Revista Raimunda 13+1

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apresentacao A Raimunda é uma revista anárquica, o que significa que ela não visa abrir espaço para opressão e que ela tende a publicar obras não-opressivas. Contudo, determinar um limiar entre o opressivo e o não-opressivo é um mistério: não cabe a opressor algum dizer se o outro está ou não oprimido. Sendo assim, como editar/integrar uma publicação e ter a certeza de que o material nela veiculado não oprime algum leitor? Impossível ter certeza. Por isso reconhecer que se trata de uma tentativa e considerar a publicação de materiais não-opressivos como uma t e n d ê n c i a d a r e v i s t a : s e r í a m o s o p r e s s ivo s s e defendêssemos que a Raimunda é absolutamente anárquica, que ela é totalmente não-opressiva. Não nos cabe tal feito, mas nos cabe a tentativa de fazer uma revista não-opressiva. Essa tentativa envolve, através da arte, expor e lutar contra o que oprime. Esse é o objetivo e a motivação da revista Raimunda. A principal característica desta revista não é a sua cara, tampouco a sua bunda ou o seu vasto mundo, Raimundo, Raimunda, pouco importa. Interessa mais a sua abertura, o espaço livre-anárquico que ela oferece à pessoa artista, qualquer esta seja e o que quer que isto seja. Ela não tem dona nem é dona. A revista quer obra, quem faz obra, quem torna experiência obra. A Raimunda é uma qualquer, ela não tem norma não conversável, não é fixa, é elástica, cambiável, aberta às selvagerias da vida. Recebe sem julgar, circula, divulga, sai berrando tudo o que cabe dentro dela. Se tem um limite é o seu espaço cada vez mais largo. A revista Raimunda é toda dada. A Raimunda prioriza a produção artística, destacando a obra e o obrar artístico. Com periodicidade semestral, ela objetiva compartilhar e divulgar material feito pelas pessoas integ rantes, bem como ag reg ar novas companheiras para produções e prosas afins. Editores: Bruno Nepomuceno Clayton Marinho Diego Guimarães Jéssica Barbosa

ano 9 | número 13+1 | 2021 ISSN 2358-7342 [virtual] ISSN 2358-7350 [impressa]


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sumario rarefeito andré vinícius

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teatro da saudade clayton marinho

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sem título do primeiro plano fotográfico deivid junio

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meiuca diego guimarães

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pôr do sol, lembranças, Renoir ísis zisels

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escuridão vermes joyce nascimento

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saudade, só para humanos ana karênina trindade de araújo

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conto de alegria e esperança para Jonathan monólogo de um pássaro preso paulo dourian

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topografia do desencanto thayse diaz

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já não falamos em saudades jéssica barbosa

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hgf volney

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receita de sonhos bruno neppo

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Sem título 1 Na história 5 Na história 2 Sem título 5 Sem título 2 Na história 4 @lambehaxa

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rarefeito andré vinícius Busco a poesia exilada em terras estranhas. Ermos, distâncias que mau se pode suportar. Sobrevivo da alegria sutil de dar cada dia um novo passo, de caminhar devagar e mesmo assim se perder nessas ruas desconhecidas, e nem por isso me abater pelo desespero, apenas dobrar a esquina sem reconhecer nenhum rosto, nenhum lugar. Tudo me é estranho, dentro e fora de mim, se é que já houve “fora” e “dentro”. Já me correram lágrimas sem que jamais tenha estado triste no “íntimo pessoal”. A situação é triste, eu não sou uma pessoa triste, apesar do meu semblante estranho. Ainda posso rir comigo mesmo dos fragmentos bobos de algo imemorial que arrasta tantas memórias, e dias e presenças afáveis que ainda aquecem o meu coração quando mergulho na minha escuridão mais funda que a rasa tristeza que me arrancava lágrimas suplicantes. Sou um ser abissal! Já vi dores além de mim, terríveis e dilacerantes. Já vi coisas bonitas, já ouvi palavras bonitas e conheci pessoas bonitas igualmente terríveis e dilacerantes. Já me perdi e desconheci mesmo em rostos que podia reconhecer. A vida sempre leva uma ferida aberta, a existência está sempre equilibrista e bêbada na beira do abismo. Cada paixão é um silvo que atrai. Em tudo vejo penumbras e é vagarosamente que posso sentir e perceber sem ser tragado pela força umbralina dos meus monstros. Continuo buscando. O fracasso jamais me abalou. Há idas e vindas, apesar das “idas” longas. Sem partilhar o ar rarificam os encontros. Deito no silêncio de uma incertitude que aparece imensa, como se eu fosse o núcleo do desconhecido. Como andarão os amigos? Como eu estou? É estranho o despertar porque o sol ainda não “nasce” de fato. Lavo o rosto e mesmo sabendo o passo seguinte me sinto perdido: nada me pertence, não pertenço a nada. Distribuo simpatias tímidas como quem não quer perseguidores, todo mundo é estranho porque não pareço com o “todomundo”. Nunca se tratou de “parecer”, de “assemelhar”, mas encontrar a penumbra onde a estranheza se desdobra em palavra e afeto, onde o que inquieta não ameaça a integridade e o direito de existir singular. Quero me embriagar de nostalgia, meu corpo é vencido, meu coração permanece escuso. Estou frio, mas não “calculista”. Findo em ressaca e não posso me dar a esse luxo. É que a nostalgia faz a saudade se embebedar de si mesma e por uma insuperável distância fazer tudo emergir de dentro e si como imagens desvanecentes do inevitável fracassar do tempo, do amor, da impermanência de tudo. Nada é “perene”, por mais que 4


