Revista Lampião - Nº 3

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índice

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holofote

THALES COIMBRA (p. 4)

Entrevista com Thales Coimbra, advogado militante pela causa LGBT em São Paulo opinião

CULTURA DO ESTUPRO: INOCENTE É QUEM SOFRE (p. 18) por

Vanessa Souza

O desrespeito e a violência sexual contra a mulher se tornou algo tão corriqueiro que seu caráter destruidor passa despercebido

QUANDO A MULHER ACREDITA E LUTA PELA CAUSA (p. 10) por

POR QUE O FUTEBOL TEM QUE MUDAR (p. 12) por

POR QUE “COISA DE MENINA”? (p. 21) por

Maria Eduarda Amorim

Ao romper com o estereótipo masculino, a metrossexualidade tem de enfrentar o preconceito

Thais Ribeiro

Gabriel

de

Castro

A TIA MACHISTA DE MARIANINHA (p. 14) por

Felipe Altarugio

cultura

VENDENDO MACHISMO (p. 22) por

Gabriel

de

Castro

Assim como todos os outros registros, a publicidade diz muito sobre o emissor e seu público. Desta forma, abre espaço cada vez mais para a discussão sobre o machismo presente em algumas peças

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RESENHA: BEYONCÉ (p. 24) por

Gabriel

de

Castro

RESENHA: CLUBE DE COMPRA DALLAS (p. 25) por

Vanessa Souza

revistalampiao.com

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editorial

IGUALDADE DE GÊNEROS

A

superficialidade do jornalismo atualmente se mostrou

como um empecilho ao propósito da revista. Precisamos mudar. Para isso, a solução foi buscar edições temáticas que pudessem expor ao leitor várias perspectivas acerca de um assunto específico. Como primeiro tema a ser tratado, a “Igualdade de Gêneros” foi escolhida por ser um debate atual e importante para a construção da sociedade. Se algumas figuras começam a alcançar cargos de comando, como Dilma Rousseff, Angela Merkel e Cristina Kirchner (líderes de Brasil, Alemanha e Argentina respectivamente), a participação feminina no mercado de trabalho ainda é bem menor que a masculina: são 59,6% das mulheres contra 80,9% dos homens, segundo o Programa das Nações Unidas pelo Desenvolvimento (PNUD). Ao mesmo tempo, vemos, com certa insistência, o quanto o machismo está incrustado na cultura brasileira. O futebol, principal elemento identitário do país, se mostra como uma fonte de conservadorismo imensa. A noção distorcida de que o estádio é isolado do restante da sociedade mantém valores como o machismo, homofobia e racismo. Em outra perspectiva, também se vê o conservadorismo em relação à mulher quando se fala na chamada “cultura do estupro”. “É bobagem”, muitos dizem. Contudo, a violência contra as mulheres continua sendo um problema constante. Um estudo do IPEA revelou que 88,5% das vítimas de estupro no Brasil são mulheres ou meninas. Por conta de alguns avanços, somos levados a acreditar que caminhamos a passos largos na construção da igualdade de gênero. No entanto, alguns ainda pensam que “por trás de todo grande homem existe uma grande mulher” ou que “as mulheres deviam saber se comportar na rua”. Igualdade de gêneros é entender os indivíduos como iguais e reconhecer as desigualdades existentes hoje e combatê-las. Gabriel

de

Castro

Diretor Executivo

Diretor Executivo Gabriel de Castro Diretor de Conteúdo Rafael Barizan Conselho Administrativo Gabriel de Castro, Rafael

Barizan, Thafarel Pitton Conselho Editorial Estevão Rinaldi, Gabriel de Castro, Maria Eduarda Amorim, Rafael Barizan, Thafarel Pitton, Vanessa Souza Editoras Maria Eduarda Amorim, Vanessa Souza Diagramador Gabriel de Castro Colaboradores Felipe Altarugio, Thais Ribeiro Contato revistalampiao@gmail.com

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Edição nº 3 Igualdade de Gêneros

Todos os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. É proibida a reprodução de textos ou imagens sem a prévia autorização dos editores.

Capa da Edição nº 3 “Igualdade de Gêneros” Ilustração: Gabriel de Castro

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holofote

THALES COIMBRA O

entrevistado da 3ª edição da Revista Lampião é Thales Coimbra, advogado formado pela Faculdade de Direito da USP. A dedicação ao Grupo de Estudos de Direito e Sexualidade (GEDS) foi grande ao longo da graduação e continua sendo até hoje. “Academicamente, eu tenho me envolvido nessa mesma área. Eu procuro manter um foco, que é a questão da sexualidade”, ele diz. “Desde dezembro de 2013, eu abri um escritório aqui e tenho atendido a população LGBT”, completa. Atualmente, o discurso homofóbico e machista ainda é presente na sociedade. Dados do Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil referentes a 2012 mostram que, naquele ano, foram 9.982 casos registrados, um aumento de 46% em relação a 2011, quando esse número foi de pouco mais de 6 mil. As denúncias também tiveram um aumento: 166% em comparação com 2011. “A gente tem que mostrar para as pessoas que a gente tem que ser respeitado”, é o que Thales pensa sobre os processos em relação à homofobia, transfobia, bifobia ou lesbofobia. Confira na Edição nº 3 da Revista Lampião a entrevista completa com Thales Coimbra.

