, durante sua fala presencial na COP26, “que este seja o início de uma década de ações transformadoras que preser-

vem nosso planeta e elevem a qualidade de vida das pessoas em todos os lugares”. Posicionando os Estados Unidos em outra escala nas questões ambientais,o presidente Biden assegurou que é possível adotar essa estratégia e que essa escolha já foi feita pelos norte-americanos.Ele também criticou quem destrói as florestas. O ambientalista Márcio Astrini afirmou que já não alimenta expectativas em relação à posição brasileira na COP26, e adiantou que o país deve apenas se posicionar nesta terça-feira (02/11) com um anúncio sobre as florestas.“Mas nada excepcional. É um anúncio que o Brasil vai fazer de des-

matamento. Sabemos que é um compromisso vazio, na prática a ilegalidade, e sabemos que ele [Bolsonaro] não vai implementar e vai deixar para outro presidente”, finalizou. “Não reduz a vergonha” O Observatório do Clima, em nota, explicou que a“pedalada de carbono” pode resultar numa emissão adicional de 400 milhões de toneladas de CO2 equivalente em relação à NDC anunciada em 2015, pela presidente Dilma Rousseff.Isso porque os inventários são constantemente atualizados e Bolsonaro estaria utilizando uma base favorável para, na prática, continuar com mais emissões.“Nova meta do Brasil no clima reduz pedalada, mas não a vergonha”, resumiu em nota o Observatório do Clima. No próprio documento “Diretrizes para uma Estratégia Nacional para Neutralidade Climática”, o Ministério do Meio Ambiente informa que o Programa RenovaBio conseguiu em 2020 evitar a emissão de 14,89 milhões de CO2 equivalente. Nesse ritmo, o Brasil chegaria em 2030 com uma redução inferior a 140 milhões de CO2 equivalente, bem abaixo da pretendida emissão menor que 620 milhões de CO2 equivalente descrita no documento. Ao contrário de Bolsonaro, que fugiu da COP26, delegações brasileiras da sociedade civil têm participado ativamente da conferência em Glasgow. Segundo a advogada Flávia Bellaguarda, enquanto o governo federal “puxa a corda de um lado, a sociedade civil puxa de outro”. E ela enfatizou a presença da maior delegação de jovens da história nesta 26ª edição da conferência e também a presença de governadores de estados brasileiros. Uma delas foi Walelasoetxeige Paiter Bandeira Suruí (nome indígena que significa mulher inteligente, gente de verdade), de 24 anos. Indígena de Rondônia, a Txai Suruí, filha do grande líder Almir Suruí e da ambientalista Ivaneide Bandeira, participou de uma sessão da COP26 nesta segunda-feira. Em seu discurso, assistido pelo premiê britânico Boris Johnson, a ativista que foi representando organizações como Engajamundo e Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, afirmou:“Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis, vamos acabar com a poluição de promessas vazias e vamos lutar por um futuro e presente habitáveis”. Em entrevista para a agência Amazônia Real, a jovem indígena também foi dura nas críticas sobre a mudança no tom do discurso das autoridades brasileiras, desta vez mais diplomático.“O Brasil passa uma imagem que está protegendo a Amazônia, que não existe desmatamento dentro das terras indígenas e que os povos indígenas não estão sofrendo. Isso é uma mentira e estamos aqui para desmentir isso”, afirmou. Walelasoetxeige, que também faz parte da Articulação de Povos Indígenas do Brasil (Apib),reafirmou a importância da inclusão dos povos originários na pauta climática.“Que os povos indígenas sejam bastante visados aqui para que o mundo consiga entender a importância deles na discussão climática para a harmonia do planeta e harmonia climática”. (Do Ópera Mundi)


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DIREITOS SOCIAIS

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ENTREVISTA TEREZA CAMPELLO, ex- Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Qual sua avaliação sobre o término do programa Bolsa Família, anunciado pelo governo? Primeiro, a grande questão é que, depois de mais de três anos de ameaça de que iria terminar com o Bolsa Família,depois de mais de dez anúncios que foram feitos de “daqui a quinze dias”, “no mês que vem”, a ponto de chegarem e terem feito um anúncio e convocado pra fazer um lançamento [no último dia 19],depois de todo esse processo, até agora eles não conseguiram dizer o que é o Auxílio Brasil. Não existe um programa, em tese, que tenha valores, que diga quais são os recursos, então, o programa, rigorosamente, não existe, o que é muito preocupante porque estamos a 17 dias do pagamento. Então, ele não existe – a proposta de emenda constitucional não foi aprovada, a Medida Provisória [MP 1061/2021] não foi aprovada, a lei que transfere os recursos do Bolsa Família pro Auxílio Brasil também não foi aprovada e todo o regulamento, todas as portarias que dependem dessas decisões (contrato com bancos, etc.), tudo isso teria que ser feito de quarta-feira [3] agora até o dia 17,portanto,praticamente a situação é de altíssimo risco. A grande preocupação hoje é a possibilidade de um grande apagão, ou seja, as pessoas não receberem nem o auxílio emergencial, porque ele não existe mais, nem o Bolsa Família, que também não existe mais (porque a MP extinguiu já o Bolsa Família e ela está em vigência) e o Auxílio Brasil também não existe. Então, nós teremos os 39 milhões de beneficiários do auxílio emergencial sem nada e, entre estes, os quase 15 milhões de famílias que estariam no Bolsa Família também vão estar sem nada. A situação é muito, muito preocupante e de uma irresponsabilidade. Não acho que a gente consiga encontrar um equivalente na história brasileira – eu já tentei imaginar uma situação parecida. O que eu acho mais dramático é que tudo isso acontece não por uma situação inusitada, não porque não se soubesse, não porque aconteceu uma catástrofe – porque às vezes acontece uma situação não possível de ser planejada e coloca o setor público numa encruzilhada. Mas [essa] não é. Tudo isso só está acontecendo porque o governo quer mudar o nome do Bolsa Família. Isso é que é mais dramático. Ele colocou em risco 39 milhões de famílias no Brasil, colocou em risco todo o funcionamento de políticas públicas,todo o acompanhamento de saúde e educação dessas famílias, fora o dinheiro pra comida. Então,as famílias,as pessoas com as quais temos tido contato estão desesperadas porque elas não terão um recurso básico pra se alimentar este mês.Tudo isso acontece por um motivo vil, pequeno, eleitoreiro. Realmente é uma situação que exigiria providencias de órgãos responsáveis.Não é possível que a gente aceite essa situação nesses termos. O governo extinguiu o Bolsa Família sem apresentar estudos técnicos que pudessem embasar essa decisão. Quais as implicações disso, na sua avaliação como economista e ex-gestora? Além da incerteza que a gente comentou agora, tem uma incerteza gigantesca envolvendo os familiares porque,na prática,não existe nada colocado no lugar. Agora, com relação à gestão pública, também há uma incerteza. Por que eles estão acabando com o Bolsa Família nos termos em que ele existia? Poderiam dizer“temos um estudo técnico mostrando que a nossa proposta é mais eficiente”.Não tem.Não é que eles não apresentaram.Eles não fizeram.Não existem dados que deem suporte ou sustentação à proposta que eles estão apresentando. Não existem dados do ponto de vista fiscal e orçamentário, portanto, o projeto é insustentável do ponto de vista fiscal e orçamentário. Eu diria mais: o projeto é ilegal do ponto de vista fiscal e orçamentário porque ele fere a Constituição, que proíbe que um projeto seja apresentado sem se dizer de onde vêm os recursos.Ele não poderia nem ter sido recebido.Quando ele chegou na Câmara dos Deputados,

