






Se chegou até aqui, é porque ainda pulsa em você aquela vontade de sonhar, mesmo num mundo que teima em te obrigar a acreditar no contrário. Cê segue aí, buscando algo, uma saída, um sentido, um respiro. A VIZÃO é exatamente isso: um manual de sobrevivência pro fim do mundo. Nada de bunker, aqui o abrigo é o conhecimento ancestral dos povos ameríndios. Eles já praticam o que a gente tá reaprendendo agora: que viver em equilíbrio com a natureza é mais urgente do que nunca. Aqui, você vai encontrar a força e a sabedoria dos verdadeiros guardiões da vida em equilíbrio, para reimaginar um futuro menos em chamas. Cada palavra e cada imagem desta edição foram pensadas para te inspirar e reacender sua fé no futuro.
A cada edição, traremos a sabedoria de etnias indígenas de diferentes regiões da américa. E nesta, você terá acesso ao conhecimento e às sabedorias ancestrais de diversas etnias originárias brasileiras. Você vai ler sobre o retorno do manto tupinambá, um grande símbolo de poder e resistência, o jogo Turi Kaapora , em que cada salto e golpe vira um verso de resistência que cura a mata, Além de conteúdos ricos em conhecimentos, você também pode contar com curiosidades fodas e personalidades atuais importantes, como Ailton Krenak, Txai
Suruí e Sônia Guajajara.
DSG 3A 2025/1
PROJETO III
Marise de Chirico
Cor, Percepção e Tendências
Paula Csillag
Ergonomia
Carolina Bustos e Matheus Passaro
Infografia e Visualização de Dados
Marcelo Pliger
Marketing Estratégico
Leonardo Aureliano
Motion Graphics
Carlos Eduardo Nogueira
Produção Gráfica
Mara Martha Roberto
Projeto Editorial e Gráfico
Laura Alcantara
Leandro Zampirolo
Luigi Cortopassi
Maria Júlia Fontes
Naian Menginelli
Thiago Brienza
Antes de começar sua leitura, temos algumas coisas importantes pra te contar :)
Nesta edição, você vai notar que usamos dois grafismos indígenas como parte da diagramação, no lugar dos pontos finais e de continuação. Não foi à toa, e muito menos por estética vazia. A VIZÃO não quer ser apropriadora. Por isso, cada cultura representada aqui foi tratada com cuidado e respeito. Essas padronagens, vindas da cultura Guarani, carregam histórias e significados que vão além do visual, e a gente fez questão de reconhecer isso.
O ícone que usamos como ponto final representa as caças bem-sucedidas, uma homenagem aos homens que retornam da mata trazendo o alimento. Por isso, ela marca o encerramento de uma ideia ou parágrafo: como quem volta da floresta com algo valioso nas mãos. Já a padronagem usada como continuação representa o leito dos rios, onde as histórias seguem, desaguam e se entrelaçam. Ela aparece quando o texto ainda não terminou. Agora sim, curta sua leitura, pega essa visão e vem mudar seu futuro com a gente!
os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui
– Ailton Krenak
desmorona é o deles. O nosso ainda pode florescer. E nesse florescer, não há futuro sem escuta. A sabedoria ancestral dos povos originários da América, com suas visões de tempo circular, de espiritualidade ligada à terra, de coletividade, não é relíquia do passado. É horizonte. Não buscamos dar voz a quem sempre teve, buscamos parar e ouvir. Com respeito, humildade, e cuidado. O que está em jogo não é só a identidade de um povo, mas o destino de todos nós.
A cada ano que passa, os jornais informam cada vez mais desastres e tragédias climáticas. Cada vez mais guerras, preconceito e injustiça. É o fim do mundo transmitido em alta definição. E o que nos dizem? “curta como se fosse o último dia”, “consuma o caos com frete grátis.”. Mas esse discurso é uma armadilha. É o capitalismo te vendendo alívio enquanto te arranca o futuro, enquanto te desanima. É a desistência transformada em estilo de vida. Por trás do brilho das telas, há um sistema que lucra com o colapso, que te ensina a rir enquanto tudo queima. Te dizem que é tarde demais para mudar, porque isso te deixa quieto. Te dizem que resistir é utopia, porque isso te desarma. Mas a utopia deles é que o mundo continue assim. A nossa é outra.
Nesse cenário, Ailton Krenak, base conceitual da VIZÃO, nos lembra: o mito da sustentabilidade é invenção das grandes corporações. Ele nos faz crer que a Terra é uma coisa e a humanidade, outra. Esse abismo artificial entre nós e o mundo natural destrói a possibilidade de convivência. A Terra não é recurso. É parente. É corpo. É vida. E cuidar da vida é mais que gesto simples: é ato de reverência. A colonização nos arrancou o tempo e nos impôs um relógio. Destruiu aldeias e florestas e semeou concreto. Massacrou saberes, silenciou línguas, plantou monoculturas onde floresciam povos e tentou enterrar de vez a ideia de um mundo plural, de um mundo em que é possível sonhar. Tentaram fazer do mundo uma linha reta. Mas sempre foi espiral. É por isso que dizemos: o mundo que desmorona não é o único possível, o que
Por isso, para além de realizar nossos sonhos mais íntimos, também buscamos reencantar o olhar sobre o mundo. Um olhar menos centrado em si, mais enraizado no coletivo. Em que floresta não é “paisagem”, mas casa. Onde o outro não é ameaça, mas extensão. Onde imaginar o impossível deixa de ser fraqueza e vira motor.
Este manifesto é um chamado contra todo desânimo que a ideia de fim do mundo nos passa, um lembrete de que o verbo sonhar ainda conjuga futuro. Não sonhar para fugir, mas para construir. Não sonhar sozinho, mas junto. Não sonhar a partir da ruína, mas da memória viva do que já floresceu, e pode florescer de novo. Queremos um mundo onde viver seja mais que sobreviver. Onde a motivação não venha do medo do fim, mas da beleza do começo.
Uma das principais instituições financeiras do Brasil, reconhecida por seu compromisso com a inovação e o desenvolvimento econômico. Com uma equipe de cola boradores dedicada, a empresa destaca-se por valorizar a sustentabilidade e o meio ambiente, implementando práticas que reduzem o impacto ambiental e promovem a responsabilidade social. Sua liderança no setor inspiram um debate público sobre questões sociais e culturais, sempre com uma abordagem moderna e autêntica.
AILTON KRENAK
Renomado filósofo, ambientalista, escritor do famoso livro Ideias para adiar o fim do mundo e líder indígena brasileiro da etnia Krenak. Reconhecido mundialmente por sua luta em defesa dos direitos indígenas e da sustentabilidade, ele destaca-se por sua visão que conecta a humanidade à natureza. Krenak valoriza a preservação do meio ambiente, promovendo práticas que respeitam a biodiversidade e as tradições culturais, sempre com uma abordagem autêntica e inspiradora.
DAIARA TUKANO
Nome tradicional Duhigô, conhecido como Tukano, do Alto Rio Negro na Amazônia brasileira. Artista, ativista e comunicadora, ela destaca-se por suas obras que resgatam a espiritualidade e as tradições de seu povo, especialmente por meio do estudo do Hori. Com formação em Artes Visuais e mestrado em Direitos Humanos pela Universidade de Brasília, Daiara promove a preservação cultural e ambiental por meio de sua arte, que reflete uma conexão profunda com a natureza e a resistência indígena.
GUSTAVO CABOCO
Do povo Wapichana, é um renomado artista visual, escritor e cineasta brasileiro, com raízes na Terra Indígena Canauanim, em Roraima. Suas obras abrange diversas linguagens, como desenho, pintura, bordado, performance e texto, refletindo sobre os deslocamentos de corpos indígenas, a (re)territorialização e a preservação da memória. Ele valoriza a sua arte às narrativas ancestrais e à luta pela preservação da terra, promovendo uma visão de resistente da cultura indígena.
A Humanidade está em convulsão
Fogueira
42
16 20 22
34
Abril, mês da Pessoa Indígena
Guardiões
Folclore sob uma ótica decolonial
Pluralidade
A descolonização dos afetos
Pluralidade
Indígenas na esfera política
Voz Ativa
Batidas
Protagonistas do futuro sustentável
Turi-Kaapora: A mata luta
Onírico
68
82 84 78 72
Ansiedade climática
Se cuida
Hetohoky
Olhares
Biotecnologia indígena
Sabores
Ayahuasca
Sapiência
O céu indígena
Sapiência
86 98 100 102 106
A diversidade linguística indígena
Vem curiar
Literatura indígena
Contos
A pele nova da mulher velha
Contos
Pluralidade ensina sobre vida e futuro
Expressões
Daiane Silva Barbosa, Txai Suruí e Ailton Krenak
Conselheiros
Ñandereko Dialogando
Há 29 anos, em 1996, o Sepultura lançava o álbum Roots, sexto álbum de estúdio da banda brasileira de metal. Este álbum marcou uma mudança significativa no som da banda, incorporando elementos de música tribal e ritmos indígenas brasileiros, resultando em um som mais diversificado e experimental.
Produzido por Ross Robinson, muito conhecido por seu trabalho com bandas famosas como Korn e Slipknot, Roots apresenta uma abordagem mais crua e orgânica, com letras que exploram temas importantes como identidade, cultura e espiritualidade.
Os destaques do álbum incluem faixas como Roots Bloody Roots, Attitude e Ratamahatta , esta última com a participação especial do percussionista Carlinhos Brown . Além de Brown, o Sepultura captou ainda mais a essência brasileira ao trazer para o caldeirão sonoro a curiosa participação da tribo indígena Xavante, que resultou nas canções Itsari e Canyon Jam , esta última com mais de treze minutos de duração. Sem contar, é claro, à adição de berimbau e as grandes participações de Mike Patton (Faith No More), Jonathan Davis (Korn) e DJ Lethal (Limp Bizkit).
O líder indígena e ambientalista Ailton Krenak, de 69 anos, portava uma espécie de colar com penas na noite de sua posse na Academia Mineira de Letras (aml), em 3 de março passado. “É uma gravata”, ele explicou depois. “No Novo México, nos Estados Unidos, os indígenas utilizam um artefato de distinção, uma tira de couro com uma pedra de lápis-lazuli incrustada. Eu acho que os brancos nos imitaram, utilizando uma gravata de pano.”
Ailton adentrou o Auditório Vivaldi Moreira – lotado, com capacidade para 120 pessoas sentadas – por volta das 20 horas. Estava acompanhado de Rondon Krenak, cacique de seu povo, e Joenia Wapichana, presidente da Funai. Depois de ouvir o Hino Nacional executado em duas flautas transversais, ele assinou o termo de posse – lido por Jacyntho Lins Brandão, secretário-geral da aml – recebeu o diploma do deputado federal Patrus Ananias (pt-mg) e o distintivo do prefeito de Ouro Preto, Angelo Oswaldo de Araújo Santos (pv), ambos acadêmicos. “Nós não temos o fardão, mas temos o distintivo”, comentou Rogério Faria Tavares, presidente da instituição. O broche dourado traz a inscrição em latim Scribendi nullus finis (“O escrever não tem fim”).
Produzidas sob os saberes ancestrais Tukano e Baniwa, elas preservam uma arte que está desaparecendo. A cerâmica tukano e baniwa são um verdadeiro patrimônio dessas duas etnias e também da cultura do país. Afinal, trata-se de um conjunto de saberes ancestrais femininos desses povos que vivem na região do Rio Negro há milênios.Para valorizar e difundir essa arte prestes a desaparecer, agora as cerâmicas podem ser encontradas nas lojas Bemglô (@ bemglo) e Tucum (@tucumbrasil).
confira em: loja.socioambiental.org
“Um registro de um dos períodos mais conturbados da história indígena pós-redemocratização brasileira.” É assim que a sinopse define a 13ª edição da série Povos Indígenas no Brasil, produzida pelo Instituto Socioambiental (isa), uma das principais organizações dedicadas à defesa dos direitos dos povos da floresta no país.
Disponível gratuitamente no site do isa , a publicação cobre os anos de 2017 a 2022 e traça um panorama da realidade de 266 povos indígenas no Brasil, passando por temas como demarcação de terras, políticas públicas, saúde, educação e cultura.
A imagem acima, por exemplo, é um dos elementos visuais que mais marcam a edição: uma fotografia aérea que revela o contraste brutal entre a floresta preservada da Terra Indígena Xingu e as lavouras de monocultura no Mato Grosso. Esse tipo de imagem evidencia com muita clareza e tristeza o cerco territorial e ambiental imposto pelo avanço cruel do agronegócio e pela ausência de políticas efetivas de proteção às terras e aos povos tradicionais.
para saber mais: https://socioambiental.org/
A maior e mais diversa rede de coletores de sementes para reflorestamento do Brasil, a Rede de Sementes do Xingu, nasceu no ano de 2007 através de uma campanha de conciliação de interesses.
Em 2004, quando as pessoas indígenas do Território Indígena do Xingu pediram ajuda de alguns parceiros para recuperar as matas ciliares e nascentes do lugar onde moram, foi criada em Canarana, Mato Grosso, a campanha Y Ikatu Xingu Y Ikatu Xingu, que no idioma indígena kamayurá significa “salve a água boa do Xingu”, conseguiu reunir diferentes atores –entre comunidades indígenas, fazendeiros, órgãos públicos, ongs, universidades, empresas do agronegócio e associações locais – em busca de um objetivo em comum. Esse objetivo era, literalmente, salvar a água boa do rio Xingu. Com suas águas densas e profundas, esse rio caudaloso abastece e é a principal via de transporte do maior território indígena do estado de Mato Grosso. Um estado que a cada ano perde imensas áreas de floresta para o cultivo de enormes planícies de monoculturas de gado, soja, milho e algodão. Plantações que também precisam do ciclo da água garantido pelas florestas em pé para continuar existindo.
Tudo começou com o encantamento de Tomas Alvim e Marisa Moreira Salles por um banco indígena produzido pela etnia Mehinaku, do Xingu. Com a peça em mãos, a dupla criou a Coleção bei, que hoje soma bancos de quase 50 etnias e circula pelo mundo.
“Com exposições e parcerias, conseguimos explicar o valor do trabalho para o comprador, que entende que não está levando uma peça qualquer, e sim contribuindo para a manutenção da cultura do nosso povo”, diz o artista Kulikyrda Mehinaku, que cria peças em parceria com a designer Maria Fernanda Paes de Barros.
CONHEÇA ALGUMAS DAS PESSOAS INDÍGENAS QUE SÃO
DESTAQUE NA ATUALIDADE
“ a mudança do nome já pode ser vista como uma vitória
você sabe o que é o Dia da Pessoa Indígena ou Dia da Diversidade Indígena? Não, a data não é nova. Ela era popularmente conhecida como o Dia do Índio, resumindo toda a pluralidade étnica, cultural e linguística a uma só palavra: índio. Mas a mudança de nomenclatura veio, e representa um grande avanço na tratativa com as questões relacionadas aos povos indígenas, sejam eles os brasileiros ou não, já que diversos países adotaram a alteração. Um exemplo disso vem ocorrendo há alguns anos nos Estados Unidos: a alteração do feriado que fazia homenagem a um dos colonizadores responsáveis pela morte de milhões de indígenas, o Dia de Colombo, 12 de outubro. Após décadas de manifestação contrária ao feriado, o nome foi substituído pelo Dia dos Povos Indígenas ou Dia do Nativo Americano. Garantir o Dia dos Povos Indígenas foi uma luta pelo reconhecimento das histórias que foram deixadas de fora da narrativa nacional americana. Durante muito tempo, os povos indígenas não tiveram voz ou representatividade. Estamos falando de um longo processo de apagamento, aliado à falta de medidas de inclusão social e proteção, que só recentemente começaram a ser aplicadas, como cotas raciais para indígenas nas universidades (2012) e direitos previdenciários (1991). Até mesmo o direito a uma Educação Escolar Indígena intercultural e multilíngue é recente. Em 2007, a Organização das Nações Unidas (onu) aprovou a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento no qual reconhece os direitos fundamentais universais, assim como as diferentes realidades e necessidades indígenas. Somente em 2008, o estudo da história e cultura indígena passou a ser obrigatório no ensino fundamental e médio das escolas brasileiras. Porém, a temática indígena nem sempre foi representada de maneira correta.
Todo esse caminho histórico nos leva de volta ao início, ao errôneo Dia do Índio, que na maioria das vezes, representava a pessoa indígena como um selvagem, vivendo em ocas no meio da mata. Além disso, a ideia reforçava a representação estereotipada e racista de símbolos indígenas durante o carnaval.
Mas você deve estar se perguntando: como passamos do Dia do Índio para o Dia da Pessoa Indígena e o que toda essa história tem a ver com isso? É simples. Conforme as pessoas indígenas foram sendo incluídas na sociedade, com respeito e sem que houvesse a obrigatoriedade de se encaixar em padrões culturais e comportamentais dos povos brancos, elas puderam conquistar seu lugar de fala e representatividade, ocupando espaços nas mais diversas áreas e abrindo o caminho para que outras pessoas indígenas pudessem ter seus trabalhos valorizados e seus direitos respeitados.
E, embora saibamos que ainda há uma longa estrada a ser percorrida para que indígenas possam realmente conquistar a equidade, a mudança do nome, já pode ser vista como uma vitória para os indígenas que consideravam a nomenclatura anterior da data como preconceituosa e minimizadora de toda uma extensão cultural e étnica.
Ícones de representatividade indígena A mudança de percepção sobre a pessoa indígena e o desmonte de ideias preconceituosas só estão ocorrendo porque cada vez mais indígenas conseguem ocupar espaços e demonstrar os valores, as causas e a importância da equidade. Assim, elas trazem para a discussão as questões mais importantes dos seus povos e demonstram a força da luta, assim como a necessidade de políticas públicas de inclusão. Conheça algumas das pessoas indígenas que estão mudando o cenário e se destacando na atualidade na próxima página!
