Revista Lampião - Nº 4

Page 1

1


índice

Clique no título para ler a matéria holofote

MARIA JOSÉ DA SILVA FERNANDES (p. 4) Entrevista com Maria José da Silva Fernandes, professora do Departamento de Educação da Unesp de Bauru

VALORES DA UNIVERSIDADE PÚBLICA (p. 14) por

opinião

A LÓGICA DUVIDOSA DA UNESP (p. 12) por

Gabriel

de

Castro

Privatização das universidades públicas entra em pauta no momento de greve das três estaduais paulistas

VESTIBULAR: A (ESTREITA) PORTA DE ENTRADA DA UNIVERSIDADE (p. 22) por

cultura

RESENHA: VIRANDO BICHO (p. 28) por

2

Monique Nascimento

Apesar de ser, atualmente, o principal método de avaliação para o ingresso no ensino superior, o vestibular também tem suas falhas

Vanessa Souza

PLAYLIST: EDUCAÇÃO (p. 29) por

Lucas Loconte

Vanessa Souza

ENSINO MÉDIO: PREPARAÇÃO PARA A VIDA OU TREINAMENTO PARA UMA PROVA? (p. 25) por

Estevão Rinaldi

Por influência do vestibular, o ensino médio confunde a função de desenvolvimento do indivíduo com a preparação para um modelo de prova

revistalampiao.com

| Lampião


editorial

UNIVERSIDADE PÚBLICA

O

São Paulo, atualmente, é preocupante. As três universidades estaduais paulistas (Unesp, Unicamp e USP) tiveram suas atividades parcialmente paralisadas ainda em maio, quando a classe dos servidores técnico-administrativos e dos docentes entraram em greve. Tudo porque os sindicatos pediam um aumento de salário que compensasse a inflação e oferecesse um reajuste maior. O Cruesp (Conselho dos Reitores das Universidades de São Paulo), porém, alegou falta de verba e pôs na mesa proposta de 0% de aumento. Isso, somado à falta de negociação com as reitorias, fez com que docentes e servidores iniciassem a greve em maio. Desde então, reportagens e levantamentos foram divulgados, como o da Folha de S. Paulo, dizendo que boa parte dos estudantes da USP poderiam pagar pelo curso. Matérias como essa levantaram, novamente, o tópico da mensalidade na universidade pública. Soluções paliativas, como as cotas, são impopulares até entre aqueles que falam mal do desnível econômico na população. Caso a “privatização” da universidade pública realmente aconteça, o ambiente acadêmico se tornará ainda mais segregador do que já é atualmente. O ensino superior, que nasceu como opção apenas para a elite, começa a oferecer oportunidades para todos. Cotas para negros, pardos e provindos de escolas públicas servem para garantir o acesso e a oportunidade de ascensão econômica também a indivíduos das classes mais baixas. No entanto, a principal forma de seleção, o vestibular, apresenta cada vez mais falhas. Primeiro que ele molda o ensino a partir daquilo que cai na prova, não se importando com a formação do indivíduo, mas sim com a criação de um sujeito capaz de realizar tal prova. E toda a discussão sobre a educação vem à tona nessa época por conta das Eleições. As promessas de melhorias na educação não acompanham, contudo, a elaboração de novos sistemas que possam solucionar os atuais equívocos. cenário da educação em

Diretor Executivo Gabriel de Castro Diretor de Conteúdo Rafael Barizan Conselho Administrativo Gabriel de Castro, Rafael Barizan

e Thafarel Pitton

Conselho Editorial Estevão Rinaldi, Gabriel de Castro,

Maria Eduarda Amorim, Rafael Barizan, Thafarel Pitton e Vanessa Souza Editoras Maria Eduarda Amorim e Vanessa Souza Diagramador Gabriel de Castro Repórteres/Colaboradores Estevão Rinaldi, Lucas Loconte e Monique Nascimento Contato revistalampiao@gmail.com

www.revistalampiao.com www.issuu.com/revistalampiao fb.com/revistalampiao @revistalampiao

Anuncie aqui e seja um apoiador: revistalampiao@gmail.com Revista Lampião

Edição nº 4 Universidade Pública

Todos os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. É proibida a reprodução de textos ou imagens sem a prévia autorização dos editores.

Capa da Edição nº 4 “Universidade Pública” Ilustração: Carolina Carrasco

3


holofote

MARIA JOSÉ DA SILVA FERNANDES A

entrevistada da 4ª edição da Revista Lampião é Maria

José da Silva Fernandes, professora doutora do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Bauru. A professora, que já trabalhou do ensino fundamental ao superior, é formada em Geografia e fez mestrado e doutorado em Educação Escolar na Unesp de Araraquara. Maria José foi professora da rede pública por 17 anos e já é docente do Departamento de Educação desde 2009. Sobre a universidade pública, tema desta 4ª edição da revista, a professora também tem muito a falar. “A trajetória do ensino superior no Brasil é marcada por ser um ensino para a elite”, ela diz. O vestibular, principal forma de seleção, também colabora para a forma elitista da universidade. As escolas particulares preparam o aluno quase que exclusivamente para a prova. “Você vai formando um aluno ideal para esse modelo”, a professora acredita. “É um treinamento. E é até massacrante, porque vai gerando uma ansiedade muito grande naqueles que estão nos cursinhos e no ensino médio”, Maria José conta. Confira na Edição nº 4 da Revista Lampião a entrevista completa com Maria José da Silva Fernandes.

4

Revista Lampião: Você já trabalhou no ensino fundamental

e médio em escolas públicas?

Maria José

da

Silva Fernandes: Sim, já trabalhei em es-

cola pública, privada, cursinho. E isso foi dando aula e depois na parte da gestão da escola como coordenadora.

Lampião: Como é o ato de lecionar a partir da perspectiva do

professor? Como é a elaboração de aulas e como fazer com que o conteúdo seja atrativo para os alunos? Maria José: Primeiro que o trabalho de dar uma aula é bastante intenso e extenso. É intenso no momento em que você está ali na sala de aula, tentando atrair a atenção dos alunos, fazendo com que eles aprendam, e tem que lidar com duas situações inseparáveis, que são o ato de ensinar e de aprender. O ensinar se faz coletivamente, mas o aprender não, é um ato individual. É uma coisa que exige muito da gente. Mas também exige uma preparação prévia. Uma aula começa muito tempo antes e termina depois. Ela não termina com um sinal. É um trabalho que você carrega com você mesmo. Tem uma exigência muito grande nesse sentido de se pensar no conteúdo em específico e também em uma metodologia que dê conta daquele conteúdo. Eu tento sempre fazer essa relação revistalampiao.com

| Lampião


foto: Acervo Pessoal

5


entre aula e a sociedade, porque senão a gente cai no risco de se tratar a “aula pela aula”, a “escola pela escola”, quando na verdade a escola que a gente tem é desse jeito por estar imersa em uma determinada sociedade. Fazer esse trabalho de relação não é muito fácil. Não tem como se falar em Universidade Pública sem se falar em vestibular e a modelagem do ensino de base. Qual a influência do vestibular na atratividade dos assuntos que são tratados? Maria José: A trajetória do ensino superior no Brasil é marcada por ser um ensino para a elite. Se a gente for lá no século Lampião:

ao longo das décadas, direcionando conteúdo, o que ensinar. Tanto que todo mundo que passou por cursinho sabe disso. Os professores dão dicas de o que vai cair na prova, o que fazer. Você vai formando um aluno ideal para esse modelo. Acho que temos hoje algumas propostas em disputa. Temos o Enem, que está sendo usado na seleção das universidades federais. Mas isso não é uma coisa consensual. O grupo das escolas particulares tem um lobby muito forte no Congresso, no Senado. Não é interessante para muita gente que o vestibular deixe de existir ou que haja outra forma de verificação dos alunos. Por isso, acho que vamos ter por muito tempo o vestibular definindo o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado.

