Revista lampião - Nº 6

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índice

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SEM TERRA, MAS COM MUITA HISTÓRIA (p. 9) de

Maria Eduarda Amorim

A história de luta pela terra no Brasil já é antiga e remete desde antes da holofote

DELZE LAUREANO (p. 4) Entrevista com Delze Laureno, professora de Direito Agrário na UFMG cultura

RESENHA: O SONHO DE ROSE 10 ANOS DEPOIS (p. 31) de

Carolina Rodrigues

SE O CAMPO NÃO PLANTA, A CIDADE NÃO JANTA (p. 14) de

de

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Vanessa Souza

e

Leonardo Manffré

Conheça a história de Ivete de Almeida, líder dos produtores rurais do Assentamento Rural Horto Florestal, na divisa entre Bauru e Pederneiras, interior de São Paulo

NÃO É TERRA, É PODER (p. 24) de

PLAYLIST: MOVIMENTOS SOCIAIS PELA TERRA (p. 32)

Carolina Baldin

Gabriel Hirabahasi

A dificuldade em se criar o debate sobre a reforma agrária não é de hoje e tem mais a ver com a relação de poder da propriedade do que com a utilização da terra

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editorial

MOVIMENTOS SOCIAIS PELA TERRA A luta pela terra no Brasil já é antiga. Segundo relatório do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), temos a 8ª maior desigualdade social do mundo, e isso tem influência direta da distribuição de terras em nosso território. Segundo o Incra, as terras ociosas representavam, em 2010, 40% das grandes propriedades no país. Cerca de 230 milhões de hectares estão abandonados ou produzem abaixo da capacidade, logo, não cumprem sua função social. Essa má distribuição histórica, que pode ser atribuída às capitanias hereditárias, resultou no surgimento de diversos movimentos sociais que reivindicam uma desconcentração da terra nas mãos de alguns poucos produtores. Atualmente, o que mais aparece na mídia é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), mas existem diversos outros, como o Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Nossa Constituição prevê a desapropriação de terra em caso em que a função social do espaço não esteja sendo cumprido. Contudo, a aplicação da lei é esquecida, até mesmo por conta da bancada ruralista, que representa forte influência no poder político em Brasília. Porém, a situação tem mudado gradativamente (mesmo que a passos lentíssimos). Em várias regiões do Brasil, já temos famílias assentadas em loteamentos destinados à reforma agrária (quando o governo compra o lote de terra e repassa ao pequeno proprietário com condições específicas de financiamento). Ivete de Almeida, figura de uma de nossas reportagens, por exemplo, vive na divisa entre Bauru e Pederneiras, estado de São Paulo, onde está localizado o Assentamento Rural Horto Florestal, e é presidente da Cooperativa do Agricultor Familiar Solidário, que engloba cerca de 115 famílias. Por conta de tudo isso, decidimos debater em nossa 6ª edição a luta desses movimentos sociais e discutir a distribuição de terras no Brasil e quais seriam os impactos socioeconômicos de uma reforma agrária em nosso país hoje.

Diretor Executivo Gabriel Hirabahasi Diretor Jurídico Rafael Barizan Conselho Editorial Carolina Rodrigues, Estevão Rinaldi,

Gabriel Hirabahasi, Maria Eduarda Amorim, Rafael Barizan, Thafarel Pitton e Vanessa Souza Editoras Carolina Rodrigues, Maria Eduarda Amorim e Vanessa Souza Diagramador Gabriel Hirabahasi Foto de capa Leonardo Manffré Repórteres/Colaboradores Carolina Baldin, Carolina Rodrigues, Gabriel Hirabahasi, Leonardo Manffré, Maria Eduarda Amorim e Vanessa Souza Contato contato@revistalampiao.com.br

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Edição nº 6 Movimentos sociais pela terra

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holofote

DELZE LAUREANO A entrevistada da 6ª edição da Revista Lampião é Delze dos Santos Laureano, professora de Direito Agrário na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Delze é formada em Direito pela própria UFMG e se especializou no ambiente agrário. Atualmente, integra também a comissão de Direitos Humanos da OAB/MG. Conversamos com Delze para esclarecermos um tópico específico sobre a luta dos movimentos sociais: a reforma agrária. “Ela deve ser uma política nacional com ganhos sociais para todos”, Delze diz sobre a reforma. Entretanto, a professora lamenta que o tema ainda seja pouco debatido no Brasil. “Isso se explica, em parte, por conta do tabu criado em torno do assunto, atrelando-o às ideias comunistas. Some a isso a sacralização do direito de propriedade”, acredita. No governo federal, onde há a divisão entre ministério da Agricultura e ministério do Desenvolvimento Agrário, a reforma também não é posta em prática. “A presidenta Dilma depende do apoio desse segmento [bancada ruralista] para a sua governabilidade”, ela analisa. Confira a seguir a entrevista completa com Delze dos Santos Laureano:

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Como a reforma agrária poderia contribuir para o país social e economicamente? Qual seria o impacto da reforma sobre o país? Algumas pessoas têm defendido que não é mais pertinente defender uma política nacional de reforma agrária no Brasil. Isso porque não haveria mais latifúndio improdutivo por aqui. Entretanto, essa é uma visão atrasada das questões agrárias. Sob a visão do liberalismo, especialmente no início do século XX, defendia-se a necessária repartição da terra de modo a que fossem criadas as condições para o desenvolvimento do país. A manutenção de enormes áreas de terras improdutivas era um atraso para o avanço do capital. Nos Estados Unidos, por exemplo, sabia-se que as pequenas propriedades eram muito mais produtivas do que as grandes propriedades. Após o Estado liberal, a Europa e outros países do mundo passaram pela experiência do Estado social, no qual o princípio da função social da propriedade tornou-se a base para o reconhecimento constitucional do próprio direito de propriedade. Na atual Constituição brasileira, de 1988, a exigência do cumprimento da função social para os imóveis rurais está expressa no Art. 186, que engloba não apenas o aspecto econômico da produtividade, mas também os aspectos sociais do respeito às normas atinentes aos direitos do trabalho e o bem estar dos que possuem e trabalham a terra e ainda os direitos ambientais. Tudo isso de forma concomitante. Nos dias atuais, em face das crises econômicas (que são a consequência mais perversa da falta de autonomia dos Estados nacionais imposta pelo capitalismo internacional) e pelos graves problemas ambientais, a reforma agrária adquire uma nova feição essencial que passa pela capacidade de os trabalhadores rurais construírem uma rede de atividades econômicas independentes do grande capital e para a manutenção dos meios de produção que valorizem a cultura camponesa e proporcionem uma melhor distribuição da população sobre o território. Nessa esteira, pode-se citar a oportunidade de fortalecimento do combate ao uso excessivo de agrotóxicos, o