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Revista Lampião: Você poderia primeiramente nos contar

um pouco sobre sua formação pessoal? Thales Coimbra: Bom, minha trajetória começa quando eu entrei na Faculdade de Direito da USP, em 2008. Em 2009, eu comecei a me envolver com política acadêmica e o projeto que eu mais abracei durante a gestão do Centro Acadêmico foi o GEDS, o Grupo de Estudos de Direito e Sexualidade, que, a princípio, era Grupo de Estudos de Diversidade Sexual. Eu acho que esse foi um marco para a minha trajetória pessoal, porque o GEDS tem sido, até hoje, o projeto em que eu coloco minhas energias e tem aberto portas para outras áreas de atuação. Em 2010, conheci o professor José Reinaldo, que se tornou meu orientador no GEDS e é aí que entra um pouco dessa confusão entre a minha trajetória e a trajetória do GEDS, porque foi tudo muito conectado. Em 2012, a gente institucionalizou o GEDS e aí entra outro projeto pessoal e de trabalho que me marcou muito, que foi a elaboração do parecer para o STF que a gente escreveu defendendo o direito de transexuais, operadas ou não, a mudar o nome e o sexo. Foi um trabalho que envolveu engajamento com movimentos sociais de travestis e transexuais. A gente conheceu os revistalampiao.com

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foto: Acervo Pessoal

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equipamentos da prefeitura e do estado que fazem o trabalho de acompanhar as travestis e transexuais e isso pra mim foi algo muito bacana e que abriu minha cabeça demais. Isso me fez enxergar para além daquilo que a gente vê para orientação sexual, que é identidade de gênero. Essa é uma parte da minha trajetória, que foi com o GEDS. Academicamente, eu tenho me envolvido nessa mesma área. Eu procuro manter um foco, que é a questão da sexualidade. Minha tese de “láurea” (TCC) foi sobre discurso de ódio homofóbico. Em 2013, comecei meu mestrado com o próprio José Reinaldo, e eu tenho estudado ainda o discurso de ódio, mas dessa vez de forma mais amadurecida e mais bem delimitado. Desde dezembro de 2013, eu abri um escritório aqui e tenho atendido a população LGBT em caso de mudanças de nome e sexo para travestis e transexuais e casos de homofobia,

O que é problemático é que esse debate político, por ocorrer no judiciário, camufla os conflitos de interesses. Se os avanços viessem pelo legislativo, estaria mais claro quem são os nossos inimigos. Muitas vezes a gente vê essas figuras caricatas e extremadas, mas eu sou daqueles que acredita que eles não são nossos verdadeiros adversários. Nossos adversários são aqueles que apoiam e sustentam esses caras. Eu acho complicado a gente romantizar essa disputa também. Quando pensamos na Igreja Evangélica, ela tem vários grupos. O Marco Feliciano não representa todos os evangélicos, mas sim uma parte deles. Mas muitas igrejas protestantes históricas são favoráveis ao reconhecimento dos direitos LGBT. Eu acho que essa ascenção vem como reação às conquistas LGBT e que eles são representativos de uma parcela. Não acho que nós tenhamos um cenário tão pessimista. Sou uma pessoa que, na

“Primeiramente,

dentro da comunidade, eu sinto que as pessoas não se sentem titulares de direitos. É um sentimento muito tímido ainda” bifobia, lesbofobia, transfobia, etc, todos os tipos de discriminação que envolve a orientação sexual e identidade de gênero. Lampião: Como você vê a ascenção de grupos conservado-

res, tanto na política - a exemplo do deputado Marcos Feliciano - quanto na sociedade - por exemplo, jornalistas de opinião de extrema direita? Thales: Eu acredito, como uma parte das pessoas que se arriscam a fazer análises políticas, que esses grupos conservadores são agentes reativos. Eles são movidos pelo avanço de direitos conquistados por minorias. Então, quanto menos visibilidade a gente tem, mais a gente vai ter essa reação. Essas pessoas são representantes de um conflito que existe. Se não fosse o Feliciano, teria outro lá para fazer o papel dele. O que eles fazem é evidenciar para a gente uma coisa que muitas vezes não fica óbvio, que são os conflitos que existem em nossa sociedade. Eles são inerentes a todas as sociedades, mesmo aquelas com vários valores republicanos, como os Estados Unidos.

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análise política, sou otimista em relação aos nossos direitos, não acho que sofremos um período de recrudescimento, mas acho que temos casos específicos que chamam nossa atenção. Os poucos que se opõe são muito barulhentos. Lampião: Qual sua visão sobre o Estado de Direito brasilei-

ro e propostas como o Estatuto da Família? Há outros projetos semelhantes? Thales: Eu acho que o Estatuto da Família representa um perigo na medida em que ele vai dar respaldo legislativo para políticas públicas. Se você considera família a união entre um homem e uma mulher, de forma a excluir a união entre dois homens, isso vai pautar políticas públicas que valorizem essa família heterossexual, como, por exemplo, redução de impostos, subsídios para consumo e por aí vai. Se o estatuto for aprovado, ele vai ser derrubado pelo judiciário, na minha opinião, assim como já foi a interpretação segundo a qual só se entende como família a união entre um homem e uma murevistalampiao.com