“CIDADE INVISÍVEL” GERA DEBATE SOBRE APROPRIAÇÃO
CULTURAL NO FOLCLORE BRASILEIRO
“ninguém fala o porquê temos a religião de colonização no poder diminuindo as nossas
de histórias em quadrinho à arte das drag queens, o folclore brasileiro e, mais especificamente, as lendas, marcam cada vez mais presença nas produções artísticas do país. Agora, com a estreia da série Cidade Invisível, de Carlos Saldanha, que aborda várias dessas lendas para a Netflix, a arena pública das redes sociais tem ecoado questionamentos de indígenas de diversas etnias sobre como as culturas indígenas aparecem representadas.
A jornalista Alice Pataxó criticou a série nas redes sociais.
“Até quando se trata de nós, somos os últimos a sermos lembrados e procurados, essa poderia ter sido uma oportunidade incrível de indígenas nas telinhas, mas a apropriação virou primeira opção”, escreveu. Outras questões levantadas nas redes foram a presença de figuras indígenas de forma miscigenada nas lendas reproduzidas, de modo que a abordagem das questões teriam sido realizadas de forma plana e leviana, sem conhecimento de causa, além de o fato de a série ter sido gravada no Rio de Janeiro.
Muitos ativistas indígenas, no entanto, classificam como etnocídio a inserção de elementos das culturas indígenas, em especial a religiosidade, em lendas brasileiras. “Folclore é esvaziamento das espiritualidades indígenas; Seria o mesmo que dizer, Ave Maria faz parte do folclore, mas ninguém fala o porquê temos a religião de colonização no poder diminuindo as nossas”, afirma a escritora descendente de macuxi Julie Dorrico nas redes.
Mas o que seria exatamente folclore? De acordo com o folclorista e doutor em Comunicação pela ufrgs Andriolli Costa, a palavra é um neologismo que engloba um grande guarda-chuva relativo à cultura popular e significa exatamente “cultura ou saber do povo”, em inglês. “Quando esse neologismo é criado, o William John Thoms, que foi o bibliófilo que cunhou esse termo, não se preocupou em conceituar, porque ele tinha essa impressão de que as pessoas teriam facilmente do que é folclore, simplesmente pela palavra, porque ele estava ali pensando numa grande amplitude. Ele estava falando sobre medicina popular, contos populares, danças, cantigas, todo esse grande apanhado”, explica o jornalista, com podcast especializado em folclore.
As lendas e mitos seriam, então, uma parte da literatura oral, um dos elementos que integram o folclore. A maioria dessas histórias foram propagadas por séculos em todos os cantos do país primeiramente de forma oral, até serem mapeadas por intelectuais como Câmara Cascudo e, depois, registradas também em livros. Embora muitas lendas conhecidas no país tenham origem na região norte, como a lenda do boto cor-de-rosa, por exemplo, é verdade que elas existem, com suas particularidades, em todo o país. No Rio Grande do Sul, é famosa a lenda do Negrinho do Pastoreio, que fala de um menino escravizado e se tornou bastante popular na era abolicionista. Ao mesmo tempo, também existem lendas urbanas contemporâneas, como a história da loira do banheiro. Como explica Costa, a formação do imaginário popular brasileiro vem do encontro entre o indígena, o negro e o branco, que, marcado pela violência e pela subjugação na história, foi de certa forma sintetizado nessas representações simbólicas. “Só que, ao longo dos séculos, essa lenda já foi tão transformada que é muito difícil falar que elas são só pertencentes a um povo”, avalia Costa. Para o pesquisador, as lendas continuam até hoje refletindo o panorama sociocultural do Brasil. “Quando vemos negros sendo espancados na rua, estamos vendo uma atualização no mito do Negrinho do Pastoreio. Quando falamos desta lenda, estamos falando de uma história sobre racismo e sobre violência”, finaliza.
GENI NÚÑEZ REFLETE SOBRE QUANTA ENERGIA POSITIVA SERÁ
LIBERADA NA MEDIDA EM QUE AS MULHERES ESTEJAM SEGURAS
“ o sistema monogâmico, misógino e capitalista atribui uma junção de tarefa às mulheres
há vários motivos para comemorar o retorno da democracia, com a reeleição de Lula, para um terceiro mandato, em 2022. Talvez, o principal seja a lenta redução das desigualdades, o que não é pouco, em um dos países mais iníquos do mundo.
A injustiça entre os gêneros pode ser medida na forma como mulheres e afrodescendentes, que são a maioria da população, ainda permanecem dominados e oprimidos por uma minoria de homens brancos.
Em Descolonizando Afetos – experimentações sobre outras formas de amar (editora Paidós), Geni Núñez busca desvendar as razões desse morticínio.
Aponta, em primeiro lugar, para a imposição colonial da monogamia, aclarando que, ao contrário do entendimento corrente, o antônimo da monogamia não é a poligamia, mas a não-monogamia. No esforço de mostrar que a monogamia é resultado da imposição cultural colonial, a ela inerente e funcional, a autora observa: “…por vezes somos ensinados/as/es a associar opressão, racismo e demais violências a algo relacionado com o ódio, ao mal; mas para contracolonizar, ou seja, para fazer um esforço contrário à colonização, precisamos reconhecer que é justamente em nome do bem, da família e do amor que a maior parte das violências se perpetua.”
Com precisão, aduz: “Diversas pesquisas têm pontuado que ser uma mulher casada em uma relação heteronormativa acrescenta dezenas de horas de trabalho semanais a essas mulheres. Não à toa, os setores mais conservadores da política brasileira sempre tiveram como pauta ‘a defesa da família’ e a ‘família conservadora’, pois sabem que é por meio dessa instituição que uma série de violências e explorações é garantida, especialmente pensando no ponto de vista financeiro. Mulheres, maiormente as não-brancas, mães solteiras, empobrecidas, trabalham gratuitamente para a família, garantindo serviços diários de limpeza, alimentação, cuidado das crianças com serviços de babá e etc., como mostram os estudos e artigos interdisciplinares acerca da (re)produção social.”
Núñez complementa: “O acúmulo de tarefas que o sistema monogâmico misógino e capitalista atribui às mulheres é o que lhes ‘tira’ o tempo, não só para ter outros vínculos afetivo-sexuais, mas para ter um espaço para o descanso, o lazer, para se dedicar a projetos pessoais, organizações coletivas e assim por diante.” Mas nem todos têm abandonado a convivência dos centros urbanos.
Um belo exemplo: em Curitiba, tão cantada em prosa e verso por seu sistema de transporte, existe uma das maiores populações em situação de rua do país.
Uma das poucas iniciativas que a reconhece e atende – a exemplo do padre Júlio Lancellotti em São Paulo – é a do deputado estadual Renato Freitas, que acolhe e alimenta moradores e moradoras de rua, na capital curitibana. Outra iniciativa louvável é a do restaurante Tijolo, na rua São Francisco, 179. Em pleno centro degradado da cidade de Curitiba, o Tijolo é um oásis de bom gosto, deliciosa comida e ótimas escolhas musicais.
Em um beco tão charmoso quanto os mais pitorescos de Roma, encontra-se um espaço que pulsa com a alma do Paraná, um lugar onde a culinária resgata memórias e constrói pontes entre o passado e o presente. Aqui, a tradição árabe, tão enraizada na história do estado, dança em harmonia com a contemporaneidade vegetariana, oferecendo pratos que não apenas nutrem o corpo, mas também celebram a ética do cuidado com a terra e com todos os seres. Cada receita carrega histórias de resistência, de comunidades que, ao longo de gerações, preservaram sabores e saberes, adaptando-os a um mundo que clama por sustentabilidade e respeito à diversidade.
O serviço é mais do que impecável: é acolhedor, humano, profundamente enraizado na hospitalidade que faz o visitante, mesmo aquele que chega sozinho, sentir-se parte de uma comunidade. A equipe, com sorrisos genuínos e disposição para o diálogo, transforma a refeição em uma experiência de conexão, onde o ato de comer se torna um momento de troca cultural e afeto. Esse cuidado com o outro, tão raro em espaços urbanos acelerados, é um convite à pausa, à contemplação e à redescoberta da beleza nos detalhes do cotidiano.
Segurança Pública, é garantida?
A dica vai principalmente para o desgovernador de São Paulo, cuja rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – o “marido” da “Marquesa de Santos”…) matou 5 vezes mais do que em 2022. Um recorde macabro, ainda mais para um desgovernador que integrará os Capacetes Azuis da onu, na “Operação de Paz”, no Haiti. Por fim, nestas férias, se puderem, evitem as caóticas estradas do interior de Santa Catarina. De dia, as obras abandonadas/inacabadas são um perigo enorme: a sinalização é praticamente inexistente e o motorista, mesmo com ajuda do gps, em de fazer escolhas quase intuitivas, em velocidade. À noite, a experiência pode beirar o suicídio.
Se é assim para nós, brasileiros, imaginem como se sentirão os estrangeiros, principalmente argentinos e paraguaios, que insistem em prestigiar o litoral do estado, apesar desses percalços, quase mortais.
Entretanto, o estado continua neutro e até acolhedor a despeito dos desmandos da extrema-direita, tão presente no Sul e no Sudeste do Brasil. A esperança é, com as próximas eleições, essa onda de renovação se concretize, trazendo lideranças comprometidas com a justiça social. Até lá, o estado segue como exemplo de resistência silenciosa, mas firme, contra as forças que tentam dividir o país.
“ o estado segue como exemplo de resistência silenciosa, mas firme, contra as quem busca separar o brasil
´
O pensador e ambientalista reflete sobre as histórias e vivências que delineiam sua visão de mundo por Érico Andrade
Mesmo pensadores rebeldes e críticos do Ocidente acabam por se inscrever nessas quatro linhas?
: O livro A Queda do Céu , do Davi Kopenawa Yanomami, finalmente está sendo reconhecido e circulando. É leitura obrigatória nas universidades na Europa também. Aquela monumental obra se chama “uma cosmovisão yanomami”. Por que será que na capa não está escrito ‘uma filosofia yanomami’? Porque esse pensamento originário repudia as artimanhas da filosofia produzida por garimpeiros. Uma filosofia que abandona a experiência da vida e prefere produzir representações da vida. Substitui a vida e são capazes também de, no limite, produzir alguma coisa que vai ser isso que chamo de transhumanidade. O transhumano é uma coisa que nem é mais humano, já é um ciborgue, uma invenção absurda de um ser que não consegue se conter dentro do seu casulo, digamos assim. Enquanto a filosofia dos garimpeiros corta as raízes da vida, a sabedoria yanomami as nutre, oferecendo um caminho para resistir à desumanização. Esse contraste nos convida a refletir: o que significa ser humano diante de um mundo que insiste em nos transformar em máquinas?
VZ: Do que você fala exatamente?
AK : Nós temos um casulo que nos aproxima dos outros seres vivos e a gente quer romper com ele e produzir um outro corpo, um corpo que pode habitar Marte. Eu acho isso uma miséria.
Posso estar totalmente equivocado na minha perspectiva comum com outros povos nativos, de entender que a terra é a nossa mãe, e de ficar nesse lugar primordial, de entender que a terra pode suprir a gente numa boa. A gente pode viver com prazer, com alegria, contentamento. Entender a vida como uma dança cósmica. A gente não precisa inventar nada para isso, porque a gente já nasceu com essa potência de vida.
O discurso de Ailton Krenak no Congresso durante a Constituinte, em 1987
A vida é uma dança cósmica. Ela não é uma operação racional de produção de sentidos, porque senão ela seria só para alguns. Ninguém é dono desse ritmo, ninguém pode engaiolá-lo em fórmulas ou explicações. A dança nos convida a girar junto, a sentir o vento, a ouvir o canto da existência. A vida é generosa, é para todos que se permitem dançar com ela.
O modo como nós, ocidentais, lidamos com os mortos diz sobre como vivemos no Ocidente?
AK : Aqui nesse Catatau o livro Criação, de Gore Vidal estão narrativas de criação de tudo que a gente conhece do mundo. A China, a Grécia, a Índia, a África, o continente africano, o continente europeu, tudo, desde a criação do Deus abraâmico, que deu sentido ao Islã, ao cristianismo e ao judaísmo. As três grandes religiões do planeta são criacionistas. O budismo escapa um pouco, mas também não diz muito ao que veio. Então a gente fica derivando no meio de pensamentos muito antigos, mas que não sabem se relacionar com a experiência cíclica de existirmos. A matéria vida é tão fina quanto um graveto, quanto uma folha que cai. É uma compostagem. Tudo vira vida de novo.
O pensamento da maior parte desses criacionistas é de que a vida foi um evento criado e que depois vai ter que prestar conta a quem criou. E a prestação de conta é um inferno. A gente habita um mundo criacionista, cheio de juízo ou de juízes e julgamento e que não vai a lugar nenhum.
Durante a pandemia, eu, sinceramente, fiquei refugiado aqui na minha aldeia, olhando ao redor e chegando a conclusões terríveis. E uma delas é que o Homo sapiens deu metástase e que ele é a peste do planeta. Que se o planeta não conseguir se livrar do especismo do humano, as outras espécies vão continuar mergulhadas no petróleo na praia , a gente vai encher os oceanos de garrafas pet. E eu me pergunto: como chegamos a esse ponto de desequilíbrio? Será que esquecemos que somos parte do mesmo ciclo, da mesma teia que sustenta todas as formas de vida? A terra, os rios, as florestas, tudo clama por um respiro, por uma pausa nesse ritmo destrutivo. A sabedoria dos povos originários, que sempre viram o mundo como um organismo vivo, possa nos ensinar a ouvir de novo, e se a gente não parar para escutar, o que será das próximas gerações? Continuaremos a construir um futuro de concreto e plástico, sufocando o que ainda pulsa? Eu olho pros meus netos e penso no que vamos deixar pra eles. A terra não é nossa, ela é emprestada, e estamos falhando em devolvê-la viva. Precisamos de uma revolução do coração, de voltar a sentir o chão sob os pés.
nós
“
vamos habitar num mundo acultural, onde os povos vão boiar feito garrafas jogadas no mar
Certamente será a primeira vez que teremos um pensador dos povos originários como conferencista de Anpof. O que a comunidade filosófica pode aprender com os povos originários?
AK : Érico, eu não sei se existe uma expectativa exagerada. Talvez exista uma expectativa exagerada com relação ao que outros mundos pensam ou que outras humanidades cogitam e essa expectativa pode ser o resultado de uma longa jornada do pensamento ocidental, que está ansioso por outros mundos, digamos assim, ou por outras epistemologia, outras ontologias. É natural que a gente esteja chegando no século xxi com essa perturbação ambiental, com o planeta em convulsão, digamos assim, que alguns que alguns sujeitos mais antenados querem furar a casca do ovo e olhar o que tem lá fora. Tipo: “será que tem outro pensamento que nos ajuda a estar nesse mundo tão perturbado coabitando com a ausência quase que total de uma utopia, tipo fim da utopia”.
Muitos pensadores da Europa mesmo, ocidentais, já alertavam que era o fim da utopia, entendeu? Nós estamos entrando numa realidade líquida . A gente vai habitar um mundo sem referências, onde as culturas, as pessoas, os povos vão literalmente boiar feito garrafas jogadas no mar. Mensagens codificadas, expectativas totalmente desencontradas e uma espécie de cansaço mesmo. Cansaço em relação ao que poderia ser uma constelação de gente, que a gente caiu na facilidade de chamar de humanidade. A primeira coisa que a gente pegou pela mão a gente falou: “é isso aí, nós somos a humanidade”, mas isso é uma facilidade que já denuncia nossa pouca vontade. A gente embalou esse papo furado da humanidade até ontem e agora ele não está conseguindo mais se manter de pé e tem questionamentos sérios sobre isso, se nós somos mesmo a humanidade.
Se a gente tem 7 bilhões de habitantes no planeta, você pode considerar que a metade deles estão vivendo no esgoto. Tem que largar de ser hipócrita. Tem que parar de dizer que nós somos a humanidade, quando muito mais da metade de nós não tem sequer a possibilidade de atinar com a ideia de estar vivo, que o sujeito já nasce levando porrada na cabeça. Como a gente pode continuar embalando uma mentira dessas de que nós somos a humanidade?
Pense na menina agarrada pelo pescoço, sufocada por mãos que deveriam protegê-la. Pense no menino, arrancado do chão, suas pernas frágeis se debatendo no ar antes de ser jogado no esquecimento. Eles, mais do que ninguém, sabem que a humanidade é uma mentira.
na ferida e detono, sem cerimônia, esse discurso vazio sobre a tal da humanidade. É um panfleto contra a ilusão, um grito que rasga o véu dessa narrativa que nos venderam como verdade absoluta. E, para minha surpresa, essa provocação está indo além das fronteiras. O livro está sendo traduzido no Japão, onde as palavras vão ganhar o peso de ideogramas que cortam como lâminas. Antes disso, já se espalhou por outros cantos: na Turquia, com sua ponte entre mundos; na Holanda, com seus canais refletindo verdades incômodas; na Noruega e na Dinamarca, onde o frio talvez acolha melhor a frieza dessa constatação; e na França, berço de ideias que tentaram, em vão, dar sentido ao caos. Meu livrinho está por aí, como uma semente lançada ao vento, caindo em solos distantes, germinando em línguas que não são as minhas. O que eu faço, na verdade, é panfletar um incômodo, uma certeza que pesa como chumbo: a humanidade está entrando em colapso, em uma convulsão silenciosa, mas devastadora. Não falo de revolução, com seus estandartes e gritos de ordem. Não falo de transformação, com promessas de um amanhã radiante. Falo de algo mais visceral: um sentimento de autodissolução que nos atravessa como uma corrente elétrica. Estamos há décadas ouvindo sobre o fim das utopias, desde os estertores do século XX, quando as grandes narrativas começaram a ruir. É uma despedida longa, arrastada, como uma marcha fúnebre que não encontra seu fim.
