Raimunda 9

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dez

20 17

c on

t r a-a t a c a


~ apresentacao

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A Raimunda é uma revista anárquica, o que significa que ela não visa abrir espaço para opressão e que ela tende a publicar obras não-opressivas. Contudo, determinar um limiar entre o opressivo e o não-opressivo é um mistério: não cabe a opressor algum dizer se o outro está ou não oprimido. Sendo assim, como editar/integrar uma publicação e ter a certeza de que o material nela veiculado não oprime algum leitor? Impossível ter certeza. Por isso reconhecer que se trata de uma tentativa e considerar a publicação de materiais não-opressivos como uma t e n d ê n c i a d a r e v i s t a : s e r í a m o s o p r e s s ivo s s e defendêssemos que a Raimunda é absolutamente anárquica, que ela é totalmente não-opressiva. Não nos cabe tal feito, mas nos cabe a tentativa de fazer uma revista não-opressiva. Essa tentativa envolve, através da arte, expor e lutar contra o que oprime. Esse é o objetivo e a motivação da revista Raimunda. A principal característica desta revista não é a sua cara, tampouco a sua bunda ou o seu vasto mundo, Raimundo, Raimunda, pouco importa. Interessa mais a sua abertura, o espaço livre-anárquico que ela oferece à pessoa artista, qualquer esta seja e o que quer que isto seja. Ela não tem dona nem é dona. A revista quer obra, quem faz obra, quem torna experiência obra. A Raimunda é uma qualquer, ela não tem norma não conversável, não é fixa, é elástica, cambiável, aberta às selvagerias da vida. Recebe sem julgar, circula, divulga, sai berrando tudo o que cabe dentro dela. Se tem um limite é o seu espaço cada vez mais largo. A revista Raimunda é toda dada. A Raimunda prioriza a produção artística, destacando a obra e o obrar artístico. Com periodicidade semestral, ela objetiva compartilhar e divulgar material feito pelas pessoas integ rantes, bem como ag reg ar novas companheiras para produções e prosas afins. Editores: Bruno Nepomuceno Clayton Marinho Diego Guimarães Jéssica Barbosa

ano 5 | número 9 | 2017 ISSN 2358-7342 [virtual] ISSN 2358-7350 [impressa]


´ sumario engenharia dos sentidos emigrante nunca estive em campo samir benjamim

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delírios em cartas-café priscila pereira novais

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vida octávio proença de moraes neto

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nus interstícios andré vinícius

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pequeno resto a densidade necessária deivid junio

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imagens ana karênina trindade de araújo

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só jéssica barbosa

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seção temática contra-ataque e resistência cemitérios de barricadas samir benjamim

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feminismo em tempo real ana karênina trindade de araújo

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montagem s/n: heurística (Claudia, ferida, acidente, traço, corpo, sangue) 24 clayton marinho questões a serem deixadas para trás diego guimarães

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pena de quem jésssica barbosa

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samir Benjamim engenharia dos sentidos I A língua viva viva e morta canônica e na boca do povo com farinha a língua língua cordas ladainha fura míngua onde costura? a língua não cria limo cerze a puberdade do menino agulha apontada em qualquer buraco de átomo de fábrica de verbo – que diverso do átomo também é uma usina de mundo Tijolo para os ouvidos – o mundo dos sentidos das células nervosas operária com rosas que parimos de espinho no dedo – tijolo à flor da pele tijolos na construção do meu abismo Tijolo contra o silêncio do crânio não apressa em ritmo ou cadência o cortejo segue desdobrada em cada ausência ao fim mudo e se alimenta morta de sentidos no mesmo relógio que tudo II Amante da solidão das nebulosas do amor nervoso e táctil aguardo a última cerveja na boca do destino e uma pá de cal na crina dos pensamentos A noite a companheira será a solidão livre de todos os vestidos a solidão sem alma como um banquete sem convidados para o deus que está ausente A noite na cama a companheira o coração bombeia o mesmo corpo fodidos bebe meu sêmen a boceta eu pau ela bebe nós espaço eu sangro-amanheço verdureiro sem filosofia amamentado na boceta dela7 4