“Um

sistema mais favorável seria aquele que a gente tivesse maneiras de acompanhar o desenvolvimento do aluno ao longo de toda sua vida escolar” XIX na fundação da Faculdade de Medicina de Salvador, da Faculdade de Direito de Olinda ou até mesmo da USP nas primeiras décadas do século XX, vamos perceber claramente que era voltado à elite intelectual do país. Portanto, não havia vaga para todo mundo. Era para a elite, mas nem para todas as pessoas da elite também. Ao longo desses processos foram sendo criados formas de seleção dos alunos. E isso foi, ao longo dos anos, tendo uma influência lá na educação básica. Isso modela a educação? Eu acho que, nas últimas décadas, tem modelado principalmente a educação no ensino privado e menos na educação pública. Isso porque a educação pública tem outras preocupações além do vestibular. É menos conteudista, com uma preocupação maior com a socialização, com uma formação mais ampla do sujeito. Agora, o caso das escolas privadas é diferente. Elas se moldam em função do vestibular. Tanto é que a gente vê, nas últimas décadas, como alguns grupos fizeram fortuna usando o vestibular como mote. Anglo, Objetivo, COC, Poliedro, etc. Um pai que investe tanto para pôr o filho em uma escola particular quer que o filho seja aprovado em uma universidade, preferencialmente pública. O vestibular acabou,

6

E você vê o reflexo disso como algo positivo ou negativo? Maria José: Eu acho que é mais negativo, porque gerou-se uma preocupação maior com a formação de um aluno para responder a determinadas questões. Tanto que, quando a gente começou a ter questões um pouco mais críticas ou vestibulares como o da Unicamp, que tem um formato diferente, o sistema foi desestabilizado. Os alunos não sabiam como responder àquilo. Nós, de certa forma, preparamos os alunos não para a aquisição de um conhecimento, mas para responder a um determinado tipo de prova. Eu acho que é um sistema que, de maneira geral, é negativo. Um sistema mais favorável seria aquele que a gente tivesse maneiras de acompanhar o desenvolvimento do aluno ao longo de toda sua vida escolar, que é o que temos em alguns países do mundo. Quando olhamos para nações que são exemplo na educação, como Cuba, onde o ensino é totalmente público, você não tem vaga para todo mundo. Há também critérios de seleção, mas eles analisam o aluno ao longo de sua trajetória. Isso gera um outro tipo de compromisso do Lampião:

revistalampiao.com

| Lampião


aluno com o saber, diferente do vestibular. Hoje no Brasil, o aluno estuda tanto que, depois que acaba essa fase, balança a cabeça e pouca coisa fica. Lampião: Você acredita então que uma alternativa ao vestibu-

lar seria essa análise a longo prazo? Maria José: Sim, penso que seria a forma mais adequada. Porque isso iria gerar um acompanhamento maior por parte dos professores, dos pais e do próprio aluno. Você cria um compromisso com o aprendizado.

Lendo um pouco sobre o assunto, vemos uma similaridade dessa alternativa com o ensino nos Estados Unidos, onde é feito a longo prazo, contando também com o SAT, que vale menos que um vestibular, mas ainda é importante. Por que isso não é feito aqui? Maria José: Não se faz porque muita gente ganha dinheiro com esse sistema que está posto. Se o vestibular acabar, o que vai ser de muitos cursinhos, escolas, da produção de material didático? Existe uma indústria por trás disso. É uma força muito poderosa. Tivemos recentemente a aprovação do Plano Nacional de Educação. Um dos artigos, que se refere à destinação dos recursos, inicialmente dizia que o investimento deveria subir para 10% e ser destinado à educação pública. No entanto, esse grupo, que é representado pelos donos de colégios e universidades particulares, conseguiu, através de um trabalho muito forte, a retirada da palavra “pública”. Parece simples, mas quando se fala em “10% para a educação”, pode ser tanto para a educação pública quanto para a privada. Temos grupos que ganham muito com esse sistema Por isso é difícil, a curto prazo, acabar com ele. Nós vemos resistências contra o Enem. Eu penso que é uma avaliação que não é a melhor, mas que está sendo aprimorada e em que vale a pena investir. Porém, qualquer erro que acontece com o Enem já toma proporções muito altas na mídia, tentanto desqualificar o sistema de avaliação. E veja, nos Estados Unidos existe problema com a avaliação às vezes, sendo que lá já é um sistema consolidado. A resistência também não está só dentro do ensino privado. Dentro da própria universidade pública há resistência. Por que será que é tão difícil alterar o funcionamento das coisas na USP, Unesp, Unicamp? Porque ainda tem muitos que apoiam e que dizem que a universidade pública tem Lampião:

de ser muito seletiva, que só os melhores têm de entrar. Lampião: E qual o reflexo desse ensino moldado pelo vestibu-

lar na politização da população? Maria José: No modelo que nós temos hoje, não há uma formação política nas escolas. Temos uma “conformação”, eu diria. Quem está lá quer passar no vestibular. Nós vemos que são poucas as escolas que têm investido em aulas de Filosofia, Sociologia, de humanidades de maneira geral. Agora muitas escolas têm, mas é muito mais no sentido de pegar o que as universidades cobram no vestibular sobre esses assuntos do que formar uma consciência crítica. Por isso que, no modelo que nós temos, é muito difícil. Tem alunos que conseguem ter

“Se

o vestibular acabar, o que vai ser de muitos cursinhos, escolas, da produção de material didático? Existe uma indústria por trás disso. É uma força muito poderosa” a

uma visão mais aberta e mais aprofundada nesse sentido, mas isso depende muito mais do aluno individualmente do que das escolas. Não temos uma formação para um desenvolvimento global do sujeito. Lampião: Você acredita que o atual sistema de educação precisa de reforma? O que o novo PNE traz de grande mudança? Maria José: O Plano Nacional demorou um tempo para ser aprovado e eu considero que o maior avanço do plano seja esses 10% do PIB para a educação. Mesmo que não seja para Educação pública, como queríamos, foi um avanço. E, além disso, ele tem metas mais claras. O analfabetismo, a formação dos alunos… Os objetivos são mais transparentes do que o que nós tínhamos antes. Se não tivermos metas, não conseguimos estabelecer as ações. Por isso temos avanço nesse

7


sentido. Outra coisa importante é a ampliação do tempo de escolaridade das crianças. A gente tem avançado um pouco nesse sentido. Ainda falta muito. Eu acredito que ainda tem muitas reformas a serem feitas. Mas depende de outras coisas, não só da Educação. A gente tem convivido com uma ideia muito comum de que a Educação é a chave para o desenvolvimento. A impressão que se dá é que, se mexermos só na Educação, conseguimos resolver todos os problemas históricos que temos no país. Mas não é bem assim. Há outras questões, como o sistema tributário, que é muito injusto. A gente não pode olhar para a Educação como sendo um problema conjuntural. Ela está muito relacionada a problemas estruturais. Precisaríamos ter outras reformas na sociedade no sentido de reduzir as desigualdades, e aí sim conseguiríamos avançar mais com a Educação. Eu também penso que esse governo, por mais que não seja o ideal, conseguiu, a nível federal, ter

pensam “se eu tirar, ele pode perder a vaga”, e aí acaba mantendo o filho na escola pública. Se a classe média deixar o filho na escola pública, ela vai então cobrar muito mais a escola no sentido de funcionamento, que os professores de fato ensinem. Isso, a médio e longo prazo, acaba trazendo melhoras significativas para a escola pública. Enquanto ela é para o outro e não para mim, diminui o compromisso com ela. Essas mudanças que não são muito imediatas vão ter reflexo lá no futuro. O resultado é um aluno melhor, uma família que participa mais e uma escola, por consequência, de maior qualidade. E o que aconteceu com as escolas públicas para haver um declínio na educação? Falta verba, incentivo? Maria José: Falta, mas o que mais falta é uma política voltada para a qualidade da escola pública. Ao longos desses anos, nós fomos tendo uma série de políticas públicas que atiram Lampião:

“A

escola tem, sim, de ser boa e para muitos. O que aconteceu é que houve um descuido nesse sentido. As vagas foram ampliadas, mas a qualidade foi deixada de lado” um pouco mais de avanço do que tivemos em décadas anteriores. Mas ainda precisa fazer muito mais coisa. Outra meta importante é a que é voltada ao tempo de permanência do aluno na escola, para que a educação seja de fato integral. Que o aluno permaneça na escola, com atividades não só voltadas para a aquisição de conhecimento, mas atividades esportivas, culturais. E isso também está no PNE. Temos que ter mudanças que levem à maior participação das pessoas. Não no sentido de responsabilizá-las, mas de fazê-las participar. E isso tem relação até com a entrada pelo vestibular. Eu considero as cotas, por exemplo. positivas. Apesar de muita gente ser contrária, eu sou favorável. Acho que não é a melhor solução, mas ela é necessária nesse momento. Talvez não precisemos de cotas para o resto da vida, mas agora é importante. Com as cotas, passamos a ter uma reflexão maior sobre a qualidade do ensino público e também sobre a necessidade de tirar ou não o filho da escola pública. Muitos hoje já olham e