“tudo esteja em tudo” e o fracasso sempre acompanhe todo êxito como que para lhe esmagar a soberba. Se ainda assim posso rir, lembrar, amar o que ficou distante é porque viver me exige essa audácia!

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@lambehaxa


o teatro da saudade clayton marinho cena I um grão de poeira rola descontroladamente, a revelia de qualquer vontade, levado unicamente pela brisa que, por mais suave que seja, pode ser suficientemente cruel com esses minúsculos fragmentos de todas as coisas. ele rola e se bate com os demais, que, por sua vez, são empurrados e batem em tantos outros. alguns levantam, suspensos pela força e são lançados ainda mais longe, para chocar-se com tantos outros que em melhor situação não estão. fragmentos sobre fragmentos vão rolando e voando e desabando, fazendo morro e nuvem, turbilhão e chão. e se acumulam e juntam-se nos mais recônditos espaços. entram e ocupam quaisquer espaços, aberturas... e vão tomando conta de tudo, fazendo pele segunda, aura de poeira e nuvem pálida de um crepúsculo qualquer. num determinado tempo, cada um acrescentado a outro, assomados, criam um peso e um corpo e esse corpo se levanta e abre espaço para engolir quem passa e impede a caminhada e abre a rota para um esconderijo e fechase como encruzilhada e faz esquecer e mostra um paraíso inalcançável. cena II e esse corpo levanta-se e lembra-nos do que nos falta, ao preencher o que a falta teria ocupado. e assobia, porque o vento é seu motor. e atravessa-nos como morte sem fim, fazendo de nós poeira. lançamos as mãos e ajuntamos essa poeira e a fertilizamos, como se uma flor fosse de lá brotar. a poeira, essa indiferente, não se ocupa disso. são nossas mãos, juntando e amontoando, fazendo cubinhos e punhados, e levando para dentro e ocupando o que nos falta. são nossas mãos que criam e sustentam a semente dessa falta. enraízam os grãos e umedecem-nos para que se tornem mais encorpados, a fim de que o vento não os levantem, senão para acariciá-los. só assim o vento faz carinho. e ao fazer, deixa um pedaço de prisão para trás, dentro de nós. e nós não nos movemos. e quando nos movemos, fazemos um som oco, um assovio de falta. e fazemos música: alguns fazem música e alguns fazem ruído. o silêncio é peso de morte de quem está cheio demais e incapacitado e é sinal de quem é leve, muito leve e só sabe voar na liberdade do próprio vento. a brisa é caminho e é matéria. o vento retorna ao vento e a poeira à poeira. e nada mais falta pois a falta falta faz.