samir Benjamim III O mundo impossível tropeça em palavras e postes sempre o mesmo mote no espaço das naves ao mar aéreo e vazio A virgem jorra todo mês sem gozo vaza a indústria do mistério que carrega Na mesma banheira bandeira drummond o homem que carrega cebolas vai tudo farinha do mesmo rabo para o silencioso buraco – Eu me rio enchente na pele de cordeiro espero o sol frio devastar a babel das nossas bibliotecas e flores numa sopa infinita de letrinhas –

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samir Benjamim emigrante Carrego palavras de onde eu vim na boca são doce e rapadura melhor carrego no ventre a vida cidade que me pariu eu carrego – às vésperas do mundo novo – velhas rabiolas de sol Foi brincar de pipa que o vento me correu os outros – os que nasceram comigo - estão aí espalhados, e como os mangues não importa onde estejam como eu estão sempre molhados (Ai a mulher do recife mesmo que nunca deixe a terra está sempre em viagem E os homens do recife mesmo que nunca voltem ficam para sempre no mercado da boa vista, e carregam consigo a farinha num pote e o queijo qualho) Foi de avistar no azul a dor do espaço que vaguei correntes ao sul até não-mar – ao longe o mangue é um caranguejo arisco – e não foi comer com os olhos o destino de outro pasto nem crer o risco deitado no horizonte não foi soluçar o tempo ou alcançar fora de mim o rio seco por dentro Foi abrir a porta da garagem e dizer “volto já!” e saber longe o retorno do dia que nem passarinho em migração

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samir Benjamim nunca estive em campo Nunca estive no campo não pendurei chuteiras nas beiras de estrada ou debandei com pássaros uma gota de amarelo Estive sempre fincado na cidade rio grande de gente 1, 2 , 3, 4, 5, ∞ milhão de gente caindo pelo ladrão Eu não conseguia nem um mês de calmaria vaca, bosta, pasto, horta e sepultura A essa altura tinha tédio em altas taxas no sangue – mais tédio que álcool fome mais de vacas que futuro Mas lateja no peito a saudade pequena padaria onde nunca comi pão ou amei gente que girasse aquelas órbitas Lateja a demoníaca vontade de perturbar outros sistemas outras galinhas não solares e saudades de pequenas granjas ex-planeta plutão Lateja o sonho o poeta multidão o pastorzinho barro músculos gordura na calma-útero da natureza em chamas

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priscila pereira novais

delírios em cartas-café

Philippe Halsman, ‘bailarina’, 1946

Lugar nenhum, numa data qualquer, num ano que não importa.

Querido..., Tenho tanto e nada para falar, mas confesso, não sei bem por onde começo esta carta. Gostaria de falar das coisas que pensei ontem antes de dormir, de contar o que comi hoje no café da manhã e o quanto estava ruim o café que pedi na padaria – aquela que sempre vamos e tem a senhora de cabelos mal arrumados e mania estranha de chamar desconhecidos de “meu amor”. Neste dia foi engraçado ver o mau humor matinal daquela senhora tentando aprender a usar pela primeira vez sua nova cafeteira elétrica power clean. Era uma cafeteira bonita, vermelha – gosto muito da cor vermelha (acho até que já lhe disse isso). Foi engraçado, mas também foi estranho. Lembrei do Ray Bradbury dizendo que todos os problemas da nossa época são problemas de ficção científica e nos conduzem a três constantes: o ser humano, a máquina e as relações entre eles. Aprender a usar um novo objeto é sempre um grande desafio e aquela senhora tinha mesmo um grande desafio naquele pequeno espaço lotado. Penso que o maior problema da atualidade é apertar botões, mexer com fios, ler manuais, termos de uso, lidar com espaços... por aqui pessoas, de modo geral, são mais preocupadas em como manusear do que na sua relação com as coisas. Se isto é bom ou ruim, ainda não sei. Nem sei se quero mais saber. Eu só sei que naquela hora queria o meu café. Bem, ela estava apressada em entregar os pedidos, os demais espumavam pelo pequeno atraso. Os diferentes tons de voz de dentro se misturavam com os de fora. Buzinas, cachorros, tinidos de falsa porcelana, uma orquestra infernal. Era como estar num canil de cães enfurecidos. Confesso que quase surtei, mas permaneci em meu canto, como num olho 7 de furacão. Pensava em 8