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“Muitos

juízes pisam na identidade de gênero mesmo. Os promotores também. É muito desrespeito e uma violência simbólica, que está nas coisas mais miudinhas, mais corriqueiras” foto: Acervo Pessoal

lher no código civil. O que eles estão tentanto fazer é retomar aquela interpretação. Eu acho que, inevitavelmente, o judiciário seria acionado. É inconstitucional esse projeto de lei. Eu me espanto como que ninguém ainda tomou a atitude de entrar com uma ação controle de constitucionalidade contra esse projeto de lei. Esse controle não se dá só pós-promulgação. Você pode te-lo durante a tramitação no congresso. Claramente, ao meu ver, isso vai contra direitos fundamentais. Lampião:

Como um advogado que atua a favor da causa LGBT, quais são os principais desafios de disso, de litigar pelo movimento LGBT? Thales: Na minha curta carreira de advogado, eu tenho percebido que os maiores desafios de advogar pelo movimento LGBT são dois. Primeiramente, dentro da comunidade, eu sinto que as pessoas não se sentem titulares de direitos. É um sentimento muito tímido ainda. Então, elas têm seus direitos violados, elas sabem que alguma coisa está errada e podem até me procurar para fazer uma consulta, mas muitas vezes as pessoas acabam se enrolando com outros compromissos e não dão continuidade, porque elas não têm noção do valor daquilo. Que não é apenas uma aventura judicial. É um dever que você tem de acessar o judiciário e reclamar uma indenização. Não são os meus honorários. É questão de sensibilizar o judiciário de que existe uma discriminação e fazer essa pessoa pagar e sentir pelo que ela fez. Se você não buscar formas de punição, o Estado não vai buscar. No Brasil, a discriminação não move a bunda de agente público. Você não vê policial correndo atrás, você não vê promotor

correndo atrás. É muito raro, são casos excepcionais. Se nós que somos interessados diretos não tomarmos uma atitude, como que vamos exigir dos outros? E o outro grande desafio de litigar pelo movimento LGBT está do outro lado dessa relação, que são os juízes. Se por um lado eu estou bem mais otimista e acho que eles estão mais sensíveis às demandas da comunidade, ao mesmo tempo eu acho que muitos deles ainda não têm noção do que é ser um LGBT. Eles não fazem ideia do que é sofrer homofobia. E eles não se esforçam para entender. Por isso é muito comum ver juiz que nega indenização para travesti que foi constrangida quando estava tentando usar o banheiro feminino, muito juiz que chama travesti e transexual por “ele”. Já vi caso de sentença em que o juiz disse que “ele não é mulher”. Muitos juízes pisam na identidade de gênero mesmo. Os promotores também. É muito desrespeito e uma violência simbólica, que está nas coisas mais miudinhas, mais corriqueiras. Essa violência é muito grande. Eu acho que deveria existir algum tipo de relativização, porque o discriminado está em uma posição totalmente vulnerável. Não estou dizendo que a gente precisa abolir o contraditório, mas precisamos criar mecanismos para sensibilizar, nem que seja só para fazer um cursinho de capacitação para esses juízes. Lampião: Os recentes movimentos de descontentamento so-

cial, como as jornadas de junho, tiveram alguma relevância para a comunidade LGBT? Thales: Se nós olharmos exclusivamente para as jornadas de junho, não. Até porque elas eram voltadas a direitos so-

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ciais: saúde, educação. Agora, se a gente olhar como um todo, o primeiro semestre de 2013 foi estressante e catalisou demais a comunidade LGBT. Foi quando o Feliciano assumiu a comissão de Direitos Humanos e Minorias na Câmara. Naquele período, a gente teve muita manifestação na Roosevelt, na Augusta, na Paulista, contra o Marco Feliciano na CDHM. Foi muito legal ver como as pessoas compraram a luta contra o Feliciano, inclusive não LGBTs. Essas pessoas assumiram a pauta e lutaram por isso, o que foi muito bacana. Ainda que ele não tenha caído, ele conseguiu cumprir seu ano de mandato como presidente, não foi algo que passou batido. Foi um mandato turbulento, marcado pela debandada dos parlamentares progressistas. O período pré-jornadas de junho foi muito bacana para o movimento LGBT, mas especificamente junho, era um movimento de massas, e a gente sabe que o LGBT não é um movimento de massas. Lampião: E, para você, quais são as principais lacunas que

existem nos direitos que as e os transexuais têm garantidos? Thales: O direito que sofre mais com lacunas é o direito à mudança de nome e de sexo. Ele acabou sendo garantido pela jurisprudência. Existe uma lei, que é a de Registros Públicos, de 1973, época em que a medicina mal falava de transexualidade, então imagine como era o Direito, que é uma ciência reativa. O que nós vemos é que a Lei de Registros Públicos tem abertura, dá para se interpretar a favor das transexuais e travestis, que é o que a gente tem feito, mas abre espaço para o juiz. Por isso, as transexuais ainda estão nas mãos de juízes e promotores que não necessariamente são sensíveis à causa. Isso proporciona disparidades imensas. Você pode pegar um juiz super bacana, mas também pode pegar um péssimo. Além disso, outro direito garantido por resolução do Ministério da Saúde é o que envolve o processo de transformação. Trata-se de um acompanhamento multidisciplinar com endocrinologista, psicólogo, psiquiatra e assistente social. A questão é que faltam equipamentos do poder público para isso, então em São Paulo a gente vê um CRT, que é o Centro de Referência e Treinamento em DSTs e AIDS e faz o acompanhamento das travestis e das transexuais, e que atende o estado inteiro e mais algumas regiões. É um hospital que atende por volta de 1.200 pessoas. Não é nem um hospital inteiro, é um ambulatório, com dois ou quatro psicólogos, para 1.200