8

para diversos lados. Não se tem uma política focalizada. A educação pública raramente é vista como uma política de estado. Um governo vai lá, lança um pacote de medidas que parece que vai salvar a escola pública, mas aí chega o outro, tira essas medidas, impõe outras. Temos uma série de descontinuidade. Isso se soma a baixos investimentos, que coincidem com uma formação bastante precarizada dos professores. A gente tinha, até a década de 70, uma qualidade maior nas escolas, mas uma quantidade menor de vagas. À medida em que nós tivemos uma democratização da escola, também tivemos uma massificação da qualidade. Temos de tomar cuidado para não cair no discurso de que “a escola era boa porque era para poucos”. Não, a escola tem, sim, de ser boa e para muitos. O que aconteceu é que houve um descuido nesse sentido. As vagas foram ampliadas, mas a qualidade foi deixada de lado. Embora não haja comparação, temos nitidamente, em termos de ensino, diferenças entre a escola particular e a pública. Na escola particular em que eu era coordenadora, nós revistalampiao.com

| Lampião


arte: Carolina Carrasco

tínhamos seis aulas de Física por semana. Na escola pública, no curso noturno, por exemplo, se tem uma ou duas aulas de Física por semana. Obviamente que o conteúdo que vai ser ensinado será diferente. Em seis aulas se ensina muito mais. Por isso, temos diferenças muito grandes entre as redes de ensino. Não acho também que todas as escolas privadas são ótimas. Existe um grupo de escolas que tem uma preocupação maior com essa qualidade e muitas que são inferiores às escolas públicas. Para mim, o pior nesse avanço que a escola pública passou foi a perda de qualidade. E aí começou-se a pensar “pronto, tiro meu filho daqui e ponho numa escola particular e resolvo o problema”. Do ponto de vista individual, pode até resolver, mas do ponto de vista social, não adianta, porque o problema ainda está aí. Você acha que falta uma melhor gestão nas universidades públicas? Precisa ser feita alguma reforma nesse setor? Maria José: Sim, nós sofremos com sucessivas administrações que foram complicadas. No caso da Unesp, a reitoria diz que não tem dinheiro, segundo um dos assessores, porque a universidade cresceu muito mais que a arrecadação do ICMS. Bom, mas existe um processo de expansão desde a década de 90. Se lá atrás já se viu que não dá pra expandir porque não tem recurso, tem que parar por aí. Mas não. Ano passado tivemos a abertura de cursos de Engenharia em nova cidade. E isso gera gastos. Se não tinha dinheiro, não podia abrir. Se abriu mesmo assim, o problema é mais sério. Nos dois casos, percebemos que há uma falta de planejamento de fato estratégico. E, além disso, temos o problema da falta de transparência. Há alguns anos, a Unesp viveu uma crise financeira fortíssima. O reitor, que na época era o Macari, se não me engano, não teve nenhuma dúvida e apresentou os extratos bancários para mostrar para as pessoas porque não tinha dinheiro. Hoje não, os números são contraditórios. A cada momento aparece um número novo que não bate. Temos hoje uma gestão muito complicada nas universidades de maneira geral. A gente não sabe muito bem para onde os recursos estão indo. Outro exemplo da falta de planejamento na Unesp é que eles alegaram que as despesas aumentaram muito por conta do plano de carreira do professor. Muita gente conseguiu ascender na carreira e ganhar mais, o que comprometeu o orçamento. Mas esse plano é novo, do Lampião:

final dos anos 2000. As pessoas que são responsáveis por isso na reitoria deveria fazer os cálculos, saber quantos professores tem, quantos podem pedir avanço na carreira no prazo de tantos anos. Isso é questão de planejar. Não é um problema da reitora em exercício atual. É um problema de sucessivas gestões. É a mesma situação da USP. Dizem que foram contratadas tantas pessoas, mas não tinha dinheiro. Se não tinha, por que contratou? E o reitor atual diz que desconhecia, sendo que ele era pro-reitor. Ou seja, se ele não sabia, então não existe o mínimo de transparência aqui. Se um pró-reitor não sabe o que está acontecendo, imagina se um professor vai saber. O antigo reitor da Unesp é, hoje, secretário de educação. O reitor da USP foi colocado no cargo por indicação do próprio governador. Você diria, por isso, que o cargo de reitor é mais político do que administrativo de fato? Será que falta pessoas que assumam o comando voltados à administração em si e não apenas em um jogo de poder? Maria José: Acho que sim. Falta ter conhecimento da universidade, o que implica em ter uma visão administrativa, mas também ter um projeto para a educação. A impressão que eu tenho nos últimos tempos é que, por ser um cargo político, eles estão muito mais preocupados em responder àquilo que Lampião:

9


o governador solicita do que manter a universidade pública funcionando no modelo que ela deveria, que é de ensino, pesquisa e extensão. Falta essa clareza de o que é a universidade. Se ele for só um bom administrador, mas não tiver a clareza de o que é a universidade e que projeto é necessário, ele também não vai conseguir ter uma boa gestão. O Herman Voorwald [antigo reitor da Unesp e atual secretário de educação] é engenheiro. Será que um engenheiro pode, até do ponto de vista administrativo, cuidar da secretaria da educação? Será que ele pode ser capaz de elaborar políticas educacionais gerais? É a mesma coisa de eu querer administrar um curso de Engenharia. Embora seja para coordenar, se faltar o conhecimento específico, você também não

“A

greve tem se extendido demais e, no nosso caso [Unesp], parece que as pessoas ignoram” consegue ser um bom gestor. No nosso caso, falta as duas coisas. Falta conhecimento de gestão e também o mais específico sobre a universidade. Lampião: E como é o panorama da greve na Unesp? Existe

um diálogo com a reitoria? Maria José: Depois da nota que a reitora soltou, ainda houve uma reunião com a comissão de orçamento para discutir. Se eles alegam que o dinheiro é pouco, temos de ter uma gestão junto à assembleia legislativa para se ampliar os recursos. E nessa reunião, os pró-reitores não compareceram. Isso mostra um problema político sério. Por que eles não foram? Muito provavelmente para não contrariar o governador. A greve tem se extendido demais e, no nosso caso, parece que as pessoas ignoram. A reitora, por exemplo, está de férias. É claro que isso é um direito de todo trabalhador, mas não consigo parar

10

de pensar: como ela sai de férias com uma universidade que está há 90 dias parada? Eu não ia conseguir descansar e relaxar sabendo que a coisa está pegando fogo. A impressão que dá é que eles estão negando que existe uma greve. Temos uma dificuldade muito grave de diálogo. Existe uma contraproposta dos sindicatos, mas com ela em férias não existe discussão. A mídia, assim como na greve dos ônibus e metrô em São Paulo, deslegitima o movimento grevista, apontando apenas os prejuízos da greve, mas não os motivos da greve. Falta comprometimento da grande mídia em mostrar o que está acontecendo de verdade? Maria José: Sim, falta expor os motivos. No primeiro momento, houve um envolvimento da mídia, mas no sentido negativo. Mostravam que os estudantes da USP poderiam pagar, falando que professor universitário ganha bem e não devia entrar em greve, etc. Não se discutia o que estava acontecendo de fato e a importância da universidade pública na sociedade. A mídia também tem feito esse papel de favorecer à privatização do ensino, de que a universidade é apenas para a elite. Não há um compromisso nesse sentido. Algumas coisas acabam até ajudando. Quando teve o corte de ponto dos funcionários da USP, isso foi para a mídia. Mas não se tem um compromisso de discutir e de pôr as pessoas a par da situação. Muita gente nem sabe que a greve ainda está rolando, por que está em greve. Lampião:

Qual a sua opinião sobre o levantamento da Folha de S. Paulo que dizia que os alunos poderiam pagar pelo ensino na USP? Maria José: Primeiro que foi um estudo bastante enviesado. Os dados foram feitos a partir de números que, além de não serem os únicos a serem considerados, são baseados em uma média. Eles ignoram outras questões, como o acesso. Por que não temos todos na universidade pública? Na questão da entrada, temos cursos que são muito elitizados, mas, se formos na licenciatura, temos muitos alunos pobres, que talvez não teriam condição de pagar por uma universidade privada com a qualidade da pública. Eles olham para a universidade pública como se fosse um bloco único e ignoram as diferenças internas que a gente tem. A universidade tem um papel importantíssimo não só no ensino, mas na extensão e na pesquisa, Se não tivesse as universidades públicas, nós não teríamos pesLampião:

revistalampiao.com

| Lampião


quisas sobre a escola pública. Quem iria querer financiar uma pesquisa sobre a escola pública e que não vai render nada? Por isso a universidade tem um papel importantíssimo. E a cobrança de mensalidades vai completamente contra a política de cotas, certo? Maria José: Sim. E as cotas já proporcionaram uma mudança grande. Alguns cursos, como Engenharia, Medicina, que são mais elitizados, já tem um maior acesso de pessoas de renda menor. Acho que não podemos pensar em uma política de inclusão para 50 anos, mas um programa dentro de um tempo menor é necessário para democratizar. Lampião:

Lampião: As cotas são coerentes com as políticas recentes de

inclusão social que os últimos governos adotaram. Por que você acha que, mesmo assim, ainda encontram uma resistência forte? Maria José: A classe média é a principal responsável por essa resistência. Ela pensa com a cabeça da elite. Se você perguntar para a população de baixa renda que está em uma escola pública, ela provavelmente vai responder que é favorável. Mas se você perguntar para aquela classe média que paga a escola para o filho, esperando que ele entre em uma universidade pública, ela vai ser contrária. Esse pensamento está se disseminando muito dentro das escolas privadas. Por isso acho que falta uma formação política para entender o porquê das cotas. Os negros, por exemplo, têm de ter cotas porque sofreram lá atrás com a escravidão e com o fim como foi, sem nenhuma política de inclusão na época. Chega em um determinado momento que precisamos romper com isso, o que causa resistência. A elite mesmo nem se põe contra, pois seus filhos nem estudam no Brasil. A crítica é da classe média, que usa de muitos argumentos da direita, sem fazer nenhum tipo de reflexão. ProUni e Fies entram na linha das cotas no que diz respeito à democratização do acesso ao ensino superior, mesmo que os dois primeiros apoiem o estudante em faculdades particulares. Como que ProUni e Fies se encaixam em uma possível proposta futura de pagamento de mensalidades nas universidades públicas? Se o governo federal for coerente, ele vai continuar garantindo essa democratização, o que geraria mais gastos, certo? Lampião:

Olha, eu acho que não se encaixam. Não consigo nem pensar muito bem nisso porque eu defendo a universidade pública. Acho que o Prouni e o Fies são políticas também importantes de inclusão, que levaram ao avanço do número de alunos no ensino superior, mas que, por outro lado, tem sido uma forma de transferência do dinheiro público para o setor privado, o que é muito complexo. Exige uma outra análise. Eu acho que vai muito além dessa transferência e passa pelo acompanhamento dessas instituições. Embora ainda haja muito onde avançar e o ministério da educação diga que tem instituição com vaga cortada, a gente raramente vê uma faculdade ruim sendo fechada. Quando você dá bolsa para um aluno estudar em uma escola de qualidade duvidosa, você está financiando esse tipo de situação. Eu acho que é uma situação complicada. Mas não consigo nem pensar muito em como vai se encaixar pois não gostaria de imaginar um cenário em que a universidade pública não existisse. Maria José:

Outro tópico que envolve as Eleições é o Sistema S, muito usado por Paulo Skaf como exemplo em sua campanha. Como a educação no Sistema S pode ser aplicado para a educação pública em geral? Maria José: Embora conte com financiamento das indústrias, o Sistema S também usa muito recurso público. Isso não se discute muito, a quantidade de dinheiro que vai para esse sistema. Eles têm muito dinheiro. Além disso, o Sistema S consegue ter escolas de boa qualidade porque eles têm um processo muito rigoroso de seus professores e pagam muito bem. Não adianta a gente falar que salário não interfere no trabalho. Os neoliberais insistem nessa ideia de que o salário não interfere na qualidade, mas interfere. Então, o Sistema S, com seu método de cobrança, que vem junto com um bom salário e um melhor acompanhamento, pode funcionar relativamente bem porque o sistema é pequeno. Agora, como fazer isso em uma rede paulista que tem mais de cinco mil escolas? Isso implicaria em pagar bem as pessoas e cobrar mais, porém em um número bem maior de escolas. E além disso, o Sistema S não lida com qualquer aluno. A escola pública não, tem de aceitar todos os alunos, não pode negar matrícula. O Sistema S pode. Se o pai não for trabalhador da indústria ou do comércio, o aluno não pode estudar lá. São alguns critérios que vão sendo impostos. Querer implementar esse modelo é uma coisa fora de cogitação. Lampião:

11


opinião

A LÓGICA DUVIDOSA DA UNESP Por Gabriel

J

de

Castro

Rosana são casados há 25 anos. O casal teve trigêmeos logo de primeira viagem, Pedro, Henrique e César, que hoje já têm 23 anos. Mas José e Rosana ainda queriam mais filhos. E foi assim que a família foi crescendo e se expandindo. Primeiro veio João, que hoje tem 20, depois Maria, 18, Tiago, 13, Cecília, 10, Ana, 6, e Diogo, o caçula, que completou um aninho há um mês. No entanto, José e Rosana sofrem com um problema: juntos, os dois ganham pouco mais de dois salários mínimos. Nada de herança ou ajuda de outros parentes. A família toda tem de se ajustar para que o orçamento não passe dos limites. Pedro, Henrique e César, que já são mais velhos, fazem uns bicos e conseguem ajudar a família, mas, mesmo com esse dinheiro extra, José e Rosana e seus filhos andam passando necessidades. Com o nascimento do pequeno Diogo, os pais tiveram de comprar fraldas, algumas roupas e muita papinha. Ao mesmo tempo, João e Maria passaram na faculdade e agora vão precisar de ajuda financeira por alguns meses. Porém, os pais não vão poder ajudar os filhos, pois estão com o orçamento comprometido atualmente. O crescimento da família e de seu custo de vida não acompanhou o aumento do dinheiro que entrava na casa. José e Rosana se encontram em uma situação muito delicada. Não osé e

12

pensaram o tanto que iria ser gasto com o nascimento de mais filhos. Não calcularam que, com a quantia que ganhavam, não conseguiriam arcar com os gastos de mais uma criança. Situação semelhante à da família de José e Rosana é a que vive a Unesp hoje em dia. Atualmente são 24 campus espalhados ao longo do estado. Muito bonito de se pensar que se está levando o ambiente universitário e da pesquisa a regiões mais isoladas da capital. Porém, o planejamento dessa expansão não foi feito corretamente. A reitoria da universidade alega que 95% do orçamento está comprometido com salários. A Unesp já cortou a contratação de novos professores e técnicos para este ano. “Estamos tomando medidas de contenção agora, na esperança de que haja espaço para proposta de reajuste salarial no segundo semestre”, disse à Folha de S. Paulo a reitora em exercício, Marilza Vieira Cunha Rudge. Apesar de estar em situação financeira complicada há algum tempo, a Unesp não poupou esforços para crescer. Em 2012, criou 11 novos cursos de engenharia, que devem ser implementados até 2015, cada um necessitando de amplo investimento para a construção de prédios, laboratórios e equipamentos. Além dos cursos de engenharia, a Unesp também criou os cursos de Meteorologia (em Bauru), Ciências Biológicas (em São Vicente) e Artes Cênicas (em São Paulo). Ao mesrevistalampiao.com

| Lampião


mo tempo, o percentual de repasse se manteve: 9,57% do ICMS. Em 2013, R$8,3 bilhões foram repassados a USP, Unicamp e Unesp, enquanto, em 2014, a previsão é que R$9,95 bilhões sejam destinados às três universidades estaduais paulistas. Para entender melhor o tema, é bom também compreender o que é o Imposto sobre Circulação de Mercadoria e Serviços (ICMS). Esse imposto é cobrado direto do produto. O repasse às universidades, os 9,57%, são computados depois que parte do ICMS é transferido à esfera municipal (25%). Em 2013, o ICMS rendeu aos cofres estaduais mais de R$112 bilhões, ou seja, 86,33% da receita total do Estado de São Paulo. Por fim, o ICMS se trata de um imposto regressivo, ou seja, com um impacto menor conforme o preço do produto ou serviço sobe. Isso quer dizer que a taxa de imposto se reduz à medida que o preço sobe, resultando em um impacto maior nas classes mais baixas da sociedade. Com isso, chegamos à discussão a respeito do propósito da universidade. Quem mais paga o ICMS, portanto financia USP, Unesp e Unicamp, são as classes menos favorecidas. Entretanto, a universidade pública ainda se apresenta como um ambiente elitista. A reformulação, por mais que aparentemente superficial, que as cotas propõem são de grande importância para ampliar o acesso às camadas mais populares. Além disso, precisamos repensar a forma como o ICMS é cobrado também e constituir uma auto-crítica sobre o papel da universidade e a contribuição que ela deve dar à sociedade. Fechado o parênteses do ICMS, os 9,57% que são repassados atualmente têm se mostrado insuficientes para o cenário atual. A USP já gasta de sua reserva desde o ano passado. Em 2014, tem 104,6% de seu orçamento gasto com salários. Das três instituições, a Unesp é a com o cenário mais “favorável”: tem “apenas” 94,47% comprometidos. Tudo veio à tona em maio, quando as classes dos servidores e professores de alguns campi decidiram pela greve. Enquanto reivindicavam por um aumento na casa dos 9%, o que os funcionários receberam do Conselho dos Reitores das Universidades Paulistas (Cruesp) foi uma proposta de 0% de aumento, o que resultou na paralisação das atividades. Uma solução apontada pelos sindicatos é aumentar o percentual de repasse para 11,6%. Esses 2% de acréscimo, no entanto, resultam em R$2 bilhões aos cofres públicos e