“Situação é de altíssimo risco”

Depois de uma jornada de 18 anos de existência, chegou ao fim no Brasil o programa Bolsa Família, que teve seu último pagamento feito pelo governo no último domingo (31). O encerramento da política veio após um vaivém de anúncios, especulações e projeções – de dentro e fora do governo Bolsonaro – dos quais surgiu uma série de interrogações sobre o futuro das famílias que compõem o público-alvo das ações. E as dúvidas continuam pairando sobre a cabeça dos beneficiários e sobre o cenário político em torno do tema: o Auxílio Brasil, programa que deverá substituir o Bolsa Família, deve iniciar sua rota no próximo dia 17 e ainda não teve o escopo oficialmente detalhado pela gestão Bolsonaro. Nesta entrevista, a economista Tereza Campello, que foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Dilma (PT) e professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) é enfática em relação ao processo em curso: “é uma “gestão genocida do aumento da fome no Brasil”.

o presidente Arthur Lira (PP-AL) deveria ter devolvido porque o projeto não tem valores, não tem nada escrito. Como eu disse um tempo atrás,ele é um pastel de vento, não tem nenhuma informação.Ele tem todo um blá-blá-blá, mas nada que o sustente. Ele não tem previsão do ponto de vista fiscal a orçamentário,não tem avaliação de impacto,

de quais benefícios ele trará pra população.Não é que eles não apresentaram isso. É que também não fizeram. Então,por que você vai acabar com esse beneficio e vai colocar outro no lugar?“Porque sim,porque deu vontade, porque eu quero acabar com o nome do projeto,quero tirar a digital do Lula.” Eles podem dizer qualquer coisa, só

não podem dizer que estão fazendo uma coisa melhor porque não existe nenhuma base pra afirmarem isso. Ao contrário, não existe nenhuma base e o programa estava em funcionamento sendo reconhecido nacionalmente.Hoje,por incrível que pareça, estamos comemorando 18 anos do Bolsa Família com o programa reco-

nhecido nacionalmente. Mundialmente ele já era reconhecido como o maior, melhor e mais eficiente programa de transferência de renda no mundo, mas agora ele chega aos 18 anos sendo reconhecido por todos – pela grande imprensa,por setores que inclusive não são de esquerda, que criticavam o Bolsa Família e hoje são obrigados a reconhecer que ele funciona, que era eficiente e era a melhor alternativa pra que a gente tivesse algum tipo de segurança. Ele [o governo Bolsonaro] está gerando insegurança jurídica, insegurança fiscal e orçamentária,insegurança pras famílias. Nada poderia justificar essa situação chegar ao ponto em que chegou, exceto o interesse mesquinho e eleitoreiro do presidente Bolsonaro e da equipe econômica [da gestão]. O Auxílio Brasil traz nove tipos de benefícios diferentes. Do ponto de vista administrativo e operacional da gestão pública, quais são os desafios que podem surgir a partir dessa característica do novo progarama? Quando montamos o Bolsa Família, já em 2003, nós tínhamos muito claro que um programa, pra funcionar em todo o território nacional, pra funcionar nos 5.570 municípios do Brasil,que são muito diferentes – você tem famílias pobres aqui na periferia de São Paulo e em territórios na Amazônia, você tem cidades pequenas, cidades grandes e em diferentes regiões, no urbano, no rural, etc. –, pra funcionar num país continental como é o Brasil, teria que ser simples. Com isso, teria que ter condições de, não sendo somente transferência de renda, de que os demais objetivos fossem passíveis de serem executados e monitorados. Portanto, a gente escolheu também objetivos muito claros, que era aliviar a pobreza com repasse de recursos,controlar a frequência escolar e garantir que essas pessoas tivessem acesso à saúde. Tanto a educação quanto a saúde e a assistência social têm rede nacional pra funcionar,afora a Caixa Econômica, que,onde não tem agência,tem correspondente bancário, parcerias, então, nós tínhamos condições de executar. Eles estão propondo algo com nove benefícios diferentes pra varias áreas que sequer rede têm, como, por exemplo, a área de ciência e tecnologia. Pra quê você vai estabelecer toda uma questão de incentivo à iniciação cientifica se você não tem como aferir isso? Então, isso é somente um blá-blá-blá pra fazer de conta que é diferente do Bolsa Família, pra mudar o nome porque, na prática, não terá como ser executado e aferido. Afora isso, eles têm todo um problema envolvendo outros benefícios, que é o caso de um auxílio que eles estão propondo dar pra que as crianças de 0 a 4 anos frequentem creches. Só que são creches privadas pelo próprio projeto de lei. Então, eles acabam com o recurso que estava indo pro setor publico, para as prefeituras, para fortalecer a rede pública de ensino de educação infantil. Eles pretendem repassar recursos pra rede privada – não conveniada,não controlada –, que não precisa sequer estar regular,e vão passar esses recursos diretamente pra essas creches. Então, você veja: eles fortalecem o ensino privado,não tem quem vá controlar isso porque elas não são regulamentadas nem conveniadas, condicionam isso ao fato de a mãe ter arranjado um emprego quando a gente sabe da dificuldade da mãe de arranjar emprego e,mais,quando a gente sabe da dificuldade de controlar essa informação,porque a maior parte dos empregos hoje é informal. Então,eles estão gerando um monte de penduricalhos, como a gente tem dito,que são impossíveis de serem controlados e, ao mesmo tempo, de serem executados. A gestão desse programa não vai acontecer. Isso também é só um blá-blá-blá pra satisfazer uma base bolsonarista e dizerem que estão fazendo uma coisa diferente quando, na verdade, não estão, e pra tentar mudar o nome.É muito triste que a gente tenha chegado num debate tão superficial. Continua na página seguinte