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pessoas. Faça as contas e imagine a qualidade do serviço que vai ser prestado. Então, é um direito garantido, mas precisa de mais hospital, de mais equipe. Precisa levar para o interior, para o litoral, para conseguir alcançar todo mundo, porque o que tem não está dando conta. O Hospital das Clínicas faz 12 cirurgias por ano, uma por mês. Com 1.200 pessoas lá, vai demorar 100 anos para fazer a cirurgia. Por isso muitas vão para médicos particulares e, para pagar o médico, acabam indo para a prostituição. E assim, uma parte da população que já era vulnerável fica mais vulnerável ainda. Lampião: Quais são as formas de organização que essas mi-

norias utilizam para combater o preconceito? Thales: Entre as formas de organização que transexuais usam para combater o preconceito está o bom e velho “bafão”. As travestis e as transexuais têm uma relação muito próxima, é muito forte com a vida na rua, com a prostituição. Algumas transexuais começam a ter inclusão em outros ambientes, mas a grande maioria delas está na rua se prostituindo ou em salão de beleza. Mas não dá nem para comparar o poder aquisitivo de uma situação e de outro. E, nessas situações, para “sobreviver”, elas usam do “bafão”, ou seja, fazer escândalo. Elas andam sempre juntas, evitam ficar sozinhas, e fazem escândalo, se assim for necessário, para que sejam respeitadas. Além disso, a gente vê muitas ONGs envolvidas e muito ligadas às travestis e transexuais, principalmente esses projetos que já vêm dos anos 90 e que são grupos de apoio para soropositivos. Quem acaba se ajudando são elas entre si, de forma bem informal, ou então com a ajuda de ONGs, que oferecem cursos de capacitação. E aí começa a entrar o poder público com alguns projetos. Em São Paulo, por exemplo, existe o POT, que é o Projeto Operação Trabalho e oferece bolsas para as travestis e transexuais fazerem curso de capacitação e tal. Lampião: Hoje em dia, vemos muitos casos de homofobia,

lesbofobia, bifobia e transfobia, até mesmo em ambientes como a universidade. Como você vê isso e quais os motivos que levam isso a acontecer? Thales: A universidade é um espelho da sociedade. Por mais que seja um espelho distorcido, ela é um espelho. Na SanFran, por exemplo, por mais que nós tenhamos um ambiente elitizado, ele reflete os problemas que estão na sociedade. revistalampiao.com

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As pessoas que estão lá não estão isoladas da sociedade, elas são pessoas normais. Elas vão para casa, se relacionam com outros seres humanos, pegam transporte público, etc. E onde tem gente, tem discriminação, relações de poder, opressão cultural. Mesmo em espaços privilegiados, digamos assim, sempre vai haver essa influência. No entanto, o que a gente pode ver é um engajamento maior de grupos. É um ambiente mais fértil para isso. Imagina você criar um grupo de atuação para a cidade de São Paulo inteira. É difícil demais. Agora, dentro de um espaço menor, como a universidade, dá para ser criar um GEDS, por exemplo, e já faz uma grande diferença. É isso que a gente precisa: ter pessoas interessadas em fazer esse trabalho de mudar a cultura. Não dá para esperar que 2.300 alunos vão se engajar e virar militantes LGBT, mas dá para esperar o mínimo, que é o respeito. Não precisa

“Além

coisa é orientação sexual, que é a orientação do prazer, se sou hétero, se sou gay, se sou bi. Outra coisa é identidade de gênero, ou seja, se eu me conformo ao corpo que eu nasci ou não, se me vejo de forma contrária, ou se me vejo de forma inexplicável, entre o gênero masculino e feminino. Então, as pessoas fazem muita confusão e acham que já fizeram muito em aceitar a homossexualidade. Como se fosse uma coisa de cada vez. Os direitos não podem ser assim, primeiro a gente reconhece os gays e depois reconhece as trans. Tem transexuais morrendo, sabe. Tem que reconhecer que as transexuais são a parcela da comunidade LGBT mais atacada por discriminação. Se você pegar o relatório de violência homofóbica de 2012 da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, vai ver que o número de transexual e travesti que sofrem disso é quase igual ao dos gays, sendo que existem muito menos trans e travesti. Ou seja, a incidência é muito maior.

disso, precisa haver o mínimo de empatia.

Enxergar

o outro não como um bicho de sete cabeças, como inumano.