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fomento da agricultura familiar embasada no paradigma da agroecologia e a efetivação das políticas de segurança e soberania alimentares. Tudo nos termos do Art. 3º da Constituição da República, que enumera os objetivos de construção de uma sociedade livre, justa, solidária e capaz de erradicar a pobreza e a marginalização por meio do desenvolvimento regional. Portanto, o impacto da reforma agrária, sendo implementada, será extremamente positivo da perspectiva social e econômica, se considerarmos que a melhor política econômica é a que distribui renda e não aquela que gera mais desigualdade social. A agricultura familiar, por meio da qual estão mais de 400 mil famílias assentadas, produz cerca de 70% da alimentação do povo brasileiro, produção saudável sem o uso indiscriminado agrotóxico, o que está denunciado com contundência nos filmes de Sílvio Tendler O veneno Está na Mesa I e II. Mais do que atender interesses econômicos de uma minoria proprietária de terras, a reforma agrária na atualidade poderá contribuir decisivamente para democratizar o desenvolvimento das pessoas que vivem no campo e na cidade, preservando a cultura camponesa e promovendo o crescimento econômico de todos. Por que ainda se discute pouco a reforma agrária no Brasil? Seria herança da colonização e da distribuição de terras a poucos? A reforma agrária, de fato, é um tema pouco discutido no Brasil, considerando a dimensão continental do Estado brasileiro e os inúmeros conflitos existentes na luta pela posse da terra. Por terra se briga e se mata. No entanto, isso se explica, em parte, por conta do tabu criado em torno do assunto, atrelando-o às ideias comunistas. Some a isso a sacralização do direito de propriedade. Muitas pessoas são contra a reforma agrária sem saber exatamente do que se trata. A maioria da população apoia a reforma agrária, mas é contra as ocupações de terra, o que é uma contradição, pois ocupar os latifúndios é meio imprescindível para forçar a realização das desapropriarevistalampiao.com

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ções das fazendas que não cumprem sua função social. Vale ainda acrescentar que concentração fundiária é de fato uma herança da colonização portuguesa por meio da distribuição de enormes áreas de terras (sesmarias) aos amigos do rei. Apesar das sucessivas leis, não houve uma mudança nessa realidade, permanecendo as terras em poucas mãos e tornando-se um bem de capital inacessível para a quase totalidade da população que permaneceu sem trabalho ou nos trabalhos de baixa remuneração. Bom recordar que antes da abolição formal da escravidão em 1888, a terra foi escravizada com a Lei 601, de 1850, segundo a qual a única forma de adquirir terra é através de compra. Existe, atualmente, um projeto de reforma agrária? Podemos afirmar, pelo menos literalmente, que existe uma política nacional de reforma agrária no texto constitucional, especialmente no artigo 184. A Constituição atribuiu à União o poder/dever de desapropriar os imóveis rurais que não cumprem a função social, mediante pagamento em títulos públicos (TDAs), destinando-os para o assentamento de trabalhadores rurais. Todavia, esses dispositivos constitucionais têm sido sistematicamente descumpridos pelos sucessivos governantes, que somente têm feito isoladas intervenções de assentamentos onde há a mobilização dos trabalhadores. Mais grave: os índices de produtividade não são atualizados desde a década de 1970. O governo federal, por pressão do lobby da bancada ruralista, não atualiza esses índices, o que deixaria claro o descumprimento da função social quanto à produtividade. Caso essa análise fosse cumprida, um número muito grande de latifúndios seria disponibilizado para fins de reforma agrária. Isso é uma aterradora injusta agrária. Como esse assunto foi debatido nas Eleições? O tema da reforma agrária foi praticamente ignorado nos debates das eleições de 2014. O debate econômico foi a pauta que dominou os debates. No segundo turno, as estratégias

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eleitoreiras preferiram canalizar os debates para as agressões entre os candidatos e a pauta política perdeu espaço para o debate de temas que diziam respeito ao direito penal, como o trato da corrupção e dos desgovernos, infelizmente. Além disso, a bancada ruralista se mantém no congresso. Como essa parcela de deputados e deputadas interfere no debate da reforma agrária? A chamada bancada ruralista faz a defesa corporativa dos interesses políticos e dos negócios dos latifundiários, da aristocracia agrária e dos seus aliados nas casas legislativas. Para a bancada ruralista, não é interessante debater a reforma agrária e, sim, o aumento da produção de commodities para a exportação. Defendem também a expansão das atividades agropecuárias do agronegócio para as terras indígenas e das comunidades tradicionais, ainda que ferindo frontalmente a Constituição Federal. Como a senhora vê a atual situação agrária do Brasil e os ministros Kátia Abreu e Patrus Ananias, nomeados por Dilma para esse segundo mandato? Como atender aos interesses do agronegócio e da agricultura familiar ao mesmo tempo? Historicamente, as atividades agrícolas têm sido tratadas em foros separados das questões agrárias, apesar de estarem em um mesmo título no texto constitucional. Apesar disso, acredito na capacidade política do atual ministro Patrus Ananias, do Desenvolvimento Agrário, para articular, em diversos setores, políticas nacionais de fortalecimento da agricultura familiar, protegendo a cultura camponesa e assegurando renda e desenvolvimento para os pequenos proprietários de terra. Ele deverá, também, abrir espaço para a ampliação da política de reforma agrária sistematicamente adiada, bem como para a proteção das terras indígenas e dos milhares de comunidades tradicionais existentes. Tudo isso apesar de o governo federal não ter como diminuir o apoio para a sustentação política e econômica do agronegócio de Kátia Abreu, pois a presidenta Dilma depende do apoio desse segmento para a sua governabilidade. Dilma poderia, e deveria, se apoiar mais nos