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trabalho em condições semelhantes à de escravidão é crime e uma grave violação aos direitos humanos, mas permanece ocorrendo corriqueiramente em todo o Brasil. E, a cada nova operação que resgata trabalhadores em fazendas, garimpos e carvoarias, aumenta a lista de calamidades conhecidas a que o homem submete o homem por meio do método milenar de exploração pelo trabalho. O Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas reúne dados de ações de órgãos públicos desde 1995. Daquele ano até 2020, o total de resgates foi de 55.712 pessoas trabalhando sem equipamentos adequados, sem folga semanal, tendo para beber somente a água da chuva e até dormindo ao lado de porcos e chiqueiros. Na análise, o Pará foi o estado com mais resgates de pessoas nessa situação: 13.225 trabalhadores nos últimos 15 anos,uma média de 508 vítimas por ano.Em 2020,Minas Gerais foi o estado com maior número de resgates, com 351 casos, seguido por Distrito Federal, Pará, Goiás e a Bahia. Dados da Organização Internacional do Trabalho mostram que, em todo mundo, esse tipo de violação aos

Pará, o Estado da escravidão Mais de 13 mil trabalhadores escravizados foram resgatados em 15 anos direitos humanos alcança mais de 25 milhões de pessoas, incluindo mulheres e crianças. Em outra ponta, o ato gera cerca de US$ 150 bilhões anuais em lucros ilegais para os proprietários escravagistas. No final do mês de outubro, uma fiscalização composta por representantes do Ministério Público do Trabalho no Pará e Amapá (MPT), Auditoria Fiscal do Trabalho, Defensoria Pública da União (DPU) e Polícia Federal (PF) nos municípios de Itupiranga e Nova Ipixuna, no sudeste do estado do Pará resgataram 13 pessoas em regime de trabalho análogo à escravidão. Durante a fiscalização nas fazendas, a equipe encontrou diversas irre-

gularidades, as mais graves foram em relação às péssimas condições de trabalho e moradia. Em uma delas, cuja atividade era criação de gado leiteiro, os trabalhadores dormiam no curral. Neste barracão,localizado há cerca de 100 metros da casa do empregador, havia quatro cômodos nas laterais, com chão de terra batida e paredes de madeira, alvenaria ou palha: o primeiro abrigava os porcos,o segundo uma espécie de cozinha improvisada onde também dormia um trabalhador, ao lado um outro compartimento com redes para dormir e, o último, era um galinheiro. Nos fundos dos compartimentos,havia um chiqueiro e muito lixo. Os empregados eram obrigados a

DIREITOS HUMANOS

conviver com o forte odor de fezes dos bichos e sob altas temperaturas, já que a estrutura tinha teto baixo feito com telhas de fibrocimento e sem ventilação. Os trabalhadores passaram a dormir no local no início deste ano, e um deles, poucos meses depois, passou a apresentar problemas de pele na região do abdômen. Os homens dormiam em redes,que foram fornecidas pelo proprietário,mas não de graça, tiveram que pagar por elas, segundo informou o Ministério Público do Trabalho. Um dos trabalhadores relatou que já presenciou ratos no ambiente,por falta de estrutura adequada para armazenamento dos alimentos, e que não consumiam a água do local, que vinha de um poço, pois era “capa rosa”, quando há a presença de uma espécie de ferrugem. Para não ficar com sede, ele sempre pegava água na casa da sua mãe, localizada a cerca de 2,5 km da fazenda, e trazia para o consumo no alojamento. Não tinham geladeira, então, salgavam a carne que comiam como única medida de conservação e sanitária,no calor do Pará. Não tinham banheiro nem água encanada. A procuradora do Trabalho Silvia Silva da Silva, integrante do núcleo especializado de combate ao traba-

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lho escravo do MPT PA-AP disse que nas duas fazendas dos dois municípios as pessoas viviam em péssimas condições de trabalho e moradia. Em Itupiranga,o fazendeiro,proprietário das terras foi preso em flagrante e também responderá por crime ambiental. “Havia um total desrespeito de preceitos mínimos relacionados à questão de saúde,medicina e segurança do trabalho,bem como não eram respeitados os preceitos elementares referentes a alimentação,fornecimento de moradia, equipamentos de proteção individual” Quando a fiscalização trabalhista encontra situações como a narrada acima, empregadores são notificados e intimados a comparecer em audiência para realizar o pagamento das verbas rescisórias e ainda respondem criminalmente por seus feitos. Além disso, o nome do empregador, após o ato ser julgado procedente, é incluído em um cadastro, uma “lista suja”.“Isso faz com que o empregador sofra restrições,sobretudo com relação a embargo de compradores internacionais, que não querem ter a marca vinculada a uma cadeia exploratória de mão de obra escrava”, resume André Santos,da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo. (Do Brasil de Fato)