O

outro é outra pessoa assim como eu”

pegar no batente, é só se abster de fazer injustiça e discriminar. A gente está dentro da sociedade, não tem como se blindar completamente, mas dá para a gente reduzir isso. Lampião: E o que você acredita tornar o combate à transfo-

bia mais difícil? Thales: Se nós entendermos como as trans se situam dentro do movimento LGBT, já entendemos porque é mais difícil o combate à transfobia. Dentro do movimento, as trans são excluídas também. Elas são marginalizadas dentro de um grupo já marginalizado. É difícil as pessoas na sociedade entenderem a transexualidade como uma alternativa possível de vida. A pessoa pode ser assim e feliz. O que a gente acaba vendo é que as pessoas estão dispostas a ver até um certo limite. Tipo “Ah, já entendi que você é gay, não está bom? Você ainda quer ser trans? Não podia ser um gay mais afeminado? Tem que ter cabelo comprido, colocar silicone?” Elas não entendem que são outros quinhentos, que uma

Lampião:

E o que a sociedade e os demais podem fazer para ajudar? Thales: Principalmente fazendo aquilo que eu já disse: se abster. Não discriminar já é o primeiro grande passo. Nem tudo que a gente pensa ou quer precisa ser exteriorado. Pensa e reflete se vale a pena você pronunciar. Você não precisa ficar transferindo um discurso de ódio transfóbico, homofóbico, misógeno, racista, etc. Nós não somos animais que não conseguem se controlar. Se você não gosta, ok, mas guarde para você. Além disso, precisa haver o mínimo de empatia. Enxergar o outro não como um bicho de sete cabeças, como inumano. O outro é outra pessoa assim como eu. Todos estamos no mesmo barco. Se hoje perseguem LGBT, amanhã estão perseguindo outros grupos. Precisa existir um esforço em se abster de discriminar e de engajamento real com o problema do outro, porque o problema do outro é também o meu problema. E só vamos ter noção disso quando nos engajarmos de verdade. Temos que ver isso como uma realidade nossa.

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opinião

QUANDO A MULHER ACREDITA E LUTA PELA CAUSA Por Thais Ribeiro*

* Thais Ribeiro é colaboradora da Revista Lampião. Futura alguém na vida, curte MPB, é admiradora da liberdade e fã de brigadeiro. Acredita em um futuro melhor, mesmo sofrendo com os comentários em notícias de diversos sites, e busca sempre sorrir frente às adversidades da vida. Toma café sem açúcar e prefere andar a pé.

N

o dia 24 de maio de 2014, aconteceu em São Paulo a

Marcha das Vadias, evento no qual milhares de pessoas se reúnem para trazer à tona o problema da violência contra as mulheres. O nome “vadias” vem da responsabilização da vítima pelo agressor, devido ao comportamento ou vestimenta da mulher. O coletivo feminista que promove a marcha tem o intuito de defender a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo e a incentivar a luta para que as vítimas de violência sexual e doméstica não sejam responsabilizadas pelos crimes cometidos contra elas. Até ano passado era possível perceber um recorte de classe nesta luta feminista. O público participante era de classe média e média alta. Ocorre que, neste ano, um movimento chamou atenção: a presença das mulheres vítimas da revista vexatória em presídios. A revista vexatória é uma prática que deveria ser realizada somente em casos de suspeita de que a(o) visitante está portando algo ilegal e tem o intuito de deixá-lo dentro do presídio. No entanto, virou a regra. Pesquisas feitas pela Rede de Justiça Criminal com o auxílio do Conectas e ITTC mostram que o número de objetos apreendidos no procedimento são ínfimos (link: http://www.conectas.org/pt/acoes/ justica/noticia/19012-pelo-fim-da-revista-vexatoria).

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Interessante notar que a prática tem como vítima uma classe determinada, que são as que tem parentes presos e que se dispõem a visitá-los, ou seja, em sua maioria, mulheres pobres. É perceptível o recorte de gênero dessa prática humilhante, pois raros são os casos de homens que se sujeitam a passar por isso para visitar algum egresso. Na hipótese de não ser familiar, apresentarei como ocorrem as revistas obrigatórias dos estabelecimentos prisionais no estado de São Paulo. A revista vexatória, em geral, é feita por três agentes penitenciárias, em salas nas quais entram, por cada vez, de três a quatro visitantes. Todas são revistadas ao mesmo tempo e, enquanto estão nuas, são forçadas a agachar três vezes de frente e três vezes de costas. Durante os agachamentos, as agentes chegam a se deitar no solo, olhando de perto os genitais das visitantes. Comumente, as agentes, de forma brusca, dizem que as visitantes devem usar suas mãos para abrir os genitais, fazendo com que as visitantes sintam-se extremamente humilhadas. Em seguida, as mulheres devem permanecer nuas e são obrigadas a passar pelo detector de metais, na presença das agentes e na frente de todas as outras mulheres. Sem que haja qualquer tipo de higienização, são obrigadas a sentar no “banquinho” (um dos detectores) umas após as outras. Essa conduta segue em sentido oposto ao texto constiturevistalampiao.com

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cional, posto o artigo 1º, inciso III, e o artigo 5º, incisos III e X, da Constituição da República: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; (grifei) Não obstante, a prática da revista vaginal vexatória também segue contrária a normativa da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. Além de tudo isso, essa conduta fere o princípio da não transcendência da pena, no qual a pena não deve passar da pessoa do condenado e fere a garantia do estado de inocência, pois trata a visitante como portadora de objetos ilegais, ou seja, como criminosa.