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movimentos sociais, mas prefere se apoiar no apoio de uma coalisão que muda o tempo todo no Congresso Nacional. No aspecto social, qual o impacto de uma possível reforma agrária para a desigualdade no país? A reforma agrária ainda é a melhor política para a distribuição da população sobre o território, para criar as bases de uma economia independente e duradoura, para o fortalecimento da soberania nacional, para a geração de trabalho e renda e desenvolvimento regional, e para o combate ao uso excessivo de agrotóxicos (criando espaços para as práticas agroecológicas). Enfim, é a melhor política para a emancipação de milhões de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza ou que não são reconhecidos em sua espetacular singularidade de guardiões da cultura camponesa no Brasil. Uma reforma agrária solucionaria os problemas das famílias sem terra? A reforma agrária não é uma política para atender aos interesses dos trabalhadores sem terra exclusivamente. Ela deve ser uma política nacional com ganhos sociais para todos. Todavia, considerando que as questões são muito complexas, não se trata de uma mágica. A repartição da terra deverá ser seguida com diversas outras medidas de empoderamento dos trabalhadores, como o respeito aos direitos humanos, a criação de diversas outras oportunidades para a promoção humana e a integração desses trabalhadores em outros projetos de desenvolvimento nacional. Por fim, a senhora é a favor da reforma agrária? Por quê? Sou totalmente favorável à implementação de uma reforma agrária popular, pois é a melhor política pública devido ao seu baixo custo para o país. Ela deve fortalecer os setores historicamente abandonados pelas políticas públicas, por combater a exploração do trabalho humano país afora, por criar as condições para a produção de mais alimentos (e ainda saudáveis, pela baixa utilização de agrotóxicos) para todos os brasileiros, e por assegurar condições de vida digna para milhões de pessoas no menor espaço de tempo. revistalampiao.com

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reportagem

SEM TERRA, MAS COM MUITA HISTÓRIA 9


Maria Eduarda Amorim de Marcelo Camargo / Agência Brasil

texto de imagem

N

o Brasil, o acesso à terra é historicamente desigual entre a população. Do período colonial

das monoculturas até a configuração atual do agronegócio, o latifúndio sempre foi sinônimo de poder. Em consequência de uma organização social patrimonialista e patriarcalista, as camadas menos favorecidas, como escravos, ex-escravos ou homens livres de classes menos favorecidas, tiveram maiores dificuldades à posse da terra. Em 1850, o Império decretou a Lei de Terras, que consolidou a concentração fundiária. Nessa lei se encontra a origem da grilagem (a apropriação de terras devolutas por meio de documentação forjada), que regulamentou e consolidou o modelo da grande propriedade rural e formalizou as bases para a desigualdade social e territorial. Por conta desse e de outros fatores é que se fez necessária a discussão e a luta política pela Reforma Agrária, o que culminou na estruturação o Movimento Sem Terra (MST). O MST nasceu da articulação das lutas pela terra, que foram retomadas a partir do final da

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S sem terra

movimento

MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra): fundado em 1984, atua em território nacional e luta pela Reforma Agrária, pela terra e pela construção de uma sociedade mais justa. Formas de luta: ocupação de terras e prédios públicos, acampamentos, marchas, jejuns e greves de fome, vigílias e manifestações. MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra): é uma dissidência do MST criada em 1994. É considerado o segundo maior grupo de trabalhadores sem terra, atrás somente do MST, com presença em cerca de nove estados brasileiros. É o mais radical dos movimentos: prega a tomada do poder pela força e defende a revolução socialista a partir do campo. Sua prática, entretanto, não difere muito da do MST. MLT (Movimento de Luta pela Terra): surgiu em 1994, no sul da Bahia, pela crise das fazendas de cacau da região. Está organizado em Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Pará. Adota as mesmas táticas do MST: ocupações e acampamentos. MASTER (Movimento dos Agricultores Sem Terra): foi o primeiro movimento de pequenos agricultores, surgido no Rio Grande do Sul, no final dos anos 50. Era fortemente ligado a lideranças do antigo Partido Trabalhista (PTB) e do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Apesar de ter curta duração e atuação apenas no RS, foi o embrião do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). MTST (Movimento do Trabalhadores Sem Teto): fundado em 1990, é um movimento territorial de trabalhadores. Reúne operários, informais, subempregados e desempregados que vivem de aluguel, de favor ou moram em áreas de risco pelas periferias urbanas do Brasil. Sua luta é contra a especulação imobiliária, o capital e o Estado. Atuam com ocupações de terras urbanas e prédios públicos, bloqueios de ruas e avenidas e marchas.

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histórico do

MST

1° Encontro Nacional, em Cascavel: tem-se como orientação a ocupação de terra como forma de luta. Definiu-se os princípios do MST: a luta pela terra, pela Reforma Agrária e pelo socialismo.

1º Congresso Nacional do MST: a meta era partir para as ocupações. Construíram-se os lemas “Terra para quem nela trabalha” e “Ocupação é a Única Solução”. - No governo de Sarney, nasce o Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA), que previa aplicar o Estatuto da Terra e assentar 1,4 milhão de famílias. O plano, porém, fracassou.

Jornal Sem Terra recebe o prêmio Vladimir Herzog.

Nova Contituição com os artigos 184 e 186, que garantem a desapropriação de terras que não cumpram sua função social.

Início do gover caracterizado p repressão cont Sem Terra.

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Eldorado dos Carajás (PA): durante uma ação no Município de Eldorado dos Carajás, que reivindicava promessas não cumpridas pelo governo, outro confronto com policiais resultou na morte de 21 Sem Terra e outros 56 feridos/ mutilados.

Inauguração da exposição de Sebastião Salgado sobre a luta pela terra. Lançamento do livro “Terra”, com fotos da exposição, apresentação do escritor português José Saramago e acompanhamento do CD de Chico Buarque.

Jornada Nacional de Lutas: protestos em vários estados contra as medidas do governo FHC, como o Banco da Terra, a tentativa de extinção do Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (Procera) e o projeto de emancipação dos assentamentos.