CONTRIBUIÇÃO DOS POVOS ORIGINÁRIOS PARA PROTEÇÃO DE ECOSSISTEMAS
“os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais foram removidos
ao final de 2022, o protagonismo dos povos indígenasna proteção de ecossistemas e mitigação das mudanças climáticas ganhou maior espaço nas duas grandes convenções das Nações Unidas – a do clima (cop27), no Egito, e a da biodiversidade (cop15), no Canadá. Um ano antes, na cop26, na Escócia, os direitos à terra dos povos originários e comunidades tradicionais já havia sido destaque.
O crescente reconhecimento nos últimos anos da importância desses grupos para a conservação da natureza é em parte um reflexo de evidências que se acumulam. Povos indígenas administram 25% da superfície da Terra, ocupando áreas em geral altamente conservadas e onde se concentram cerca de 80% da biodiversidade terrestre. No Brasil, 14% do território são reservados aos povos originários. São mais de 117 milhões de hectares, divididos em 732 terras indígenas (ti). A maior parte dessa área (98,3%) se localiza na Amazônia. E é nessa região que a importância desses territórios para a manutenção da floresta e da biodiversidade salta aos olhos: 98% das terras indígenas são cobertas por extensos blocos de florestas intactas. Nas áreas ocupadas por imóveis rurais, a cobertura florestal cai para 63%, sendo distribuída por fragmentos geralmente com algum grau de degradação.
Essa diferença nas condições de conservação das florestas tem impacto também no carbono nelas acumulado. Estima-se que um hectare de floresta em terras indígenas tenha um estoque de carbono em média 50% superior àquele encontrado em um hectare de floresta fragmentada e degradada.
Além disso, florestas saudáveis sequestram mais gás carbônico (co2) da atmosfera do que emitem e, portanto, funcionam como um sumidouro de carbono. Nas áreas florestais degradadas, já existem estudos mostrando que a emissão de gás carbônico é superior ao sequestro.
Por tudo isso, a proteção das terras indígenas está ligada não somente à preservação de seus povos, mas do próprio planeta. A garantia dos direitos à terra, além de contribuir para a manutenção das florestas tropicais e de outros ecossistemas, é essencial para a regulação climática global.
Se as comunidades indígenas estiverem fortalecidas e tiverem recursos suficientes para manter o controle de seus territórios e preservar seus costumes, suas tradições e seu modo de vida, poderão evitar o desmatamento e as consequências deletérias de emissões de co2 em larga escala.
Em termos de biodiversidade e conservação da natureza, o quadro de recomendações acordadas na cop15 destacou “os importantes papéis e contribuições dos povos indígenas e comunidades locais como guardiões da biodiversidade e parceiros em sua conservação, restauração e uso sustentável”.
Mas transformar o reconhecimento da importância dos povos e territórios indígenas em ação exigirá muito mais do que palavras. Por isso, para começar, é necessária a inclusão efetiva desses grupos nos processos decisórios políticos do Brasil.
Precisamos fazer mais
Na cop27, mais de 250 delegados indígenas de todos os cantos do mundo estiveram presentes para compartilhar as histórias de suas comunidades e defender os direitos dos povos originários. O Pavilhão dos Povos Indígenas sediou mais de 70 eventos paralelos no país – embora as participações de seus representantes nas negociações oficiais com as partes (os países) tenha sido muito limitada.
No Artigo 6 do Acordo de Paris, permite que países cooperem entre si para atingir as metas de redução de emissões estabelecido nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (ndc), como por meio dos mercados de carbono. Além disso, no texto da decisão que criou o Fundo para Perdas e Danos estabelecido na cop 27, percebido como um grande avanço para fornecer financiamento para os países vulneráveis mais afetados por desastres climáticos, não há referências aos direitos dos povos indígenas, o que é especialmente preocupante dado que eles estão entre os mais afetados pelas mudanças climáticas.
E, mesmo que nas duas últimas cops do clima tenham prometido cerca de US$ 3,8 bilhões para apoiar os povos indígenas e as comunidades tradicionais, esse recurso ainda é insuficiente frente a tudo o que é necessário para frear todas as mudanças climáticas e proteger territórios, incluindo demarcação de terras, monitoramento territorial, capacitação em gestão de recursos financeiros e fortalecimento das organizações que representam os povos indígenas e todas as comunidades tradicionais. Sem contar que o modelo de financiamento climático é projetado por governo, e apresenta requisitos muito complexos para as comunidades.
No Brasil, além desses desafios, os povos indígenas enfrentam problemas graves de fragmentação de territórios, de saúde e de segurança física e alimentar – como a crise humanitária vivenciada pelos Yanomami –, provocados pelas invasões de seus territórios para a extração ilegal de madeira, garimpo ou ocupação da terra.
No entanto, pela primeira vez na história do país, representantes de comunidades indígenas foram colocados no alto escalão do governo federal. Sônia Guajajara tomou posse como ministra do recém-criado Ministério dos Povos Indígenas e Joênia Wapichana assumiu a diretoria da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ademais, nove estados brasileiros, entre os quais Pará, Amapá, Ceará e Tocantins, criaram uma secretaria estadual voltada somente para os povos indígenas, tendo à frente seus representantes para cada povo indígena. Com isso, após 523 anos desde o início da colonização, os povos originários do Brasil estão legitimamente representados nos processos de decisão sobre seus territórios. A expectativa é de que os direitos indígenas passem a ser efetivamente respeitados e que seus territórios, após um processo tão acentuado de degradação nos últimos anos, retomem seu curso natural de proteção da biodiversidade e mitigação das mudanças climáticas.
“territórios indígenas preservam 80% da biodiversidade e estoques de carbono contra as mudanças climáticas
AS BANDEIRAS INDÍGENAS QUE SERÃO LEVADAS À COP30, PROMETEM SER UM DOS PRINCIPAIS ASSUNTOS DO EVENTO
“florestas são as barreiras mais eficientes contra o devastação ambiental
trinta e três anos separam a Rio 92, um marco na discussão sobre o desenvolvimento sustentável que ocorreu no Brasil, e a cop 30, o maior evento mundial para a busca de soluções para a emergência climática, que terá como o palco a Amazônia. Muita coisa mudou ao longo dessas décadas, inclusive a relevância das questões ligadas ao cuidado com o meio ambiente, que deixaram de estar restritas a certos grupos específicos e passou a marcar presença no dia a dia de empresas, governo e sociedade. Um ator, entretanto, inconteste e com relevância crescente são os Povos da Floresta.
De Raoni, Chico Mendes e Payakan, lideranças importantes que marcaram o grito global dos Povos da Floresta na Rio92, até hoje, em que vemos diversos representantes como Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e tantos outros, que ocupam os principais palanques da política nacional e global. Em comum, o fato de serem líderes atemporais inspiradores, que passaram de remanescentes de um passado para serem protagonistas de novo modelo de sociedade que se apresenta como um dos caminhos para construir um novo futuro.
Dados comprovam o crescimento expressivo da importância dos Povos Indígenas e de seus territórios. Segundo o Censo 2022, eles são 1.694.836 pessoas, o que representa 0,83% da população brasileira, pertencente a mais de 305 povos, falantes de mais de 275 línguas, um dos maiores mosaicos socioculturais do planeta. Atualmente, nos registros da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem 736 Terras Indígenas (tis), além de mais de 500 reivindicações para regularização fundiária, somando 117 milhões de hectares, sendo que 98,25% da área total das tis do país estão na Amazônia Legal.
As Terras Indígenas na Amazônia brasileira têm 97% de seus territórios com florestas e são inegavelmente as áreas mais bem preservadas, além de terem sido identificadas como áreas de “extrema”, “muito grande” ou “grande” importância para a manutenção da biodiversidade. Elas são as barreiras mais eficientes contra o desmatamento e a devastação ambiental.
Um estudo do MapBiomas Brasil indica que as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa em 30 anos, enquanto em áreas privadas a perda foi de 20,6%. Além disso, a conservação das florestas dos territórios dos Povos Indígenas contribui para a manutenção de serviços ecossistêmicos, como o ciclo da água, a manutenção da qualidade do ar e a proteção do solo. Estudos científicos recentes mostraram, por exemplo, que 80% da área coberta por lavouras e pastagens no Brasil depende das chuvas geradas pelas florestas mantidas de pé nas terras indígenas da Amazônia.
A extrema capacidade dos Povos Indígenas em proteger está relacionada como seus múltiplos sistemas culturais, cosmovisões, sistemas de conhecimento tradicionais e práticas de uso dos ecossistemas que se baseiam numa abordagem holística, nos quais a natureza não é um objeto inanimado que abriga recursos a serem explorados. Animais e elementos da natureza são vistos e sentidos como seres dotados de consciência, que devem ser consideradas, a natureza como “mãe-Terra” interconectada e interdependente de todos os seres, incluindo as pessoas. Logo, os sistemas de conhecimento ancestral indígenas buscam um diálogo com a ciência ocidental para a construção de um novo futuro, que permita superar a crise humana que está levando à crise climática.
“A resposta somos nós” é a campanha que os Povos Indígenas, através de redes de organizações indígenas brasileiras e globais, como por exemplo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (apib), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Aliança Global de Comunidades Territoriais (gatc), estão levando para a cop 30. As bandeiras defendidas incluem o respeito e o apoio aos seus direitos à terra e seus modos de vida como medida prioritária de ação climática; defendem o desmatamento zero; fim da dependência a combustíveis fósseis; nenhuma mineração em territórios indígenas; e acesso direto ao financiamento climático. O objetivo inclui advocacy por compromissos de implementação inéditos e concretos, transparentes e monitoráveis para a Convenção de Mudanças Climáticas da ONU sobre: posse da terra e financiamento direto aos Povos Indígenas; a promoção de uma ligação clara e concreta entre as Convenções sobre Clima , Biodiversidade e Desertificação; visibilidade para posicionar as economias comunitárias e os mecanismos de financiamento direto para os Povos e comunidades. O objetivo principal e central da campanha indígena “A resposta somos nós” é pautar nas negociações da cop 30 a inclusão da “ ndc Indígena”, que leve a um compromisso global de demarcação das terras como política de mitigação climática dentro da Convenção de Clima.
Todos esses anseios e a luta por reconhecimento, visibilidade e proteção de terras e sistemas de conhecimento indígenas, que perdura há séculos, mostram a importância e a crescente organização dessas populações para reivindicarem seus direitos. Tal narrativa nos mostram também o quanto temos a aprender com os mais eficazes defensores da natureza e a relevância de apoiarmos essas comunidades presente nos dias atuais. A despeito dos 33 anos que separam a Rio 92 da cop 30, os Povos Indígenas permanecerão como um dos principais protagonistas nas negociações, por isso, devemos estar todos acompanhando seus movimentos rumo à cop 30, nos dias 10 à 21 de novembro.
os povos indígenas vão permanecer como principais líderes perante as negociações “
Comunicadora, ativista e uma das grandes artistas visuais indígenas da atualidade, ela leva adiante os saberes do seu povo com criatividade e força por Victória Martins ilustração Daiara Tukano
aiara, de origem Nambikwara , quer dizer ‘minha amiga’; e Hori quer dizer ‘desenho, luz, cor e miração [na língua Tukano]’”, conta. “Eu desenho desde antes do que me lembro por mim”. A arte corre pelas veias de Daiara Hori desde o princípio, como não poderia deixar de ser com um nome tão significativo. Nascida em São Paulo, no início dos anos 1980, ela ainda se recorda do primeiro rabisco: um quadrado em giz de cera, que a mãe fez questão de guardar. “Sempre fui uma pessoa tímida e eu passava meu tempo, na minha solidão, desenhando”, explica. “[É] a imagem que eu tenho da infância: desenhando, em cima de uma árvore ou lendo em algum canto”.
Ela não teria como saber lá atrás, mas essa relação tão íntima e carinhosa com a plataforma só poderia crescer com o tempo. Quase quarenta anos depois, ela se estabelece como uma das mais proeminentes artistas visuais indígenas da atualidade, agora mais conhecida por Daiara Tukano
“Esse perfil sempre esteve presente na minha vida”, Daiara relembra, contando que, nos primeiros anos da adolescência, era ela quem fazia a capa do jornal estudantil. “No segundo grau, eu me dediquei mais a pintar. Fui experimentar mais técnicas e estudar artes plásticas. É muito gostoso não apenas estudar a história da arte e das artistas, mas principalmente quantas maneiras você tem de brincar com imagem, com som, com corpo, com essas histórias”, conta.
Mais tarde, ela continuou seus estudos na Universidade de Brasília ( UnB), onde se formou em Artes Visuais, período de muita importância para seu crescimento enquanto artista e mobilizadora cultural. “Fui monitora de desenho, anatomia artística, ilustração científica, figurino, iluminação e maquiagem”, recorda.
Fora da sala de aula, também foi presidente do Centro Acadêmico, diretora do Circuito Universitário de Cultura e Arte da União Nacion al dos Estudantes (une) e coordenadora de artes visuais do Coletivo Palavra, grupo de produção artística urbana e multimídia de Brasília. “[Estava] nesse meio jovem, universitário, da cidade, conhecendo muitas pessoas e aprendendo a fazer junto”, diz.
Mas foi nessa época, também, que Daiara começou a se aproximar da cultura do seu povo, os Yepá Mahsã , ou Tukano, uma das 23 etnias que vivem na região do Rio Negro, no Amazonas. Seu pai tinha muito o que transmitir aos filhos e ela, a primogênita, demonstrou curiosidade e interesse em aprender.
“A gente começou a fazer cerimônias, a virar a noite ouvindo várias histórias da criação, ouvindo ele cantar, também tomando o Kahpi”, relembra. “É como se fosse uma graduação dentro da própria cultura. E de repente eu fui me dando conta de quantas histórias eu já conhecia e o quão mais complexas elas eram quando eu parava para pensar sobre elas”.
Essa experiência com o Kahpi (nome dado pelos Yepá Mahsã ao cipó da ayahuasca), em particular, deu diversos outros rumos para sua arte. A planta é completamentem central para a cosmologia Tukano, afinal, foi a partir dela que surgiu a humanidade e todo o conhecimento a ela associado: os diversos povos, as diferentes línguas, os diferentes cantos, e as artes – tudo vem junto ao nascimento do Kahpi, contam os povos indígenas. Provar a ayahuasca e mirar o mundo sob o efeito dela pela primeira vez abriu todo um universo para Daiara. “Eu fiquei muito tocada, encantada, chocada. Foi muito revelador ter essa sensação, essa evidência, de como a nossa cosmovisão é real. Não é um mito, não é uma maneira poética de falar as coisas. É aquilo mesmo”, ela afirma.
A partir de então, ela passou a experimentar com diversas luzes e cores, pesquisar as origens e significados dos grafismos dos povos rionegrinos, observar as tramas das cestarias e padrões das cerâmicas, bancos e malocas e infusionar seu trabalho com os hori, ou mirações, que ela enxerga a partir do Kahpi, aprofundando-se cada vez mais em um processo artístico e espiritual
“A miração é uma visão que a gente vê e não vê, é uma visão espiritual, pode ser uma visão do sonho, intuitiva, da imaginação”, explica. Desde 2013, ela desenvolve a série Kahpi Hori, onde busca justamente apreender em tela essas visões, a partir de padrões geométricos, cores vibrantes e feixes de luz.
A cada passo dado, mais claro ficava aquilo que ela já sabia desde pequena: os Yepá Mahsã são um povo que desenha no mundo. “Eu vim de uma panela de ayahuasca cheia de desenhos e essa panela é o Alto Rio Negro”, diz. E é através da sua arte que Daiara resgata esse saber ancestral e o passa adiante.
“Estou aproveitando para contar essas histórias, mas também para imaginar como é andar nesse mundo”, comenta. “Nós, povos indígenas, precisamos usar todas as plataformas possíveis para fazer a [nossa] valorização. Então, para mim, pintar é uma celebração desse mundo da transformação, esse mundo Tukano”.
“pintar é celebrar esse mundo, um mundo tukano
Entre prédios e museus
Enquanto conversava com o Instituto Socioambiental (isa), Daiara preparava uma série de obras para a exposição Amõ Numiã, em cartaz até 11 de março na Galeria Millan, em São Paulo. Ao redor, oito telas verticais tomavam as paredes, do teto ao chão, representando as figuras femininas que são parte das histórias da criação Tukano; matriarcas cujas histórias, segundo a artista, são pouco contadas ou somente em espaços reservados.
“Cada um desses desenhos tem um motivo, uma história,” ressalta, apontando elementos característicos da cultura e ancestralidade do seu povo. “[É importante] celebrar e conhecer profundamente cada um desses significados, para que a gente possa reconhecê-los quando estão ali presentes. Essa é uma maneira de construir uma arte que é Tukano para os Tukano. Não é só para mostrar para o branco – é uma arte que é nossa”.
Ao mesmo tempo, Daiara assina a curadoria da mostra Nhe’ Porã: Memória e Transformação, disponível até 23 de abril no Museu da Língua Portuguesa, também em São Paulo – uma coletânea de áudios, fotos históricas, peças de artesanato, vídeos e estações interativas que convidam a mergulhar no patrimônio linguístico e cultural dos povos originários, reflorestar os pensamentos e ouvir suas palavras com mais respeito.
As duas exposições estão entre as mais recentes com a presença de Daiara. Elas ilustram a crescente abertura da cena cultural às vozes e sabedorias indígenas no Brasil, e ajudam a demonstrar uma outra vertente de seu trabalho: o da arte enquanto política
“Na história da arte do Brasil, a figura do índio é a de um índio morto ou ajoelhado em frente da cruz”, assinala. Ela recorda particularmente da primeira vez que entrou na Pinacoteca do Estado de São Paulo, onde, em 2020, participou da mostra Vexoá: Nós Sabemos, e viu, com seus próprios olhos, a escultura de Moema, uma menina indígena representada morta na praia, nua e sensualizada. “É um negócio tão grotesco, tão brutal, e ainda sendo celebrado daquele jeito [pelas galerias e museus]”.
