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O musical six e o silenciamento da HERstory Luiza Schubert Gaudie-Ley
from La sílaba #5
O MUSICAL SIX E O SILENCIAMENTO da HERstory
Luiza Schubert Gaudie-Ley
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Na história, muitas vezes, a representação das mulheres não passa de uma figura em segundo plano, de uma “outra” versão. Podemos afirmar que os que se encontram em posição de poder, geralmente homens, relatam suas narrativas de modo que os beneficiem, silenciando as minorias. Percebe-se atualmente que as novas gerações, com seu senso de justiça, possuem o interesse de ouvir os que foram menosprezados por tantos anos, descobrir novos pontos de vista e fazer com que sejam ouvidos, principalmente através de filmes, livros, músicas e, é claro, do teatro.
Visando essa problemática, em 2017, dois jovens britânicos no último ano da Universidade de Cambridge, Toby Marlowe e Lucy Moss, montaram um musical para recontar a História a partir do ponto de vista das mulheres. As seis esposas de Henrique VIII tornam-se as protagonistas e ele, apenas um figurante. Assim, transformam o palco do Lyric Theatre em West End, numa competição dentro do conjunto musical Six, formado pelas exesposas, entre quem teve a vida mais trágica e por tanto, deve ser a líder. Em cada música, uma rainha conta sobre sua vida antes e após o casamento com o rei e o público é apresentado a personalidades até então desconhecidas. O espetáculo transborda referências à cultura pop, humor ácido, figurinos e letras inspiradas Beyoncé, fofocas da corte inglesa, feminismo e um toque de rivalidade, por tais motivos fez tanto sucesso entre o público jovem britânico. No número de abertura temos uma breve apresentação das personagens: A Primeira esposa, a espanhola Catarina de Aragão, divorciada por ser julgada incapaz de conceber um herdeiro para o trono e mandada para um convento. Em sua canção ela expressa a indignação após atuar o temperamento difícil de seu marido e de seus diversos relacionamentos extraconjugais por quase de vinte e quatro anos e canta:
“Então você lê um versículo da Bíblia que eu sou amaldiçoada porque eu era a esposa do seu irmão. Você diz que é uma pena, porque citando Levítico, vou acabar sem crianças a vida toda. Bem papai, você não estava lá? Quando eu dei à luz Mary? (Filhas são tão fáceis de esquecer) (...) Você deve pensar que eu sou louca Você quer me substituir. Se você pensou que seria engraçado enviar-me para um convento, querido, não tem como.” A seguir, Henrique já interessado pela dama de companhia de Catarina, Ana Bolena, consegue a anulação de seu primeiro casamento, se afasta da Igreja Católica e casa-se com Ana, que posteriormente é decapitada sob as acusações de traição, incesto e adultério por ser abertamente contra o comportamento libertinoso

do marido (e também por não ter gerado um filho, “apenas” sua filha Elizabeth I). “Tentamos casar escondido, mas o papa disse 'Não!' Nossa única esperança era Henry. Ele recebeu uma promoção, causou uma comoção. Criou a sua própria Igreja (...) Em breve excomungado. Todo mundo relaxa, é totalmente a vontade de Deus.” A próxima é Jane Seymour, que faleceu após dar à luz ao seu filho, que segundo ela, era a única razão para que o esposo a amasse. A seguir, Anna de Cleves, a quarta esposa, divorciada após seis meses de um casamento não consumado, uma vez que Henry a achou diferente da pintura a qual tinha sido apresentado. Apesar de ter sido rejeitada, confirma que não precisava dele: “(...) verifique meu acordo pré-nupcial e vá entender. Tenho correntes de ouro Simbólico da minha fé ao poder superior. Na pista rápida meus cavalos podem trotar até doze milhas por hora. Ninguém me diz que preciso de um homem rico, fazendo minhas coisas no meu palácio em Richmond.” Catarina Howard, casada com apenas 17 anos, após uma vida de abusos por homens mais velhos, foi executada por adultério e suas palavras finais foram “Morro como rainha mas preferiria morrer como esposa de Culpepper” (cortesão e amigo próximo do casal, com quem ela tinha um relacionamento). Finalmente, a sexta e última esposa, Catarina Parr, sobreviveu e acompanhou o rei em seu leito de morte. Na penúltima música, “I don't need your love”, liderada pela mesma, ela discorre sobre como se sente impotente, já que é obrigada a casar-se, apesar de estar apaixonada por outro homem. Em um trecho da canção ela relata:
“Eu não tenho escolha, com o rei eu fico viva, eu nunca tive escolha. Fui esposa duas vezes antes, apenas para sobreviver. (...) Se o Henry diz: é você, então é você. Não importa como eu me sinta, é o que eu tenho que fazer. Mas se, de alguma forma, eu tivesse essa escolha. eu não iria me segurar, eu levantaria minha voz.”