4º Congresso Nacional: “Por um Brasil sem latifúndio”.

década de 1970. Em setembro de 1979, centenas de agricultores ocuparam as granjas Macali e Brilhante, no Rio Grande do Sul. Em 1981, um novo acampamento surgiu próximo a essas áreas: a Encruzilhada Natalino, que se tornou símbolo da luta de resistência à ditadura militar. Foram as primeiras ações tomadas para a ocupação de terras. Entre 21 e 24 de janeiro de 1984, o movimento estruturou-se formalmente, durante o Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores Sem Terra, em Cascavel, no estado do Pa-

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Eleição de Lula agricultura se a os pequenos a assentados com monocultura d

raná. “Assim como muitas ocupações de terras, o Movimento Sem Terra nasceu ao final de uma longa noite escura. A alvorada das greves operárias, da campanha pela Anistia geral e irrestrita, os novos movimentos sociais urbanos e as Diretas-Já, que encerravam a ditadura militar, permitiram também a retomada da luta pela terra e pela reforma agrária no Brasil”, relata Marina dos Santos, integrante da coordenação Nacional do MST, em um artigo para a Carta Capital. Hoje, o MST está organizado em 24 estados e são cerca de revistalampiao.com

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rno Collor, por uma forte tra a luta dos

2º Congresso Nacional: as ocupações foram reafirmadas como principal instrumento de luta pela Reforma Agrária, com o lema “Ocupar, Resistir, Produzir”.

Criação da Vila Campesina, um movimento internacional que reúne organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres camponesas e comunidades indígenas dos cinco continentes.

Durante o governo FHC, o Ministério do Desenvolvimento Agrário “clonou” assentamentos criados em governos anteriores e governos estaduais, registrando-os como assentamentos novos. Nem mesmo o Incra conseguiu afirmar quantos assentamentos foram criados de fato.

3º Congresso Nacional:“Reforma Agrária, uma luta de todos”.

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Felisburgo (MG): após dois anos de ocupação da fazenda Nova Alegria pelo MST, o dono Adriano Chafik junto a mais 17 pistoleiros invadiram o acampamento com tiros aleatórios. O resultado foi a morte de cinco homens, 20 pessoas gravemente feridas e 200 famílias

5º Congresso Nacional: “Reforma Agrária, por Justiça Social e Soberania Popular”.

6º Congresso Nacional: “Lutar, Construir Reforma Agrária Popular!”.

a: situação da agrava para agricultores e m a lógica da de exportação.

350 mil famílias que conquistaram a terra por meio da luta e da organização dos trabalhadores rurais. O movimento segue com os mesmos objetivos definidos no encontro de 1984 e ratificados em 1985, no 1º Congresso Nacional, em Curitiba: lutar pela terra, pela Reforma Agrária e pela construção de uma sociedade mais justa, sem explorados nem exploradores. Nos últimos anos, a luta pela Reforma Agrária ganhou também um novo adjetivo: “popular”, pois o movimento percebeu que esse não é um problema e uma necessidade apenas dos Sem

Reforma Agrária popular.

Terra, mas sim uma necessidade de toda sociedade brasileira. “A luta pela Reforma Agrária implica em enfrentarmos o capital e seu modelo de agricultura, disputar terras e território, bem como o controle das sementes, da agroindústria, da tecnologia, dos bens da natureza, da biodiversidade, das águas e das florestas. Portanto, a reforma agrária popular que defendemos baseia-se na defesa da soberania, no respeito e no combate à mercantilização dos bens da natureza e na produção de alimentos saudáveis à população”, conclui Marina.

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SE O CAMPO A CIDADE texto e imagens de

Carolina Baldin

e

Leonardo Manffré*

* Carolina Baldin é estudante de Jornalismo da Unesp Bauru e colaboradora da Revista Lampião

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NÃO PLANTA, NÃO JANTA * Leonardo Manffré é estudante de Jornalismo da Unesp Bauru e colaborador da Revista Lampião

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lena madrugada, capangas de grileiro atearam fogo

aos barracos para expulsar ocupantes. Uma voz tenta liderar um grupo para verificar o que acontecia, mas ninguém se mobiliza. “Bom, se não tem homem, vou eu!”, diz, e, aos poucos, quinze homens a acompanham. Na assembleia do dia seguinte era consenso: “O homem mais homem desse assentamento aqui é a Ivete, não adianta!”.

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“Pobre é igual lombriga, se sai da merda, morre. É mais ou menos por aí, não é? Mas eu vou continuar, enquanto eu tiver força eu vou continuar… plantando, sabe? É coisa que eu gosto de fazer”, diz Ivete

Agricultora, criada em sítio e mulher de luta: Ivete de Almeida, 52, é presidente da Cooperativa do Agricultor Familiar Solidário, do Assentamento Rural Horto Florestal Aimorés, na divisa dos municípios de Bauru e Pederneiras. A entidade organiza atualmente cerca de 115 famílias de produtores rurais, assentadas na área do Gleba 1. Iniciada em meados de 2003, a luta pela ocupação não foi fácil e segue até hoje - Ivete conta orgulhosa que há cinco anos os lotes estão regularizados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e esperam em breve receber o papel definitivo de posse. O terreno do Horto Florestal tem mais de cinco mil hectares e pertencia originalmente à antiga Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa). No fim dos anos 90, por acerto de dívidas, a propriedade passou ao Estado de São Paulo e, com a extinção da companhia de rede ferroviária, o patrimônio foi transferido à União. A terra, sem investimentos ou fiscalização, foi arrendada da União para Antônio Ermírio de Moraes, que cultivava extensas monoculturas de eucalipto. De maneira irregular, ele também concedia espaço para grileiros criarem bois. A não-produtividade do local motivou a ocupação da área por grupos de agricultores familiares, que, mesmo com incansáveis e violentas tentativas de expulsão por capangas armados, lutaram e resistiram em comunidade. “A luta foi muito complicada, muito sofrida... A gente

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O Assentamento Horto Aimorés tem 90% de seu território localizado no município de Pederneiras, enquanto os outros 10% fazem parte da cidade de Bauru

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fazia um barraco e, quando tava terminando de montar, a polícia chegava com cavalaria e cachorros, expulsava todo mundo. Aí a gente tinha que sair dali com tudo nas costas e começar de novo. Foi assim por bastante tempo”, relata Ivete. Ela lembra que no começo muitos passaram necessidade e dependeram de doações de dinheiro e comida. Mas nem sempre havia compreensão, conta: “Tinham uns que diziam ‘Ah, por que vocês não vão trabalhar, seus vagabundos? Vocês querem roubar terra dos outros!’. Mas ninguém entendia que não é terra dos outros”. Sobre a concentração de terras no Brasil, Ivete reclama que o agronegócio é priorizado e os agricultores familiares não recebem o investimento necessário: “A gente fica sem espaço principalmente pela monocultura de cana, laranja, eucalipto. É uma pessoa só ganhando muito, sendo que muita gente com vontade de trabalhar poderia estar matando a fome desse povo, até mesmo dos que só sabem meter o pau na gente”, argumenta. revistalampiao.com