Por isso, ela reflete, é tão importante adentrar e dialogar criticamente com espaços que, tradicionalmente, relegaram aos povos indígenas uma imagem de morte, sujeição e colonização.
“Essas narrativas são armadilhas, então, a gente tem que aprender a desarmá-las e também montar armadilhas para os outros caírem na nossa onda”, aponta. “A nossa arte é uma grande armadilha para permitir que o nosso mundo respire. Uma armadilha que convida à nossa cosmovisão, a romper com narrativas eurocêntricas, a ouvir e falar outras línguas, que são as línguas originárias”.
“ nós somos a fruta da luta de muitas gerações antes de nós
Para além de exibir suas obras em museus e outros espaços clássicos da cena artística brasileira – que também incluem, por exemplo, a 34ª Bienal de Arte de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo (onde assinou a exposição individual Pameri Yukese, Cobra-Canoa da Transformação), e o Museu Nacional da República (onde participou da mostra B rasil Futuro: as formas da democracia)–, Daiara também assina intervenções urbanas de grande porte.
Em 2020, ela se tornou conhecida como a artista indígena a pintar o maior mural de arte urbana do mundo, chamado Selva Mãe do Rio Menino, como parte do Circuito Urbano de Cultura e Arte de Belo Horizonte (cura). No meio da Avenida Amazonas, a obra apresenta a colorida imagem de uma mãe-floresta carregando seu filho, o menino-rio, no colo, a qual ocupa mais de 1000 metros quadrados da parede lateral do Edifício Levy, o mesmo onde nasceu o Clube da Esquina de Milton Nascimento.
Como o prédio que iria pintar estava localizado em Minas Gerais, estado com um histórico de mineração predatória e onde o crime de Mariana havia poucos anos antes matado o Rio Doce, Daiara quis trazer esse passado como inspiração para o desenho que criaria. “Eu lembro do Ailton [Krenak] falando do Rio Doce como um avô; e eu pensava sempre no meu avô e o imaginava criança, brincando no rio”, diz. “[Então me veio] a figura desse rio, que é avô, também [ter sido] um menino. E esse menino tem mãe, que com certeza é a floresta, porque o rio só brota na floresta”.
E acrescenta: a intervenção mineira foi tão bem recebida que crianças reproduzem seu desenho na escola e a marcam nas redes sociais quando a obra aparece ao fundo em dias de marchas pela Avenida Amazonas. “Não dá para falar daquele prédio sem falar de Mariana, do Rio Doce, da luta do movimento indígena, de outros artistas indígenas também. Então, isso me move muito”.
Num ambiente também repleto de monumentos dedicados aos colonizadores, Daiara marca a ancestralidade indígena na paisagem da cidade – ela também assina o mural Alento, em São Paulo. “Já que não temos como fazer esculturas gigantes com as nossas lideranças, pelo menos pintar prédios nós estamos conseguindo”, ri.
Comunicação, militância e arte
Certa vez, o xamã Davi Kopenawa , do povo Yanomami, pegou Daiara pela mão e a apresentou como uma “ fruta da nossa luta”. Ela explica a metáfora: “nossos avós foram para a roça, plantaram uma árvore, aí nossos pais cuidaram daquela árvore, e ela deu fruta. Essa fruta deu muito trabalho para manter viva, ter saúde, ter acesso à educação, se munir de armas, mas agora ela está madura”, conta. “Nós somos a fruta da luta de muitas gerações antes de nós”.
Filha de um líder Tukano e uma antropóloga, Daiara nasceu literalmente dentro do movimento indígena . No início dos anos 1980, época de intensa mobilização em favor dos direitos indígenas que antecede a construção da Constituição Federal de 1988, ela já participava, ainda bebê, de encontros e articulações, observando as lideranças e aplaudindo as conversas, mesmo sem saber exatamente o que tudo aquilo significava.
“Tem uma hora em que você começa a entender um pouco mais a dimensão da violência, da dor, que faz com que essas pessoas se conheçam, se reúnam, lutem juntas. E também [como] essa dor, essa violência, deixam marcas nas nossas vidas”, reflete, lembrando de como passou os primeiros anos da infância longe dos pais por conta desses caminhos ativistas e riscos à sua segurança.
Porém, como era de se esperar, essas influências foram extremamente essenciais para a sua formação enquanto jovem ativista. “A gente cresce e tenta somar de algum jeito. Eu, pessoalmente, escolho contribuir [por meio] da comunicação, da cultura [e] da arte”, afirma. Sua dedicação ao ativismo também encontrou respaldo na vida acadêmica: Ela completou um Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB, com estudo sobre o direito à memória e à verdade dos povos indígenas e sua relação com o ensino brasileiro.
Após se graduar, Daiara lembra que foi trabalhar como professora de artes em escolas públicas de Brasília. Foi nessa época que sentiu com mais força o peso do racismo. “Eu tinha que ouvir perguntas dos colegas, dos alunos, e todo dia lidar com ignorância, com preconceito”, lembra. “Foi muito chocante. E aí eu sempre ficava procurando como falar com essas pessoas de maneira criativa”.
Na internet, se deparou pela primeira vez com portais criados pelos próprios parentes, para discutir suas pautas – caso da Rádio Yandê, a primeira web rádio indígena do Brasil, pela qual se apaixonou perdidamente. Não só a Yandê era feita pelos indígenas e para os indígenas, ela não se debruçava apenas sobre as pautas de luta e violência, mas também sobre outras expressões culturais, como música, cinema e literatura, tão essenciais quanto.
“Eu era super fã da Yandê, mostrava na escola, e uma vez eu mandei mensagem para eles, elogiando, agradecendo. E alguém me respondeu: ‘a gente também adora o seu trabalho, será que você não quer se juntar à nós?’”, conta.
Ali, Daiara iniciou um caminho de colaboração com a Yandê que duraria seis anos. Em Brasília, ela virou jornalista e passou a cobrir reuniões das lideranças com diversos órgãos indigenistas e mobilizações na capital. “Eu imprimi um crachá de imprensa, plastifiquei, botei no pescoço e conseguia furar os bloqueios policiais, entrar nos lugares”, recorda. Também se tornou articuladora cultural e apresentadora, organizando espaços de diálogo com parentes que eram músicos, professores, antropólogos, advogados, os quais transmitia ao vivo no Facebook.
Terra Livre, que ela organizou o Abril Indígena , um mês inteiro de programação sobre os mais variados temas, de saúde à educação, passando por sexualidade, espiritualidade, arte e empreendedorismo.
A experiência com a Yandê, diz Daiara, demonstra a grande proximidade que ela vê entre comunicação, militância e arte. Foi pela rádio, por exemplo, que ela introduziu discussões que a interessavam profundamente, mas com poucorespaldo no movimento indígena brasileiro – como as experiências de resistência de povos em outros países latinos e norte-americanos e temas como apropriação cultural e altos índices de suicídio entre indígenas.
“A estratégia mais eficiente para a gente combater a violência é a cultura, é a arte”, sublinha a artista – que, em 2021, foi indicada ao Prêmio pipa , aquele que é considerado o mais relevante das artes visuais brasileiras. “[São elas] que levantam a autoestima dos jovens, que começam a reconhecer seu lugar, a valorizar sua história e a querer construí-la junto com as gerações que vêm antes, para aquelas que vêm depois. A arte é política”, finaliza.
“a mic é essencial por mesclar gêneros atuais com a música tradicional
u ma nova geração de músicos de origem indígena emerge no Brasil. Como vários deles foram criados em ambientes urbanos, suas referências são as mesmas compartilhadas por um grande número de pessoas – do rock ao rap, do samba ao reggae. A essas influências, eles acrescentam elementos tradicionais dos povos originários, como seus instrumentos e línguas, criando uma conexão forte entre o ancestral e o atual. A combinação é o cerne de um novo momento da cultura do país: a Música Indígena Contemporânea, ou mic, como vem sendo chamada. “Individualmente, as pessoas podem estar fazendo isso há muito tempo. Mas como cena coletiva a mic é um movimento novo. É como se a gente se encontrasse pela primeira vez”, diz a cantora e compositora Siba Puri, de 30 anos.
Um dos principais impulsos para a difusão dessa nova cena musical indígena veio da Rádio Yandê, criada em 2013. Foi a primeira rádio digital voltada exclusivamente para conteúdos produzidos por indígenas, de notícias a canções.
“Quando a gente criou a rádio, queríamos mostrar que existe esse local para essa galera fazer música e divulgar seu trabalho”, diz o comunicador Anápuàka Tupinambá, um dos fundadores da Yandê, ao lado dos artistas visuais Denilson Baniwa e Renata Machado Tupinambá.
O grupo desenvolveu o conceito de “etnomídia indígena”, uma plataforma autônoma, sem patrocínios, mas que desde o início já buscava desenvolver um mercado da música indígena. “Ser mídia indígena é diferente de ter indígenas na mídia”, comenta Anápuàka Tupinambá. Para ele, a mic é fundamental por mesclar gêneros contemporâneos com a música tradicional. “Tudo o que cantamos na nossa língua pode não parecer do nosso tempo, mas é”, diz ele a Pedro Tavares.
Anápuàka Tupinambá brinca que, se um indígena é traído ou sofre uma desilusão amorosa, ele pode ouvir uma sofrência indígena, como a do grupo Forró Garotos Apyãwa, O Batidão Diferente. Caso queira algo para extravasar sua energia, pode ouvir um heavy metal indígena, como a banda Arandu Arakuaa. Já o rap de protesto tem como principal referência os Brô mc’s, considerado o primeiro
grupo nesse gênero musical do país. O rap, aliás, foi muito abraçado pelos músicos indígenas, como mc Anarandà, Katú Mirim e Brisa de la Cordillera, conhecida como Brisa Flow. Mas há espaço também para a mpb de voz e violão, com artistas como Tainara Takua, Edivan Fulni-ô e Gean Ramos Pankararu. No hip-hop e no funk, um dos destaques é Kaê Guajajara. Ela e o cantor Kandú Puri lançaram em 2021 o Azuruhu, primeiro selo voltado exclusivamente para artistas indígenas. Um dos projetos da iniciativa é o Voa parente, uma curadoria de músicos sem meios de divulgar seu trabalho (“parente” é como um indígena chama outro, independente de ser do mesmo povo). A equipe do selo monta uma espécie de estúdio itinerante e se desloca até a aldeia ou a região onde o artista vive para gravar clipes e produzir músicas. O Azuruhu gravou singles, ep s e clipes de três artistas.
O músico Kandú, da etnia puri, recorre ao rap e ao trap, que é também a principal referência do grupo Nativos mc’s, do Alto Xingu, em Mato Grosso, e do cantor Urysse, do povo Kuikuro, da mesma região. “Nosso objetivo é ajudar os artistas a lançarem um trabalho de qualidade”, diz Kaê Guajajara.
FOCADO NO TURISMO SUSTENTÁVEL, O ETNOTURISMO
CONTRIBUI PARA VIVÊNCIAS CULTURAIS
“florestas são as barreiras mais eficientes contra o devastação ambiental
gabriela Sevilla sempre buscou aproximações com culturas, realidades e cosmologias que trazem um olhar decolonial ao planeta. Inspirada em um turismo positivo e que enriquece seu repertório cultural, ela decidiu experimentar o etnoturismo. Essa é uma forma de ver e conhecer o mundo e uma das principais opções de turismo sustentável, não só para quem o realiza, mas também para os moradores da região, que recebem os grupos e obtêm fonte de renda.
A expedição também desperta a preocupação socioambiental, o que estimula a preservação da biodiversidade local, o modo de vida e saberes ancestrais dos povos indígenas. “Não tenho palavras para descrever o quão forte e impactante foi esse momento pra mim”, explica a psicóloga e psicanalista.
Gabriela decidiu ir até à Aldeia Shanenawa, nas proximidades da cidade de Feijó (Acre), uma das opções de etnoturismo da Vivalá, empresa especializada em turismo sustentável no Brasil. “Eu nunca experienciei tanto acolhimento em minha vida”, explica. “Além disso, eles cuidam um dos outros de maneira tão genuína, realmente vivem em comunidade”, acrescenta. Para a psicanalista, as mudanças após viagem vieram em diferentes frentes. Ela foi diretamente influenciada pela relação entre as crianças e o grupo de turistas, além das trocas importantes sobre saúde mental e acolhimento na comunidade indígena. “Notei também que a relação com o tempo é outra, há espaço pra fluidez da espontaneidade, coisa que às vezes perdemos muito vivendo na cidade”, destaca.
A experiência na aldeia também trouxe reflexões sobre a conexão com a natureza, algo que Gabriela passou a valorizar ainda mais. Ela observou como os Shanenawa integram o meio ambiente em suas práticas diárias, respeitando cada elemento da floresta. Essa vivência a inspirou a repensar seus hábitos, buscando formas de viver de maneira mais sustentável. “Foi como reaprender a enxergar o mundo com mais cuidado e respeito”, conta. Por fim, Gabriela destaca que o etnoturismo não é apenas uma viagem, mas um convite à transformação pessoal e coletiva.
Etnoturismo como fonte de renda É possível fazer até três expedições indígenas em diferentes regiões do país por meio da Vivalá. As pessoas podem optar pela Terra Indígena Katukina Kaxinawá (Acre). Mas é possível também ir à Terra Indígena Kariri-Xocó (Alagoas) e na Terra Indígena Tenondé-Porã (São Paulo).
Para o Cacique Teka Shanenawa , o turismo indígena e sustentável é uma oportunidade de transmitir a resistência local contra o desmatamento e a destruição da floresta. Além disso, são momentos frutíferos de trocas culturais, especialmente para os não indígenas, que costumam carregar estereótipos. “O turismo contribui na solução das dificuldades que temos. Inclusive, está contribuindo com a faculdade das minhas duas filhas”, destaca o líder indígena. “Isso tem sido uma porta aberta para vender nossos artesanatos, mostrar nossa cultura e provar que não somos menos do que qualquer outra cultura ou povo brasileiro” frisa.
Boas práticas ao adentrar em terras indígenas
Após conhecer e saber o que o etnoturismo oferece, é hora de saber como imergir numa cultura que pode ser impactante e bastante diferente das vivências em centros urbanos. Há dicas que tendem a facilitar a chegada a esses locais. Um dos principais pontos é que o território visitado necessita de maior atenção com aspectos básicos.
Regras específicas são aplicadas nas terras indígenas, incluindo a proibição de consumo de bebidas alcoólicas, a necessidade de evitar ruídos excessivos para não perturbar a fauna, a proibição de marcar nomes ou símbolos em árvores, pedras, placas ou outros elementos naturais, e a orientação para deixar objetos como pedras, conchas e flores no local. Quanto aos registros, é possível fazer fotos e vídeos, mas com responsabilidade e sensibilidade. O importante é não fotografar sem o consentimento delas, bem como evitar capturar imagens de pessoas em situações que possam causar constrangimento.
Antes de visitar uma aldeia, é fundamental fazer uma pesquisa prévia sobre a comunidade em questão, buscando compreender sua cultura e história. Além disso, é recomendável usar termos e palavras apropriados como sinal de respeito á eles. Para obter informações sobre a causa indígena e adotar uma comunicação respeitosa, a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (apib) oferece vários recursos informativos.
Etnoturismo exige mente e coração abertos É preciso deixar estereótipos, preconceitos e crenças sociais, que muitas vezes existem na sociedade, no sistema educacional ou em decorrência do próprio passado colonial do Brasil. É fundamental se entregar ao novo, com respeito e cautela. Essa experiência também permite uma conexão com os saberes ancestrais, que muitas vezes são negligenciados em narrativas tradicionais.
Além disso, Cabrera destaca que é uma grande oportunidade de conhecer a história do Brasil a partir da perspectiva dos povos indígenas, além dos livros de história. “Com isso, os visitantes repensam o que aprenderam, sobre sua própria vida. Por isso, essas vivências são muito especiais e realmente transformam a gente”, finaliza.
“A mitologia tupi pulsa a cada passo da jornada
desenvolvido pelo estúdio Vortex Indie Games e formado por estudantes do curso de design de games da Universidade Anhembi Morumbi, Turi-Kaapora é um hack ‘n’ slash (um gênero de videogame que enfatiza ação e combate corpo a corpo) protagonizado pela Caipora, que, com a ajuda do porco-do-mato “Queixada”, precisa proteger a floresta dos homens que roubaram o fogo do Boitatá. Inspirado pela mitologia tupi, o jogo coloca a heroína folclórica contra vilões que estão acabando com a natureza ao queimar as árvores e poluir os rios, algo que leva à morte de animais que, mesmo desencarnados, buscam maneiras de ajudar a protagonista. Com ambientação na Mata Atlântica e trilha sonora composta pela banda Arandu Arakuaa , o jogo se destaca não só pela jogabilidade dinâmica, mas também pela imersão cultural e ambiental que propõe. A dublagem da personagem principal é feita por Lorena Brabbo, artista indígena, o que confere autenticidade e respeito à representação dos povos originários. Turi-Kaapora traz uma proposta única: unir mitologia brasileira, crítica ambiental e estética autoral em uma experiência de jogo profunda e engajada. Atualmente, o projeto segue em desenvolvimento, com uma demo gratuita disponível no itch.io e planos de lançamento na Steam , buscando ampliar o alcance e a valorização da cultura indígena brasileira através dos games.