devem ser aprovados pelo governador do estado, Geraldo Alckmin, que se retirou das negociações entre Cruesp e sindicatos. Segundo o governador, candidato à reeleição pelo PSDB, as universidades ganharam uma autonomia desde a década de 1980 e, por isso, devem buscar entendimento sem a interferência do governo. “Cabe às universidades definir a forma de utilizar [o repasse do ICMS]”, disse Alckmin em visita a Campinas. Enquanto o governador se preocupa com sua campanha, as universidades já estão paradas há mais de três meses. Mesmo com os vários erros em sua gestão, como a crise na Santa Casa, a falta d’água em São Paulo, o escândalo do metrô e a própria paralisação das universidades estaduais, Alckmin caminha para sua reeleição e para a extensão de 24 anos de governo do PSDB em São Paulo. Uma pesquisa Datafolha divulgada no dia 15 de agosto apontou que o tucano pode levar a disputa no primeiro turno: Geraldo Alckmin (PSDB) aparece em primeiro lugar, com 55% das intenções de voto, seguido por Paulo Skaf (PMDB), com 16%, e Alexandre Padilha (PT), com 5%. E não bastasse o descaso do governador para com as universidades estaduais, o Cruesp parece não ter nenhum interesse em evitar a greve. Em julho, a reitora em exercício da Unesp, Marilza Vieira Cunha Rudge, divulgou uma nota assinada em que convocava a comunidade acadêmica para o recomeço das aulas. A proposta de negociação da Unesp foi semelhante à da Unicamp (que foi aceita por seus professores): um abono de 21% sobre o salário de julho. “Por fim, reforço a necessidade da normalização das atividades para, o quanto antes, efetuar o crédito na conta dos nossos docentes e servidores técnico-administrativos”, finalizou o comunicado de forma imperativa. A oferta, no entanto, não foi aceita em todos os campi, sendo, inclusive, interpretada de forma negativa. Ao longo desses mais de três meses, a importância da universidade para a população, seu retorno socio-cultural e em forma de pesquisas foram deixados de lado. Em meio a tantos equívocos de planejamento, a universidade pública se encontra rumo a um possível sucateamento. Ao longo desses três meses de greve e crise, os comandantes, é claro, não se deram ao trabalho de propor uma reforma no sistema de gestão público e continuam gastando quando não se tem como pagar.

13


VALORES DA UNIVERSIDADE PÚBLICA:

PRIVATIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS ENTRA EM PAUTA NO MOMENTO DE GREVE DAS TRÊS ESTADUAIS PAULISTAS

Por Lucas Loconte*

* Lucas Loconte é colaborador da Revista Lampião. Estudante de Jornalismo na Unesp de Bauru, gosta de conhecer o mundo

D

esde meados de maio deste ano, funcionários e

professores das três universidades estaduais – USP, Unesp e Unicamp – estão em greve reivindicando aumento de salário, benefícios e melhores condições de trabalho. Nesse meio tempo, milhares de alunos ficam parados, reclamando dos prejuízos futuros, que envolvem o atraso da conclusão do curso, a perda da possibilidade de se inscreverem em processos seletivos, intercâmbios, oportunidades de estágio ou emprego (que requerem um profissional formado) e até despesas daqueles que estudam em outras cidades. Pode parecer um efeito cascata, ou uma ótima mobilização por parte de sindicatos e grupos que lutam por uma condição de trabalho mais favorável, mas o que vemos é a repetição de uma fala que começou há anos como um sussurro baixo e, de repente, se tornou um grito repleto de urgência: é necessário mudar o ensino público no país. Para tanto, uma das opções que ganhou grande repercussão foi a possibilidade de realizar

14

revistalampiao.com

| Lampião


a privatização das universidades públicas paulistas. Não é de hoje que se percebe esse sucateamento da educação pública. As universidades sofrem com a falta de infraestrutura e de investimentos que beneficiem tanto professores e funcionários quanto alunos; a “culpa” por esses problemas sempre recai sobre os governos estadual e federal. Uma parte da população critica o governo do PSDB, que há duas décadas assume o estado de São Paulo; outros acusam os 12 anos que PT esteve na presidência apresentando atitudes questionáveis sobre os repasses e investimentos para a educação. Com a Lei da Inovação criada em 2004 e o crescimento do poder das Fundações Universitárias, parte dos professores se converte em “empresários da inovação”, acontecimento que alguns veículos chamaram de “privatização indireta”. Uma reportagem publicada no site da Carta Capital em 17 de junho explica essa situação: “Se é verdade que mais de 90% dos recursos das três universidades paulistas ainda vêm dos

fundos públicos como ICMS, também é verdade que a cada ano os cursos de extensão e especialização, além das consultorias, vêm ganhando terreno na agenda de uma parcela dos docentes, como uma forma visível de “complementação” salarial. Vale observar que, além disso, a privatização indireta é reforçada quando algumas universidades públicas condicionam a progressão na carreira à captação de recursos externos”. Assim começa a discussão sobre a privatização das universidades públicas e o medo, por parte de alunos e professores, disso se concretizar. Sem dinheiro? Ricardo Palacios, em outra reportagem da Carta Capital (19/05), faz uma analogia entre aqueles que poderiam participar do ProUni. Na prática, pode concorrer às bolsas o candidato que tiver renda familiar bruta mensal, por pessoa, de até um salário mínimo e meio (o que dá R$ 1.086,00). Se a média da

15


família brasileira é de 4 pessoas, e levando em conta que todos ganhem esse valor, a renda desse grupo será de R$ 4.344,00. Estudantes com renda familiar de até três salários mínimos por pessoa podem se candidatar para receber bolsa de 50%. Palacios mostra que, se um critério semelhante fosse usado na USP, cerca de metade dos alunos poderia receber bolsa integral e perto de um terço não poderia solicitar bolsa. Em cursos como medicina ou direito, menos de 15% dos estudantes poderiam pedir bolsa integral. O que isso quer dizer? Se o ProUni também funcionasse para as universidades públicas privatizadas, ela continuaria sendo gratuita para aqueles que conseguissem bolsa. Mas vamos pensar de uma maneira mais analítica, por meio de dados disponíveis publicamente fornecidos pelas três universidades estaduais em seus anuários. Uma das grandes reivindicações das greves é o reajuste

16

do salário, mas a reitoria e o governo dizem que não têm mais dinheiro para ser repassado. Entretanto, desde 2012, a USP já gasta mais do que ganha. A mais antiga universidade do estado de São Paulo recebeu, por meio do ICMS e da Lei Kandir (que isenta a cobrança de ICMS dos produtos e serviços destinados à exportação), quase quatro bilhões de reais. Entretanto, no balanço final, o gasto no ano apresentou uma diferença de mais de 570 milhões. Em 2013, a situação foi pior ainda: a USP recebeu R$ 4.361.662.080,00 e gastou R$ 5.368.612.000,00. A diferença é de mais de um bilhão de reais. De 2010 para 2013, foram 450 professores contratados, além de mais de 1300 novos funcionários. O professor Cássio Garcia, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp Franca, afirma que “a crise vivenciada pelas três estaduais paulistas decorre, em boa medida, revistalampiao.com

| Lampião


da expansão irresponsável pela qual elas passaram, uma vez que tal expansão não veio acompanhada de aumento nos recursos destinados às mesmas”. E completa: “Portanto, urge uma revisão criteriosa na quota-parte do ICMS destinado a elas, buscando evidenciar as distorções que vem sendo denunciadas pelos sindicatos dos professores e funcionários dessas universidades”. Mas, afinal, o que isso representa e como essas informações estão ligadas à questão da privatização? Em primeiro lugar, existe uma defesa pela privatização em função dos altos custos com a universidade pública. São os gastos com professores, funcionários, manutenção, infraestrutura e outros recursos que deveriam beneficiar a comunidade acadêmica, como laboratórios e equipamentos para os alunos utilizarem. Por inúmeros motivos, isso não acontece. E, vendo que