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A luta pela terra continua. O caso particular de Ivete pode ser colocado na mesma categoria de milhões de brasileiros: os que lutam por um pedaço de terra nas áreas rurais. Mas, neste país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, por que então não sobraria terra alguma para eles? Segundo o relatório Crimes do Latifúndio, realizado por diversas organizações, em 2003, 1% dos proprietários rurais possuíam cerca de 46% de todas as terras produtivas do Brasil e dentre esses 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões eram utilizados para lavoura. O documento constata que naquele ano havia cerca de 4,8 milhões de famílias sem terra no país, e conclui com dados que comprovam que são os pequenos produtores os responsáveis pela grande maioria da produção e empregos no campo. Uma das organizações que elabora o documento é a Comissão Pastoral da Terra, importante movimento na luta por justiça no campo brasileiro. Fundada em 22 de junho

A luta para conseguirem água e energia elétrica no Assentamento Horto Aimorés se estendeu por anos. O programa federal responsável por uma destas conquistas foi o “Luz Para Todos”

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Casa que a moradora conta ter construído sozinha. Diz ela que gastou 7 mil reais e só teve ajuda do ‘compadre Zé Maria’ no início, para fazer a fundação da casa

de 1975, em plena ditadura militar, pela sensível situação em que se encontravam as relações entre trabalhadores rurais, posseiros e peões, em especial na Amazônia. Depois, porém, o movimento veio a se espalhar por todo o país em resposta à conflitos gerados pelo ideal de progresso, acompanhando os atingidos por grandes projetos de barragens e mais tarde os sem-terra. A realidade opressora e a luta por direitos e justiça nessas áreas originaram outros grandes Movimentos em torno da Luta pela Terra. Um exemplo atual, destaque da grande mídia pela proporção que tomou nos últimos tempos, é o MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. A organização se distribui em 24 estados brasileiros e se mobiliza pela realização da Reforma Agrária, para que o acesso à terra e a produção de alimento sejam democratizados. Fundado em 1984, no contexto pós-ditadura de reabertura do país, o MST tem como instrumentos de luta a ocupação de terras, acampamentos, marchas, barricadas, manifestaçõe e vigílias. A luta política e as bandeiras do movimento se fizeram - e ainda se fazem - necessárias para um debate mais amplo sobre transformação política, social e econômica do Brasil. Não é só pela terra, mas pelo que ela simboliza. O MST, a Ivete e todos os indivíduos que constroem esses Movimen-

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Quando perguntada sobre a sensação de ter conquistado uma terra, hoje ela respira fundo e solta de uma vez: “É meu maior orgulho, né. Viajo pra casa da minha filha e no outro dia já quero estar aqui, porque eu fico preocupada. Nossa, não consigo ficar longe. Eu me apeguei” tos reivindicam não apenas um pedaço de terra pra viver, mas também a mudança das relações nas áreas rurais do país. São respostas à lógica de concentração fundiária no campo, exigindo ampliação, revisão ou mesmo aplicação das políticas públicas já existentes. A intensa concentração de terras no Brasil existe desde 1530 e é herança das capitanias hereditárias. Porém, essa questão só começou a ser debatida pela sociedade nos anos 60, com o rápido processo de urbanização do país e também com a criação das Ligas Camponesas, no Nordeste. Em março do ano de 1964, o então presidente João Goulart anuncia no Comício das Reformas a desapropriação de terras localizadas às margens de rodovias, ferrovias e obras públicas, destinadas à reforma agrária. Porém, no ínicio do mês que se segue, acontece o golpe que instaura o período de Ditadura Militar, que distorce essas políticas por 21 anos, priorizando e incentivando as culturas de exportação, como a soja, aumentando consideravelmente o número de latifúndio. A pauta retorna com a redemocratização do país, mas a passos lentos. Hoje a Reforma Agrária é considerada importante em termos sociais, políticos e econômicos para o

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país, aumentando a produtividade agrícola e atuando no combate da desigualdade social e da má distribuição de renda. Porém, desde as primeiras tentativas de implantação, essa política enfrenta dificuldades. Entre elas se destacam entraves jurídicos, o acompanhamento e custo das famílias de assentados para o governo e principalmente a forte resistência dos grandes proprietários na efetivação dessas reformas, pois se prestigiam de histórico poder econômico e político no país. Desse modo, a luta por terras no Brasil pode ser entendida como busca de muitos por justiça e por reconhecimento de direitos em um modelo de desenvolvimento que não os inclui, os marginaliza. A história da família de Ivete e a motivação para a vida que escolheu ilustram bem essa situação: “Meu pai morreu quando eu tinha uns três anos. Me contaram que ele trabalhava pra um grileiro no Paraná que expulsava e mandava matar as pessoas. Era uma luta, o pessoal queria um pedaço de terra pra plantar, e meu pai era capanga desse fazendeiro. Ele matava gente inocente. Já que ele lutou tanto contra, eu quero lutar bastante a favor. É isso que me motiva”, revela. revistalampiao.com

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A agricultora confere as mudas de tomate que acabam de chegar para o começo de um novo projeto de cultivo

Horta em que Ivete cultiva os vegetais para a venda. Entre eles há alface, couve, cebolinha e abóbora. Há também uma pequena estufa que contribui com a produção. “Nós temos 72 entidades que a gente abastece na região de Bauru, com produtos nossos, através da cooperativa”, ela conta

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NÃO É TERRA, É PODER texto de

Gabriel Hirabahasi

imagem de splitshare.com/creative commons e

Marcelo Camargo / Agência Brasil

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1862. Há 153 anos, no dia 20 de maio, Abraham Lincoln decretava nos Estados Unidos o Homestead Act (Lei da Fazenda Rural), concedendo terras públicas a pequenos fazendeiros e a custos baixos. O programa, emperrado no congresso norte-americano há alguns anos, era mal visto pelos ruralistas do sul. Em 1858, uma lei de reforma agrária foi derrotada por apenas um voto no Senado e, em 1859, um projeto de lei foi aprovado nas duas casas, mas foi vetado pelo presidente James Buchanan, predecessor de Lincoln. O ano é de 2015. Há pouco mais de 127 anos, no dia 13 de maio de 1888, a Lei Áurea era decretada no Brasil e os negros escravos eram considerados livres a partir de então. Não tinham casa, não tinham terra. Hoje, os reflexos da ocupação colonial das terras continuam latentes. Não há capitanias hereditárias, bem verdade, mas as terras continuam nas mãos de poucos. Segundo o Relatório sobre os Crimes do Latifúndio, produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), cerca de 1% dos proprietários rurais do Brasil detêm algo próximo de 50% de todas as terras do país. De acordo com o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2003, havia cerca de 130 milhões de hectares de terras ociosa. Em 2010, o número subiu ainda mais: já passava dos 230 milhões de hectares improdutivos. Para que o acesso à terra seja democratizado, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta desde os anos 1970. Em 2015, no mês de abril, o MST organizou a ano era de