priscila pereira novais até que ponto aquele conjunto de imagens ajudaria a compor o próximo cenário dos meus sonhos, de que modo enfeitariam a minha memória. Voltei a pensar no apertar dos botões, na multiplicidade de tempos e histórias que constituem cada on/off. Abanei a cabeça ao lembrar que além de mim existem outros sujeitos e que há sempre alguém que fala por ele ou com ele. Naquele momento a power clean falava comigo. Confesso que fiquei um tanto confusa. Depois do café, que por sinal me entregaram frio, voltei para casa. Estava de folga naquele dia. Tomei banho numa romântica e inocente tentativa de lavar as ideias, mas ao me deparar com aquele maldito ralo vi cabelos, suor, lágrimas, corpos, secreções, pessoas, histórias, mais histórias, cafeteiras, on/off... Sabe, é fato que as tecnologias preenchem todos os poros do viver humano contemporâneo e que isso tem ajudado a compor e recompor histórias, mas também é fato que isso não me tira o sono, não sei se acontece o mesmo com você. Essas coisas causam alvoroço, mas só às vezes. Estive pensando, querido, talvez a mensagem do Bradbury seja mais simples do que pensamos. Talvez ele só quisesse falar sobre o on/off... talvez seja uma mensagem mais metafórica e mais resistente ao tempo do que um simples medo das máquinas, ou um tratado sobre como contra-atacá-las. Será que ele queria falar sobre o presente, futuro ou passado? Ou sobre tudo? Eu não sei, eu não sei...não sei o que ele reservou para nós e não será nesta carta que me iniciarei na função de pitonisa. Mas e você querido, o que acha? Abraços, O autor

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octavio p m Neto vida Não deveria escrever isso, é uma denúncia a mim mesmo, mas como não sou e não posso ser eu mesmo, eis o motivo pelo qual não posso ser eu, este eu que se concentrou e se podou iludindo-se de que em uma árvore há somente um galho em que neste existam folhas o suficiente. Me enganei, mas começo então: Te observo faz um tempo, nossos olhares se cruzam, intenções são lançadas, mensagens transferidas, nem sempre interpretadas. Nosso lado mais primitivo tem o dom de não precisar de palavras. Até que, após diversos toques nos encontramos no banheiro, onde o mundo pode lembrar que também somos natureza, e que temos fedor e dominamos o mundo através de nossos restos que nem sempre se encontram em um banheiro, o sujo da humanidade é um banheiro: oculto, silencioso, mas necessário. Por mais que em um local exista uma quantidade infinita de gravatas, o banheiro sempre estará lá, e seu som de viagem ao puxar a corda pode ser sempre ouvido, sempre. Há um espelho, olhamos nosso reflexo e nos olhamos, como se conversássemos e nos alertássemos de que o que estávamos prestes a fazer era perigoso, já que o mundo não suporta amor. Nada mais era necessário. Sinto pelo olhar, o olhar na minha carne. O olhar que tira minhas roupas lentamente e as joga sob o doce e ardente aroma do vento que nos suspende até outra dimensão: a água que cai de nós…como a natureza é…excrementos e mais excrementos nos jorram que jorram de nós, sujeiras, vidas, escudos líquidos nos mesclam em forma de um amor, um amor simples e simplesmente carnal e por isso o amo. Gritos mais musicais surgem que paralisam músculos, abrem nossas bocas e nos fazem chegar mais perto de Deus, e assim eu sinto que estamos no reino dos céus, os olhos reviram e ouvem a musica orquestrada por apenas dois instrumentos, instrumentos que se unem e formam a melodia mais bela já existente, o amor. O tempo, este não perdoa ninguém, a história é mera terra onde o tempo pode ser visto, a história não tem degraus, e é algo tão misterioso como a reação a um puro reflexo nosso em um espelho. Como algo que só pode ser sentido pela força da fé, este tempo de que falo, não é o das formulas cientificas, este tempo não é o que rege a humanidade, este tempo é nosso e foi criado, modificado por nós, e então saímos nas ruas, indo nas praças, vivendo no inferno de cada um, ser é resistir, eu sou, sou ser humano. 7 10