17


existe uma quantidade considerável de dinheiro que é destinada para as universidades estaduais, a privatização não se faz necessária nesse sentido. Mas privatizar por privatizar pode não levar em nada – e copiar modelos que são de sucesso, como das universidades norte-americanas, não é tão simples assim. American Way of Studying Aline Oliveira é graduanda em Ciências dos Alimentos na Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ/ USP) e hoje estuda na University of Nebraska, em Lincoln, pelo programa Ciência Sem Fronteiras. Ela conta que percebeu desde cedo uma grande diferença se comparado à sua rotina numa universidade brasileira: “Aqui as aulas têm um período curto de duração, cerca de 50 minutos. As aulas são distribuídas em período integral, assim como no Brasil. Po-

18

rém, uma vez que o tempo em sala de aula é menor, o aluno tem mais tempo para estudar, se preparar para as aulas futuras e ainda se dedicar a atividades extracurriculares, como estágio, programas sociais e atividades físicas”. E completa dizendo que, “diferente da ESALQ, estudar o assunto da aula antecipadamente é requisito. As aulas são para discussões entre professor e aluno, servindo para sanar dúvidas e os professores apresentarem comentários adicionais. O aluno é requisitado a participar da aula, não basta apenas sentar e ouvir o professor falar”. Aline diz que acha fantástico o aluno desenvolver seu senso crítico perante determinado assunto, contribuindo para a futura postura e perfil profissional. “Talvez seja isso que os atuais universitários brasileiros precisem: uma melhor preparação profissional durante os cinco anos que passamos na graduação”. Mas faz uma ressalva, dizendo que o período revistalampiao.com

| Lampião


dos cursos de graduação das universidades brasileiras é muito maior do que de universidades estrangeiras. Por exemplo, o curso de jornalismo da Unesp de Bauru tem duração prevista de quatro anos enquanto na University of South Australia (USA), na Austrália, um curso de bacharelado só em jornalismo tem duração de 3 anos. Ambos possuem uma série de disciplinas básicas, como filosofia, sociologia, ética e áreas do jornalismo, mas na USA existe a possibilidade de o aluno se aprofundar em determinados temas ou segmentos – e ainda sair com diplomas de Relações Públicas, Relações Internacionais, Audiovisual ou especialista em escrita e línguas. Quando perguntei para Aline sobre a questão das infraestruturas, ela disse que as universidades brasileiras necessitam de melhorias e de maiores investimentos. “Aqui, os laboratórios são muitos e todos muito bem equipados. As salas de au-

19


las são todas bem amparadas por equipamentos de multimídia, muitos dos quais eu nem sei o nome”, ela finaliza, rindo. Mas será que o ideal é copiar esse tipo de modelo estrangeiro? Ou até mesmo privatizar as faculdades, cobrando de quem realmente pode pagar? A resposta – por mais dura e desanimadora que seja para alguns grupos favoráveis à privatização – é não. Seria preciso uma alteração nas políticas sociais e econômicas para possibilitar a privatização das universidades, além de reformulação dos repasses financeiros e do modo como os alunos seriam selecionados para as faculdades. Além disso, uma atitude dessa não pode ser feita do dia para a noite: é preciso anos de planejamento e uma implementação gradual. Existe uma grande diferença cultural entre o modelo estrangeiro e brasileiro de gestão das universidades. O professor Cássio comenta que, observando as diferentes especifi-

20

cidades sócio-históricas-econômicas entre Estados Unidos e Brasil, “é preciso que se considere a realidade brasileira marcada pelo capitalismo dependente e subdesenvolvido, em que o Estado teria papel fundamental para incentivar a produção científica e o ensino, de forma a atender as reais necessidades da população brasileira em seu conjunto”. Aline – que foi bolsista a sua vida inteira em colégios particulares de Piracicaba e passou direto do Ensino Médio para a faculdade – conclui que seria difícil pensar que essa estratégia resolveria os problemas da educação de nível superior no Brasil. “O nosso sistema educacional já sofre defasagens desde o seu início, nos anos primários. Acredito que essa medida limitaria ainda mais a entrada de estudantes, principalmente os de classe média baixa, em universidades públicas no Brasil. A privatização em si não teria impacto no desenvolvimento do ensino superior. Acredito que a reforma revistalampiao.com

| Lampião


educacional não se limita apenas à privatização do ensino superior público, nossas necessidades são maiores do que essas. O que falta para as nossas universidades públicas brasileiras é o investimento correto do dinheiro público”. Além disso, o sistema norte-americano não é isento de falhas. “As universidades americanas estão entre as mais caras do mundo, o que a torna acessível apenas para os mais ricos. O endividamento muitas vezes é a saída encontrada por alguns estudantes para suportar tal despesa. Portanto, trata-se de um modelo que aumenta as dívidas das famílias e enriquece o setor financeiro”, é o que conclui o professor Cássio Garcia. Não basta substituir o sistema de ensino superior brasileiro por outro que, aparentemente, é mais funcional. O problema da educação só será resolvido quando o quociente entre expansão e recursos for equilibrado.

21


VESTIBULAR: A (ESTREITA) PORTA DE ENTRADA DA UNIVERSIDADE Por Monique Nascimento*

* Monique Nascimento é colaboradora da Revista Lampião. Graduada em Jornalismo pela Unesp de Bauru.

S

2013 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), há hoje no Brasil sete milhões de alunos cursando o ensino superior. Em 2003, esse número era de 3,8 milhões. Esse crescimento deixa claro que a universidade está se tornando um passo cada vez mais comum na educação dos brasileiros, deixando de ser, para muitos, apenas um sonho. Mas, para garantir sua vaga no curso superior, a esmagadora maioria dos candidatos teve que passar pela maratona do temido vestibular. Horas e horas de prova com dezenas de questões e uma redação compõem o modelo mais utilizado na maioria das provas. Mas será essa a forma mais eficaz de avaliar se um aluno está apto para entrar na universidade? Segundo o Professor Doutor

22

egundo pesquisa divulgada em

revistalampiao.com

| Lampião


23


João Batista Fernandes, do departamento de química da UFSCar, o método é utilizado nas universidades por ainda ser “a forma mais democrática, já que todos concorrem da mesma maneira”. Democrática na teoria, pois o vestibular desconsidera a vida do estudante desde o início do processo de escolarização. Além disso, a educação no Brasil apresenta níveis muito discrepantes dependendo da região e do ensino que o aluno obteve, público ou privado, só para citar dois fatores que alteram drasticamente o nível dos vestibulandos. Além disso, João Batista salienta que as provas se focam muito no conteúdo, muitas vezes apenas decorado pelo aluno, e não valorizam outros aspectos do candidato, como raciocínio e criatividade. Somado a isso, as longas provas tendem mais para um teste de resistência, físico e emocional, do que de habilidades ou conhecimento. Um ensino que obriga o aluno a decorar um conteúdo que ele, não raro, não entende para ingressar na universidade traz prejuízos à formação dos jovens. Para o professor, isso leva à falta de compreensão do conceito de aprendizagem. “O foco no vestibular e não na formação geral reforça a ideia de que conhecimento é apenas capacitação para resolver provas”, afirma. E uma vez que a prova já passou, o conteúdo será facilmente esquecido. Uma das mudanças recentes no sistema de seleção das universidades foi o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Criado em 1998 e modificado em 2009, o exame passou a substituir o vestibular tradicional em muitas instituições por meio do SiSU (Sistema de Seleção Unificada), além de servir como seleção para bolsas do ProUni. Mesmo apresentando um progresso no processo seletivo das universidades, a mudança recebeu diversas críticas, principalmente devido ao vazamento da prova em 2009, de informações de candidatos