CONTINUAÇÃO | TEREZA CAMPELLO, ex- Ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

“É criminoso o que este governo está fazendo” Um dos ganhos do Bolsa Família foi a redução da mortalidade de crianças de 1 a 4 anos, sobretudo em famílias chefiadas por mulheres negras e de cidades mais pobres, entre as quais o índice obtido foi ainda maior. O novo programa anunciado pelo governo traz algum elemento que também possa contribuir nesse sentido? Não sabemos,porque não tem nada explicando como vai acontecer isso.Eu acho que uma questão fundamental é a seguinte: por que o Bolsa Família reduziu a mortalidade? Não foi uma mágica. Esse estudo a que você se refere na pergunta, que foi feito por pesquisadoras ligadas ao Centro de Integração de Dados e Conhecimentos em Saúde da Fiocruz da Bahia,[mostra que se] redu-

ziu a mortalidade infantil em 16% por causas múltiplas. Não foi só por causas ligadas à desnutrição, e sim pelo conjunto das causas.Por que será que se conseguiu reduzir essa mortalidade? Não foi somente o repasse de recurso. Foi exatamente ter garantido que essas crianças tivessem num processo de construção de cidadania ao estarem frequentando o serviço público, em especial o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse casamento do Bolsa Família com a rede de proteção pública, em especial a de saúde, é que nos trouxe esse conjunto de ganhos, inclusive de mortalidade materna também, não só mortalidade infantil.

Agora, mostra também que o Bolsa Família é muito bem focalizado.Por que é que quando você fala de mães negras o número de crianças [vivas] sobe? Exatamente porque esses casos eram aqueles em que a vulnerabilidade era ainda maior.É nesses lares chefiados por mulheres negras com crianças pequenas onde a gente tem o maior nível de vulnerabilidade – são elas que menos acesso a empregos formais têm, são elas que menos acesso ao serviço público têm. O Bolsa Família, ao chegar nessas famílias,consegue impactar muito mais do que nas outras porque ali tem o coração mesmo da extrema pobreza no Brasil.Isso mostra que o programa chegava mesmo onde ele tinha que chegar. Nos municípios pobres, é a mesma coisa: onde o Bolsa Família chega é ainda maior e a redução da mortalidade infantil chega a 28%. Então, o que pode justificar a gente acabar com uma política pública que reduziu em 28% a mortalidade infantil no Brasil? É quase 30%,ou seja,em cada três crianças que morriam,uma deixou

de morrer graças ao Bolsa Família. O que pode justificar nós colocarmos em risco um programa que reduziu a morte de crianças? Em vez de morrerem três crianças no Brasil, passaram a morrer duas.A cada três que morriam, uma deixou de morrer, então, essa é a conta. O que a gente teria que fazer é avançar,porque não é aceitável que alguma criança morra. A mortalidade infantil no Brasil vem caindo há muito tempo. Desde a Constituição de 1988 caiu drasticamente. Só que, com o Bolsa Família, essa queda foi muito mais sustentável e muito mais acentuada. Esse é um dos dados que nós temos, mostrando o impacto do Bolsa Família. Então,voltamos à primeira pergunta: o que pode justificar na última hora,no apagar das luzes,nas vésperas já do ano eleitoral, o governo, depois de não ter feito nada ao longo de três anos, tentar de forma atabalhoada destruir um programa que funciona? Nada pode justificar. A única coisa que justifica são os fins

eleitorais e eleitoreiros. É muito revoltante. Desculpe meu tom de voz, mas é que realmente eu não consigo acreditar que nós estamos já no dia 1º e nada foi feito. Lembrando que nós estamos às vésperas de um apagão. Se não for encontrada uma solução esta semana, não se tem como pagar porque não tem mais auxílio emergencial,o Bolsa Família foi extinto e nada foi colocado no lugar. É criminoso o que este governo está fazendo. Não bastassem as quase 610 mil mortes que eles promoveram [por covid],eles vão gerar um nível de tragédia, porque não é só quem vai morrer de fome. Quem vai sobreviver à fome está sendo impactado, principalmente as crianças. Uma criança que não se alimenta bem entra num estado de desnutrição muito rapidamente, que é o que eles estão provocando. Então, é outra ação criminosa. Afora a péssima administração e a gestão genocida da pandemia, tem agora a gestão genocida do aumento da fome no Brasil. (Do Brasil de Fato)


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SOBERANIA NACIONAL

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‘Preço do diesel mostra que governo quer ônibus lotado e serviço ruim’

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Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) divulgou nota de posicionamento em que avalia que “a omissão do Governo Federal frente aos sucessivos reajustes do óleo diesel,insumo que representa em média 26,6% do custo do transporte público coletivo,está forçando a insolvência das empresas operadoras e o colapso dos sistemas de transporte público organizado em todo o país.Com o aumento acumulado de 65% do combustível somente este ano,as operadoras não terão outra opção além de acionar as cláusulas de reajuste tarifário e reequilíbrio dos contratos de concessão para evitar a suspensão da prestação dos serviços; tal suspensão representaria grave prejuízo para toda a população,que seria privada dos serviços públicos organizados de transporte e passaria a depender do transporte clandestino e irregular, muitas vezes operado pelo crime organizado. Em geral as tarifas são reajustadas anualmente,enquanto o diesel tem