octavio p m Neto Um dia nossas mãos estavam unidas, tão unidas, mas tão unidas que este ato não era necessário. Andamos por entre árvores guerreiras que cantarolam, por entre pássaros que são os resquícios de um mundo morto, e principalmente, por pessoas apressadas, mas com você esta pressa só tem ambição pelo presente. Olhares, risos, comentários para se suportarem e éramos apedrejados e ceifados a cada passo por pessoas intoxicadas por um acreditar fajuto e corrupto, as ruínas de uma selva organizada que agora, ao invés de ciclos, criam-se pontas cinzas e metálicas onde cada um só se liga a seu próprio pedaço de carne nu, transbordando fios de sangue e mesmo este pedaço não é mais nu, pois assim não o aceitam e por conseqüência o mesmo individuo não se aceita, por não se aceitarem não há por que aceitar o dos outros, assim continuamos doentes e no fundo do esgoto de nós mesmos. ''Mas não devemos soltar nossas mãos'' disse a ele, não por que preciso dele, não por que minha carência pode ser camuflada através de uma relação forjada, mas sim por que é necessário, é necessário que o hábito se forme, o nascimento de um hábito é doloroso e suportar as gotas de hábito em construção é a minha principal revolta. O hábito range a cada minuto concreto, pois precisa doer, precisa incomodar aqueles que não estão habituados. Algo só se torna comum se assim se repetir, não é tão difícil reconhecer a própria defesa, não é? Estou me defendendo, assim como aqueles que estão me olhando, continuo andando. Ele está inseguro, não é culpa dele, nós próprios não queremos nos salvar, até que ponto podemos entrar nos céus sem que para isso precisemos ver os degraus?

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´ andre´ vinicius

nus interstícios RELÓGIO ... O relógio oprime – não o tempo (!) – numa ânsia que fraciona (o desejo) OBSESSÃO !! Para cada obsessão do desejo (...) uma obstinação da palavra. ENGODO (?) Se engana quem acha que é mero engodo esse rebuliço das palavras (!) RESISTE (!!) nos gestos, no amor, na maldição, nas palavras (...); redescobre, sempre, novamente, a meta-morfose MORTE (...) Xadrez (in)adiável, Invencível. RESISTE !! ao fim; alegra, não conforma, desenforma, (des)desinformando a conformidade.

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´ andre´ vinicius FÔLEGO !!! do espírito no e nu calor do corpo o sopro que NÃO (!) deix'apagar a chama q'inda não queima. PEQUENOS (?) focos de incêndio nossos pensamentos fragmentados pelo relógio (?!?!) NOS VEMOS ... E NUS (...) vemos nos interstícios desses monólitos, desses Titãs que nos devoram

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deivid junio pequeno resto para o Tom das pedras das conchas das montanhas das complexas aglomerações humanas dos milhares de pés que se fincam e se enfrentam dos grandes fortes e edificações de lama ferro e lenha seca e mesmo entre os grãos de sua poeira transformados em pesar e sombra do coração apodrecido do fruto de um só de muitas sementes semeadas pelos séculos um pequeno resto guardará aquilo que entre muitos perece mas nele, suficientemente, se retém ***

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deivid junio a densidade necessária