24

em 2010 e, ainda, de algumas questões do teste em 2011, além de polêmicas envolvendo a correção das redações. Mesmo tendo enfrentado alguns problemas, nesse novo modelo o aluno não precisa se deslocar por grandes distâncias para fazer a prova, caso queira tentar uma universidade em outra cidade ou estado, e nota pode ser utilizada para mais de uma instituição. Assim, o aluno não precisaria pagar diversas taxas de inscrição e fazer diversas provas diferentes, caso visasse mais de uma universidade. É o que comenta Juliano Sousa, professor de geografia e atualidades do cursinho gratuito Principia e colégios particulares da cidade de Bauru: “sem dúvidas um ponto positivo do SiSU é a ampliação do leque de possibilidades do vestibulando. Hoje, um estudante pode almejar fazer faculdade em locais que ele jamais pensaria ou poderia se deslocar apenas para fazer prova. O grande problema, ainda, são as incertezas quanto à correção do ENEM”, completa. Apesar das melhorias, a forma de avaliação não mudou muito. Com 180 questões e uma redação divididas em dois dias de prova, Juliano afirma que é uma prova de resistência e de interpretação de texto. “Comparando ao modelo antigo, certamente o Enem adotou caráter conteudista, próximo a um vestibular tradicional”, analisa o professor que também diz ver os alunos bastante desgastados no período após a prova. Já João Batista lembra que o Enem foi criado para ser uma avaliação do sistema educacional e não um processo seletivo. “Creio que deveria ser criado outro instrumento que vise o ingresso na universidade. Dessa forma, seria possível aperfeiçoar um processo seletivo mais adequado”, pondera. Para isso, o professor diz que a alternativa talvez esteja em sistemas que considerem a vida pregressa do estudante na escola. “Assim, o candidato passa a saber que todas as etapas de sua escolarização são importantes”, aponta. revistalampiao.com

| Lampião


ENSINO MÉDIO:

imagem: Marcos Santos / USP Imagens

PREPARAÇÃO PARA A VIDA OU TREINAMENTO PARA UMA PROVA? Por Estevão Rinaldi

T

odos os anos, milhares de salas de cursinhos

pré-vestibular particulares espalhadas pelo Brasil estão lotadas de jovens “mergulhando a cara” nas apostilas a fim de acumular conhecimento para ter bom desempenho no vestibular e, enfim, integrar a sonhada universidade. Até que ponto, porém, essas horas diárias de árduo estudo contribuirão de fato para seu crescimento intelectual, cultural e pessoal? O ensino médio é, ou deveria ser, o período em que o adolescente é preparado para a vida acadêmica e/ou profissional. Entretanto, os números indicam que ele vai de mal a pior. Segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2011, o ensino médio obteve em 2011 média de 3,7 em uma escala de 0 a 10. O indicador foi criado em 2007 para medir a qualidade do aprendizado nacional. É sabido que a maioria dos vestibulares cobra conhecimento técnico dos candidatos nas áreas de ciências humanas, exatas e biológicas. Dada essa condição, as apostilas adotadas pelos colégios particulares – os “campeões em aprovação”, como os próprios gostam de frisar – são compostas de forma a apresentar ao aluno o material considerado necessário e suficiente para que

ele se prepare para o processo seletivo das instituições de ensino superior, que adotam um sistema meritocrático controverso e ignoram a realidade que escancara o fato de nem todos os jovens terem recebido educação do mesmo nível. Gislaine Gobbo, professora de Política Educacional da Universidade do Sagrado Coração, defende que a filosofia do ensino médio oferecida pelos colégios brasileiros é limitada ao processo de memorização e não contribui para a formação de senso crítico nos jovens. “A problemática sobre a metodologia adotada pelas escolas particulares carrega consigo um processo histórico, cuja abordagem teórica pauta-se na linha tecnicista. Será que o ensino como é divulgado no interior da escola promove aprendizagem? O resultado de uma aprendizagem concreta e efetiva não se refere à execução de tarefas e repetições de ações, mas por meio da possibilidade de dialogar, pensar e discutir ideias e conceitos”, argumenta. Sarah Santangelo, de 19 anos, é estudante do curso de Farmácia-Bioquímica da Universidade de São Paulo (USP) e estudou durante toda sua trajetória pré-universitária em colégios pagos. Ela afirma que sentia que os métodos e con-

25


teúdos eram majoritariamente voltados à preparação para o vestibular. “Quantas vezes não ouvíamos ‘mas isso não cai no vestibular, então vocês não precisam saber’? Isso sempre acontecia com uma fórmula matemática ou física, por exemplo”, conta a universitária. Sarah recorda, ainda, que alguns professores entravam em sala de aula meramente dispostos a reproduzir o conteúdo abrangido pelas apostilas. “Eu tive um professor que tinha a apostila em mente. Quando surgia alguma dúvida que saía do papel, ele enrolava, não explicava direito”, afirma, sem deixar de fazer justiça aos docentes que admirava. “Isso acontecia bastante, mas também tive professores excelentes que, tirando as fórmulas que tínhamos que decorar, eram atenciosos e nos ensinavam muito bem”, pondera. Completar o ensino superior deveria ser um dos principais objetivos da maioria dos adolescentes brasileiros. Uma grande parte deles, porém, estuda na rede estadual ou municipal e deixa o ensino médio sem a menor condição de integrar uma universidade pública de qualidade. Os que conseguem, geralmente o fazem muito mais por mérito próprio que por terem recebido educação de bom nível. Não é justo, portanto, colocar o fardo dessa culpa nas costas desses jovens. As condições oferecidas pela maior parte dos colégios de rede pública – tanto no ensino fundamental como no médio – não são aceitáveis, no geral. Por mais que o número de estudantes de rede estadual aprovados em universidades públicas esteja crescendo (a Unicamp, por exemplo, registrou de 2013 para 2014 um aumento de 20,5%; a USP, por sua vez, supe-

26

rou em 2014 os 28,5% do ano anterior, registrando 32,3% de alunos vindos do ensino público matriculados) ainda é inegável a vantagem dos estudantes de colégios particulares na disputa pelas vagas nas principais instituições de ensino. Não se deve esquecer que o aumento tem muito a ver com os programas de inclusão social das universidades, que são positivos, mas ajudam a escancarar a discrepância existente. Jéssica Santos, de 22 anos, cursa Jornalismo na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Antes de conquistar seu lugar na faculdade pública, viveu duas realidades. Desde a infância até o ensino médio, foi aluna da rede estadual. Graças ao Centro de Desenvolvimento de Talentos (CDT), programa voluntário comandado por um professor com o qual teve contato nos anos de colegial, pôde fazer cursinho pré-vestibular e um curso de inglês. Segundo ela, “as pessoas do projeto fizeram o que a maioria dos professores não se importou em fazer”. “Poucos professores nos orientavam sobre a importância do vestibular e, principalmente, como deveríamos nos preparar para as provas. Tive uma professora que falava que nós não conseguiríamos passar em universidades públicas de forma nenhuma. Ela dizia que muitos de nós iríamos fazer ‘UniEsquina’. Era muito triste ouvir ela dizer isso”, relembra Jéssica, que também não generaliza e faz questão de lembrar que teve professores dedicados. Analisando, então, o panorama do ensino médio brasileiro, constata-se que, enquanto a maior parte dos colégios privados faz uso de métodos que colocam em primeiro plano as revistalampiao.com

| Lampião


imagem: Marcos Santos / USP Imagens

estatísticas de aprovação em faculdade, a maior parcela das escolas públicas sofre com defasagem, péssima estrutura e incapacitação dos professores – e também não estão imunes ao ensino por meio da memorização, a popular “decoreba”. “Em uma sala de graduação temos alunos advindos de escolas particulares e públicas. Tanto os resultados de uma como outra são da mesma ordem, pois tais aspectos dependem do grau de desenvolvimento intelectual possibilitado nos níveis de ensino anterior: infantil, fundamental e médio, nos quais percebemos foco em abordagens teóricas tecnicistas”, explica Gislaine. Os métodos, além de engessados, não demonstram ser atrativos para o aluno. Segundo reportagem do “O Globo” de julho de 2014, quase 12% dos jovens que se matriculam no ensino médio o abandonam ainda no primeiro ano. 75% dos adolescentes de maior renda estão matriculados, enquanto, entre os menos abastados, 44% vão à escola. Independentemente do colégio em que estudaram e receberam formação de base, os alunos que ingressam no ensino superior não raramente se queixam de dificuldade no processo de adaptação. A carga teórica apresentada pelas faculdades não é condizente com a que os estudantes tiveram contato nos ensinos fundamental e médio. Mesmo estando acostumada a obter notas altas no colégio, Sarah admite ter encontrado problemas no início da vida acadêmica. “Meu ensino médio não me preparou para a universidade. Na escola, aprendi a tirar nota. Me senti perdida no primeiro semestre. Durante o colégio, senti falta de aulas práticas, em vez dessa ideia de que a aula tem que ser sempre teórica. Na quí-