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cena III e o vento faz da poeira dança. e a dança torna leve. e a leveza libera o riso. e o riso leva mais alto, sem sair da atmosfera. e o riso lembra o primeiro som que é chão e terra e assovio. e lembra que a alegria é a distância do chão e lembra que ao chão ainda há muitos outros, presos na grande poeira, chamada barro. e sabe que é preciso retornar, não para ser pesado, e sim para ser brisa para a poeira e vento para o corpo em falta e preencher o que a falta abre em quem tem falta. e fazer desse movimento o corpo da própria dança e do riso. e aí descemos uma vez mais, com passos leves e firmes, sabendo caminhar entre a poeira e entre o vento, e de maneira desenvolta. a desenvoltura mostra o domínio sobre a falta, sobre a leveza, sobre a dança e sobre o riso. e tudo se torna ainda mais verdadeiro, e a música e a delicadeza firme das mãos fazem desenhos e pintam com a poeira e compõem com o vento. surge daí um grande teatro da vida, um imenso teatro que dançou com a falta, com a dor, com a morte, com o paraíso e soube abraçar a vida e soube que a vida é o abraço da falta com o riso. a vida é a grande encenação da saudade. cena IV monta-se um tablado, terra batida, poeira incorporada. e alguns corpos dançam, misturam-se, descem à terra, ensaboam-se de poeira. e a fazem levantar-se com um salto, com um movimento rápido, mãos aos altos, olhos aos céus, palavras aos ventos. e as palavras voam feito poeira. e a falta sempre ali, alisando cada corpo, marcando distância, abrindo espaço para o próprio vento e para a poeira e para as palavras. e a dança reaparece, pés descalços, corpo pesado-leve, batendo na terra, levantando poeira e palavra. palavra e vento vão aos ouvidos e às mãos dos outros. elas tremem, o corpo vibra, a poeira dança, a palavra ocupa o lugar da falta e a falta descobre-se falta de palavras. e a poeira e a palavra e o ritmo das batidas e a dança e os gritos e as lágrimas, juntas, chamam mais corpos, mãos que se tocam, mãos que dançam e levam a poeira e a palavra para os corpos. e a vida faz cada um, amontoando-se em corpos de poeira e palavra e vento e água dizer mais palavras, mais tremores e mais acúmulos, carregados pelo vento e pela palavra. a dança e a poeira dão corpo ao corpo da palavra. sempre mais de um, sempre um acumulado à poeira.

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sem t itulo deivid junio

uma abertura, uma lacuna, um abismo uma fresta, uma fenda, um deserto uma fissura, uma ferida, um corte uma perda um vácuo um todo vazio ausência de istmo e de mar um nada preenche o íntimo inexistente e sem margens sentimento sem palavra, silêncio sem lugar coisa vaga e sem nome ainda

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do primeiro plano fotografico deivid junio

depois do verde, o azul depois da concha, o grão cilada que armei pra te cravar um punhal de prata no meio das costas no meio das praias uma montanha engasta duas metades de vento em poucas ondas tudo o que é rocha vai desfazer o entendimento quando o sol nos preceder em mil vermelhos diferentes estaremos ainda bem mais distantes que antes

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meiuca diego guimarães

nem sei do que sentir saudade, tamanha a ausência. quase só espero. bem mais do que a falta do não-vivido, pesa recontar os dias.

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por do sol, lembrancas, Renoir ísis zisels A varanda amadeirada da grande e solitária casa desfrutava de um suave arrebol. Podia-se vislumbrar a floresta da Gávea cintilando, acolhedora, sob o pôr do sol. O céu quiescente e as árvores frondosas transmitiam um frescor paradisíaco... Do alpendre, a mulher contemplava a paisagem com certa ausência; o momento sutil onde o tempo para, os pulmões esvaziam-se e já não há tristeza, tampouco alegria. Apenas a vida suspirando lentamente... Porque sabemos, em nosso íntimo, que as coisas não existiriam se não pudessem suspirar... Sentia-se numa tela de Renoir: as amendoeiras delicadas, o chá que lhe umedecia os lábios, as músicas que compunha ao cello, as pessoas e flores perfumadas virariam brumas algum dia. Também as memórias guardadas em sua alma enuvesceriam-se na alquimia do mundo... Domingos no bistrô, café com rosquinhas, Piaf, comentários sobre o Folha, um homem e seus tranquilos olhos através dos óculos, a cor cinza do cachecol que o envolvia, a cor cinza de sempre querer, sozinha, outro beijo estéril de cor... Lembrara das obras que lera na juventude. Outrora, conhecera a paixão de Werther, a vontade de Ulisses, o canto de Ofélia enlouquecida pelo pai morto, os desejos e angústias de Madame Bovary... Apesar de culpar o amor por fazê-la amar, o regalo róseo da tarde arrastava o passado aos dedos tímidos do poente. O sol da vida superava as dores causadas, pois havia mãos, olhos, boca, ouvidos, paisagens, par tituras, o impressionismo de Renoir, quiçá outro nome quando os gestos amáveis se dissolvem...

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escuridao joyce nascimento A luz da cidade apagou o breu tomou conta do lugar olhos captam vultos corpos perambulam sem parar não são fantasmas, nem zumbis são humanos em busca da paz da luz que iluminava agora as trevas ali está acabou o sossego o medo brota sem parar eles nunca mais enxergaram os que um dia amaram a escuridão assim como vírus dissipou a visão e a luz da cidade, após aquele dia nunca mais acendeu.

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vermes joyce nascimento

Seus gestos obscenos corromperam a vastidão do [mundo Aplausos foram dados para a loucura que vinha deles Será que ainda há jeito? Será que isso irá mudar? Nem os cientistas encontraram a cura para tal mal Mentes mergulhadas no lodo da crueldade Espalhando seus vermes por toda a cidade No jornal a manchete dizia: “Os vermes nunca [dormem”.