Frustrada com a briga entre as rainhas, Parr conta sobre suas conquistas pessoais, reafirmando que as mulheres não existem apenas para servir à um propósito dos homens, que elas também são indivíduos e que está cansada de ser lembrada apenas pelo seu vínculo com Henrique VIII. E continua: “(...) casei com o Rei, me tornei aquela que sobreviveu. Eu contei a vocês sobre a minha vida, da última esposa, mas porque essa deve ser a história que eu tenho que cantar sobre? (...) Eu estou fora, essa não é a minha história. Existe muito mais que isso. Lembrem-se que eu fui uma escritora, escrevi livros, salmos e meditações, lutei pela educação feminina, para que todas as mulheres pudessem estudar escrituras, eu até pedi a uma mulher para me pintar. Por que eu não posso contar essa história? Porque na história eu sou colocada como uma das seis e sem ele eu desapareço. Todas nós desaparecemos.” As personagens percebem que não precisam da aprovação ou do amor do ex-marido, já que elas têm umas às outras e se juntam nos versos finais da canção: “Eles sempre disseram que nós precisamos do seu amor, mas é hora de nos colocarmos em primeiro lugar. Não é o que aconteceu na história, mas hoje à noite eu estou cantando isso por mim. Henry, sim, eu cansei (...) Estamos retomando o controle. Você precisa saber: Eu não preciso do seu amor, (...) Não podemos deixar que isso tire o melhor de nós, não, não”
No encerramento, cantam sobre a idealização da vida de cada uma, um final feliz, caso não tivessem casado com o monarca. 7
Catarina de Aragão se junta ao convento e canta no coral da Igreja. Ana B. recusa os poemas de amor e os transforma em textos para William Shakespeare (uma pequena brincadeira, confirmando os rumores que na verdade, ela seria a responsável pelas obras do poeta). Jane forma uma banda com sua família. Ana de Cleves volta para casa e viaja pela Prússia. Catarina H. recusar as investidas de homens, voltando sua atenção para a música e Catarina P. encontra todas as cinco e as junta em uma banda. “Eu não preciso do seu amor, eu só preciso das seis. Nós somos únicas, sem categorias, muitos anos perdidos na história (dele), nós estamos livre para tomar nossa glória (...) Esse é o fim do show, do remix da história, nós mudamos o fluxo e mudamos o prefixo.” Ao longo dos anos, a questão do apagamento ou a falta do devido reconhecimento é presente e nos permite questionar e problematizar a razão pela qual isso ocorre. Como bem apontado pela escritora feminista nigeriana Chimamanda Adichie em sua palestra O perigo da história única “É impossível falar sobre única história sem falar sobre poder.”, pois torna-se evidente que a posição na hierarquia econômica, social e de gênero influencia diretamente na versão dos acontecimentos tomados como fatos .Certamente, muitos ainda não tiveram sua verdadeira história, contada para o mundo.
“A história única cria estereótipos. E o problema com os estereótipos não é eles serem mentira, mas eles serem incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.” -Chimamanda Adichie Você pode encontrar a trilha sonora do musical Six em: https://open.spotify.com/album/ 5jTDaLFNQovRyjNcWe4cZh?si=H69tmdVuSY2xrJxIkDWKiw