Associação do setor fala em ‘inversão de competências’: ‘particular assume papel do Estado e sustenta o transporte público coletivo urbano’ sofrido reajustes quase semanais,o que torna impossível absorver o impacto sobre os custos do serviço.” Segundo a entidade,“a falta de uma política de preços para o diesel que considere as características do transporte público – oferta de um serviço universal,regular e a preços módicos,além de ser um serviço essencial e um direito social previsto na Constituição -, significa, na prática, que o Governo Federal aceita que seja ofertado um serviço de baixa qualidade para o cidadão brasileiro, com ônibus lotados e longas filas de espera nas paradas e terminais,já que as empresas operadoras não dispõem

mais das condições necessárias para o atendimento adequado à população. Muitas prefeituras e governos estaduais têm demonstrado sensibilidade com os efeitos da crise sobre a população e feito esforços no sentido de reduzir a carga tributária ou subsidiar a prestação dos serviços,mas nem todas as cidades têm condições financeiras para enfrentar a crescente pressão da alta dos insumos, com destaque para os combustíveis, que dependem de políticas nacionais de preços.” A nota diz que “no curto prazo, os aumentos desproporcionais do diesel impactam no custeio da operação e

ampliam o déficit insuportável que vem sendo acumulado pelas empresas de ônibus há anos,e que somente durante a pandemia de Covid-19 cresceu em pelo menos R$ 17 bilhões em termos nacionais; tal déficit já foi responsável pelo encerramento,suspensão das atividades ou recuperação judicial de 50 empresas de ônibus urbanos em todo o país, bem como pela demissão de quase 90 mil trabalhadores,desde março do ano passado.No longo prazo,as consequências serão a redução da capacidade de investimento e a renovação da frota,afetando diretamente a qualidade do transporte,a segurança e o conforto dos pas-

sageiros.Para agravar a situação,o Brasil vem adotando uma política de adição do biodiesel,derivado de óleos vegetais, ao diesel tradicional, em percentuais que variam entre 10% e 13% atualmente, muito acima dos níveis adotados internacionalmente (de até 7%). Isso gera a proliferação de fungos nos tanques de armazenamento,compromete o funcionamento dos motores e eleva o preço final do combustível.Embora relevante e necessário para a redução de emissões de gases do efeito estufa, o uso de biocombustíveis deve ser feito com critérios técnicos adequados e também ser devidamente considerado no cálculo dos custos das empresas.” E encerra dizendo que “assistimos hoje a uma inversão de competências, onde a iniciativa privada, que é contratada pelo poder público para operar os serviços de transporte coletivo, assume o papel do Estado e sustenta o transporte público coletivo urbano à custa de um endividamento crescente e insustentável.” De acordo com o mais recente levantamento do Índice de Preços Ticket Log (IPTL), o diesel e o diesel S-10 foram encontrados pelo maior preço médio em Minas Gerais.Os combustíveis foram comercializados a R$ 5,141 e R$ 5,204, respectivamente.Já em São Paulo estão os menores preços médios, com o tipo comum vendido a R$ 4,935 e o tipo S-10 a R$ 4,985. No recorte nacional, o primeiro foi encontrado a R$ 5,203 e o segundo a R$ 5,253. Quando o assunto é etanol, os postos do Sudeste registraram a segunda maior alta do país na primeira quinzena de outubro. O combustível, que foi comercializado a R$ 5,243 nas bombas,apresentou um crescimento de 2% em relação ao fechamento de setembro. No recorte por estado, o Rio de Janeiro liderou com o preço médio mais alto para o etanol. O combustível foi comercializado a R$ 5,735. Já em São Paulo, o etanol foi encontrado pelo menor preço médio da região, a R$ 4,636. Ainda assim, as bombas paulistas registraram a maior variação para o combustível entre os estados da região, alta de 2,48% em relação ao mês anterior. O mesmo cenário foi registrado para a gasolina, que alcançou seu patamar mais alto nos primeiros dias de outubro no Rio de Janeiro, com aumento de 1,47% e o litro à média de R$ 6,773.A maior alta para o combustível foi registrada nas bombas de Minas Gerais,com avanço de 1,87%, enquanto os postos de São Paulo comercializaram o litro da gasolina a R$ 5,930, menor preço médio da região,mesmo com o avanço de 1,56%. (Da Aepet)

ARTIGO

Transição justa: “Mudança energética precisa incluir as pessoas” Deyvid Bacelar* Discussões sobre o combate às mudanças climáticas vêm crescendo nos últimos anos e é cada vez mais evidente que precisamos acelerar a transição energética como caminho para a economia de baixo carbono. A substituição de combustíveis fósseis por energias limpas e renováveis, o aumento de eficiência energética e o desenvolvimento de tecnologias que removam emissões da atmosfera têm se tornado ações indispensáveis e estarão no centro do debate mundial nos próximos dias, ao longo da COP26, que se realiza em Glasgow, na Escócia. A implantação de energia renovável é indispensável para a busca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Contudo, a transição energética é um processo complexo. É essencial que essa transição seja sustentada pela criação de trabalho adequado, com mais e melhores empregos, a fim de garantir uma “transição justa” para todos. Um progresso que não é justo ou inclusivo não é sustentável.

O termo “transição justa” é mencionado no Acordo de Paris, de 2015, como um reconhecimento de que os governos precisam levar em consideração os imperativos de uma força de trabalho em transição durante a mudança para uma economia verde. A força de trabalho do futuro encontrará muitos desafios, que exigirão iniciativas conjuntas para a capacitação de mão de obra, treinamento, absorção de tecnologias, além da implementação de políticas públicas de apoio à educação e ao desenvolvimento de habilidades. Sabemos que no Brasil esta discussão está ameaçada com o atual governo, que nega as mudanças climáticas e os direitos dos trabalhadores. Mas estes precisam se preparar para desafios tão urgentes. Algumas iniciativas vêm sendo feitas no âmbito da cooperação: a Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA,em inglês) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) firmaram recentemente acordo para promo-

ver empregos decentes para mulheres e homens em uma transição energética que não deixe ninguém para trás. Mas é também crucial que as empresas incorporem incessantemente em suas culturas organizacionais aspectos ambientais, sociais e de governança –reunidos na sigla “ESG”.

veis (Ineep) para a IndustriAll, federação sindical global que representa cerca de 50 milhões de trabalhadores de diferentes setores em mais de 140 países. O levantamento aponta que são ainda raras as iniciativas das companhias de petróleo para preparar seus trabalhadores para as mudanças, seja por meio de qualificação para as transformações no trabalho, seja na incorporação de um discurso de sustentabilidade que vá além do ambiente profissional.