Importante ressaltar que a visibilidade da revista obrigatória e a luta por sua proibição nasceu de um projeto da Rede de Justiça Criminal, que reúne assinaturas para ser aprovado o projeto de lei que proíbe a prática nos presídios e utilize métodos menos degradantes para efetividade da segurança, além de preservar a dignidade da visitante, como os scanner utilizados nos aeroportos. E, na Marcha das Vadias deste ano, realizada no fim de maio, a prática degradante da revista vexatória foi lembrada. Conscientizadas da violação de seus direitos, as mulheres se reuniram e deram visibilidade à luta, carregando cartazes com as falas “Pelo fim do estupro institucionalizado”, “Meu corpo não é guarda-volumes”, entre outras. A marcha saiu do vão do MASP com destino à praça Roosevelt. No fim do ato, as mulheres se reuniram em uma roda e fizeram falas. Começou com a organização contando história de mulheres conhecidas: “meu nome é Cláudia Ferreira...”, meu nome é Maria da Penha...”, “meu nome é Adelir Lemos...”. Depois, abriu espaço para que as mulheres falassem sobre suas experiências: foi o momento em que as vítimas da revista vexatória fizeram relatos das revistas. O protagonismo na própria luta, sem a intermediação de ONGs ou instituições e a sororidade das mulheres, repetindo as palavras umas das outras e depois puxando um coro de “Pelo fim da revista vexatória!”, foi algo bonito de se ver. Em 4 de junho, alguns dias após a Marcha das Vadias, o Senado aprovou o PL 480/2013, que segue agora para a aprovação da Câmara dos Deputados. O projeto de lei proíbe a revista íntima em penitenciárias do país. Segundo a proposta da senadora Ana Rita (PT-ES), todos os visitantes devem ser revistados por meio de equipamentos eletrônicos e, nos casos em que houver necessidade de revistas mais detalhadas, ninguém poderá ser obrigado a despir-se. Grande foi a repercussão de tal projeto por ONGs e instituições ligadas aos Direitos Humanos, o que assegura a participação popular na democracia. Ao não barrar a presença de familiares e amigos na vida do egresso e respeitar a inviolabilidade do corpo da mulher – na grande maioria, negra e pobre – por meio da visita humana, começa a dar efetividade aos direitos e garantias fundamentais já previstos nos tratados do qual o Brasil é signatário e ao que é previsto na Constituição Federal.

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POR QUE O FUTEBOL PRECISA MUDAR Por Gabriel

D

de

Castro

11 de maio de 2014, Estádio Independência, em Minas Gerais. Um erro da assistente Fernanda Colombo Uliana em um impedimento prejudicou o Cruzeiro, equipe visitante. O resultado final foi a vitória do Atlético-MG, principal rival dos celestes. O cenário, portanto, é de um maiores clássicos do país, com uma rivalidade enorme, e com um erro grave da arbitragem prejudicando um dos times. Caso o bandeirinha fosse um homem, muito provavelmente ele iria ouvir xingamentos em direção à sua mãe, orientações de locais aonde tomar, etc. Técnicos e dirigentes iriam desabafar nas entrevistas coletivas, dizer que arbitragem brasileira está caindo de nível e que algo deve ser feito. Jogadores iriam, logo na saída do gramado, culpar o assistente pelo revés, mas dizer que o foco já está na próxima partida. No final, o assistente de linha seria posto de lado pela Federação de Arbitragem e ficaria algumas partidas afastado do gramado. Por ser uma mulher, porém, o cenário foi diferente. “Se é bonitinha, que vá posar na Playboy, no futebol tem que ser boa de serviço”, disse Alexandre Matos, diretor do Cruzeiro. A onda de “cansei do politicamente correto” faz uma pressão para que injusia

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tiças como o machismo, nesse caso, passe despercebido. Sim, no futebol é preciso ser bom de serviço. Os árbitros que lá estão devem mostrar seu mérito para lá figurarem. A beleza não deve ser um critério de avaliação, mas sim a precisão, o preparo físico, a utilização de critérios, etc. Porém, a insinuação de Alexandre Matos de que a bandeirinha só atua nos jogos por ser bonita já é (e muito) machista. Fernanda Colombo Uliana, em entrevista ao F5, disse que se sentiu injustiçada. “Muitos erram no futebol. Por que o meu se tornou mais evidente? Foi pelo fato de eu ser mulher”, ela disse. E é bem verdade. Os erros de arbitragens são constantes, seja na liga brasileira, espanhola, italiana ou inglesa. A Premier League sofreu na temporada com diversos erros de arbitragem. A própria Inglaterra foi injuriada na última Copa do Mundo por ter feito um gol legal e não ser validado pelo juiz. Só no futebol brasileiro, são inúmeros os casos de erros gravíssimos e cruciais ao longo dos últimos anos. Em 2005, o Internacional foi prejudicado contra o Corinthians quando Tinga foi expulso por, segundo o árbitro, simular um pênalti, quando na verdade ele foi tocado (claramente) pelo revistalampiao.com

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goleiro Fábio Costa. Em 2013, foi a vez do Corinthians ser prejudicado na disputa da Taça Libertadores, contra o Boca Juniors, com impedimentos assinalados erroneamente, falta mal marcada, etc, o que resultou na queda do time paulista na competição. Neste ano, o Flamengo foi favorecido contra o Vasco na final do Campeonato Carioca. Na ocasião, Márcio Araújo, volante do Flamengo, fez o gol do título em condição irregular. Os vascaínos reclamaram muito, mas ainda tiveram de ouvir do goleiro Felipe, do Flamengo: “Ganhar roubado é mais gostoso”. Inúmeros casos que foram igualmente ou mais importantes que o Atlético-MG e Cruzeiro, válido pela 4ª rodada do Campeonato Brasileiro. Consideremos, é claro, a grandeza de um clássico, a importância da rivalidade para o futebol. No entanto, a dor de se tirar um título, ou a possibilidade de se lutar pelo campeonato, também é muito grande. Somado aos diversos erros ao longo do restante da temporada, os culpados por esses enganos não ganharam tanto destaque como Fernanda. Alguns veículos chegam ao cúmulo de noticiar não o erro em si, mas reunir uma galeria de fotos da bandeirinha, que já é chamada de “musa da arbitragem”.