A missão de Caipora
O objetivo de Caipora é recuperar o fogo do Boitatá e expulsar os invasores. No entanto, a quantidade de inimigos é muito maior do que ela e outros personagens poderiam imaginar. Tanto que Caipora se mostra surpresa, em mais de uma ocasião, com quão rápido as construções dos invasores substituíram as árvores e os campos.
A poluição é tamanha que a deusa Jaci, guardiã da noite, deixa de conseguir se comunicar com Caipora por meio do reflexo da lua nas águas dos rios. Somente nas áreas purificadas por Caipora a deusa pode voltar a intervir na jornada, tornando a experiência cada vez mais dinâmica.
Como você pode conferir com base na descrição feita até aqui, é super evidente que Turi-Kaapora aborda pautas atuais, como a necessidade da preservação do meio ambiente, e utiliza com inteligência figuras importantes da mitologia tupi.
Desenvolvimento
De acordo com o programador Murillo Dias, que concedeu uma entrevista exclusiva ao The Enemy, a fase atual do projeto poderia ser descrita, em termos mais precisos, como um pré-alfa (uma fase muito inicial do projeto).
Ao todo, a equipe do estúdio conta com sete integrantes: Beatriz Sanches (narrativa), Gabriel da Gama (artista 3D), João Braz (animação 3D), Murillo Dias (programação), Rafael Pedro (level designer, game designer e tech artist), Ryan Brambilla (level designer e design de som) e Victoria Motta (artista 2D).
De acordo com Murillo, a ideia do estúdio com Turi-Kaapora é passar uma mensagem, sim, mas não de maneira excessivamente didática. Afinal, tão importante quanto trazer reflexões aos jogadores é manter o público engajado por meio de uma jogabilidade cativante e divertida.
Caipora e Queixada encontram Nhandedjara na floresta iluminada
Jogabilidade
Conforme mencionado ainda no início deste texto, Turi-Kaapora é um hack 'n' slash em perspectiva isométrica no qual jogadores controlam Caipora. Ela está sempre acompanhada pelo porco-do-mato Queixada, que serve tanto como montaria quanto como um aliado nos combates. Ao longo da demo, os jogadores caminham por segmentos da floresta que são ocupados por inimigos. As habilidade em combate são ataque leve, ataque pesado, um especial que utiliza parte da energia do Boitatá e esquiva. Por se tratar de um jogo ainda em fase inicial de desenvolvimento – segundo Murillo, a equipe trabalha em Turi-Kaapora há cerca de um semestre – é evidente que alguns aspectos não parecem tão polidos quanto se esperaria de um jogo mais próximo da conclusão. Ainda assim, a experiência se destaca, principalmente, pela ambientação.
Ambientação
A trilha sonora que se repete enquanto Caipora explora os cenários fora de combate é genuinamente encantadora. Todas as músicas foram fornecidas pela banda brasileira Arandu Arakuaa . Além disso, os pontos dos cenários em que canos enormes inundam os rios com sujeira são particularmente competentes em ilustrar aquilo contra o que Caipora está lutando. Não bastassem essas qualidades já chamativas ainda na fase pré-alfa, a própria inserção dos elementos mitológicos parece sempre muito precisa.
A primeira aparição do reflexo da lua na água desperta imediatamente a expectativa pela presença de Jaci, e essa expectativa não resulta em decepção.
Aproveitando mais essa menção às figuras mitológicas, vale destacar que, segundo Murillo, o estúdio contou com a consultoria do autor indígena Kaká Werá para garantir que a representação dos elementos mitológicos relacionados aos povos originários fosse adequada. Como ainda é um projeto em de desenvolvimento, Turi-Kaapora não tem com uma data de lançamento definida. A ideia do estúdio, entretanto, é dar prosseguimento ao jogo e encontrar possíveis patrocinadores. Você, caso deseje, pode ajudar a equipe por meio de contribuições no itch.io. Além disso, é possível também visitar a página oficial do jogo no Steam e colocá-lo na lista de desejos.
Museu nacional da Dinamarca vai devolver para o Brasil relíquia sagrada que está na Europa desde o século XVII por Elisangela Roxo
m dos mais bem preservados entre os onze mantos tupinambás remanescentes do século xvii voltará definitivamente da Europa para o Brasil. Até o fim de 2023, o tesouro confeccionado com as penas vermelhas do guará deixará para trás a coleção etnográfica do Nationalmuseet , o museu nacional da Dinamarca, e integrará o acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro. A instituição dinamarquesa anunciou a doação nesta terça-feira. A peça, que os indígenas consideram sagrada, está em Copenhague desde 1689, segundo registros oficiais.
“É uma grande honra para nós receber um dos principais artefatos etnográficos do Brasil, que se encontra no exterior há tanto tempo. A devolução mostra a confiança do Nationalmuseet no nosso trabalho, depois de tudo o que aconteceu”, disse Alexander Kellner, diretor do Museu Nacional. Na noite de 2 de setembro de 2018, um curto-circuito desencadeado pelo superaquecimento de um ar-condicionado provocou um incêndio que destruiu boa parte da instituição brasileira. Kellner se reuniu com toda a direção do Nationalmuseet em abril de 2023, na capital dinamarquesa, e viu o manto pela primeira vez.
“A relíquia desperta em nós um enorme senso de responsabilidade. Vamos falar a verdade: se o manto estivesse conosco antes, teria sido queimado. O Brasil precisa entender a importância de cuidar do próprio patrimônio cultural. Ainda estamos aguardando ações do governo federal que possibilitem o repasse de 180 milhões de reais por empresas privadas e estatais para concluirmos a reconstrução física e simbólica do museu até 2026.”
Em nota, o Nationalmuseet destacou que a doação do manto é uma “contribuição única e significativa” para a recuperação do acervo brasileiro. “As heranças culturais têm um papel decisivo nas narrativas das nações sobre si mesmas. Por isso, é importante para nós ajudar a reconstruir o Museu Nacional do Brasil depois do incêndio devastador de alguns anos atrás”, afirmou Rane Willerslev, diretor do Nationalmuseet.
O manto em questão mede 1,2 metro de altura por 60 cm de largura. Possui um gorro e uma capa, que constituem um único traje. As penas de guará se encaixam sobre uma base de fibra natural, parecida com uma rede de pesca. Os tupinambás usavam vestimentas do gênero em ocasiões formais, como as assembleias, os enterros de pessoas queridas e os rituais antropofágicos, a celebração mais imponente promovida por eles no período colonial. O museu de Copenhague não sabe informar quem trouxe a peça para a Dinamarca nem por quê.
“ a ligação do passado com o presente não se quebra
A instituição do Rio pretende exibir o manto a partir de 6 de junho de 2024, quando o museu completará 206 anos . Na ocasião, será reaberta apenas uma pequena sala, e nela estará a relíquia. A cenografia deve ser planejada pela equipe da entidade em parceria com os indígenas. “O Museu Nacional e os tupinambás mantêm uma relação próxima há mais de duas décadas ”, lembra João Pacheco de Oliveira, antropólogo e curador das coleções etnográficas da instituição. Ele explica que a devolução de objetos ritualísticos é complexa e implica o envolvimento de intelectuais indígenas e dos conhecedores da tradição, inclusive daqueles que sabem trabalhar com arte, sonhos e xamanismo.
Ao longo dos últimos dois anos, o embaixador do Brasil na Dinamarca, Rodrigo de Azeredo Santos, costurou discretamente o processo de doação. Ele assumiu o posto durante a pandemia, em dezembro de 2020, depois de servir no Irã. Quando os dinamarqueses encerraram a quarentena, na primavera de 2021, Santos visitou o Nationalmuseet com a família, se encantou pelo manto e teve a sensação de que a relíquia estava no lugar errado. O embaixador soube, então, que o Brasil nunca havia reivindicado oficialmente a devolução do artefato. A partir daí, Santos tratou de reunir as cartas necessárias para formalizar o pedido.
“Os sonhos dos nossos ancestrais, que são também os nossos, seguem vivos. Amotara preservou em sua memória a lembrança da existência de um Manto Sagrado para o nosso povo. Nossos Mantos são ícones da nossa espiritualidade e, por isso, acreditamos que devem estar de pé e vivos, próximos ao seu povo de origem”, escreveu a cacica Maria Valdelice Amaral de Jesus em correspondência endereçada à direção do Nationalmuseet, no dia 29 de julho de 2022. Ela é uma das líderes das 23 aldeias que compõem a Terra Indígena Tupinambá de Olivença, localizada nos municípios baianos de Ilhéus, Buerarema e Una.
Na carta, a cacica se refere à própria mãe, Nivalda Amaral de Jesus, a Amotara, que travou o primeiro contato com a relíquia em maio de 2000, quando o Nationalmuseet a emprestou para a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento, em São Paulo. Depois de visitar a exposição na companhia de um repórter da Folha , a Amotara declarou ao jornal: “Somos tupinambás. Queremos o manto de volta.”
Além da cacica, enviaram cartas o cacique Rosivaldo Ferreira da Silva, o Babau, outro líder dos tupinambás de Olivença, e a direção do Museu Nacional do Rio. Todos os três documentos foram entregues pelo embaixador a Willerslev. O diretor do Nationalmuseet se sensibilizou com as correspondências e preparou um elaborou um documento oficial favorável à devolução da peça. Em seguida, levou a reivindicação dos brasileiros aos seis membros do conselho do museu dinamarquês. Os conselheiros, por sua vez, recomendaram que a relíquia fosse doada ao ministério da Cultura da Dinamarca. No último dia 31 de maio, o ministro Jakob Engel-Schmidt finalmente autorizou a volta definitiva do manto.
Ave Guará, suas penas foram usadas para a confecção do manto
A Embaixada do Brasil em Copenhague desempenhou um papel central ao garantir que a negociação para a devolução de uma relíquia cultural ocorresse exclusivamente entre museus dinamarqueses e a comunidade indígena Tupinambá, no Brasil. Esse processo, delicado e de grande importância histórica, foi conduzido com cautela, sensibilidade diplomática e respeito às complexidades envolvidas na restituição de bens culturais às suas origens. “Nosso objetivo era que a sociedade dinamarquesa encarasse a devolução como uma cooperação cultural dos dois países para ajudar a reconstruir a instituição brasileira. Queríamos evitar debates sensíveis na Europa sobre a repatriação de artigos que pertencem aos povos originários de outros continentes. Por isso, todo o processo transcorreu em sigilo”, conta Carlos Santos. “Para mim, é uma honra participar da devolução. Sou carioca. Me lembro de visitar o Museu Nacional com meu pai e meu avô. Mais tarde, eu mesmo levei minha filha até lá. Quando o museu pegou fogo, eu ainda estava em Teerã e fiquei muito tocado. Ao chegar a Copenhague, vi que poderia contribuir para recuperar o acervo da instituição.”
Mal recebeu a notícia de que a peça regressará ao Brasil, a cacica se emocionou. “Minha avó dizia que a perda do manto enfraqueceu o povo tupinambá. Espero que a relíquia volte logo para nos revigorar. Não importa se chegará à Bahia ou ao Rio. O importante é que retorne. Até hoje, não saiu nenhuma portaria reconhecendo o nosso território. O governo federal já identificou a terra como sendo dos tupinambás, mas ainda não a homologou. Enquanto isso, a terra é invadida por grandes hotéis e mineradoras de areia. Que o manto traga força aos tupinambás de Olivença! Nós precisamos que nossa terra seja demarcada.”
Enquanto os trâmites se desembaraçam nos gabinetes da Dinamarca, Nationalmuseet, Museu Nacional da Dinamarca, realizou um gesto significativo ao convidar a artista Glicéria Tupinambá , irmã do cacique Babau para visitar o país em setembro do ano passado. Ela adota em suas criações os mesmos métodos que seus antepassados utilizavam para confeccionar as vestimentas sagradas.
Glicéria ficou uma semana em Copenhague e passeou pelo Nationalmuseet, no Centro da cidade. Lá conheceu a relíquia que voltará para o Brasil. Depois, fez três visitas à reserva técnica da instituição, no Norte da capital dinamarquesa, onde foi apresentada a outras quatro peças identificadas pelo museu como mantos tupinambás. Os artefatos estão trancados há décadas nas caixas metalizadas do acervo.
Antes de a mesa começar, Glicéria descreveu o sonho que tivera na noite anterior. “Uma mão carregava algodão e uma pena num tom entre o amarelo e o vermelho.” No domingo, dia 18 de setembro, por volta das 14 horas, enquanto o então presidente Jair Bolsonaro discursa para apoiadores em Londres, onde iria assistir ao funeral da rainha Elizabeth II, a artista cantava em Copenhague. Ela marcava o ritmo batendo o pé direito no chão: He! He!/Tupinambá desceu a serra todo coberto de penas/Ele foi, mas ele é/É o rei da Jurema. A indígena estava iniciando a oficina Manto Fora da Caixa , aberta aos frequentadores do Nationalmuseet. Ali seria exibida pela primeira vez ao público uma das quatro capas guardadas na reserva técnica. Com luvas de borracha, um funcionário retirou o artefato cuidadosamente da caixa de metal e o mostrou por alguns minutos para cerca de trinta pessoas que se aglomeravam na sala dedicada ao Brasil.
“ as heranças culturais têm um papel decisivo nas narrativas das nações sobre si mesmas
Glicéria usava um cocar de penas azuis de arara e um vestido amarelo. A combinação chamava atenção pela força simbólica e pela representação da cultura Tupinambá. Ela falava em português, com tradução simultânea para o inglês e o dinamarquês, em um gesto de abertura e diálogo entre mundos distintos. À sua esquerda, o manto que será devolvido repousava em pé, protegido por uma vitrine de vidro. A peça, cuidadosamente iluminada, ocupava lugar de destaque na sala, como se também participasse da cerimônia.
Em um discurso comovente, Glicéria relembrou um marco importante da trajetória de seu povo em relação ao objeto sagrado. “No ano 2000, a peça que está nesta sala nos visitou no Brasil e foi reconhecida pela mãe de Valdelice Tupinambá, a dona Nivalda. Esse encontro ajudou nossa luta, ajudou as pessoas a saberem que a gente nunca saiu do nosso território. Vivemos lá tradicionalmente até agora. Hoje, me encontro aqui pelo chamado do manto. A ligação do passado com o presente não se quebra. Os fios do manto me trouxeram à Dinamarca e nos possibilitam estar juntos neste momento.”
Os participantes da oficina tiveram a oportunidade de aprender a confeccionar diversas vestes sagradas utilizando a técnica tradicional Tupinambá. A atividade, realizada no Nationalmuseet, foi conduzida por Glicéria Tupinambá e atraiu um público interessado em conhecer mais de perto os saberes ancestrais dos povos indígena brasileiro. Para participar, cada pessoa pagou uma taxa de 100 coroas dinamarquesas, o equivalente a cerca de 70 reais, valor arrecadado pelo próprio museu.
Durante a oficina, Glicéria distribuiu materiais essenciais para o trabalho manual: cera de abelha, barbante e uma agulha. Simples nos elementos, mas complexa em significado, a prática ensinada carrega gerações de conhecimento transmitido oralmente e pelas mãos. O ambiente era de escuta atenta e respeito, com os participantes manuseando os materiais sob a orientação da artista, que conduzia a atividade com paciência e firmeza.
Ao final, em meio ao clima de troca e aprendizado, um dos presentes dirigiu a Glicéria uma pergunta direta: “Como você se sente ao ver o manto num museu da Dinamarca?” A resposta veio com delicadeza: “Eu agradeço às pessoas daqui por terem cuidado do patrimônio de meu povo.” A doação acontece num momento em que diversas instituições europeias precisa lidar com pedidos de devolução de artefatos culturais e arqueológicos pelas nações de origem. Este mês, por exemplo, a Alemanha enviou o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus ao Brasil. Retirada em 1995 do sítio paleontológico do Cariri, no Ceará, por pesquisadores alemães. A peça ficará exposta num museu da região, representando grande significado cultural.
“todos os sonhos dos nossos ancestrais seguem vivos
POR QUE CADA VEZ MAIS PESSOAS SOFREM COM ISSO?
“cada um pode procurar em si qual o incômodo e onde pode sanar, no sentido de cura
medo do futuro. Ou do que virá pela frente. Essa é a principal preocupação das gerações de jovens e adultos que vivenciam a ebulição global (o estágio além do aquecimento global) e convivem com a ansiedade climática. O assunto é extenso, e o problema é ainda maior. Por isso, a desesperança parece vir em dobro. Às vezes, acreditamos até que não há saída possível, mas pequenas iniciativas e mobilizações mundiais dão ânimo para aqueles que, em meio à tristeza, alimentam a construção de um planeta mais justo, leve e ecológico. Os efeitos são mais fortes na geração Z , embora também seja aquela que mais se mobiliza no mundo inteiro. Uma pesquisa publicada no jornal The Lancet mostrou que 45% de 10 mil jovens em 19 países disseram que os sentimentos sobre as mudanças climáticas afetam negativamente a vida cotidiana. São adolescentes e pessoas na vida adulta que, com frequência, se perguntam: haverá um futuro digno para nós?
Muitos já receberam um “não” bem antes de refletir sobre isso. Populações quilombolas, indígenas e periféricas no Brasil já sabem muito bem os efeitos desse problema. São comunidades que precisam lidar com a falta de água, saneamento básico, demarcação das suas terras, racismo e insegurança. “Embora essas pessoas não nomeiem o que sentem como ansiedade climática, são provavelmente os grupos que mais sofrem psiquicamente”, diz Aline Matulja, engenheira ambiental e apresentadora do programa Eco Brasil na dw
Não é só o ambiente que está em crise
Não há uma descrição médica que possa orientar os sintomas de quem convive com ansiedade climática. O assunto é novo e surge como uma reivindicação política ao revelar os efeitos psíquicos da ebulição global. Isso se demonstra no medo de perder a casa em uma enxurrada, no temor em ver a aldeia indígena cercada por áreas de grilagem, ou ainda a dor no peito de presenciar o próprio desaparecimento do país. Tuvalu, com pouco mais de 11.000 habitantes, é a primeira nação com risco de elevação do nível do mar.