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saudade, so para humanos. ana karênina trindade de araújo Acordo de pronto às 6 horas da manhã, cambaleando, sem os artifícios dos óculos, companhia até no sonho, sigo rumo ao toalete, de frente, aquela figura estranha que ainda não retornou ao corpo, agito a cabeça e olho para baixo, como quem não quer encarar aos olhos. A água da pia está hoje muito mais gelada, deve-se ao fato, talvez, de estarmos a algum dia de julho, pós solstício, custa-me lavar o rosto. Enfim, encaro o espelho e percebo que sou eu. No ambiente um delicioso aroma de erva doce e o toque macio do sabonete faz com que a boca se estique um pouco para os lados, procuro um sorriso no espelho mas antes mesmo de chegar ele já se foi. Quanto tempo faz que eu não vejo um sorriso? Afinal, que dia mesmo será hoje? Tudo é tão indiferente, me concentro em escutar os sinais do meu corpo e diminuir as faltas. do lado direito da pia rosada, quase que por instinto, seguro a bisnaga cheia de creme dental, por um instante não sei que ia realmente fazer e dispenso a pasta de hortelã por ora. No box, um chuveiro morno pareceu-me relaxante, retiro avidamente a roupa de dormir e ponho-me a regular a pressão e a temperatura da ducha como quem domina uma técnica precisa. Não é tão maravilhosa quanto parecia, mesmo assim, ainda é um luxo para poucos, então, dou-lhe minhas costas primeiro, a noite foi agitada, num vira vira sem conforto que a sensação doada pelo Senhor “magnífico” chuveiro se confunde com uma massagem. Nesse espaço o entretenimento é diverso, sabonete, shampoo, cremes, óleos, distrações que me levaram a desejar comer o quanto antes. Fecho as tampinhas coloridas, das quais os diversificados aromas me fizeram ficar tão confusa ao ponto de não usar nenhum daqueles conteúdos engarrafados em frascos engraçados, com suas letrinhas duvidosamente adornadas. Me envolvo na toalha, desligo a torneira e me apresso para vestir a roupa do desjejum, esta sempre é suave, folgada e deve estar limpa. Já na porta de saída do quarto, lembro do que fazia com aquele tubo na mão, antes de acordar. que bobagem! É certo que deveria escovar os dentes, lustrar o sorriso, caso ele resolva aparecer para o mundo, deve estar apresentável. Mais uma vez, com o tubo branco na mão, me curvo para destampar a escova de dentes… em instantes, as lágrimas salgadas escovam os dentes, a escova após lavada e enxuta, deita-se solitária à direita da cuba rosada, e ali permanecerá até me ver outra vez… As escovas de dentes não choram suas ausências.

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conto de alegria e esperanca. paulo dourian Esta curta história se passou em Dresden - que fica a 191 km de Berlin - na Alemanha nazista. O ano era o de 1944. Em um dos bairros periféricos da cidade estava a casa dos operários Mia e Peter, trabalhadores da indústria têxtil. Ambos se conheceram na escola quando tinham 12 anos. Passaram a adolescência juntos e aos 18 estavam casados. Tiveram duas filhas, Alegria e Esperança, meninas adoráveis que espalhavam graça por onde quer que passassem. A família vivia feliz. Estavam rodeados de parentes. As festas eram corriqueiras. Todos se divertiam muito juntos. Brigavam, depois se reconciliam. A vida corria devagar. O casal era comunista. Tinha uma longa trajetória de luta contra a extrema-direita alemã. Durante a Segunda Guerra, quando o Regime Nazista fechou o cerco contra os dissidentes, Mia e Peter foram presos. Mas, por sorte, conseguiram levar as suas filhas para um dos esconderijos subterrâneos da cidade. Neste lugar, Alegria e Esperança começaram a escrever poesias falando sobre amor, fé, felicidade, coragem e paz. As palavras das meninas eram um alento àqueles corações tocados pelo medo e a incerteza sobre a vida e a morte. Todas as noites, em um cantinho próximo à cama, Alegria e Esperança acendiam uma vela e pediam a Deus para que seus pais saíssem do cativeiro. Nesses momentos, outras pessoas do esconderijo se reuniam às meninas e lançavam preces aos céus para que os horrores na Terra cessassem. No cativeiro, Mia e Peter estavam em celas separadas, mas podiam se comunicar através de um pequeno buraco na parede. Era uma abertura por meio da qual eles conseguiam ver os olhos um do outro. As celas eram herméticas, pequenas e muito abafadas. Em cada uma delas havia uma pequena janela no teto por onde entrava um fino raio de luz solar, a única fonte de iluminação. Peter e Mia foram submetidos aos mais terríveis sofrimentos. As sessões de tortura eram diárias. 23