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Jornada de Luta pela Reforma Agrária e ocupou diversas sedes do Incra, entre elas a de São Paulo e a de Brasília. Segundo o movimento, o atual governo estagnou em sua política de reforma agrária , apesar da imensidão de terra improdutiva que o Incra aponta. No Distrito Federal, os manifestantes protestam pelo reconhecimento de áreas subutilizadas no território. “São áreas que até hoje não têm parecer técnico nem do Incra, nem da Terracap [Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal]. Por isso, estamos aqui pedindo que se abra um diálogo com o Incra para reconhecer essas áreas que são improdutivas e estão sendo tomadas por grileiros”, diz Bruno Leandro, da coordenação do MST-DF. “Nossa pauta foi colocada, mas não fomos recebidos por ela [Maria Lucia Falcon, presidenta do Incra], por isso, fizemos esse ato, para forçar uma agenda dentro do Incra para termos nossa demanda atendida”, completa. A má distribuição de terra não é fator único, obviamente, mas reforça a desigualdade social no Brasil. Em 1989, durante o governo de Sarney, os mais ricos do país chegavam a ter renda em torno de 70 vezes maior que os mais pobres. “Era o final do governo Sarney e o Brasil passava por um momento delicado da sua economia. A partir daí as diferenças de renda vêm caindo sistematicamente, passando pelos planos Cruzado e Real, o crescimento econômico e os programas sociais dos anos seguintes”, afirma Marta Arretche, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), em entrevista à Exame durante o FAPESP Week California. Esse abismo diminuiu com o tempo, mas continua latente. Em 2012, a renda média dos 5% mais ricos era 33 vezes a dos 20% mais pobres. O Brasil já não é mais um país agrário, mas grande parte da população ainda vive no campo. Segundo levantamento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, cerca de 36% da população está no setor rural. Os dados diferem da pesquisa do IBGE, que aponta para 16% dos brasileiros

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no campo. O percentual maior na pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Agrário considera a aplicação de um conceito de rural defendido pelos pesquisadores. “O Brasil do século XX tentou ser mais urbano e ter uma economia industrial. Isso deu um certo exagero à dimensão urbana e uma desvalorização do Brasil da ruralidade”, afirma a pesquisadora Tânia Bacelar, coordenadora da pesquisa Repensando o Conceito de Ruralidade no Brasil: Implicações para as Políticas Públicas, em entrevista à Agência Brasil de Comunicação. “Latifúndio não existe mais”. Em princípios básicos, fazer reforma agrária é reorganizar a estrutura fundiária de modo a proporcionar uma distribuição mais justa da terra. Segundo a Constituição Brasileira de 1988, “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária”. O modelo de reforma agrária previsto pela Constituição, portanto, condiciona a desapropriação da terra à não aplicação de sua função social. Com isso em mente, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias (PT-MG), defendeu em sua posse, no início do ano, medidas para que esse princípio seja aplicado no país. Para ele, o reconhecimento da função social da terra não implica negar o direito à propriedade, mas “adequá-lo aos outros direitos fundamentais, ao interesse público e integral do Brasil”. “É possível conciliar o interesse justo dos produtores rurais com o não menos justo interesse dos produtores familiares”, ele disse, em entrevista à Agência Brasil de Comunicação. O interesse dos produtores rurais e do agronegócio ao qual Ananias se refere é defendido pelo Ministério da Agricultura, cuja ministra é Kátia Abreu (PMDB-TO). Membro da bancada ruralista, Kátia Abreu se tornou pecuarista com a morte de seu marido, em 1987, quando herdou terras no atual estado de Tocantins. Aprendeu a torevistalampiao.com

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car o negócio, se destacou entre os produtores da região e se tornou presidente do Sindicato Rural de Gurupi. Depois disso, foi eleita presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins. Sua carreira política começou como deputada, em 2002, depois seguiu como senadora, desde 2006, e, atualmente, é a ministra da Agricultura. Quando assumiu o cargo, muito foi especulado sobre seus interesses diretos no agronegócio e seu posicionamento político. Logo que tomou posse, já deu declarações fortes: “Latifúndio não existe mais”, disse, em entrevista a Folha de S. Paulo. A ministra ainda defende que a reforma agrária não é mais necessária. “Em massa, não [precisa acelerar a reforma agrária]. Ela tem de ser pontual, para os vocacionados”, completou. De acordo com o dicionário Michaelis, o termo latifúndio significa “propriedade rural de grande extensão, cuja maior parte aproveitável não é aplicada à cultura ou utilizada em exploração econômica”. Sendo assim, a afirmação de Kátia Abreu contrasta com pesquisas e estudos que apontam que os latifúndios existem, sim. Aliás, as zonas improdutivas no país não só existem como aumentaram nos últimos anos. Segundo o Incra, as terras ociosas representavam, em 2010, 40% das grandes propriedades no país. Cerca de 230 milhões de hectares estão abandonados ou produzem abaixo da capacidade, logo, não cumprem sua função social.