“Há uma destruição de tudo aquilo, de todos os sistemas que têm sustentado a vida no planeta, e essa catástrofe expõe de maneira brutal uma grande massa de excluídos”, explica Ana Lisete Farias no podcast Vibes em Análise. Autora do livro A psicanálise o meio ambiente (Medusa), a pesquisadora disse ao programa que há um entrelaçamento de exclusão, violência e destruição ambiental. Para Aline Matulja (engenheira ambiental), o verbo “regenerar” é um motor de muitas mudanças. A apresentadora, que se inspira no filósofo nigeriano Bayo Akomolafe, afirma que é preciso imaginar e sonhar com um futuro coletivo possível. “Há a necessidade de enlutar o modo de vida que a gente tem para ser possível surgir outro”.
Existe cura para a ansiedade climática?
É difícil imaginar, neste momento, um fim rápido para os efeitos psíquicos da crise climática. Mas, há combustíveis emocionais que dão energia às lutas coletivas. É possível, engajar-se em coletivos ambientais, como o Fridays for Future, fundado por estudantes do mundo inteiro que encamparam uma greve pelo clima. “Isso proporciona não apenas um espaço para a troca de ideias e apoio mútuo, mas também a oportunidade de direcionar esforços coletivos para enfrentar desafios ambientais”, explica Desirée Cassado, psicóloga e professora na The School of Life. A especialista diz que isso pode diminuir a sensação de isolamento, além de fortalecer a eficácia coletiva.
Cassado diz que outras estratégias simples e indivi duais podem contribuir, até mesmo politicamente, para pressionar por mudanças justas e benéficas ao planeta, como: Adotar um estilo de vida mais sustentável por meio de escolhas conscientes, como reduzir a geração de resíduos sólidos, diminuir ou abolir o consumo de carnes e derivados; Fomentar o debate sobre a crise climática; Conversar com as pessoas sobre a conexão entre as escolhas pessoais e a situação do planeta. Um exemplo é o consumo de roupas vindas de fast fashions que poluem o meio ambiente.
A saída para a crise climática (e emocional) é coletiva e solidária
As iniciativas citadas acima são importantes, mas inca pazes de resolver o problema. Quando há uma dimensão psíquica, a responsabilidade se amplia e exige uma atuação efetiva do poder público. É preciso”implementar políticas públicas voltadas para a saúde mental, especialmente direcionadas aos jovens nas periferias”, diz Desirée Cas sado. A professora da The School of Life explica que isso envolve a criação de serviços de saúde mental acessíveis, programas educacionais que abordem questões emocio nais e fomento a espaços urbanos saudáveis.
Além disso, é possível desenvolver programas de edu cação emocional e ambiental nas escolas, assim como incentivar e amplificar a voz dos jovens nas decisões locais que envolvem o meio ambiente. “Isso não apenas empodera os jovens, mas também contribui para a criação de soluções mais eficazes e adaptadas à realidade local”. É importante, segundo a professora, destacar narrativas de sucesso no enfrentamento às mudanças climáticas e enfatizar a mobilização social, como greves pelo clima e movimentos de bairro. Para Aline Matulja, é importante saber que cada um pode atuar de forma diferente para que mudanças positivas existam. Isto é, eu posso me aliar à luta de comunidades ribeirinhas, mas você pode atuar num grupo de ciclistas urbanos que lutam na Câ mara Municipal por mais ciclovias, menos carros e um transporte público de qualidade.
Matulja é enfática ao dizer que o Brasil é uma “es cola” no combate às mudanças climáticas. indígenas, tradicionais, quilombolas e ribeirinhos fazem muito para a sustentação de ecossistemas saudáveis”, explica. “Nós podemos muito nos inspirar nesses povos, além de que nossa cultura é toda permeada por essa ancestralidade. Mais do que plantar uma árvore, preci samos entender como podemos ser parceiros daqueles que sustentam uma floresta”.
As fotos capturam com sensibilidade a vibrante cultura do povo Karajá durante o ritual Hetohoky, realizado na aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, Tocantins por Emerson Silva
O CUPUAÇU É INVENÇÃO DE ANTIGOS POVOS AMAZÔNICOS
“como povos originários estão revolucionando a ciência com seus conhecimentos ancestrais
entre 5 e 8 mil anos atrás, o cupuaçu estava sendo desenvolvido na região do médio-alto Rio Negro. Fruta hoje muito apreciada na culinária amazônica, empregada nos mais variados doces – mousses, geléias, sorvetes – e em um similar do chocolate conhecido como cupulate, ela não surgiu da evolução natural da floresta: foi obra da mão humana. Os indígenas que viviam na região milhares de anos antes da colonização portuguesa empregaram técnicas de domesticação de plantas para criá-la.
Ainda pouco estudados, esses antigos experimentos agrícolas vêm ganhando a atenção de uma nova geração de cientistas de áreas variadas, da arqueologia à genética. Por tanto tempo ignorada, a herança biológica e tecnológica dos indígenas amazônidas está sendo desvelada. Na linha de frente dessa tendência, a equipe de pesquisadores do Instituto de Biociências (ib) da usp, liderada pelo biólogo Matheus Colli-Silva, de 28 anos, é a responsável pela descoberta das origens do cupuaçu. Os resultados da pesquisa foram publicados em novembro do ano passado na revista Communications Earth and Environment, com o título Domestication of the Amazonian fruit tree cupuaçu may have stretched over the past 8000 years (Domesticação da árvore frutífera amazônica do cupuaçu pode ter se estendido pelos últimos 8 mil anos).
Com uma composição multidisciplinar, abarcando biologia, agronomia, antropologia e arqueologia, a equipe de Colli-Silva – que também é pesquisador do Royal Botanic Gardens, em Londres – embrenhou-se em diferentes áreas florestais nos estados do Acre, Amazonas, Pará e Roraima. Auxiliado por mateiros – os guias locais da região amazônica –, foram em busca das florestas primárias, aquelas nas quais houve pouca ou nenhuma interferência humana. Constataram que nelas não se encontrava o cupuaçu.
“Quando nós adentramos as florestas primárias, nas trilhas da Amazônia, só encontrávamos uma espécie chamada de cupuí, que é conhecida pelos nativos e pelos mateiros como um tipo de cupuaçu, só que com o fruto menor”, diz
Colli-Silva à piauí. Esse fruto costuma ter entre 7 e 15 cm de comprimento, enquanto o cupuaçu mede de 10 a 25 cm.
Se o cupuaçu não nascia “naturalmente” em áreas de fraca interferência humana, era razoável supor que ele seria uma variante domesticada do cupuí, desenvolvida pelos antigos ocupantes da Amazônia. Para confirmar a hipótese, os pesquisadores extraíram e mapearam o DNA das duas plantas. A comparação dos genomas confirmou o que eles suspeitavam: “O cupuaçu não é uma espécie natural e, sim, artificial”, afirma Colli-Silva. Como muitas civilizações antigas, os pré-colombianos se valiam de técnicas elaboradas para cruzar os melhores espécimes vegetais, com a finalidade de obter frutas e grãos aprimorados – é o que Charles Darwin chamou de “seleção artificial”. Foi assim que, a partir do mirrado cupuí, eles desenvolveram o cupuaçu, fruta mais gorda.
A análise genética também permitiu datar o processo original de domesticação do cupuaçu em meados do perodo Holoceno, a época geológica iniciada há cerca de 11 mil anos e na qual vivemos ainda hoje. Uma segunda fase da domesticação se deu mais recentemente, nos últimos dois séculos, quando a fruta se popularizou e foi introduzida em outras regiões.
Antes da colonização, a Amazônia foi um centro de domesticação e modificação de espécies selvagens. O cupuaçu, sabemos agora, é mais um entre tantos outros frutos criados a partir de técnicas complexas de manejo e cultivo das plantas desenvolvidas pelos povos indígenas. “A mandioca, o bacuri e a castanha-do-pará são alguns exemplos de frutos que foram manipulados por eles”, diz Colli-Silva. Desenvolvidas há milhares de anos atrás, essas técnicas não comprometem a estrutura selvagem da floresta amazônica. O desmatamento só viria junto com a ocupação europeia.
No início deste século, a empresa japonesa Asahi Foods patenteou o uso e a propriedade dos nomes “cupuaçu” e “cupulate” para fins comerciais no Japão, na Europa e nos Estados Unidos. A apropriação indevida do nome da fruta levou o governo brasileiro, com o apoio de ONGs como a Amazonlink, a travar uma batalha judicial com a Asahi Foods. Houve até uma campanha para reivindicar os direitos legais sobre a fruta, com o slogan “O cupuaçu é nosso”. O Brasil ganhou a causa.
Não se sabia então que a fruta cujo nome a empresa japonesa pretendia transformar em marca foi uma criação original de antepassados dos indígenas da Amazônia. Essa descoberta científica confere novas dimensões à batalha jurídica. O cupuaçu, afinal, acumulava conhecimentos ancestrais ignorados pelos dois lados da disputa.
“Quando estudamos a origem de determinadas espécies, especialmente aquelas que possuem interesse e utilidade para os humanos, nós temos que ir além da biologia”, afirma. Ele espera que seu trabalho ajude na valorização “de uma vegetação, de um bioma e dos povos que viviam ali”. Muito antes da chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, os povos nativos já haviam realizado descobertas sobre a melhor forma de aproveitar e melhorar o que a floresta oferece.
“raízes profundas, soluções modernas: a ciência indígena que está mudando o mundo
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COLETA, LIMPEZA E MACERAÇÃO
Nesta etapa, o cipó e as folhas de chacrona são encontrados e coletados. Em seguida, são limpo para retirar quaisquer impurezas e resíduos. E enfim são trituradas para liberar os compostos ativos
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COZIMENTO
As plantas são cozidas e divididas em camadas, para intensificar a mistura entre os elementos. Essa mistura é cozinhada por horas ou dias, porém a média é por 12 horas
Uma explicação técnica e intuitiva sobre o chá
As experiências vivenciadas na cerimônia permanecem no consciente ou subconsciente por algumas semanas ou meses. Esse processo serve como reflexão para entender o que foi vivenciado na cerimônia e é muito utilizado como parte de processos terapêuticos
O Cipó, planta utilizada para a produção da ayahuasca
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Os efeitos do chá surgem entre 30 a 45 minutos após a ingestão. As reações podem variar, mas é comum haver alucinações, vômitos, náuseas ou diarreia. Músicas rítmicas ou suaves acompanham o processo, guiado pelo mestre de cerimônia
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Quem for ingerir o chá deve se preparar evitando carnes, laticínios, álcool e drogas nos dias anteriores. O mestre ou xamã guia o consumo e garante um ambiente calmo e seguro
Fonte: Agência Einstein
O QUE A ARQUEOASTRONOMIA NOS CONTA?
“estudar a astronomia indígena revela a diversidade dos saberes ancestrais
frequentemente, tendemos a julgar a cosmologia de outras civilizações através de nossos próprios conhecimentos, que são desenvolvidos predominantemente dentro de um sistema educacional ocidental. Esse conhecimento é muito formal, porque tende a ser suportado por documentos escritos, regras, regulamentos e infra-estrutura tecnológica. No entanto, a visão indígena do Universo e do cosmos deve ser considerada no contexto dos seus valores culturais e conhecimentos ambientais. Essa sabedoria local se refere às praticas e representações que são mantidas e desenvolvidas por povos com longo tempo de interação com o meio natural. O conjunto de entendimentos, interpretações e significados faz parte de uma complexidade cultural que envolve linguagem, sistemas de nomes e classificação, utilização de recursos naturais, rituais e espiritualidade. Compreender tudo isso nos leva à Arqueoastronomia, uma disciplina que une a arqueologia e a astronomia para investigar como diferentes culturas, incluindo povos indígenas, integravam o céu à vida cotidiana e espiritual. Esse estudo pesquisa como as diferentes culturas compreendem e utilizam fenômenos celestes em sua cultura, rituais construções arquitetônicas. Por meio da análise de vestígios deixados por essas civilizações, como ruínas de edificações, calendários, pinturas e mitologia, a Arqueoastronomia busca entender como os fenômenos astronômicos influenciavam o cotidiano dessas culturas. No Brasil, diversas etnias indígenas desenvolveram uma rica tradição astronômica, utilizando o céu como guia para suas atividades cotidianas e para compreender os ciclos naturais. Um exemplo marcante é o dos Tupinambás, que identificavam constelações como a do Homem Velho, associando-a a narrativas de transformação e perpetuação no cosmos. Essa constelação, visível em dezembro, marcava o início do período de chuvas no norte do Brasil, influenciando práticas de caça e agricultura. Mais do que isso, muitos povos viam o céu como um reflexo da Terra, e suas constelações representavam fenômenos naturais, animais e figuras mitológicas.
A constelação do Colibri, por exemplo, simboliza Nhanderu, o deus criador na mitologia tupi-guarani, revelando a forte interligação entre céu, terra e espiritualidade. Por todo o território brasileiro, há sítios arqueológicos com vestígios interpretados como astronômicos. Em 1612, o missionário francês Claude d’Abbeville passou quatro meses com os Tupinambá no Maranhão. Em um livro publicado em Paris, em 1614, ele discorreu sobre o extenso conhecimento astronômico dos indígenas daquela região, incluindo as fases da lua e sua influência nos ciclos da Terra. Na publicação, registrou o nome de cerca de 30 estrelas e constelações conhecidas pelos indígenas da ilha.
Constelação da Ema
Em relação à constelação da Ema, d’Abbeville relatou: “Os Tupinambá conhecem uma constelação denominada Iandutim, ou Avestruz Branca, formada de estrelas muito grandes e brilhantes, algumas das quais representam um bico. Dizem os maranhenses que ela procura devorar duas outras estrelas que lhes estão juntas e às quais denominam uirá-upiá”. Ele chamou de Avestruz Branca a constelação da Ema, no entanto, a avestruz não é uma ave brasileira.
Estudar a astronomia indígena, além de revelar as tecnologias e a complexidade dos saberes ancestrais também podem indicar o intercâmbio cultural entre etnias que ocupam as regiões do Brasil, quando percebemos conhecimentos, explicações e narrativas similares para explicar os fenômenos do céu.
NO BRASIL, O RECONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO DAS VOZES INDÍGENAS EMERGEM COMO RESISTÊNCIA E IDENTIDADE
“ A língua materna é parte essencial de uma etnia
ao contrário do que muitas pessoas possam acreditar, o Brasil não é monolíngue. De acordo com estimativa recente do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (indl), são falados em torno de 250 idiomas em todo o território nacional, sendo línguas afro-brasileiras, de comunidades de migração, línguas de sinais, línguas indígenas e o usual português. Este texto apresenta algumas das centenas de variedades linguísticas dos povos originários e que possuem características únicas e profundas raízes na cultura e identidade dessas culturas.
A língua materna é portadora de princípios, normas e saberes. Ela constitui parte essencial de uma etnia, especialmente em tradições e expressões orais. A língua frequentemente é utilizada como ferramenta para a transmissão do patrimônio cultural imaterial. A revitalização de línguas indígenas é o resgate da identidade de um povo.
. Multilinguismo: o que é isso?
O multilinguismo diz respeito a uma quantidade de línguas utilizadas por um indivíduo. Os povos indígenas convivem com diversas situações que os permitem – ou que os obrigam – compreender e falar diversos idiomas além de sua língua materna.
No norte do país, ao longo do rio Uaupés, os indígenas em suas relações cotidianas interagem através de diversos idiomas. Além de falarem sua família linguística materna (Tukano) também falam Nheengatu, Espanhol e idiomas das famílias Aruak e Maku.
Em contrapartida, existem pelo menos 86 etnias que já não possuem sua língua nativa. Esses grupos se localizam principalmente no Nordeste brasileiro e nos estados do Pará e de Rondônia. Neste último – conforme o linguista Hein van der Voort, pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi – mais de um terço das línguas indígenas possuem menos de 10 falantes.
Um idioma é considerado em risco de extinção quando falado por menos de mil pessoas, conforme os critérios internacionais. Nota-se, portanto, a situação de extrema vulnerabilidade que estão muitos dos idiomas brasileiros.
Inconsistência de dados
Entre 2010 e 2022, diversas fontes apontam a existência de 150 a 274 línguas indígenas no Brasil. Mas, por que existe essa variação? Em 2010, o Censo realizado pelo ibge apontou a existência de mais de 274 línguas indígenas faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes. Os números são bastante otimistas, visto que a grande maioria dos linguistas reconhece que, no Brasil, os idiomas indígenas vivos não ultrapassam a média de 180 variações.
O especialista Wilmar da Rocha D’Angelis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estima a existência de aproximadamente 150 a 160 idiomas diferentes no Brasil. O Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil (gtdl) atestou, em 2011, a existência de mais de 210 idiomas falados no Brasil e, dentre eles, 180 são indígenas. Esse grupo é constituído por representantes de diversos órgãos públicos como a Câmara dos Deputados e diversos Ministérios, além da sociedade civil e da unesco
Considerando as limitações inerentes aos procedimentos de pesquisa demográfica em um território tão extenso como o Brasil, a inconsistência das informações é, além de compreensível, bastante provável, especialmente quando se leva em conta que o território abriga realidades tão diversas. Por isso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge) é a principal fonte que utiliza-se para analisar esses dados, tendo em vista seu rigor científico e sua fé pública.
“revitalizar
indígenas é resgatar a identidade de um povo
Português: língua oficial desde quando?
O português, reconhecido como idioma oficial do Brasil, é cheio de influências que vão muito além da Europa. Ele foi moldado, palavra por palavra, por expressões e sons vindos das línguas indígenas, que estavam aqui muito antes da chegada dos colonizadores. Mesmo com toda a imposição cultural e linguística ao longo dos séculos, muitos desses termos sobreviveram – e hoje fazem parte do jeito brasileiro de falar e pensar. Você sabia?