Foram meses de padecimento para os dois. As saudades das crianças machucavam e dilaceravam a alma muito mais do que as violências físicas praticadas pelos soldados nazistas. Certa manhã, quando a esperança do casal já definhava por causa de muitos sofrimentos, eis que algo peculiar aconteceu. Mia percebeu que na parede do pequeno buraco por onde conversava com o seu esposo havia nascido duas pequenas flores, uma da cor vermelha e outra da cor amarela. Mia não conteve a sua emoção e gritou o nome de Peter que, ao se aproximar e ver aquele pequeno milagre começou a chorar. Ambos choraram. E a alegria reacendeu em seus corações cansados. Na noite desse mesmo dia o casal foi libertado pelas forças aliadas. Os soldados soviéticos ficaram espantados com o que viram: um homem e uma mulher em estado de degradação. A magreza dos seus corpos causava comoção, assim como os seus ferimentos, que eram muitos. Entretanto, o que os soldados não conseguiam compreender, era aquele lindo sorriso estampado em seus rostos. 01.01.2021

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para Jonathan paulo dourian Eram 09h00 da manhã de uma sexta-feira de setembro. Eu estava na escola, numa turma de oitavo ano. Sentado em minha carteira, observava o professor de [física conversar com alguns estudantes. Aquelas reuniões entre eles eram costumeiras. Estávamos somente nós na sala. O restante da turma tinha ido ao pátio, pois era [intervalo. Não consegui deixar de reparar na conversa entre o [professor e os meninos. O assunto, dessa vez, era um garoto chamado Jonathan. Jonathan era um rapaz branco, magro e com feições [bastante andróginas. Possuía o que costumam chamar de “trejeitos [femininos” e estava sempre com as garotas. Era daqueles meninos cujo gênero nos faz ter dúvidas [por sua aparente indefinição. Tinha cabelos longos e uma pele rosada. Seus olhos eram azuis como o céu límpido. Jonathan costumava ser discriminado por meninos e [meninas. Sofria muito preconceito. Eram frequentes as ridícularizações, humilhações e [agressões explícitas e sutis. Jonathan era motivo de chacota, mas não reagia. Ele fingia que nada estava acontecendo. Aparentava indiferença a todas as violências e [provocações que partiam, sobretudo, dos garotos. Jonathan era um menino calmo e extremamente [aplicado e dedicado aos estudos. Era o primeiro da classe. Dava-se bem em todas as disciplinas. Mesmo aquelas de cálculo que todos temiam, ele tirava [de letra. O seu fascínio pelos trabalhos e atividades parecia um [refúgio diante de uma realidade opressora e cruel. Ocupar-se de estudar parecia distraí-lo das torpezas [com que lhe atacavam.

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Jonathan era organizado, meigo e simples. Eu o via absorvido em seus pensamentos, quando não [estava compenetrado nos livros. Ele não era de participar das aulas, o silêncio parecia ser [um grande amigo seu. Quase sempre que saia para o intervalo acompanhava [algumas meninas. Mantinha-se quieto, quase sem proferir palavras e [quando as dizia, lembrava a delicadeza das flores mais [frágeis quando lançam seu perfume no ar. Nesta manhã, em que eu reparava no professor de física [e nos estudantes conversarem sobre Jonathan, eles [comentavam sobre a sua inteligência e notas excelentes. O professor dizia que ele sempre tirava a pontuação [máxima, além disso, fazia as provas demonstrando um [raro talento. Diante de todos aqueles elogios, que todos [concordavam, eis que surgiu uma voz que disse algo [que me estarreceu. Um dos meninos, conhecido pela sua agressividade e [violência contra outros estudantes da escola, disse: - É professor, ele é muito inteligente e tira as melhores [notas... Mas é viado! Ouvir aquilo foi como sentir uma faca ser cravada em [meu peito. Foi como se alguém tivesse quebrado a minha alma. Senti como se algo em mim tivesse morrido. Eles estavam falando de Jonathan, mas aquela lança me [acertou, rasgou e fez sangrar. Por dentro, eu chorei. Por isso, essas palavras estão repletas de memórias, lágrimas e sangue. São palavras para Jonathan e toda a sua maravilhosa beleza. 15.09.2020