Ainda pouco tem se falado sobre o que essa necessária transformação na geração e no consumo de energia e no modo de ação e de produção das corporações irá causar no mundo do trabalho. O conceito de transição justa –que, de forma simplificada, visa a garantir que ninguém fique para trás nessa“revolução verde”, incluindo trabalhadores e trabalhadoras– ainda é mais uma utopia do que uma realidade.

Não há dúvidas sobre o imenso impacto nas formas de trabalho e nas carreiras profissionais que as revoluções verde e digital já estão trazendo. Entretanto, quando as companhias – incluindo as de óleo e gás– anunciam planos para acelerar sua descarbonização energética e produtiva, pouco se vê o que planejam fazer para que as pessoas que hoje atuam em segmentos produtivos ambientalmente impactantes sejam incorporadas às novas e futuras formas de produção.

Uma importante prova desse paradoxo está no setor de petróleo e gás natural, que certamente será um dos mais impactados com a transição energética e também produtiva. É o que mostra um estudo feito pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustí-

Em geral, o que se observa são cortes de postos de trabalho, com eventuais contratações de especialistas nas áreas“verdes”, mas nunca em número equivalente. Ou seja, em vez de terem na transição energética e produtiva uma oportunidade de requalificação profissional e de incorporação de con-

ceitos de sustentabilidade além de suas atividades profissionais, o que se apresenta é o receio, por parte dos trabalhadores, de que esse processo seja uma ameaça à garantia de sua sobrevivência. Quando olhamos apenas para o Brasil, em particular para a Petrobras, a preocupação é ainda maior.Na contramão de diversas outras grandes petroleiras no mundo, a estatal está abandonando todos os seus projetos de investimentos em fontes renováveis de energia, vendendo usinas eólicas e sua produtora de biodiesel. Um balde de água fria tanto no processo de limpeza da matriz energética do país como na formação de profissionais em áreas “verdes”, bem como na requalificação de seus atuais trabalhadores. Se é inegável que precisamos alterar nossas formas de produzir e consumir energia para salvar nosso futuro, é também inegável que essa transformação não será bem-sucedida se não lembrar que, por trás dos números, há pessoas –é disso que se trata a transição justa.E quando falamos de pessoas, falamos de gente que hoje desenvolve trabalhos que poderão perder importância com o tempo, mas que precisa ser incorporada ao novo mundo do trabalho. Coordenador geral da Federação Única dos Petroleiros/FUP


Rio de Janeiro, quinta-feira, 4, a domingo, 7 de novembro de 2021

INTERNACIONAL

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Ex-policial, vegano e cria do Brooklyn é eleito prefeito de NY Adams, um ex-capitão da polícia novaiorquina, é a segunda pessoa negra a ocupar o posto, e vai substituir Bill de Blasio no cargo

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democrata Eric Adams,um ex-capitão da polícia nova-iorquina, foi eleito nesta terça-feira (02/11) como novo prefeito de NovaYork. Ele será o segundo afro-americano a governar a maior cidade dos Estados Unidos. “Estamos tão divididos que não vemos mais a beleza da nossa diversidade”,disse Adams a simpatizantes após a vitória.“Hoje estamos usando a mesma camisa, a de Nova York”, completou. Adams, de 61 anos, terá que enfrentar as consequências econômicas da pandemia de covid-19, que atingiu duramente a cidade,além da insegurança,principal preocupação de parte do eleitorado,que confia nele por sua ampla experiência após 22 anos na Polícia.O ex-policial venceu o republicano Curtis Sliwa,de 67 anos,um personagem pitoresco,fundador da patrulha urbana “Anjos da Guarda” e aficionado por gatos. Adams,que é vegano,é o segundo afrodescendente a chegar à prefeitura de Nova York depois de David Dinkins (1990-93).Ele promete reforçar a segurança e dar voz aos trabalhadores, a partir de sua experiência como policial que sempre combateu o racismo.Em 1° de janeiro,ele substituirá um outro democrata,o impopular Bill de Blasio. Mais cedo, quando votou no bairro do Brooklyn, onde nasceu no seio de uma família pobre,Adams disse que esta eleição era uma espécie de revanche para aquele “rapazinho”que flertou com a delinquência e a exclusão social, assim como para os nova-iorquinos de famílias populares.O novo prefeito venceu as primárias do seu partido com forte apoio dos eleitores da classe média, da comunidade negra e do

movimento operário e prometeu reduzir as desigualdades que imperam na meca do capitalismo. A insegurança é a principal preocupação de parte do eleitorado, e a história pessoal de Adams deu confiança aos eleitores. Ele contou ter sido espancado pela polícia quando era adolescente.Mais tarde, quando se tornou um membro do Departamento de Polícia de Nova York, Adams construiu boa reputação como ativista após cofundar o movimento “100 Blacks in Law Enforcement Who Care”,um grupo de defesa comprometido com o combate à brutalidade policial. Durante a campanha, Adams argumentou que a recuperação econômica da cidade estava vinculada à solução da violência criminosa. Aproximação com empresários Diferentemente de De Blasio, Adams tem cortejado líderes empresariais, que, afirma, devem ter um papel importante na recuperação econômica da cidade, duramente castigada pela pandemia de Covid-19, que deixou mais de 34.000 mortos. Adams também se apresenta como um líder determinado, defensor das classes médias e populares, e símbolo da luta contra a discriminação racial. Da prefeitura,Adams chefiará a maior força policial dos Estados Unidos,a NYPD, com 36.000 funcionários, cuja reforma prometeu aprofundar. Ele vai administrar um orçamento de US$ 98,7 bilhões para o exercício de 2021-2022, o maior de um município nos Estados Unidos. A prefeitura de Nova York é considerada o cargo mais difícil do país,depois da Presidência. (Do Ópera Mundi)


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INTERNACIONAL

Rio de Janeiro, quinta-feira, 4, a domingo, 7 de novembro de 2021

França: Produto da mídia, ultradiretista Zemmour é a soma de neoliberalismo com neofascismo