E essa fala provavelmente foi repetida diversas vezes nas rodas de conversa que envolvem o futebol. Isso porque, em pleno 2014, o futebol ainda mantém suas origens retrógradas. Não só relativas ao machismo, mas também à homofobia e ao racismo, por exemplo. Gritos de macaco dirigidos a Samuel Eto’o, Neymar, Daniel Alves; Lúcio xingando Emerson de gay durante o jogo como forma de “desestabilizar” o adversário. Esses são alguns dos casos que explicitam o conservadorismo no esporte. São vários os xingamentos proclamados durante um jogo de futebol, muitos sem o emissor sequer querer dizer aquilo que a mensagem traz. Por ser um esporte de massa, especialmente no Brasil, o futebol é essencial para a mudança de panorama da sociedade. Enquanto o esporter mantiver suas raízes retrógradas, enquanto for normal ir ao estádio e xingar um jogador por ser negro ou homossexual, xingar uma assistente por ser mulher, o discurso de mudança da sociedade brasileira vai ser ilusório. A ideia que se tem do estádio enquanto local isolado da sociedade, onde é liberado ser machista, homofóbico e racista, só prejudica os avanços nas questões de igualdade de gênero e étnica.

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A TIA MACHISTA DE MARIANINHA: O QUE É O MACHISMO E COMO ELE FAZ PARTE DO NOSSO DIA A DIA Por Felipe Altarugio*

* Felipe Altarugio é colaborador da Revista Lampião. Estudante de Jornalismo da Unesp de Bauru.

“N

ão senta assim, Marianinha, que isso não é jeito de menina sentar”. Festa de Natal com a família, a mesa toda pronta, o clima de celebração e o espírito natalino no ar. E chega aquela tia. Aquela. A que pega no pé de todo mundo, especialmente da Marianinha. Porque a Marianinha usa roupa curta demais, quando devia se vestir como mocinha. Porque a Marianinha não é feminina, quando os mocinhos preferem as mocinhas femininas e que sejam direitas. Ou seja, Marianinha não vai conseguir arrumar um marido porque não é feminina e porque usa roupa curta demais. A mesma tia não é chata assim só com a Marianinha. Ela também perturba o Zequinha, o outro sobrinho, que tem a mesma idade da Marianinha. Mas é um pouco diferente. A tia pergunta pra Marianinha quando ela vai casar, com quem ela vai casar, e dá dicas pra arrumar um bom partido. Depois a tia vai e pergunta pro Zequinha quantas namoradas ele tem, diz que ele não pode chorar porque é homem e que homem

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tem que ser forte, e dá dicas de como ser cavalheiro e assim ter todas as pequenas damas da escola à sua disposição. Todos têm essa tia. Mas a tia não precisa necessariamente ser uma tia. Pode ser o pai, a mãe, o tio, o avô, a avó, a professora, os amiguinhos. Pode ser até o papagaio da família, daqueles que repetem não mais que duas frases, desde que alguma dessas frases seja de cunho machista. Opa! A palavra “machista” apareceu. Muitos que até então liam o texto e achavam graça sentem agora um pequeno incômodo. Alguns já se blindam e ficam na defensiva. Principalmente na era da informação (e desinformação) digital, muitos tabus são criados, um deles em relação ao feminismo: “tá vendo, lá vem as feminazi querendo arrumar encrenca!”. Isso, meus caros e minhas caras, já é machismo. Olha só, você também é a tia da Marianinha. Quer dizer que a tia da Marianinha é machista? De fato, o comportamento, as ações e as palavras da tia da Marianinha revelam um pensamento machista enraizado. Mas no fundo,

ela também é vítima desse sistema, perpetuado e, hoje, já inerente à sociedade. No fim das contas, não importa se a tia é a mãe, o pai, o tio, o avô, a avó, a professora, os amiguinhos, o papagaio ou a própria tia. Quando eu disse que todos tinham essa tia, me referia à sociedade, a tia maior de todos nós. O machismo está impregnado na sociedade. Nós vendemos o machismo, consumimos o machismo, assistimos ao machismo na televisão e presenciamos o machismo no dia a dia. O simples fato de aceitarmos tudo isso já faz de nós todos machistas, quer gostemos de admitir ou não. Muitas vezes, o machismo está implícito. A tia da Marianinha não está sendo machista apenas quando manda a sobrinha sentar como mocinha. Nesse caso, o machismo é bem explícito. O que muitos ignoram é que, por exemplo, ao ensinar ao Zequinha que ele deve ser cavalheiro com as meninas, a tia também está sendo machista. O cavalheirismo, inclusive, é uma das formas mais sutis pela qual o machismo se faz presente. Ele está lá, todo dia, e ninguém percebe. Ou pelo menos faz vista grossa.