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monologo de um passaro preso paulo dourian Sou um pássaro negro. Vivo nesta gaiola há anos. O meu canto se converteu em lamento. Choro dias e noites. Já quase não lembro como é lá [fora. Sei que havia o verde, luz e frescor. Essas memórias são frágeis, estão quase a se apagar. As grades desta jaula possuem o veneno do [esquecimento. Porém, o cheirinho da minha mãe ainda está vivo. O meu pai eu não conheci. Ele voou pra bem longe logo que eu nasci. Numa manhã de primavera, enquanto eu cantava [distraído sobre uma árvore, fui capturado por um lenhador. Ele rapidamente me colocou em uma [caixa pequena e escura. Depois me trancafiou nesta gaiola, onde vivo hoje. Desde então, nada faço além de chorar. Choro para que a dor da prisão extravase e não me [consuma por completo. Aqui é tão pequeno que nem posso voar. O meu lamento me mantém vivo ao equilibrar a dor [que sinto. Eu sei que a saudade não se cura com outro remédio [que não seja a presença, mas na impossibilidade desta, o choro é o alento da minha [alma. Ah... ! Sinto falta de minha mãe. O lenhador, cujo nome não sei, acha que o meu pranto [é um canto. Ele se aproxima todos os dias e me observa, alegrando[se com o sofrimento que ele não parece perceber. Quem seria capaz de ficar feliz com o aprisionamento [de outro ser? Pelas manhãs, tardes e noites eu observo a sua solidão. Apesar da minha tristeza, o lenhador me inspira [compaixão. Era um homem de cinquenta anos, órfão de pai e mãe, [sem familiares próximos. Não havia se casado. 27


Não recebia visitas. Ele passava o dia trabalhando. Saia de manhã cedo e só voltava no pôr do sol. A sua casa tinha poucos móveis. Na sala estava a poltrona onde ele dormia, pois não [tinha cama. A cozinha tinha um armário muito sujo, um fogão tão [velho quanto a geladeira, nesta havia uma fotografia antiga com três pessoas: um menino [com os seus pais. A imagem estava borrada, mas era possível identificar o lenhador na foto. A compaixão que sinto por ele me impede de odiá-lo. Talvez seja compreensível ele me aprisionar, uma vez [que também está aprisionado a uma vida solitária, sem carinho e sem afeto. Como ele só conhece a prisão, é a única coisa que ele [pode me oferecer. Não quero justificar a vileza do ato de me manter preso. Isso me entristece muito. Porém, a minha tristeza não é totalmente vã. Ao menos o faz sorrir. Apesar que o seu sorriso custa o meu sofrimento. Sinto que aos poucos a vida me deixa. O sono final já se aproxima. Já estou imóvel. Nos sonhos vejo um grande vale coberto de primavera. Reconheço o seu perfume e sei da beleza infinita que [me aguarda. Não apresso a morte. Estou tranquilo nesta espera. O lenhador ficará ainda mais só. Eu estarei livre, na morte. E ele preso, em vida. Torço para que ele viva e se liberte de si mesmo, da [triste visão que o impede de voar. Penso que, se ele voasse, jamais iria aprisionar alguém. 21.09.2020

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topografia do desencanto thayse diaz Percebo-me mais e mais ciente do quanto estou enredada em mim mesma. Nestas paredes. Nas lembranças. Nesse sertão. Nessa cidade. O mundo pulsa lá fora e eu aqui. Enredada. Durante muito tempo desejei conhecer outras paisagens, mas, o mais longe que conseguir chegar, foi a esse lugar. Atravessei o dorso de uma serra azul como o mar, para chegar aqui. Mulher sem pedigree, encarregada de manter o afeto, o aconchego da casa e o fogo crepitando no fogão à lenha, acabei por, de certa maneira, conformar com a impossibilidade de mover-me fisicamente. Compreendi que não adiantava tentar transpor os muros que me prendiam, porque ao tentar fazê-lo, mais altos se tornavam. Foi assim que criei uma espécie de metafísica para transpor muros: tornei-me a paisagem dos lugares sonhados e fiquei por aqui. Aqui sou estrangeira. Exilada, moro na floresta. Só falo a língua dos bichos. Cheguei aqui por ser o único destino possível. Carrego o estigma de nascer em dezembro. E nascer em dezembro, é uma forma de ampliar angústias. Quem nasce em dezembro, nasce com inclinação para encurtar as distâncias entre os abismos. Nascer em dezembro tem um quê de crueldade. Em dezembro a alma fica cheia de poças d'água e isso é péssimo para quem nasce sob o elemento fogo, talvez seja isto que me prende aqui. O sol. Aqui há um pacto bizarro estabelecido entre os homens e o sol. Ele nunca se põe e em troca os homens lhe oferecem suas peles, um ritual de necessidade. Todos são de uma forma ou de outra, marcados pela onipresença solar. A noite é apenas uma metáfora. É quando sopram os ventos como se um coral de vozes estivesse a anunciar aquilo que se faz ausência. O vento aqui tem um dialeto para cada mês, convém decifrá-los. Caminho pelas ruas desertas, um ou outro pássaro noturno espreita-me. Não há fome de nada. Um silêncio imenso dá complexidade aos símbolos, lá adiante, as réstias de um céu em chumbo ameaçam. E, se acontecer um milagre, chove. Volto pra casa e deixo a porta aberta. Inutilmente.