Foram precisos alguns dias seguidos de densa neblina para encharcar meus poros e fazer rebrotar os fungos irrigando os veios da palavra nutrindo o musgo seco de versos há muito quietos inertes quase uma vida Foram preciosos tais dias quando a incidência direta do [sol fora ofuscada, e tudo mergulhara em brancos superficiais [e intensos cinzas Quando se apagaram com umidade os excessos solares [dos dias apenas a poesia pôde reinar e gastar grafites em trincadas [percepções comuns em seccionadas observações vulgares

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´ ana karenina t araujo imagens Lua dobrada no céu Rede de dormir Chá de hortelã Banho de jasmim Manga espada Conversa fiada Sorriso moreno Caetano, Tori, The Cure Nada falta nesse balaio de doçuras Sonhos azuis Lembranças carmim Lençol fininho Um displicente balançar Assim é que é Já que no escuro não imaginam-se arco-íris O que a lua canta não se deve renegar Corujas, Raposas, Cigarras Mata fechada na janela O tempo ajudando a beber os versos A mente não estanca Nuvem imóvel Amanhã enlaçado em boas novas Escondem em mim pequenas fotografias Álbum insólito Projetado no desejo Imensidão descalça Que espera o seu par.

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´ jessica barbosa só Enquanto a gata mia e esperneia pela casa, Sinto-me tão próxima dela O grito, talvez seja o que, nessa solidão, nos aproxima Sou como essa gata que esperneia e enlouquece com sua solidão pela casa <<Preciso aprender a ser só>> * Um teto todo meu: esse é sempre um alto grau de liberdade que experimento Compara-se a quando saio à rua, e a rua é minha, e a rua sou eu Sou dela e me faço nela Tal como Robinson Crusoé é de Speranza Experimento na rua meu sexo, meu gosto, meu pensamento <<Hoje eu quero sair só>> * Sabe, às vezes é difícil suportar Esse dia-a-dia, por vezes, imundo [ – É belo, tentamos fazê-lo belo Mas com uma excreção, sabe? Essa excreção. Ela se mostra. Se mostra demais, por vezes Gosto das plantas, dos bichos Porque também sou planta, e bicho. Sou essa bougainville Talvez fosse melhor ser só essa bougainville Quero dizer, viver sem essa excrescência

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secao ´ tematica

[CONTRA-ATAQUE é uma forma de reagir àquilo que nos ameaça. RESISTÊNCIA é uma for ma de manutenção daquilo pelo qual vale a pena morrer. Ambas, no fim, implicam pensar estratégias poéticas ou poéticas que põe em questão as estratégias vigentes, seja para resistir à ignorância geral, seja como contra-ataque contra esses que estão enquadrando os discursos para controlar nossas potências. Não há revolução sem invenção de novas formas!]

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samir Benjamim cemitérios de barricada I Minha geração azul se ocupa da cachaça do amor e do trabalho falamos contra o sistema e dia a dia nas praças casas e mercados andamos com o sorriso grampeado e a alma escondida entre as pernas Sem setas ou profetas para um caminho publicitários de plantão reescrevem “Liberdade!” convencem – enquanto seca a rosa dos meus vinte anos – liberdade é ser escravo de uma marca de cueca

II Meu braço e o fogo de uma alma inquieta – doente de ter atado as mãos à covardia do seu tempo – ofereço ao primeiro que abrir a porta de um sonho Mas os homens que fazem o mundo e botam fogo na minha língua de precipícios colecionam rabos de cometa, guardam as portas e as saídas de incêndio e na mesa do escritório guardam – no fundo da gaveta – a justiça e um livro de anedotas

III Venham engenheiros pedreiros e arquitetos venham os homens em mutirão – é preciso não construir prédios fodam-se os donos do mundo – construir baleeiros e porta-avião construir nuvens, economizar pão erguer muros altos e derrubar a cada cinquenta anos é preciso construir cemitérios bonitos – com carrinhos de algodão doce é preciso – sempre – parir idéias para a morte e outras sementes – são precisos muitos braços para arar um campo de mortos e vivos –

