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SEBO: COM 4 LETRAS SE CONTAM MUITAS HISTÓRIAS
Por Dhara Leandro e Mariella Aguiar
Entende-se por “sebo” as livrarias que comercializam livros usados, além de CDs, DVDs, gibis, entre vários outros produtos. Nunca entendi o porquê desse nome, então, como uma criança curiosa que pergunta para a mãe por que a vida é como é, fui procurar, e a resposta foi mais simples do que eu esperava: o termo “sebo” surgiu a partir da ideia de que os livros usados, por serem muito manuseados, ficam cheios de gordura — o sebo em questão.
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Supostamente, os sebos surgiram na Europa no século XVI, quando mercadores passaram a vender papiros e documentos da época para pesquisadores, e chegaram ao Brasil no século XIX. Não se sabe ao certo quando, mas também chegaram na capital do Piauí. Distribuídas pela cidade, as pequenas livrarias compartilham do mesmo objetivo de espalhar conhecimento e cultura. Uma delas, no entanto, me chama a atenção. Abarrotada de livros e revistas usados, a banca do Seu Clemente fica escondida ali do ladinho do prédio dos Correios, na Avenida Antonino Freire — a menor avenida do mundo.
São 16h de uma quarta-feira. Estranhamente, ao chegar no local, me deparo com vários clientes esperando ser atendidos pelo dono do sebo. Sento na calçada frente à barraca observando a interação de Clemente com a clientela. Por várias vezes ele me pergunta se quero alguma coisa. “Quero conversar com o senhor, mas pode atender seus clientes primeiro!”, digo. Quando ele termina e olha para mim, parece que até já sabe o que quero perguntar. “Você é jornalista?”, indaga. Abro um sorriso e explico que estou fazendo uma matéria sobre sebos em Teresina, e ele prontamente se dispõe a me contar sua história. Ali, sentados na sombra em busca de um alívio do calor, ele começa:
“Sou Clemente, mas todo mundo me conhece como Processo. Esse apelido foi um advogado que me deu, porque eu vendia muito livro de Direito. Se você chegar aqui e perguntar quem é Clemente ninguém conhece, só Processo. Mas não vou lhe processar não”, ele diz brincando.
Clemente diz que o que mais vende no sebo são livros escolares e livretos de poesia. E realmente, assim que cheguei uma professora de História comprava com ele vários folhetos de literatura de cordel para usar em sala de aula. Estudantes do Instituto Federal do Piauí também pararam para folhear livros de Química e Matemática, decidindo quais levariam com eles para casa, em Cocais (PI).
O livreiro me conta que a banca era originalmente do Seu Dentinho, dono de um sebo praticamente em frente aos Correios, que só fica aberto pela manhã. Foi Dentinho quem o ajudou a


Livro comprado no sebo de Processo durante a reportagem. Foto: Dhara Leandro.
começar o negócio, oferecendo a ele o trabalho de vender conhecimento e histórias. E foi assim que o Seu Clemente, morador de Timon (MA), passou a ocupar o centro da cidade com sua personalidade amigável, das 8h às 17h, de segunda à sábado.
Depois de algumas horas batendo papo e observando o movimento, Processo me fala, triste, que os sebos estão acabando. É assim mesmo que ele diz: “Os sebos estão acabando”. Segundo ele, falta incentivo à leitura nas escolas, o que acaba prejudicando não só as vendas de livros usados, mas também bancas e livrarias de todo o país. “O jovem de hoje só quer saber de Internet, não tem mais gosto pela leitura. Aqui só quem compra no sebo é o poeta, advogado, o pessoal antigo. Mas jovem é difícil passar por aqui.”
Ele também conta que o esvaziamento do centro da cidade também prejudicou o negócio. Ali, na região da praça Pedro II, poucas lojas continuam abertas, e a falta de pedestres fica clara nos poucos minutos que levam para se deslocar da Central de Artesanato Mestre Dezinho até a Paróquia de São Benedito. Mas isso nem é novidade. Qualquer teresinense (ou cidadão temporário, como eu) sabe que andar no Centro depois que o horário comercial acaba é missão quase impossível. E dia após dia vamos vivenciando a falta de vida noturna naquela região, que acaba entregue à criminalidade e às drogas.
Apesar de tudo, o sebo do Seu Clemente continua com suas portas abertas e livros espalhados. Mesmo que venha a ser a última banca funcionando na região, seu pequeno Oxente!
espaço sempre será um refúgio para os amantes da literatura e para quem gosta de conversa de calçada.