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@lambehaxa


ja nao falamos em saudades jéssica barbosa

Já não falamos em Saudades, Emudecemos. Mas porque isso que emudece, grita. E é como um grito incompreensível, convocamos nossos amigos para falar junto, construir vozes coletivas. E de alguma forma ter o que dizer, escapando da pequenez do eu. Eu-Tu. Raimunda, fazendo mundo, Toda Sua!

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receita de sonhos bruno neppo O primeiro despertador tocou. Acácio estava ao lado da prateleira da sala e desativou o pino muito prontamente. Pegou a pílula amarela que estava num potinho ao lado do objeto de prata envelhecida, colocou-a num envelope e seguiu a leitura do caderno de receitas de sua falecida esposa. A letra pacífica e sinuosa de Odete eternizara naquelas páginas as melhores receitas da família Fontini. Ele lia a preferida da filha e da neta: os sonhos. Pequenos e individuais, grandes e para a família, recheados, coloridos, mágicos. Seguiu escolhendo qual faria. Estava sentado junto à mesa da copa quando o segundo despertador tocou. Foi até a samambaia chorona e alcançou a caixinha de madeira pendurada na mesma corrente de onde pendiam as folhas compridas e secas. Interrompeu o som, pegou a pílula branca dentro de um copo empoeirado no batente do basculante, ajeitou-a no envelope amassado entre as folhas de receitas e retomou a leitura. Já era fim de tarde quando o terceiro despertador meio rouco berrou lá do quarto. O velho foi pego de surpresa com as calças arriadas, sentado no vaso. Levantou-se e nem se limpou. Sempre com o caderninho na mão, atravessou a casa chutando o tecido embolado nos pés e desligou o rádio relógio que apitava na mesinha de cabeceira. Pegou a pílula verde e juntou às outras. Em seguida, levantou somente a cueca e dispensou o resto da roupa ali mesmo. Foi até a cozinha e decidiu esperar o último toque ao lado do relógio. Esse soaria mais baixo de propósito. Talvez ele não escutasse e desistisse da receita. Mas decidiu escutar. Ele queria cozinhar o sonho. Tinha decidido o preparo exato. Já era noite quando o suave cantar dos passarinhos saiu do relógio de pulso rosa que um dia pertencera à neta. Ela havia esquecido ali na última visita antes do acidente. Acácio não desligou o relógio dessa vez. Pegou a pílula, juntou às outras num potinho de plástico e começou a cozinhar. Tirou o pó do interior de todas as cápsulas, juntou-o à água sanitária que esperava em cima da pia e bebeu. Beijou o relógio e esperou o sonho ficar pronto. Ele seria o maior e mais colorido de todos.

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artistas (?) ana karênina trindade de araújo. Eu nasci em Mossoró e minha mãe achou que Ana Karênina seria um bom nome para mim. Até hoje procuro não saber do peso que esse nome poderia exercer sobre mim. Me graduei em filosofia pela UFRN e estou doutoranda em Filosofia na UFRN. Amo as pessoas e suas diversidades e estou por aí entre um ônibus e outro procurando o Ser no mundo. andré vinícius. sonhava em ser poeta ou astronauta quando criança e findou estudante de Filosofia pela UFRN. Vem se dedicando atualmente a investigar a experiência estética e suas possibilidades, tendo como principal instrumento a escrita em diários. bruno neppo. diferente do que era quando escreveu isso. (Ar)tista, escritor e criador de conteúdo em @filosofares e @historias.incompletas clayton marinho. fatigadíssimo. faz capas, faxinas e pinta panos de prato. didjei nas horas sorumbáticas. E-mail: claytonrfmarinho@gmail.com deivid junio. é professor, estudante e pesquisador. Publicou o livro de poemas Bal-bu-cio, em 2015. E-mail: deividjunio@gmail.com diego guimarães. autor de enfrentamento (2015) e de instabilidade (2016), livros de poemas publicados de maneira independente, artesanal e de impressão sob demanda. um dos editores da revista raimunda e da revista filosofia de dunas. häxa. artista, bruxa e puta. @lambehaxa. ísis zisels. Psicóloga com Ênfase em Clínica Psicanalítica (CRP-04/59675), graduada em Psicologia (UNIACADEMIA-JF) e Filosofia (UFJF), especializada em Filosofia (UFOP) e Mestra em Estética e Fil. da Arte (UFOP). jéssica barbosa. Cada vez menos. Variando os gestos e os passos de dança. joyce nascimento é natural do Rio de Janeiro. Formada em Letras e Especialista em Literatura Brasileira. Tem poesias publicadas em antologias, jornal, revistas e blog. Em 2020, recebeu menção honrosa no XXXI Festival Nacional de Poesias Eunice Maria de Oliveira. Além de escrever, ela declama e lê textos de prosa e poesia no canal Literatura já!