Antes da chegada dos portugueses no Brasil, estima-se que havia uma população de mais de 5 milhões de pessoas que falavam entre 600 e 1.200 línguas diferentes. É o que afirmam as pesquisas de Aryon Rodrigues, etnolinguista paranaense que foi pioneiro nos conhecimentos a respeito das línguas indígenas da América do Sul. Até a metade do século xviii, a língua portuguesa era pouco compreendida pela maioria da população do Brasil – formada por indígenas, negros e mestiços. Os colonizadores e missionários recém-chegados precisavam aprender as línguas locais para se comunicar com aqueles que viviam aqui. Assim, antes do português, o tupi antigo tornou-se a língua franca da Colônia. Mais tarde o idioma se subdividiu em dois e ficou conhecido como “língua geral”. A língua geral paulista era falada pelos missionários jesuítas e pelos bandeirantes. Eles a levaram de São Paulo a outros estados como Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná. A língua geral amazônica ou Nheengatu – que significa “língua boa” – foi utilizada na ocupação da região da Amazônia, sendo que somente esta permanece viva entre diversas etnias que ainda habitam o Norte brasileiro. Ocorre que em 1758 o Marquês de Pombal decretou, desde Portugal, medidas decisivas a fim de restringir a influência da Igreja e controlar a atuação dos missionários na Colônia. Com isso, os missionários foram então expulsos do território brasileiro; tiveram seus bens confiscados e ficou proibida a utilização das línguas gerais. Foram impelidos o uso e o ensino obrigatórios da língua portuguesa, o que, consequentemente, acarretou a extinção da língua geral paulista.
Inventário da Diversidade Linguística
As políticas educacionais são essenciais para fortalecer o reconhecimento e valorização das línguas indígenas. A maior demanda dos grupos de falantes de línguas minoritárias é a busca por direito ao acesso de serviços públicos na sua língua materna, além da implementação de projetos de apoio à produção literária e de audiovisual, que favorecem a transmissão intergeracional dos saberes ancestrais.
Por meio do Decreto Nº 7.387, de 9 de dezembro de 2010, foi institucionalizado o Inventário Nacional da Diversidade Linguística, que estimula a ampliação do mapa da diversidade linguística brasileira Esse inventário constitui um instrumento de dupla finalidade ao fomentar a produção de conhecimento sobre as línguas. Reconhece os idiomas indígenas como patrimônio e referência cultural brasileira. Para que uma língua seja incluída no Inventário, é necessário reunir e apresentar uma documentação sobre seus usos, além de um diagnóstico sobre sua vitalidade.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (iphan) e o Ministério da Cultura já identificaram como Referência Cultural Brasileira sete línguas, dentre as quais seis são indígenas: Asurini e Guarani M’bya, pertencentes ao tronco Tupi, da família linguística Tupi-Guarani; Kalapalo, de família linguística Karib; Nahukuá; Matipu; Kuikuro.
Criado por Júlia Neres, o jogo sobre a cosmovisão
Guarani explora identidade, saúde mental e justiça territorial em uma experiência lúdica e divertida por Monise Berno fotos e ilustrações Julia Neres
ogos educativos têm se mostrado ferramentas pedagógicas eficazes na conscientização e no combate a preconceitos sobre diversos temas. Por meio de atividades lúdicas, é possível abordar questões complexas de maneira acessível, promovendo a reflexão e a empatia entre os participantes. Por exemplo, jogos de tabuleiro gratuitos disponíveis na web tratam das relações raciais de forma lúdica, contribuindo para a educação antirracista. Ao engajar os jogadores em narrativas e desafios, esses jogos facilitam a desconstrução de estereótipos e incentivam a adoção de perspectivas mais inclusivas.
Júlia Neres é educomunicadora, designer e artista em São Paulo. Atualmente, atua como comunicadora no O Corre. Em seu portfólio no Behance, Júlia se apresenta como uma designer gráfica com foco em educomunicação. Em suas redes sociais, ela compartilha reflexões sobre sua trajetória artística e profissional, destacando sua atuação como ilustradora e designer gráfica. Confira abaixo o processo e sua visão sobre a obra:
Monise Berno: Como foi o seu processo de pesquisa para a criação do jogo “Ñandereko”?
O jogo ‘Ñandereko’ surgiu como um desdobramento da minha pesquisa ‘Memória Enquanto Direito: Apagamento de lutas populares na Zona Sul, especificamente da terceira parte, que trata da demarcação de Terras Indígenas Guarani em Parelheiros. Durante essa investigação, percebi a dificuldade de encontrar informações sobre a memória indígena na época da ditadura militar, especialmente porque esse período coincide com o surgimento da educomunicação no Brasil, em um contexto de Guerra Fria e disputas narrativas.
No percurso, descobri os conceitos de Ñandereko e Djuruareko, e senti que precisava aprofundar essa investigação. Não me senti confortável em posicionar a educomunicação como a única ferramenta de emancipação para a cultura indígena, sobretudo por ser uma perspectiva externa, de djurua (não-indígena). A partir desse questionamento, senti a necessidade de aprofundar a investigação sobre a cosmovisão Guarani de um jeito que permitisse às pessoas se identificarem. O processo ganhou mais direcionamento quando visitei o Museo Histórico El Mensú, na Ciudad del Este, Paraguai. Lá, me deparei com um quadro sobre a simbologia Guarani Mbya, o que me levou a leituras em espanhol em que encontrei as Nove Grandes Virtudes Guarani, que se
tornaram a base do projeto. Essas virtudes são: o bom ser (tekó porã), a justiça (tekó jojá), as boas palavras (ñe’e porã), as palavras justas (ñe’e jojá), o amor recíproco (joyahú), a diligência e a disponibilidade (kyrey), a paz profunda (py’a guapy), a serenidade (tekó ñemboro’y) e um interior limpo e sem duplicidade (py’a poti).
Minha metodologia de popularização da ciência sempre parte da organização em estruturas visuais, com números, diagramas e categorias bem definidas. Foi a partir disso que percebi que as Nove Virtudes não apenas sintetizam aspectos fundamentais da filosofia Guarani, mas também funcionam como um excelente ponto de par tida para diálogos sobre identidade, pertencimento e modos de vida.
MB: Quais fontes e metodologias você utilizou para garantir a representatividade da cultura Guarani?
JN: Utilizei uma abordagem de pesquisa que combinou fontes diretas e diversas metodologias. Além da pesquisa documental e leituras em espanhol e português, busquei referências diretas em lideranças e produções indígenas. Fiz visitas a territórios indígenas, como a Tekoa Krukutu, na zona sul de São Paulo, e também realizei pesquisas em museus que possuem acervos sobre povos indígenas, como o Museo Histórico El Mensú, na Ciudad del Este (Paraguai), o Museu das Culturas Indígenas e o Museu das Favelas, buscando referências visuais, históricas e narrativas sobre a cosmovisão guarani Além disso, aprofundei-me em leituras de livros e artigos acadêmicos que abordam a história e a luta dos Guarani, assisti a documentários, ouvi podcasts e músicas e participei de eventos e shows que valorizam a cultura indígena. Mas, para além da pesquisa formal, um ponto fundamental desse processo foi o diálogo e a troca com minha família, amigos e colegas sobre nossa ancestralidade, sobre o movimento de retomada e sobre como a auto identificação racial é um processo complexo para afroindígenas e indígenas em contexto urbano e periférico.
“quero que eles se vejam nas histórias e nos valores que o jogo compartilha
Você enfrentou desafios para integrar elementos culturais tradicionais em uma plataforma de jogo moderna?
Sim, o maior desafio foi traduzir a complexidade e a riqueza do conteúdo cultural Guarani para uma mecânica de jogo simples, sem reduzir seu significado ou profundidade. Encontrar um equilíbrio entre simplicidade e profundidade foi uma tarefa muito difícil, especialmente considerando que o jogo aborda conceitos profundos como virtudes, sentimentos e afetividades que estão muito ligados à cosmovisão Guarani. Por exemplo, o termo “piá”, que em algumas regiões do Sul do Brasil é usado como gíria para chamar alguém, tem um significado profundo na língua Guarani. Ele vem de “py’a”, que significa estômago, mas também pode ser entendido como “coração”.
No Guarani, o estômago é considerado o centro das emoções, e isso se reflete em expressões como “py’a yku” (estômago derretido), que simboliza ternura, ou “py’a eta”, que expressa a sobrecarga de preocupações. Essas nuances são essenciais para a compreensão da cosmovisão Guarani e, ao mesmo tempo, acessíveis para quem joga, criando um vínculo emocional com o conteúdo. Você pensa em você e na sua história quando você pensa em como digere seus sentimentos.
Além disso, os temas tratados, como saúde mental, violência contra povos indígenas e a morte, são intensos e tentar abordá-los de maneira acessível, sem que se tornem superficiais ou muito densa, exigiu um esforço de sensibilização constante. Durante a pesquisa, fui confrontada com imagens e relatos de violência contra povos indígenas, como a fotografia de extremamente explícita do rosto de Nhandesy Estela Vera após seu assassinato. Estela Vera tinha características físicas muito semelhantes às de minha avó materna Brasília Neres Fonseca da Costa. Minha avó segue viva e presente, enquanto Estela Vera segue viva apenas em memória. Especialmente ao refletirmos sobre os anciãos e anciãs nas cartas do jogo, que, assim como Estela Vera, representaram tanto a resistência quanto a perda. Algumas dessas figuras viveram quase 100 anos, enquanto outras foram mortas antes disso, o que precisa ser considerado ao discutirmos as questões de resistência, memória e luta.
Outra questão importante, é que me foi partilhado durante o desenvolvimento do projeto sobre como ele estava afetando e atravessando algumas pessoas. Uma delas, era um artista, um homem indígena periférico que me disse que esse conteúdo estava o ajudando em seu processo de luto de um amigo que tinha se suicidado recentemente e aprender sobre ñandereko estava o ajudando em seu processo artístico e para permanecer no coletivo atuando com eventos de celebração a cultura indígena e nordestina nas periferias.
O jogo também toca em saúde mental, pois a violação de direitos leva ao “vy’ae’y” – a ausência da vontade de viver. Em relação ao suicídio indígena, percebo uma prática no jornalismo e no movimento indígena de tratar essas mortes como assassinatos, independentemente da forma como aconteceram.
Isso porque, no contexto de necropolítica e genocídio, qualquer morte violenta que atinja um povo indígena deve ser tratada como um ato de violência política. Acho que o maior desafio é que o trabalho da educomunicação traumatiza às vezes.
MB: Quais foram as principais inspirações que influenciaram o desenvolvimento do jogo?
JN: O desenvolvimento do jogo foi influenciado por diferentes re ferências teóricas e estéticas, sempre com o compromisso de evitar representações caricatas ou reducionistas da cultura Guarani. Uma das principais bases conceituais veio do livro Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil, do Instituto Peregum, que ganhei no curso “Como mitigar desinformação ambiental em contexto urbano e periférico?” da ÉNois Conteúdo. No capítulo ‘Ecocídio, racismo, patriarcalismo e mudanças climáticas’, o texto apresenta a hegemonia estruturada em três pilares: ecocídio, etnocídio e epistemicídio. O jogo foi desenvolvido com foco no epistemicídio da cosmovisão Guarani, ou seja, na invisibilização e apagamento dos seus saberes.
Durante a disciplina ‘ccaa320 – Educomunicação Socioambiental’, ministrada pela professora Thaís Brianezi na eca/usp, fui desafiada a criar materiais paradidáticos voltados para o enfrentamento do racismo ambiental, com a proposta de disponibilizá-los online.
“ a cultura hip-hop como um todo é estratégia de retomada do território
Esse exercício me fez perceber um aspecto que eu não havia considerado antes: o potencial do conteúdo para ser utilizado de forma interativa, o que o tornava ainda mais acessível e engajador. Além disso, tive a chance de testar o material com professoras e professores de escolas públicas, o que me permitiu observar, de forma prática, como o conteúdo poderia ser utilizado em sala de aula, proporcionando uma forma criativa e pedagógica de abordar esse tema.
A estética visual foi pensada para se aproximar do pixo. Não queria algo caricato que pudesse ser desrespeitoso, mantendo uma identidade visual conectada à cultura periférica sem cair em estereótipos. A cultura hip-hop como um todo é estratégia de retomada do território, e queria que ela se conectasse com a cultura indígena, porque é assim que é na vida real. A periferia é a aldeia e o quilombo. O design visual do projeto como um todo, incluindo as artes digitais, gráficas e o grafite feito na revitalização do dce/ , promovido pelo Coletivo uspixo e outros parceiros, tem como objetivo usar a linguagem do hip-hop para tratar das questões de identidade, território e memória
Dado que o jogo contém palavras em língua Guarani e é composto por diversas cartas, a dinâmica de jogo precisaria ser simples para que as partidas não se tornassem muito longas e o tempo dedicado à leitura dos textos da cartilha, bem como às explicações sobre as virtudes ou histórias das anciãs/anciãos, não fosse excessivo.
Por isso, optei pela mecânica clássica do jogo da memória, com uma estética minimalista no conteúdo explicativo, permitindo que as artes remetessem ao pixo, criando um ótimo equilíbrio entre simplicidade e profundidade no jogo.
Como você vê o papel dos jogos educativos na valorização, preservação e transmissão das culturas indígenas no Brasil?
Vejo os jogos educativos como uma ferramenta extremamente potente para a reconstrução da memória coletiva e como um instrumento fundamental na luta contra o epistemicídio.
Jogos como Ñandereko não só apresentam e preservam conceitos culturais Guarani, mas também criam um espaço para que as pessoas possam se reconectar com suas origens, refletir sobre identidade e pertencimento, e compartilhar suas próprias histórias.Durante as experiências com o jogo, observei como participantes, ao entrarem em contato com a cultura guarani, começaram a revisitar suas próprias raízes, questionando e resgatando memórias familiares e
MB: Além de um jogo da memória, o que jogadores vão encontrar?
JN: O jogo vem acompanhado de uma cartilha que amplia a expe riência. Além das instruções, ela apresenta um roteiro de bate-papo, dinâmicas e informações sobre as lideranças homenageadas.
A proposta é que o jogo vá além de um simples passatempo, funcionando como um grande ponto de partida para reflexões coletivas sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, suas lutas históricas e contemporâneas e como isso se conecta com questões mais amplas de sociedade como racismo ambiental, justiça territorial, direitos humanos e também saúde mental.
Que reflexões você espera despertar com o jogo?
Com Ñandereko, o que realmente espero despertar nos jogadores é reconhecimento de sua própria identidade, independentemente da etnia, e uma reflexão profunda sobre a ancestralidade. Quero que eles se vejam nas histórias e nos valores que o jogo compartilha, e que, ao se conectar com essas narrativas, possam refletir sobre si mesmos, sobre o próximo e sobre o mundo à sua volta. O jogo busca trazer à tona o conceito de “bem viver”, equilíbrio e espiritualidade, valores universais presentes na cosmovisão indígena, mas que podem ser aplicados de forma ampla na nossa vida cotidiana. Memória indígena não é só sobre o passado, e sim do que é contemporâneo e como a história se faz presente em nós.
Catando piolhos, contando histórias
Em Catando piolhos, contando história, o autor, Daniel Munduruku, fala das tradições de seu povo transmitidas pela narrativa oral; sobretudo nos momentos felizes quando, sentado na aldeia, no colo dos mais velhos ou ao pé da fogueira, ouvia histórias enquanto eles catavam piolhos em seus cabelos e lhe faziam carinhos na cabeça. A obra conta oito histórias: algumas são mitos, outras são lendas dos espíritos da floresta e outras são lições de vida ou narrativas de memórias de diversas brincadeiras.
R$ 53,50
Ideias para adiar o fim do mundo
Nesta obra, Ailton Krenak, um dos maiores líderes do movimento indígena no Brasil, nos convida a repensar os rumos do antropocentrismo, questionando a ideia de humanidade como algo separado da natureza e do ser humano como centro do universo. O livro é uma reflexão sobre nosso modo de viver atual.
R$ 36,29
A queda do céu
A Queda do Céu é um testemunho poderoso do xamã Yanomami Davi Kopenawa , escrito em colaboração com o antropólogo francês Bruce Albert. O livro entrelaça autobiografia, cosmologia xamânica e uma crítica contundente à destruição da Amazônia. Com base em mais de trinta anos de diálogo entre os autores, a obra denuncia o impacto devastador do contato com o homem branco desde os anos 1960, incluindo epidemias, violência e desmatamento.
R$ 44,90
As serpentes que roubaram a noite
Escrito por Daniel Munduruku e ilustrado pelas crian ças da aldeia Katõ, As serpentes que roubaram a noite e outros mitos é um livro feito de mitos contados pelos mais velhos da aldeia e que são contadas e recontadas às crianças indígenas como forma de despertar nelas o amor pela própria história e pelas lutas de seu povo.
A obra faz parte da “Coleção Memórias Ancestrais
editora Peirópolis
R$ 75,00
Coração na aldeia, pés no mundo
Coração na aldeia é um cordel escrito por bajara , a primeira mulher indígena no Brasil a publicar um livro em formato de cordel, no qual a autora narra sua história em três momentos: primeiro retrata a questão identitária como mulher indígena, depois apresenta a sua jornada nas grandes cidades e a busca pelo reconhecimento como mulher e, por fim, traz a luta contra a violência e o seu entendimento como LGBTQIA+.