mica, minha área, a prática é extremamente útil”, explana. Jéssica conta que também sofreu para entrar no ritmo do ensino superior. “No primeiro semestre, filosofia e sociologia foram as matérias com as quais eu mais tive dificuldade. A verdade é que eu nunca havia tido aulas de verdade dessas matérias. Penso que a universidade cobra alguns conhecimentos prévios que fazem total diferença desde o início do curso e, mais uma vez, a educação que recebi na escola pública não foi suficiente para me preparar”, explica a futura jornalista. Gislaine Gobbo afirma que os alunos adentram o ensino superior intelectualmente imaturos. “Temos presenciado a inserção dos alunos no ensino superior recém-chegados do ensino médio com uma série de dificuldades relacionadas ao desenvolvimento psíquico-intelectual. Ingressam com problemas de interpretação textual, leitura, abstração, raciocínio e principalmente sobre o uso da escrita como meio de produção social e cultural. Há outros problemas como a compreensão verbal sobre enunciados e vocabulário muito restrito”, relata a docente. Em suma, as opiniões contribuem para uma reflexão óbvia de que o ensino médio brasileiro necessita de modernização. O lema de muitos colégios, principalmente os da rede privada, é o de que eles preparam seus alunos para a vida. Uma preparação real, contudo, envolveria muito mais do que um treinamento para uma prova. O ensino médio ideal também capacitaria o jovem para aquilo que ele tem desejo de fazer, seja a ida para uma universidade ou a inserção direta no mercado de trabalho.

27


cultura

RESENHA:

“VIRANDO BICHO” arte: Divulgação

“Virando Bicho”, 2012 Direção: Alexandre Carvalho & Silvia Fraiha Produção: Fraiha Produções Duração: 75 minutos Por Vanessa Souza

P

rofessores entram na sala, cumprimentam os alunos e

começam a explicar o conteúdo, tudo sempre com muito bom humor – às vezes até demais – para prender a atenção dos estudantes e atraí-los para as aulas. Quem já passou por um ano ou mais de cursinho sabe bem como é essa situação. E é esse ambiente que Alexandre Carvalho e Silvia Fraiha levaram às telas no documentário Virando Bicho. Para retratar a rotina, as alegrias e os sofrimentos de quem tenta passar em um vestibular, a obra acompanha seis alunos em suas batalhas diárias por uma vaga em alguma universidade no fim do ano. No entanto, o que eles têm em comum não vai além disso e do fato de fazerem um cursinho – seja por ter parado de estudar já há algum tempo ou por não ter conseguido ingressar no curso pretendido no ano anterior. Cada um dos guerreiros tem uma história de vida e um objetivo, que podem ir desde querer cursar Direito no Largo de São Francisco porque a família toda estudou lá até conseguir uma bolsa da ProUni em alguma faculdade particular por meio de uma boa nota no Enem. Um dos méritos do documentário é justamente ter selecionado pessoas de vários cenários sociais para protagonizar o filme: alguns pagam pelo cursinho, outros frequentam os comunitários e um deles trabalha em uma escola em troca de assistir às aulas do curso pré-vestibular. O recheio do documentário não é só sobre como os protago-

28

Clique na imagem para assistir ao documentário

nistas estão levando os estudos ou sobre onde moram e de onde vieram. O longa não se esquece de problematizar o modelo adotado pela maior parte das instituições brasileiras de ensino superior, usando entrevistas com educadores sobre alternativas ao vestibular tradicional, cotas e até mesmo má gestão do ensino público e falta de valorização dos professores. Outro ponto alto é o momento em que os estudantes contam o que vão fazer nas férias de julho e, logo após uma delas dizer que quer ir à praia para relaxar, o filme transita levemente até a ilha de São Pedro, no Sergipe, onde a Universidade Federal do Alagoas (UFAL) conduz o projeto de ensinar os índios Xocó os conteúdos que o vestibular abrange, para levar conhecimento aos moradores da aldeia e incentivá-los a entrar na faculdade – até mesmo o cacique da tribo estuda lá. Depois de voltar ao ambiente urbano, o documentário mostra a reta final da caminhada até a entrada (ou não) dos estudantes na universidade. O clima de ansiedade e a atmosfera tensa criada em torno do resultado que os protagonistas não conseguem mais esperar para ver se assemelha demais à realidade, fazendo os espectadores sofrerem junto com os vestibulandos. No fim das contas, a obra é um retrato fiel aos vários significados que “virar bicho” pode ter e o quanto pode custar. O filme pode ser visto gratuitamente na internet não só por quem se interessa pelo universo dos cursinhos, mas também por aqueles que querem ver e se emocionar com histórias reais. revistalampiao.com

| Lampião


PLAYLIST:

EDUCAÇÃO

Clique na imagem para escutar a playlist “Educação”

Por Vanessa Souza

O

s estudos fazem parte da nossa vida, seja de um jeito bom

ou ruim. Por isso, não é surpresa que o tema inspire artistas a comporem sobre o assunto. Abaixo estão algumas das melhores músicas sobre educação e seus vários universos: 1. Garotos Podres, “Escolas” A cena punk dos anos 80 criticava o sistema e como ele era gerido, e os paulistanos do Garotos Podres também tinham algo a falar. Na faixa “Escolas”, lançada em 1988 no segundo álbum da banda, eles se posicionam contra o costume de só “sentar e calar a boca” nas salas de aula, onde tudo o que se aprende é que “seu destino já está traçado”: o alunos vão virar “cordeirinhos domesticados” em vez de cidadãos de verdade. 2. Legião Urbana, “Química” Gravada pela primeira vez em 1983 pelos Paralamas do Sucesso, a música “Química” foi composta por Renato Russo e integra também o álbum de 1987 Que País É Este, da Legião Urbana. Nela, Renato explica a pressão sofrida para estudar o tempo todo com o objetivo de “passar na porra do vestibular” e se encaixar no padrão de “cidadão modelo” imposto pela sociedade. É claro que ele queria bem mais do que isso. 3. Pink Floyd, “Another Brick in the Wall, pt.2” O hit da banda inglesa, lançado em 1979, é sempre uma referência quando se fala em música sobre escola. O coro das crianças dizendo que, no fim das contas, somos todos só mais um tijolo na parede reforça o argumento da canção ao dizer que não precisamos de uma educação que só sirva para controlar nossos pensamentos. 4. Alis, “El Alumno Oyente” O cantor e compositor Pachi García, que dá vida ao Alis, conta nesta música do seu álbum de 2011 Material de Disección como nunca teve uma matéria favorita na época da escola. A

crítica ao modelo passivo de ‘aprender’ aparece no título da canção (que significa “o aluno ouvinte” em português), no verso em que ele diz nunca ter gostado de decorar frases sem compreendê-las e na batida da música, que se assemelha ao tique-taque do relógio em uma aula entediante e sem conteúdo. 5. J. Cole, “College Boy” Em um freestyle em cima da base produzida por Kanye West para a música “Came Back to You” de Lil’ Kim, J. Cole mostra o outro lado da educação formal na vida de alguém. Fora toda a diversão e preocupação que ele retrata citando ressacas e provas como parte da vida de um universitário, a conclusão para o bolsista graduado com grande honra na Universidade de St. John é só uma: “If this rap shit don’t work, I’m going for my Master’s” (em tradução livre, “se esse negócio de rap não funcionar, eu vou atrás do meu mestrado”). A canção é parte da primeira mixtape do rapper, The Come Up, lançada em 2007. 6. Vampire Weekend, “Campus” Não é só de aulas que a universidade é feita. Há também todo o ambiente de relacionamentos e os problemas que decorrem deles. É disso que uma das faixas do autointitulado álbum de estreia da banda nova-iorquina Vampire Weekend fala ao descrever um dia na rotina do estudante que tem que conviver com a dificuldade de encontrar sua ex pelos corredores do campus onde estuda. 7. The White Stripes, “We’re Going to Be Friends” Numa melodia pura e inocente, Jack White canta sobre como amizades podem começar no meio escolar. Lançada no álbum White Blood Cells, de 2001, a canção pode até parecer falar sobre crianças no ensino fundamental ao dizer que a professora marca suas alturas na parede, mas a construção de um relacionamento ao caminhar para a escola juntos é universal e abrange desde crianças até adultos.

29


fb.com/revistalampiao @revistalampiao www.revistalampiao.com revistalampiao@gmail.com


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.