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samir Benjamim IV Sonhei terras distantes e tenho medo dos mil alto-falantes que calei dentro de mim tenho medo das economias que guardei (medo que a poupança que cresce seque a força de minhas correntes e os homens que desafio hoje, venham amanhã à mesa e entre um copo e outro de cerveja, digam “A gente sabia, é coisa de jovem... um dia a gente tem de baixar a cabeça!”) Eu com vinte e oito anos ainda espero que o sertão vire mar e que o mar – ainda lerdo em carnificinas – se aconchegue à beira dos meus soluços e vire outra coisa continuadamente azul

V Não! não há nenhuma razão – aviso aos racionais – para que uma geração deixe de sonhar dizem: temos sonhos, compramos à prestação sonhamos a casa própria, o casamento, a viagem aos estados unidos da américa, e uma pia de mármore num pequeno lavabo para o asseio da visita Na terra da gente esquecida josé, maria e uma criança embrulhada em folha de jornal tem fome, medo e frio e severino morre de sede à beira do rio pois a água de todos é poluída pela ambição de um

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samir Benjamim VI Antes que cheguem burocratas e cravem bandeiras no meu sexo antes que sangre o coração de maria – e um técnico implante um chip para a dor no peito – antes que eu venda a alma por um punhado de propagandas procuro um sonho de mar grande e cultivo no peito a ferida de um mundo que viria

VII Eu seria o guerrilheiro? uma ilha de silêncio e escopeta desertora de todos os mares? um guerrilheiro? uma bala apontada para a cabeça do mundo e um sonho por escudo?

VIII Desperto toda manhã o céu nublado de esperanças eu, o rato de proveta passo a mão num gole de cachaça eu, o rato de proveta percorro solitário o subsolo de minhas palavras e tramo sozinho – trancado no interior do quarto – mil revoltas contra babel mas ao sair à rua, no meio da máquina dos outros homens adio outra vez o sonho (como o menino zambeta de rosto colado na vidraça da loja, olha a bola de borracha e quer quem sabe um dia no flamengo – ou no time bonito da rua do sol futebol clube – ser jogador de bola)

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samir Benjamim IX Queria um tempo de mordidas delicadas o quintal, a raladura no joelho o algodão com álcool depois da queda no pé-de-goiaba – não basta a dor no peito? a fruta amarga? o tempo implacável? por que carregar os ombros sob a pena de ter nascido?

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´ ana karenina t araujo feminismo em tempo real E se eu pudesse ser mais feliz do que eu sou eu bem que seria, mas é que há uma porção de acanhamento e luxúria, na luz que falta em meus olhos. É que o feminino também exige doçura e malevolência. Nem sempre se houve o que quer então eu sigo assim mesmo, sendo feliz como posso, dividindo apenas pequenas frestas. Se o azedume supera a cor do dia vindouro não peço desculpas. É que dias como estes já se mostraram deveras turvo. Insondável é a luz do coração que sente, feminino ou masculino e isso só é assim porque sentir já está em desuso, por isso, não me desculpo. A perfeição é um molde que não cabe em nenhum e eu não perco lágrimas para encontrá-la. Estou firme com meus pés na relva, mas minha mente caminha em outras nuvens. Sou assim desde criança e a lua é que me guia Porquê sou eu mesma e ser mulher é o que me representa Se já não há espaço para maneirismos, não tem problema, eu fico aqui feliz comigo mesma, a vestir roupas de época, pois adoro chapéus, som de arpa e sapatos de boneca. Minha vida só sangra quando me aparto de mim. Que venham os bons a me acompanhar porque muita doçura ainda se encontra por entre os bancos das praças E para os dias que ninguém aparece eu fecho os olhos e lembro dos amigos de corpo distante e já sou eu outra vez a luzir mundos possíveis.