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rente à ascensão de Éric Zemmour nas pesquisas, algumas pessoas à esquerda estão inclinadas a pensar que se trata apenas de uma bolha midiática e ficam sentadas à espera que ela acabe sozinha. Poderíamos também contentar-nos em ver nele mais uma manifestação do “pétainismo transcendental” de que falava Alain Badiou: uma “forma histórica da consciência das pessoas, no nosso velho e cansado país,quando a sensação monótona de uma crise,de um perigo,as faz abandonarem-se às propostas de um aventureiro que lhes promete a sua proteção e a restauração da velha ordem”. O problema é que esta caracterização desenvolvida pelo filósofo sobre Nicolas Sarkozy poderia aplicar-se a muitos políticos que se fazem passar por salvadores,tanto a Emmanuel Macron como a Zemmour e Marine Le Pen.Por conseguinte,pouco faz para nos ajudar a compreender o significado específico da ascensão resistível - pelo menos nesta fase - de Éric Zemmour. O nosso ponto de vista é que essa ascensão exprime algumas das principais tendências da política francesa. Estas tendências, pré-existentes a Zemmour, não estão prestes a desaparecer (como alguns imaginavam que a ascensão da extrema direita tinha sido travada pelo fraco resultado da FN/RN nas últimas eleições regionais) e teremos de as enfrentar, aconteça o que acontecer à sua provável candidatura nas eleições presidenciais.A transformação (em curso) do capital midiático de Zemmour em capital político coloca porém novos problemas - e cria novas ameaças - como veremos. O sucesso atual de Zemmour lembra também - no contexto específico da França - a dinâmica que vimos em ação nos últimos anos noutros países, em particular nos Estados Unidos e no Brasil,onde figuras tão grotescas quanto perigosas (Trump e Bolsonaro) conseguiram derrubar organizações de direita e conquistar o poder através de eleições. O que se pretende aqui é fornecer algumas chaves de leitura do‘Zemmourismo’, partindo do entendimento de que - ao contrário das afirmações do ‘grande homem’ e do que os seus adoradores imaginam - não é na sua personalidade, na sua inteligência ou no seu talento que devemos procurar a fonte do sucesso nas pesquisas que observamos neste momento. Pelo contrário, a nulidade da personagem traz-nos de volta ao enigma que Marx tentou esclarecer no seu 18 Brumário de Louis Napoléon Bonaparte: como pode uma pessoa tão medíocre ocupar a primeira linha da cena midiática e abalar o jogo político numa das principais potências capitalistas? A hipótese aqui defendida é que Zemmour é apenas o nome próprio de

um processo de fascistização e, como tal,deve primeiro ser interrogado como sintoma ou, para usar a expressão de Gramsci, como um “sintoma mórbido”. O aspecto mais óbvio do problema é que Zemmour é uma construção midiática. Isto não data da criação do império Bolloré,que fez do ideólogo - que foi duas vezes condenado por incitamento ao ódio racial - a sua principal atração no canal de notícias CNews. Recordemos que antes de começar na CNews,foi lançado há quase 20 anos na ITélé (o antepassado da CNews),para um debate diário, que imaginamos ser altamente conflituoso, com Christophe Barbier e depois,sobretudo,por Laurent Ruquier, que, ao fazer de Zemmour a peça central do seu programa On n’est pas couché, desempenhou o papel do Dr.Frankenstein neste caso.Ruquier pode muito bem lamentar ter contribuído para a criação do“fenômeno Zemmour”; ele não questiona as razões pelas quais ele e a produtora do espetáculo (Catherine Barma) escolheram Zemmour e o mantiveram no ar durante vários anos, ou seja, a lógica do buzz e das audiências a todo o custo, e portanto do lucro (embolsado pela empresa de produção de Barma e por Ruquier sob a forma de salários mirabolantes). A criação do personagem midiático pode mesmo ser rastreada até à publicação do Premier sexe,um manifesto masculinista para o qual Zemmour roubou certas“ideias”desenvolvidas antes dele pelo ideólogo neofascista Alain Soral, nomeadamente no que diz respeito à “feminização das sociedades”ou à“desvitalização dos homens”.O livro afirmava a inferioridade congênita das mulheres e o domínio necessário dos homens (secretamente desejado pelas mulheres, segundo a psicanálise de quinta categoria desenvolvida por Zemmour e Soral). Seria sem dúvida possível demonstrar que a publicação deste livro foi perfeita e deliberadamente calibrada por Zemmour, com evidentes excessos e provocações, a fim de favorecer uma ampla apropriação midiática. No início dos anos 2000, Zemmour ainda era um jornalista político bastante obscuro no Le Figaro,mas na sua busca por uma rápida ascensão social,soube jogar habilmente o jogo da mídia - como mostrou Gérard Noiriel - e tornou-se aquilo que é conhecido como um “bom cliente”: divisivo, é verdade, mas não há nada sem algo em troca. Zemmour como construção midiática, aqui o essencial já foi dito por Pauline Perrenot no Acrimed. Mas o caso vai mais longe: Zemmour é a expressão da aniquilação quase total do debate público numa altura em que os chamados programas de “debate” se multiplicaram, mas as condições para um verdadeiro debate racional e pluralista