artistas (?) paulo dourian partiu do bacharelado em Ciências Sociais (UNIVASF), no interior da Bahia, para o grande desafio no mestrado em Antropologia (UFRN). Apaixonou-se perdidamente pelas terras potiguares e quis ficar um pouco mais. Assim, iniciou uma licenciatura em História e o doutorado em Ciências Sociais (UFRN). Tem voado nas asas da literatura, repousado nos aromas multicores da poesia e mergulhado nas profundezas do fascínio da Vida que se manifesta na poética do presente. Amante da natureza, é um buscador de maravilhas intangíveis e do sublime guardado nas reconexões orquestradas pelo Tempo. thaise diaz nasceu e reside no sertão mineiro. Possui formação em filosofia e mestrado em Letras/Estudos Literários. É poeta e professora de filosofia. Alguns poemas foram publicados na revista Desassossego (USP), Orobó Kadernu di Ynwenssões (BH), no Portal Blocos online (RJ) e na Revista Raimunda (UFOP). Autora do livro de poesia “O enigma da tarde” (Caravana Editorial, 2021). Contato: thaisediaz@yahoo.com.br volney moura. volneymoura@gmail.com


chamada para material artistico Abrangência | A Revista Raimunda oferece um espaço para a divulgação de trabalhos de artistas, o que quer que estes sejam e quaisquer sejam os seus campos, concedendo-lhes total liberdade sobre a obra a ser publicada. Extensão | Não há limite de páginas para as obras, desde que a extensão de uma obra não comprometa a edição da revista. Ocupe o quanto quiser da Raimunda. Sugestão temática | Cada edição conta com uma sugestão temática, que tem a intenção apenas de agrupar tematicamente algumas das obras publicadas na edição em questão, sem, no entanto, limitar as demais; ou seja, permanece a total liberdade do artista na escolha do tema do material a ser enviado. Aquele que estiver seguindo a sugestão de determinado número precisa apenas indicá-lo junto ao envio do material, com vista à organização da revista. A sugestão temática da 14a edição é GERMINAR. O prazo de envio para a Raimunda 14 termina em 14 de FEVEREIRO de 2022. Os interessados devem entrar em contato através do e-mail: revistaraimunda@gmail.com. ----------------------------------------


chamada para material artistico Encarte Raimunda Manifesta O encarte, que vem a acompanhar algumas das edições da revista, nasceu para suprir uma demanda de artistas (o que quer que estes sejam) interessados em publicar obras mais extensas na Raimunda, que vem se caracterizando por circular trabalhos mais breves. Portanto, o encarte se destina a trabalhos artísticos que destoam da extensão dos até então divulgados pela revista, por precisarem, pelo menos a princípio, de um percurso mais longo de leitura/observação. Ele visa a atender a tal demanda, e, apenas quando esta se fizer presente, haverá um encarte acompanhando determinada edição. Também aqui, o autor é o responsável pelo conteúdo e pela correção de sua obra. Interessados em participar de tal maneira em alguma edição devem entrar em contato dentro do prazo de envio da mesma. Observação - Apesar de contar com edição impressa, o principal meio de circulação da revista é o virtual. Os editores não se comprometem a enviar cópias impressas para os colaboradores por correio, pois dependem da disponibilidade de recurso para tanto (mesmo assim, sugerem que sempre que haja o interesse em ter as edições impressas, o leitor/artista entre em contato para saber se no momento há a disponibilidade de envio). Já nas cidades sede, as edições impressas estarão sempre disponíveis enquanto houver estoque. A Revista Raimunda é gratuita e sem fins lucrativos.


expediente Revista RAIMUNDA - Esta publicação é independente. ano 9 | número 13+1 | 2021 Editores Bruno Nepomuceno Clayton Marinho Diego Guimarães Jéssica Barbosa Realizadores da décima-terceira+um edição Clayton Marinho, Diego Guimarães e Jéssica Barbosa. Diagramação e arte Clayton Marinho Capa e contra-capa Clayton Marinho sobre obra Na historia 8 de @lambehaxa Sedes Belo Horizonte – Minas Gerais Natal - Rio Grande do Norte João Pessoa - Paraíba Site revistaraimunda.wix.com/revistaraimunda Contato revistaraimunda@gmail.com cada autor foi responsável pelo conteúdo e correção de seu próprio texto.


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