Saí de lá com mais um livro em mãos, mesmo após ter prometido a mim mesma que só iria comprar outro livro após ler aqueles que juntam poeira há meses na minha estante. Também prometi ao Processo que logo voltaria trazendo outras pessoas tão amantes de livros usados quanto eu.
Em uma outra quarta-feira, resolvi conhecer o Dentinho de quem tanto Processo falava. E ficava ali, um pouquinho antes dos Correios. Não ocupava tanto espaço, mas tinha mais livros do que eu provavelmente tinha lido a minha vida inteira. Uma mesma estante misturando Durkheim, Eça de Queiroz e Professor Pasquale. Revistinhas de super-heróis dividindo espaço com Nietzche. Toda uma atmosfera que me trazia de volta para quando eu era criança e estava passeando pelo centro de Brasília com minha avó, passando por bancas de revistas cheias de livros, cruzadinhas e afins. E lá estava ele, uma figura magra, com pouco mais de altura do que eu, boné e máscara: Antônio de Pádua, o famoso Dentinho. Cumprimento-o, digo que sou estudante de jornalismo e vim prestigiar seu trabalho. Ele é bem receptivo, e já me guia pelo lugar.
Vendo-o sozinho em meio a tantos livros, pergunto sobre o movimento daquele dia. “Hoje tá fraco”, responde. Pergunto se não é por conta do meio de semana e a resposta é, ironicamente, não. “Meio de semana é o melhor dia, mas como é final de mês, tá completamente arrasando tudo”, ele ri.
Conversa vai, conversa vem, Dentinho me mostra todo o seu acervo, e eu, surpresa, confesso a ele que nunca tinha ido a um sebo na vida. Dali, ele me conta toda a sua história. Segundo ele, desde criança, seu maior sonho era ter um sebo, que finalmente montou em 2015. Começou sozinho como um ambulante, vendendo revistas. “Colocava as revistas no ombro, você queria uma revista e eu mostrava as capas pra você”, conta, pegando algumas revistas de uma estante e refazendo os movimentos que narrava. Parecia ser memória muscular. Ele cita também que tinha alguns companheiros no trabalho, mas o único que sobrou da turma foi ele. “Alguns morreram, outros foram embora, e eu fiquei”.
A conversa parece encerrar ali. Eu, claramente impressionada com a história do dono do sebo, digo a ele que estou honrada por poder ouvi-la. Por algum motivo, sinto que ele não conta essa história pra tanta gente, ora porque passam muito apressadas pelo sebo, ora porque não querem ouvir. Essa geração de hoje.
Estava de saída do sebo, quando me deparo com um homem olhando os
livros. Decido esperar para ver se era só curiosidade ou se ele vai ficar mais um pouco. Ele fica. Pergunto o seu nome. É Donato Alves, e ele parece ser um frequentador assíduo do sebo.
Seu Donato me conta logo de cara que é professor, então sempre leva livros didáticos para casa. “Na mão dele já comprei vários, de Sociologia, de Filosofia, de História também, Gramática…”, conta, me surpreendendo mais uma vez. Há quanto tempo eu não via um professor de tudo. “Mas eu gosto de ler romances, Machado de Assis, José de Alencar, esses nomes importantes”. Não julgo. Sou apaixonada por Dom Casmurro.
Quando pergunto se o professor pode se considerar um cliente fiel do sebo do Dentinho, recebo uma resposta animada. “Pode-se dizer que sim, agora não sei se ele também acha”, provoca, e logo em seguida Dentinho diz que ele está lá todos os dias. Provavelmente ele também acha, sim.
Antes de ir, seu Donato compra um livro que agora não me lembro bem qual era. Me deseja sorte no curso e diz que também se formou pela Federal. Despede-se de Dentinho e sai, dando lugar a um jovem que buscava livros de Nietzsche em francês. Parecia ser estudante de filosofia. Ele não fica muito tempo e nem consigo perguntar seu nome, mas o que ele está buscando me intriga, e eu nem ficaria surpresa se Dentinho realmente tivesse livros em francês em seu acervo. Até procuro junto para saber se tem, mas só encontro livros em bom português.
Eu queria levar um livro comigo. Gostaria de carregar um pouco da história de seu Dentinho e retomar o hábito da leitura que perdi há tanto tempo. Não pude, mas deixei com ele a promessa de que voltaria para comprar um de seus livros. Ainda não decidi qual, mas sei que vou ler com todo o carinho.