“Em massa, não [precisa acelerar a reforma agrária]. Ela tem de ser pontual, para os vocacionados”, disse a ministra da Agricultura, Kátia Abreu (PMDB-TO). Senadora também afirmou que “latifúndio não existe mais”

Terra Santa. “Acompanho o processo de reforma agrária desde 1984”, conta Chico Maia, secretário municipal de Agricultura e Abastecimento de Bauru. “Minha família é assentada”, ele diz. “Em 1984, minha família, junto com mais 100, 150 famílias, participou de uma ocupação em Andradina. Em 1988, nós fomos assentados em definitivo numa fazenda chamada Santa Rita, no município de Durmalina”. Chico acredita que a reforma agrária ainda está longe do ideal, mas acredita que, aos poucos, o país tem evoluído nesse sentido. “A reforma agrária no Brasil ainda está mui-

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to aquém do que o que a gente almeja, mas é um processo de construção e consolidação de políticas públicas”, afirma. “De 1988 pra cá, a gente percebeu o seguinte: várias políticas públicas foram construídas com a participação dos movimentos sociais, dos sindicatos dos trabalhadores”, avalia. O trabalho de Chico Maia na Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento de Bauru visa fortalecer a agricultura familiar. O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) é uma das ferramentas utilizadas pela secretaria para colaborar com os pequenos produtores. “[O Pronaf] significa recursos para os agricultores familiares, no caso, assentados, ribeirinhos, indígenas, quilombolas”, exemplifica. “Nós da Secretaria da Agricultura temos técnicos e engenheiros voltados a prestar assistência técnica aos produtores rurais para que eles tenham acesso ao crédito no Pronaf”, afirma. O Pronaf destina-se a apoiar atividades agropecuárias ou não para “implantação, ampliação ou modernização da estrutura de produção, beneficiamento, industrialização e de serviços, no estabelecimento rural ou em áreas comunitárias rurais próximas, de acordo com projetos específicos”, segundo o site do Governo Federal. O objetivo é promover o aumento da produção e da produtividade e a redução dos custos de produção, visando à elevação da renda da família produtora rural. Para se aplicar no Pronaf, o produtor deve ter renda bruta anual de até R$360 mil. Caso cumpra com esse requisito, basta procurar o sindicato rural ou a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) de seu estado para conseguir a Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP). Depois disso, o agricultor precisa elaborar um projeto que será enviado e analisado pelo Pronaf. Atualmente, a agricultura familiar é responsável por

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grande parte do consumo interno no Brasil. Segundo Pepe Vargas, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, em 2012, 70% dos alimentos consumidos pelo mercado interno já tinham origem na agricultura familiar. Enquanto isso, os produtos do agronegócio também têm importância fundamental na economia do país. Dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) apontam para um crescimento brasileiro de 478% da exportação de alimentos. Segundo esses números, o Brasil, em 2003, exportou cerca de US$30 bilhões, enquanto em 2013, dez anos depois, essa cifra chegou quase aos US$100 bilhões. Apesar desse aumento expressivo, a utilização da terra no Brasil continua ineficaz. Segundo o Incra, ao todo, 228 milhões de hectares estão abandonados ou produzem abaixo da capacidade, o que os torna sem função social e, portanto, aptos para a reforma agrária de acordo com a Constituição. Mas, segundo Sérgio Sauer, professor na UnB e relator do Direito Humano à Terra, Território e Alimentação, a terra, no nosso país, preenche um espaço maior do que sua própria função social. “A terra no Brasil sempre foi o símbolo e instrumento de poder. Temos uma longa história imperial, colonial, mas também republicana, infelizmente, em que ser proprietário de terra – e aí falamos de grandes propriedades de terra – era instrumento de poder em todos os seus sentidos, ocupando cargos políticos ou não”, diz, em entrevista ao Canal Futura. “Os meus estudos apontam pra isso: por que o Brasil não fez uma reforma agrária?”, questiona, respondendo logo em seguida: “É porque, associado ao tema reforma agrária, existe sempre uma dimensão política muito forte”. A dimensão política, em sua forma mais clara, é representada hoje pela bancada ruralista na Câmara e no Senado. Além dos próprios interesses, como os de Kátia Abreu revistalampiao.com

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O Incra calcula que as terras ociosas representam 40% das grandes propriedades do país, mas pouco é feito para acabar com a subprodução. Enquanto isso, movimentos como o MST reivindicam por assentamentos nessas regiões enquanto pecuarista e exportadora, os membros da bancada, assim como diversos outros políticos, respondem a outras entidades. O agora senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE), por exemplo, recebeu doações para sua campanha, principalmente, de cinco empresas. A Eldorado Brasil Celulose doou R$1 milhão e a PRINT Serviços Gráficos, R$600 mil. A Construtura Andrade Gutierrez, Agro Indústri do Bale do São Francisco e Brasil Foods doaram juntas mais R$900 mil. “A reforma agrária, além das questões econômicas, tem a questão de rompimento do status quo político. A gente sabe que muitos dos avanços que a gente teve nos últimos anos só não são maiores porque temos uma correlação de forças no Congresso Nacional, que tem um setor que é bastante forte, que é o setor ruralista”, afirma Gustavo Souto de Noronha, economista e superintendente do Incra, em entrevista ao Canal Futura. “Obviamente, não estou dizendo que eles não têm contribuição pra economia do país.

Eles têm. Mas, do ponto de vista político, a gente tem uma super representação desse setor”, acrescenta. Economicamente, segundo Gustavo, é mais interessante a pequena propriedade – tanto que potências mundiais, como Japão e Estados Unidos, fizeram uma reforma agrária antes de despontarem no aspecto financeiro. “O capitalista não gosta de operar com muita incerteza. E a agricultura tem a incerteza meteorológica. E ainda têm vários estudos econoômicos, inclusive de economistas conservadores, por incrível que pareça, que mostram deseconomia de escalas, ou seja, quanto maior a terra, menos lucro [proporcionalmente] ela vai gerar”, ele diz. Mas o economista completa: “O Brasil, ainda que no sentido clássico da reforma agrária, de uma mudança radical da estrutura fundiária, não tenha feito essa reforma agrária, incorporou muitas terras a um programa de distribuição de terra. Nós temos, hoje, 87 milhões de hectares, quase 10% do território nacional, incorporados à reforma agrária”.