Ignorar Eric Zemmour não é uma opção para anticapitalistas e movimentos sociais: ele agora se tornou ator central de um processo de fascistização

nunca (ou quase nunca) se encontram reunidas. Se muitos editorialistas e políticos podem dizer em voz alta que Zemmour representa uma elevação do debate público, é porque este último caiu tão baixo que algumas vagas referências históricas (que, além disso, são mais parecidas com o“romance nacional”do que com a história propriamente dita),alguns números geralmente falsos e algumas citações aprendidas de cor são suficientes para fazer de um pedante um “grande intelectual”. Há aqui tendências pesadas e antigas: naturalmente a fraqueza do pluralismo político e ideológico nos meios privados (todos nas mãos de bilionários) e nos meios públicos; mas também o fato de os editorialistas e intelectuais dos meios (BHL, Finkielkraut, Comte-Sponville,etc.),em outras palavras,intelectuais que devem a sua fama inteiramente aos meios e não a um trabalho que tenha sido aclamado no campo intelectual,definirem essencialmente a agenda midiática (o que deve estar em debate), em colaboração com os partidos dominantes,e serem chamados aos meios a dizer a“verdade”sobre as transformações da sociedade francesa (em grande parte marginalizando os investigadores/as universitários e as revistas intelectuais). Deve também notar-se que o “fenômeno Zemmour”faz explodir a ilusão de que os meios da internet e as redes sociais

tornaram os chamados meios tradicionais (imprensa escrita,televisão e rádio) obsoletos,o que nos pouparia a necessidade da sua transformação radical.Zemmour é um puro produto destes meios de comunicação tradicionais (Le Figaro e RTL em particular, e mesmo France 2 durante algum tempo), e podemos ver pelo seu exemplo que uma grande parte do que é promovido, partilhado e discutido nas redes sociais ou nos meios de comunicação da internet vem de programas de televisão e rádio, com os “novos meios de comunicação” (já não tão novos) a desempenharem, deste ponto de vista, um papel de caixa de ressonância. Finalmente, é de salientar que embora as pesquisas meçam essencialmente a exposição midiática dos candidatos (ou mesmo,no caso de Zemmour, de alguém que ainda não se tenha declarado candidato),são,de certa forma,uma profecia autorrealizada: A onipresença midiática de Zemmour permite-lhe ver seus números nas pesquisas subir e em troca esta subida o faz existir politicamente como uma possibilidade tangível,fazendo-o subir ainda mais nas pesquisas e justificando posteriormente a sua supermidiatização (especialmente porque esta subida pode fazê-lo aparecer como o “voto útil” do campo dos “patriotas”, ou seja, da extrema direita e da direita extremada).Em qualquer caso, a responsabilidade dos“grandes”meios de comunicação social é aqui máxima.

Zemmour não é apenas um artefato midiático e das pesquisas; representa também uma alternativa possível para algumas franjas da burguesia.Os patrões não gostam de incerteza e nunca põem todos os seus ovos no mesmo cesto.Nos EUA, a burguesia financia - geralmente de acordo com os interesses específicos de cada uma das suas frações tanto o partido Republicano como o Democrata (Clinton e Biden receberam mesmo mais dinheiro do que Trump).Do mesmo modo, na Alemanha nos anos 1930, os capitalistas alemães financiaram todos os partidos de direita e de extrema direita, incluindo os nazistas. Agora, no estado de crise de representação política que a França atravessa (o que significa uma ruptura da ligação entre representantes e representados, manifestada pelo desaparecimento de partidos políticos solidamente implantados na sociedade,tais como o Partido Socialista,a direita gaulista ou o Partido Comunista), os poderosos procuram assegurar a existência de uma variedade de agentes capazes de defender a ordem social e favorecer a acumulação de capital, por todos os meios necessários. Isto pode ser feito favorecendo a emergência de figuras que inegavelmente pertencem às classes possuidoras e defendem os seus interesses, mas cuja reputação não é manchada pelo pertencimento a partidos desacreditados. Macron é obviamente um destes agentes e sabemos qual foi a mobilização midiática mas também patronal de que beneficiou em 2016 e 2017,sem a qual não teria tido qualquer chance de vencer. Ao longo do seu mandato, ele tem se mostrado cada vez mais claramente como a encarnação política do partido da Ordem, em particular reprimindo ferozmente os movimentos sociais (especialmente os Coletes Amarelos). Isto implicou que ele transformasse profundamente o seu eleitorado, atraindo segmentos da direita tradicional (que tinham votado em Fillon), mantendo ao mesmo tempo os segmentos mais à direita do antigo eleitorado do PS. Isso tem funcionado até agora e não há indicação de que a sua aposta se perca em 2022. O problema é que ao unir a direita descomplexada (de Darmanin e Blanquer) e a “direita complexada” (para usar a expressão de Frédéric Lordon) de Collomb,Rugy ouValls,Macron aboliu a alternância esquerda/direita que tinha sido tão bem sucedida para a burguesia francesa desde 1981 para impor políticas neoliberais e para eliminar qualquer perspectiva de ruptura, num país que é no entanto marcado por grandes contestações sociais e uma forte aspiração a manter as conquistas sociais do período pós-guerra. E mesmo que a burguesia fundamentalmente não tenha nada a temer da FN/ RN (Marine Le Pen nunca deixou de lhe dar promessas de bom comportamento econômico para atrair o eleitorado do LR [Les Républicains,partido da direita]: pagamento da dívida pública,nenhuma saída do euro,nenhum aumento do salário mínimo, etc.), os grandes patrões franceses nunca consideraram a FN/ RN (Front National/Rassemblement National, de extrema direita) como um candidato sério à alternativa e muito menos como“o seu partido”.Para Bolloré e outros setores da classe possuidora (Zemmour tem cada vez mais apoio dos grandes patrões), esta é uma oportunidade para trazer à tona uma alternativa a Macron que não está associada ao nome de Le Pen (considerado demasiado sulfuroso e portanto mais suscetível de provocar mobilizações, portanto incertezas etc.),mesmo que o atual inquilino do Palácio do Eliseu ainda detenha certamente a chave para a maioria da classe capitalista francesa. Deste ponto de vista, Zemmour faz tudo o que pode para mostrar uma política burguesa ofensiva que não é diferente do que a LREM (La Republique en Marche, partido de Macron) e a LR propõem: aumentar a idade da aposentadoria,baixar os impostos sobre os lucros das empresas,baixar as contribuições, etc. A outra parte da sua política “social”, que ainda não é clara, obviamente dirá respeito aos imigrantes,uma vez que Zemmour já diz que financiará os cortes fiscais privando-os de toda a assistência social, abolindo a AME etc., o que não é de forma alguma diferente do que a FN/RN está propondo. Uma fusão de neoliberalismo e neofascismo, em suma. (Trecho de artigo extraído Do Ópera Mundi)


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