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clayton marinho Montagem s/n: heurística <Claudia, ferida, acidente, traço, corpo, sangue>

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LEGENDAs das imagens 1 (1-7) - Frames do vídeo de Claudia; 2 - ‘Nan um mês depois de ser espancada’, Nan Goldin, 1984; 3 - Frames do vídeo de Dandara assassinada por ser travesti, Aratu Online, 2017; 4 - Estamira, Marcos Prado, 2006; 5 - Elizabete com foto do esposo Amarildo, Agência Brasil, 2017; 6 (1-2) - ‘Antropometrias’, Yves Klein, 1960; 7 - Evelyn McHale's, ‘a bela suicida’, revista Time, 1947; 8 - ‘Sem Título’, Jackson Pollock, 1948-9; 9 (1-3) Frames e fotografia de ‘Corpo fendido, entre JPA-NAT’, Artur Souza, 2017; 10 - Torso de Apolo Belvedere, sec. I a.c.; 11 - Frame clipe ‘Mulamba’, Mulamba, 2017; 12 (1-2) - Acidentes de Carro (‘Desastre verde’ e ‘Cinco mortes’), Andy Wahrol, 1963; 13 - ‘Figura com carne’, Francis Bacon, 1954; 14 - ‘Boi esfolado’, Rembrandt, 1655; 15 - ‘Mãe infeliz!’ (desastre de guerra nº50), Francisco de Goya, 1810-1815; 16 - ‘Rapto de Europa’, P. P. Rubens, 1628-9; 17 - ‘Rapto de Proserpina’, Benini, 1621-22; 18 - ‘Rapto das sabinas’, P. P. Rubens, 1635-40; 19 (1-3) - Frames do filme ‘Car crash’, David Cronenberg, 1996; 20 (1-3) - Frames do filme ‘Videodrome’, David Cronenberg, 1983; 21 - ‘Azulejaria verde em carne viva’, Adriana Varejão, 2000.

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~ diego guimaraes

questões a serem deixadas para trás* questões que prendem ventre. peleja. a dificuldade de abandonar algo. como um campo de questões que demanda respostas a elas para qualquer configuração que seja. pesa a trilhos. a coluna torta quase beija o chão.

o corpo se arrasta num campo de captura e condução, labirinto sem respostas que permitam escapar. miragem de questões.

desafio não mirá-las. arremessá-las para trás e abandoná-las, virar-lhes as costas, cagar e andar, dançar cagando e invocar com novas coreografias outras questões. [começa a performance]

* versado e engavetado em dezembro de 2016. espaço de silêncio. desengavetado em dezembro de 2017

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jessica barbosa ´ pena de quem?

´ à Svetlana Aleksiévitch

Quem precisa de pena? Quem deseja, verdadeiramente, esse sentimento de alguém? Ter pena é sustentar um único ponto de vista sobre o mundo É afirmar esse lugar como, além de único, necessariamente melhor e superior A pena é comodismo, segregacionismo Lugar egoísta e narcísico Trabalho “social” de rico

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artistas (?) ana karênina trindade de araújo. Eu nasci em Mossoró RN e minha mãe achou que Ana Karênina seria um bom nome para mim. Até hoje procuro não saber do peso que esse nome poderia exercer sobre mim. Me graduei em filosofia pela UFRN e sou mestre em Estética e Filosofia da Arte na UFOP. Amo as pessoas e suas diversidades e estou por ai entre um ônibus e outro procurando o Ser no mundo. andré vinícius. sonhava em ser poeta ou astronauta quando criança e findou estudante de Filosofia pela UFRN. Vem se dedicando atualmente a investigar a experiência estética e suas possibilidades, tendo como principal instrumento a escrita em diários. clayton marinho. cansado. faz capas e faxinas. E-mail: claytonrfmarinho@gmail.com deivid junio é mineiro, professor, e mestre em Estética e Filosofia da Arte pela Universidade Federal de Ouro Preto. Em 2015, publicou Bal-bu-cio, livro de poemas, pela editora Multifoco/RJ. diego guimarães. autor de enfrentamento (2015) e de instabilidade (2016), livros de poemas publicados de maneira independente, artesanal e de impressão sob demanda. um dos editores da revista raimunda e da revista filosofia de dunas. jéssica barbosa. Cada vez menos. Variando os gestos e os passos da dança. octávio proença de moraes neto. Discente do curso de Licenciatura em Filosofia na Universidade do Estado do Pará (UEPA). Um ser humano como todos nessa constante busca de si. priscila pereira novais. Sou soldado do acaso e filha de lugar nenhum. Trabalho com causas impossíveis. Já enfrentei exércitos de palavras e de súbido me engasguei diversas vezes com essas malditas enquanto elas riam de minha fragilidade. Trabalho com causas impossíveis. Não sei se importa, mas faço mestrado em Metafísica. Meu email: filosofiadosubsolo@gmail.com samir benjamim tem 36 anos, é recifense, mora em feira de santana e está em busca de uma lírica própria, real e explosiva.