R$ 55,00
Terra – Antologia afro-indígena
Para adiar o fim do mundo, é fundamental resgatar nos sa conexão com a Terra e cultivá-la em uma relação de respeito mútuo. Esse é o convite do livro logia Afro-Indígena , uma coedição da revista e da editora Ubu . A obra reflete a antologia que abor da a exploração e a destruição sistemática da nature za – uma realidade alarmante no Brasil –, os limites do agronegócio e o preconceito contra minorias, não ape nas étnicas, e suas formas de se relacionar com a terra. Esse chamado ecoa para todos os cidadãos da aldeia global, que já enfrentam os impactos das mudanças climáticas, reforçando a urgência de repensar nossas práticas.
R$ 97,00
O CONTO CONVIDA À REFLEXÃO SOBRE OS LIMITES ENTRE
SONHO E REALIDADE, JUVENTUDE E ENVELHECIMENTO
“somente um ser da floresta ficou tomando conta do corpo da velha, a cobra
em tempos muito antigos, contam os avós Nambikwara, havia uma mulher muito velha. Alguns até diziam que ela chegava a ter mais de 165 anos de idade. Por ser assim tão velha, todo mundo havia se afastado dela. Dessa forma, a mulher vivia sozinha numa casa que ela mesma construiu usando a força de seus braços.
Um dia, a mulher dormiu na sua sixsá (casa)e teve um sonho que a encheu de alegria e de vontade de viver: sonhou que havia voltado a ser nova. Em seu sonho ela estava lindíssima, toda enfeitada com colares, pulseiras, brincos; estava pintada com as cores do urucum e do jenipapo; até mesmo um cocar ela usava.
Apenas uma coisa a deixava um pouco triste: ela não conseguia encontrar penas para fazer cocar.
Quando ela acordou, continuou achando que o sonho tinha sido uma importante mensagem que havia recebido do mundo dos espíritos e que ela podia voltar novamente a virar mocinha. Mas tinha o problema das penas. Como encontrá-las?
Foi então que ela descobriu que um rapaz de uma outra aldeia viria passar a noite em sua casa. Imaginou, assim, que seus problemas haviam sido resolvidos: ela pediria ao rapaz que fosse encontrar penas do pássaro tucano para si. E assim o fez.
Aquele rapaz, que também não gostava dela e sentia um certo receio da velha, não quis contrariá-la e foi para a mata atrás do pássaro.
Durante dois dias o jovem procurou, procurou, procurou, até encontrar o que lhe havia sido pedido. Flechou a ave e retornou à aldeia. A mulher, quando viu o moço chegando, deu pulos de alegria e ficou muito feliz. Ficou tão emocionada e contente que fez um monte de enfeites. Colocou-os todos e pintou-se com as tintas da floresta e foi ao rio banhar-se. Quando saiu dali tirou sua pele velha como se fosse roupa! Voltou a ter apenas catorze anos de idade! Estava nova de novo! E muito bonita, também. Estava tão bonita e elegante que pensou: "Agora posso até arrumar alguém para namorar! Nova desse jeito ninguém vai mais me recusar!"
Pensando assim, saiu do rio e pendurou sua pele antiga sobre o galho de uma árvore. Estava tão cheia de si, orgulhosa com sua nova condição, que nem se deu conta de um grupo de meninos que por ela passou em direção ao rio. Quando lembrou, gritou de onde estava: — Olhem aqui, meninos. Não vão mexer na roupa que eu deixei pendurada no galho da árvore. Pode ser muito perigosa para vocês! As crianças, porém, não deram a mínima para o que aquela menina havia dito e, ao chegarem à beira do rio, viram aquela estranha e diferente peça pendurada. Não tiveram dúvidas: pensando que era algum bicho ou algo assim, passaram a flechar toda a pele da velha. Eles flechavam e riam a valer. Fizeram tanto furo na pele que quase não sobrou nada.
A menina, que era a velha remoçada, desconfiou de tanta zombaria e foi ver o que estava acontecendo. Quando lá chegou, ficou desesperada com a desgraça que os meninos haviam feito em sua pele. Seu desespero foi tamanho que jurou a todos eles:
— Vocês fizeram algo muito ruim para mim. Por causa disso, todos vocês irão ficar velhinhos como eu e também irão morrer!
E assim aconteceu. A mulher, sem mais chance de permanecer jovem, vestiu a pele toda furada e também ela morreu. Vendo o que havia acontecido, ninguém quis ficar perto dela. Todos fugiram. Somente um ser da floresta ficou tomando conta do corpo da velha. Este ser foi a cobra, que por seu gesto bondoso, recebeu o dom de mudar de pele sempre que as estações do ano mudam.
COM UM MODO DE VIVER INTEGRADO À NATUREZA, SABERES ANCESTRAIS INDÍGENAS SÃO A CHAVE PARA PRESERVAR A VIDA
“futuro voltado ao passado é um caminho que tem sido uma forma de preservação da vida
em a terra dos mil povos, Kaká Werá conta que “índio” foi a palavra usada para definir todos que já estavam no território que passaria a ser chamado de Brasil. O nome foi dado pelos colonizadores, mas o espírito que identificava esses povos já estava presente “espalhado em centenas de tons”.
O autor explica o que significa ter esse espírito: uma relação muito íntima com a natureza. “A partir dela, (o ser humano) elaborou tecnologias, teologias, cosmologias e sociedades, que nasceram e se desenvolveram de experiências, vivências e interações com a floresta, o cerrado, os rios, as montanhas e as respectivas vidas dos reinos animal, mineral e vegetal”, descreve.
Como a natureza é diversa, e plural, também, as relações desses humanos com ela e isso, explica, Werá, “provocou o florescimento de muitas etnias, muitas variedades de línguas, muitos costumes.” O escritor apresenta, assim, a diversidade e um pouco da história dos povos indígenas do Brasil.
Uma diversidade que não se mede, se aprecia Hoje, segundo o censo de 2022, o Brasil abriga quase 1,7 milhão de pessoas autodeterminadas como indígenas, que se dividem em 266 povos e falam cerca de 150 línguas. Os números, entretanto, não conseguem exprimir, de fato, a dimensão dessa diversidade, nem a importância desses povos para a terra chamada Brasil.
Narubia Werreria, secretária dos povos indígenas e tradicionais do Tocantins, explica que não é possível dimensionar a pluralidade dos povos indígenas, mas que a riqueza de modos de ser possibilita a vida. “Há uma diversidade de culturas, experiências, línguas, cantos, danças, cosmovisões que estão aqui para a gente contemplar, aprender, apreciar, valorizar e conhecer porque a vida é essa diversidade. Só existe vida na diversidade.”
“Essa diversidade promove mais possibilidades de enxergar o mundo, porque ninguém tem a visão completa do todo, mas é contemplando que o outro vê e que deixamos escapar que conseguimos ter uma amplitude de ideias.”
A vida está em tudo
Entre as experiências únicas, existe a da ativista Sonia Ara Mirim. Ela carrega no sangue e nas práticas a cultura de dois povos, os Xurucu, de Pernambuco, e os Guarani, de São Paulo.
Quando sua mãe tinha cinco anos, ela e a família, dos Xurucu, migraram para o sudeste devido a conflitos de terra e foi lá que Sonia nasceu e cresceu ouvindo sobre o seu povo e suas origens. Mas há mais de 30 anos, ela foi reconhecida como indígena pelos Guarani e aprendeu sua cultura e idioma.
Com eles, entendeu também que a “vida está em tudo”, filosofia de uma estreita relação com a natureza. Sonia conta que, por estarem vivas, as árvores sangram e choram quando são cortadas ou desmatadas. “Isso mexe muito com a gente porque sabemos que ali tem um espírito vivo. Quando corta, maltrata, machuca, elas sentem.”
Entretanto, não se pode dizer que todos tenham a mesma sensibilidade com o meio ambiente que tem Sonia e outros indígenas. Ela atribui isso ao “pensamento do colonizador” que define como as ideias que levaram à exploração extrema dos territórios no passado e no presente. Além disso, é essa ideologia que provoca o distanciamento das pessoas da natureza, e faz com que não a considerem importante.
Para a Narubia, é sobre um sistema de pensamento. Visto que para ela, ele tenta extinguir a diversidade e impor uma forma única de ser, crer e ritualizar. “Estamos resistindo a um abismo para o qual estamos indo.”
A identidade indígena do Brasil
“haverá um momento em que a humanidade terá que fazer o caminho de volta
É nesse tipo de pensamento também que se tem a origem do apagamento dos povos indígenas da história do país, ignorando a identidade indígena do Brasil. Além disso, não reconhecer esses aspectos da identidade indígena também impede as conexões e acesso aos saberes que essas culturas guardam.
“Enquanto, nós brasileiros, não valorizarmos as nossas potencialidades indígenas, a gente não vai poder ampliar toda essa força que nós temos com relação às nossas florestas, às frutas medicinais, aos frutos nativos, às ervas, ao nosso conhecimento sobre a integração e comunidade que nós podemos trazer para a sociedade”, explica Narubia. E reconhecer esses povos, passa pelo reconhecimento de sua cultura. “Não se pode reconhecer sem respeitar as diversidades, as culturas, as formas de se organizar, as formas de viver, de sobreviver”, explica Clécia Pitaguary, líder do povo Pitaguary, do Ceará.
Além disso, para ela, isso é um reconhecimento também das violências sofridas ao longo da história. “É uma dívida que o Brasil tem conosco, é preciso reconhecer que nós somos povos indígenas, que nós somos os povos originários dessa terra, desse país. Precisa reconhecer toda a violência, todo o dano causado à nossa cultura e ao nosso povo”, conclui.
Narubia explica que ter esse entendimento sobre o passado ajuda a elucidar o presente e o futuro. “Se a gente não se valoriza, enquanto povo, enquanto identidade, e não sabe a nossa história, a gente não entende o contexto que a gente vive e tão pouco pode ter um uma projeção do futuro que nós queremos”, declara.
Em crise climática, o futuro é ancestral Em um momento em que a crise climática se torna mais aguda, um futuro voltado para o passado é um caminho que tem sido apontado como forma de preservação da vida. Isso porque o resgate dos modos de vida originários é uma forma de harmonizar a relação dos homens com a natureza, é o que aponta o filósofo Ailton Krenak em seu livro Futuro ancestral.
Nisso, os saberes dos indígenas são a chave. “Sem os povos indígenas dentro desse espaço, os biomas não resistirão porque somos os protetores das florestas”, explica Sonia.
Do outro lado do Brasil, Clécia faz coro à importância dos saberes indígenas para a preservação de todos os tipos de vida. “Nós temos o conhecimento de como filtrar e tratar a água, de como se alimentar. Nós não precisamos fazer compras no supermercado, não precisamos de suplemento”, inicia.
“É justamente essa relação entre nós, indígenas, e a natureza que faz com que a gente possa transformar o que nós temos em alimento, em remédio, em água limpa para beber”, explica. Ela acrescenta que essa integração com a natureza permite ter o que é necessário para viver sem degradar ou inviabilizar a natureza.
Para Narubia, o futuro depende de respeitar a terra e olhar para o conhecimento ancestral. “Os nossos anciãos são as nossas bibliotecas vivas, eles carregaram as nossas raízes de sabedoria para que nós chegássemos aqui.” inicia. “São eles que mantêm a sabedoria que harmoniza toda a vida na Terra e se quisermos ter um futuro vamos ter que olhar o passado e resistir a esse pensamento colonizador."
às mudanças climáticas.
A ndc foi anunciada na plenária "A Resposta Somos Nós: Povos Indígenas rumo à cop30", com a presença do embaixador André Corrêa do Lago, presidente da cop30, as ministras Sonia Guajajara, do Ministério dos Povos Indígenas (mpi), e Marina Silva, 2/3 do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (mma) e a deputada federal Célia Xakriabá. As ações fazem parte da campanha global "A Resposta Somos Nós", do movimento indígena, que afirma que os povos indígenas e a demarcação das terras indígenas são essenciais no combate à emergência climática. O documento foi elaborado a partir de várias propostas das organizações regionais de base da apib, a ndc Indígena reforça que o debate climático precisa considerar a equidade, a autodeterminação e a participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais na implementação da ndc brasileira.
A ndc apresentada pelo movimento indígena, que neste ano em sua mobilização contou com a presença de povos indígenas de outros países, mostrando a união dos povos do mundo no combate a essa crise planetária, tem seis eixos temáticos, sendo: Mitigação, que defende o reconhecimento e a proteção dos direitos territoriais dos povos como política essencial de mitigação climática; Adaptação, que destaca a importância
ilustração Gustavo Caboco
de proteger saberes ancestrais, como o manejo do fogo e a medicina indígena; Financiamento, que propõe revisar mecanismos existentes e criar instrumentos específicos para o financiamento direto das organizações indígenas; Transferência de tecnologia , que sugere integrar conhecimentos tradicionais à ciência moderna nas estratégias climáticas; Capacitação, com foco em formação técnica e acesso a informações climáticas em linguagem acessível; Justiça e ambição, que reconhece a dívida histórica com os povos indígenas e tradicionais; Co-benefícios , que relaciona a demarcação de terras às ações contra a mudança do clima, fortalecendo os compromissos internacionais do Brasil.
Na ocasião, foi anunciada pelo mpi a criação de uma Comissão Internacional Indígena para a cop30, que será comandada pela ministra Sonia Guajajara e composta por organizações indígenas da Amazônia e do Brasil, e o Fórum Permanente da onu sobre Assuntos Indígenas (unpfii). Por uma cop que reconheça a sabedoria indígena!
fície, somente no planeta azul. Água que brota das fontes e abraça as águas que descem do céu em pura simbiose criadora de vida alimentando o organismo Terra, essa sim, nave-mãe de incontáveis organismos vivos: só aqui. Nossos biólogos contemporâneos estão se debruçando no horizonte tomados pela seguinte pergunta: quanto planeta ainda temos? Pois a biologia é uma ciência da vida, que não poderia seguir refém do pensamento utilitário (que andou sequestrando o campo das ciências). Ela ocupa-se do organismo vivo, que nós humanos também integramos dentro da teia da vida. Menos de três décadas nos levaram à marca de 1,5 ºC sobre o limite do clima viável no planeta. Lembremos que, até a década de 1990, ou seja, anteontem, ainda havia a possibilidade de manobrar as nossas escolhas, para contar com o clima necessário à manutenção da diversidade biológica dessa nave-mãe, mas perdemos a chance. Perdemos a ocasião de trabalhar a favor da teia da vida, com as condições necessárias para restaurar os ecossistemas danificados. Com a perda da diversidade e da base resiliente dos muitos organismos da Gaia, chegamos rápido à condição de mitigação de danos. Essa é a nossa realidade global hoje, alcançando todos os continentes e tornando a base natural de reprodução da vida insustentável. Sustentabilidade tornou-se um lema corporativo, descolado da condição material necessária
ilustração Gustavo Caboco
à produção da vida em abundância. É fato que a base de resiliência dos sistemas da vida para todos os seres mudou, mesmo que o animal sapiens insista em progredir em sua fúria cartesiana, prospectando futuros.
Como menciona o mestre Oscar Niemeyer, arquiteto brasileiro renomado: “A força da inteligência do ser humano, que nasceu animal, outro animal qualquer, hoje pensa e, daqui a pouco, está andando entre as estrelas, está conversando com os outros seres que estão por essas galáxias. Sou otimista que o mundo pode melhorar, mas o ser humano, não.” O mestre que fez da vida um labor incessante de criar mundos possíveis nada esperava desse animal que teve origem com todos os outros e que, dentro do ciclo evolutivo, “deu de pensar”. Esse humano, que se divorciou da teia da sua vida, precisa escapar da ilusão do ego narcisista e experimentar, no dizer do poeta Carlos Drummond de Andrade, “a viagem de si a si mesmo” ao “pôr o pé no chão do seu coração”. Somos, enfim, bicho pequeno da Terra.
nada menos, os anciões, portadores da ancestralidade. Eles carregam consigo histórias, ensinamentos, crenças e a sabedoria de quem viveu em uma época em que a palavra valia mais do que o dinheiro. Esses ensinamentos, transmitidos de geração em geração, frequentemente se manifestam na arte indígena. A arte indígena é feita de memória: essa memória ancestral está presente em cada peça, canto, dança e em todas as formas de expressão artística na terra Potiguara. Entre essas expressões, destaca-se o artesanato, como a produção de brincos, colares, pulseiras e adornos. Esses objetos, além de sua beleza, carregam narrativas, histórias de luta e conexões com a espiritualidade. A pintura corporal, por exemplo, representa muito mais do que um enfeite para a pele. Ela é uma forma de comunicação com a ancestralidade, e cada grafismo possui um simbolismo que vai da coletividade à espiritualidade. Nos últimos anos, os movimentos culturais do povo Potiguara têm lutado constantemente por maior visibilidade e oportunidades de valorização de sua arte. O povo Potiguara tem se fortalecido e conquistado cada vez mais visibilidade em suas manifestações artísticas, seja por meio de feiras, exposições ou festivais indígenas. Observa-se também a crescente presença de jovens indígenas nesses espaços, o que demonstra a renovação da memória e da
ilustração Gustavo Caboco
arte Potiguara. Um exemplo dessa renovação é o resgate das nossas memória, como povo, e do uso do cocar de palha de carnaúba, que por muito tempo foi-se esquecido na cultura Potiguara.
A memória étnica também é direito humano: o Toré Potiguara como símbolo de (re)existência Um jovem indígena chamado Aguynaiary Pontes Pessoa Gomes, carinhosamente conhecido como “Guiga”, trouxe de volta esse saber que estava perdido. Atualmente, essa herança está presente nos eventos e, principalmente, nos rituais do Toré Potiguara. Sabe-se que essa tradição será transmitida às próximas gerações, com cada criança usando o cocar com orgulho.
Valorizar a arte indígena é um ato de resistência e reparação histórica. Cada cidadão tem o dever de lutar por políticas públicas que protejam essas memórias é essencial para garantir que essas vozes continuem, reafirmando sua importância na cultura brasileira.