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RESENHA:

“O SONHO DE ROSE 10 ANOS DEPOIS” Clique na imagem para assistir ao longa-metragem

“O sonho de Rose - 10 anos depois” Direção: Tetê Moraes Produção: Vemver Brasil Duração: 92 minutos

Carolina Rodrigues de Reprodução

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“O

sonho de Rose, 10 anos depois” (1997) é o segundo

documentário da diretora Tetê Moraes relativo à Fazenda Annoni, local onde foi realizada a primeira ocupação de latifúndio improdutivo do país. O primeiro, chamado “Terra para Rose” (1987), foi gravado dois anos após a fazenda ser ocupada, e tratou justamente do movimento de ocupação. Antes de mais nada, é importante entender quem é Rose: uma trabalhadora rural que participou ativamente da ocupação em 1985 e que foi a primeira mulher a ter um filho no acampamento. Uma das líderes do movimento, foi assassinada durante uma manifestação em um atropelamento apurado como criminoso. O sonho de Rose era que a ocupação obtivesse sucesso, que todas aquelas 1.500 famílias saíssem dos barracos de lona, construíssem suas casas e pudessem viver cada um com seu pedaço de terra. É esse sonho que o documentário discute. Será que as famílias conseguiram sair do acampamento, construir suas casas, ter sua terra e viver disso, em uma vida mais digna? Dez anos depois, muita coisa mudou. Para mostrar as mudanças, os avanços, os fracassos e os diferentes caminhos que cada família seguiu, Tetê Moraes encontrou alguns antigos companheiros da ocupação. De fato, os caminhos seguidos foram múltiplos. E o documentário foi exitoso em mostrar vários lados. A família de João, por exemplo, continua morando na fazenda. Agora, ele tem sua própria casa e trabalha na sua própria terra. Enio saiu

voluntariamente da fazenda para morar na cidade e administrar um mercado que pertence a várias famílias assentadas. Já a família de Egon optou por sair do que eles chamam de “coletivo” devido a algumas divergências, mas ele afirma e reafirma que de maneira alguma é contra o trabalho coletivo. Alceu também optou por sair, mas de forma não tão amigável: acabou por processar a cooperativa porque trabalhou durante dois anos e não recebeu nada quando resolveu ir embora. Luci, que afirmou há dez anos que jamais abandonaria a vida no campo, mudou-se de vez para Porto Alegre, acompanhando o marido e o filho. E assim vai... É interessante perceber como se deu o berço do MST, mesmo que alguns integrantes tenham seguido caminhos distintos. O movimento sempre esteve muito bem articulado e impressiona a maneira como cada um o respeita e levanta sua bandeira, ainda que de formas diferentes. O documentário é sensível a essa questão e trata justamente dos medos e dos sonhos desse povo, que, assim como Rose, tanto lutou por um pedaço de terra. No fim, Tetê conversa com a família de Rose. Marquinho, a primeira criança a nascer na Fazenda Annoni, diz não se lembrar da mãe e não sonhar. Vanisa, que tinha sete anos na época do assassinato de sua mãe, reconhece a importância da luta de Rose pela terra. Paulo, o filho do meio, sonha em ser cantor. Seu José, o marido, desistiu do acampamento pois nunca conseguiu um pedaço de terra. E assim o sonho de Rose foi se construindo e se desconstruindo durante todos esses dez anos.

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PLAYLIST:

MOVIMENTOS SOCIAIS Vanessa Souza de Marcelo Camargo / Agência Brasil

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Música não é só arte: é também política e espaço para grupos se reafirmarem socialmente. Os discursos produzidos pelos artistas que, de alguma forma, têm ligação com movimentos sociais, ou que se identificam com eles, ajudam a divulgar causas e pensamentos importantes. Conheça cinco canções que falam sobre movimentos sociais ao redor do mundo: 1. Chico Science e Nação Zumbi – Monólogo ao Pé do Ouvido A primeira faixa do disco Da Lama ao Caos, de 1994, é também uma introdução à obra toda: evocando líderes populares, ”Monólogo ao Pé do Ouvido” já denuncia o tom politizado que aparece pelo álbum. Entre os nomes citados na letra da música estão Antônio Conselheiro, Lampião e Zumbi – além de Emiliano Zapata, um dos líderes da Revolução Mexicana de 1910. Sua luta deste líder era a favor da reforma agrária no país e contra a ditadura de Porfírio Díaz. Não é à toa que Chico Science, a voz do manguebeat, abre a nossa playlist dizendo que “O homem coletivo sente a necessidade de lutar”.

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2. Rage Against the Machine – People of the Sun A banda norte-americana sempre faz um som engajado e politizado. Nessa faixa do álbum Evil Empire, de 1996, o vocalista Zac de la Rocha escreve sobre o movimento zapatista, surgido em 1994 como um levante contra a marginalização dos povos indígenas, depois de visitar a região paupérrima de Chiapas, no sul do México. O nome do movimento veio da identificação que ele tem com Emiliano Zapata e suas lutas no início do século XX. Em sua passagem pelo Brasil no festival SWU, em 2010, o Rage Against the Machine dedicou essa canção aos seus “corajosos irmãos e irmãs do MST”, já que a reinvindicação da terra é uma pauta comum aos movimentos. 3. O Teatro Mágico – Canção da Terra Escrita pelo cantor gaúcho Pedro Munhoz e lançada pela primeira vez em seu álbum Cantigas de Andar Só (2002), a música foi regravada em 2011 pel’O Teatro Mágico para o revistalampiao.com

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disco A Sociedade do Espetáculo. A versão da banda paulista conta com a participação do autor da faixa e foi usada como trilha sonora da novela Flor do Caribe, exibida em 2013 pela Globo. A letra da canção defende o fim do latifúndio e o combate à ignorância sobre os movimentos sociais de reinvindicação de terra, afinal, para eles, “terra é de quem plantar”. 4. Café Tacvba – Flores del Color de la Mentira Composta para a coletânea Juntos por Chiapas, de 1996, a música da banda mexicana é mais uma das que fala sobre o movimento zapatista. A canção já começa com versos fortes: “na terra que há atrás dos meus olhos / um líder vive em pé de guerra / defendendo povos inteiros de ideias mudas / assassinadas por serem diferentes das dos outros”. A poesia da letra faz menção aos processos de plantio e cuidado da terra junto a uma melodia sensível e um instrumental belíssimo e agradável. A coletânea da qual a canção

faz parte reuniu grandes nomes na música latino-americana com a intenção de arrecadar dinheiro para a região conflituosa de Chiapas. 5. Xavier Rudd – Land Rights O cantor e multi-instrumentista australiano escreveu essa canção sobre a reinvindicação de terras feita pelos índios aborígenes da Austrália sob uma perspectiva otimista: depois de mostrar os motivos pelos quais os índios querem seu lar de volta, Xavier conta que “a xícara que estava vazia agora se enche aos poucos”, acompanhando as vitórias do movimento junto ao governo do país. Em seu site oficial, o álbum do qual a música “Land Rights” faz parte – o lançamento de 2007 intitulado White Moth – é apresentado como uma obra que “homenageia o povo indígena da Austrália”, de onde o artista tirou muita inspiração. Ao fim da canção, é possível ouvir vocais de aborígenes convidados para cantar e celebrar com ele.

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