chamada para ´ material artistico

Abrangência | A Revista Raimunda oferece um espaço para a divulgação de trabalhos de artistas, o que quer que estes sejam e quaisquer sejam os seus campos, concedendo-lhes total liberdade sobre a obra a ser publicada. Extensão | Não há limite de páginas para as obras, desde que a extensão de uma obra não comprometa a edição da revista. Ocupe o quanto quiser da Raimunda. Sugestão temática | Cada edição conta com uma sugestão temática, que tem a intenção apenas de agrupar tematicamente algumas das obras publicadas na edição em questão, sem, no entanto, limitar as demais; ou seja, permanece a total liberdade do artista na escolha do tema do material a ser enviado. Aquele que estiver seguindo a sugestão de determinado número precisa apenas indicá-lo junto ao envio do material, com vista à organização da revista. A sugestão temática da 10a edição é AMIZADE. O prazo de envio para a Raimunda 10 termina em 12 de JUNHO de 2018. Os interessados devem entrar em c o n t a t o a t r av é s d o e - m a i l : revistaraimunda@gmail.com. ----------------------------------------


chamada para ´ material artistico

Encarte Raimunda Manifesta O encarte, que vem a acompanhar algumas das edições da revista, nasceu para suprir uma demanda de artistas (o que quer que estes sejam) interessados em publicar obras mais extensas na Raimunda, que vem se caracterizando por circular trabalhos mais breves. Portanto, o encarte se destina a trabalhos artísticos que destoam da extensão dos até então divulgados pela revista, por precisarem, pelo menos a princípio, de um percurso mais longo de leitura/observação. Ele visa a atender a tal demanda, e, apenas quando esta se fizer presente, haverá um encarte acompanhando determinada edição. Também aqui, o autor é o responsável pelo conteúdo e pela correção de sua obra. Interessados em participar de tal maneira em alguma edição devem entrar em contato dentro do prazo de envio da mesma. Observação - Apesar de contar com edição impressa, o principal meio de circulação da revista é o virtual. Os editores não se comprometem a enviar cópias impressas para os colaboradores por correio, pois dependem da disponibilidade de recurso para tanto (mesmo assim, sugerem que sempre que haja o interesse em ter as edições impressas, o leitor/artista entre em contato para saber se no momento há a disponibilidade de envio). Já nas cidades sede, as edições impressas estarão sempre disponíveis enquanto houver estoque. A Revista Raimunda é gratuita e sem fins lucrativos.


expediente Revista RAIMUNDA - Esta publicação é independente. ano 5 | número 9 | 2017 Editores Bruno Nepomuceno Clayton Marinho Diego Guimarães Jéssica Barbosa Realizadores da nona edição Clayton Marinho, Diego Guimarães, Jéssica Barbosa Diagramação e arte Clayton Marinho Capa Clayton Marinho Sedes Ouro Preto – Minas Gerais Natal - Rio Grande do Norte João Pessoa - Paraíba Site revistaraimunda.wix.com/revistaraimunda Contato revistaraimunda@gmail.com cada autor foi responsável pelo conteúdo e correção de seu próprio texto.




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