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arte: Gabriel de Castro

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Nesse momento, o rapaz interrompe e diz: “mas eu ser cavalheiro não é machismo, é gentileza”. Sabe de nada, inocente. Quais são os princípios do cavalheirismo como ele é convencionado? O rapaz tem que pagar as contas no cinema e no restaurante, ajudar a moça a carregar uma pesada caixa na rua, abrir a porta do carro para a donzela descer, etc. De fato, não há nada de errado em ser gentil. O problema com o cavalheirismo é que ele, sutilmente, reforça a ideia de inferioridade da mulher. O que o cavalheirismo diz, na verdade, é que a mulher não pode pagar porque é inferior economicamente. Não consegue carregar a caixa pesada porque é mais fraca. Não consegue nem abrir a porta do carro sozinha, coitada! O cavalheirismo é um eufemismo da sociedade para dizer que a mulher precisa de um homem, porque ela não é tão capaz quanto ele. E isso está tão impregnado na sociedade que muitas moças procuram um rapaz cavalheiro, que possa suprir todas as incapacidades dela, como descer do carro. O cavalheirismo não tem por princípio ajudar os mais fracos porque eles precisam, mas sim “ajudar” as mulheres porque elas são mulheres, coitadas. É como um prêmio de consolação dado pelos homens àquelas mulheres que entendem que são inferiores e se “colocam no seu devido lugar”. Gentileza é ajudar alguém a carregar uma caixa, seja esse alguém homem, mulher, velho, novo, fraco, forte. Cavalheirismo é machismo. Da mesma forma, nós compramos e vendemos o machismo. Sabe aquela balada, em que a entrada da mulher custa menos que a entrada do homem? Legal, né? Ajudando as mulheres, que com certeza se deram bem nessa história de pagar mais barato. Só que não, isso é machista. Estipulando um preço menor, a mulher se torna produto para o público masculino. Um atrativo da balada: é open bar e tem mulher. E, no fim das contas, a mulher acaba tendo o mesmo valor que a bebida: um produto, uma mercadoria, à mercê dos homens. Mas por que nos atentarmos a essas coisas tão pequenas? Porque essas coisas pequenas refletem lá na frente. Porque reforçamos, a todo momento, a ideia de que o homem é superior. Reforçamos a ideia de que o homem é tão superior que sabe mais do que a mulher o que ela deve fazer com o

próprio corpo. Que roupa usar, que roupa não usar. Reforçamos a ideia de que a mulher ou é puta ou é santa. Bobagem, porque, no fim das contas, a mulher é inferior ao homem, não importa se ela seja puta ou santa, fácil ou difícil. Aí uma moça é estuprada na rua e vão dizer que é porque não soube se portar. Que deve ter provocado. Que usou um short curto à noite. Que estava sozinha. A culpa nunca é da vítima, mas somos cheios de querer justificar a ação do estuprador pela conduta da estuprada. A todo momento, a sociedade nos diz que a mulher é inferior. Que a mulher deveria ocupar um papel secundário em relação ao do homem. Que a mulher ou é puta ou é santa. Que tem que se dar ao respeito. E todos veem isso com normalidade. Ser mulher hoje não é uma questão biológica, de sexo, apenas. É uma identidade que o mundo atribui a alguém. Ser mulher muitas vezes quer dizer que não se tem controle sobre o próprio corpo. O machismo é, acima de tudo, achar que nós sabemos mais do que a própria pessoa o que ela deve fazer com o próprio corpo. O machismo é julgar a mulher por ser puta ou santa, quando o que ela é ou deixa de ser não diz respeito a ninguém senão a ela mesma. O machismo é a objetificação da mulher. E aqueles que não percebem como a ideia constantemente reforçada de que a mulher é inferior se transforma no estupro lá na frente dizem que é exagero, coisa de feminazi, que abrir a porta pra moça descer não tem nada a ver com violência sexual, que a moça pagar menos na balada não promove a cultura do estupro. A verdade é que desmoralizar o feminismo está em moda na sociedade machista, mais que nunca. A situação é tão crítica que, outro dia, uma amiga me contou que virou feminista. Eu, curioso, perguntei o porquê da transformação. A resposta dela fez com que eu me arrependesse de ter perguntado. Ela disse que acreditava que as mulheres deveriam ser mais valorizadas, “porque por trás de todo grande homem existe sempre uma grande mulher”. Moça, você é machista. O mundo é machista. Na verdade, não há uma grande mulher por trás de todo grande homem. A verdade é que por trás de grande parte de nossas ações e pensamentos, existe um grande machismo.

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CULTURA DO ESTUPRO:

foto: revistasamuel.uol.com.br / Casa Fora do Eixo Minas

INOCENTE É QUEM SOFRE Por Vanessa Souza

N

o começo deste ano, uma pesquisa do Instituto de

Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelou que 26% dos entrevistados acreditam que uma mulher mereça ser “atacada” caso esteja usando uma roupa que mostra o corpo. Na mesma época, várias notícias sobre assédio sexual em meios de transporte públicos apareceram na mídia denunciando os “encoxadores” – pessoas que, ao usarem ônibus e metrô, aproveitam para se esfregar em alguém sem perguntar antes se podem. Soa até engraçado imaginar um cidadão, em pleno ônibus lotado, pedindo licença a outra (ou outro) e perguntando “será que posso te encoxar?”. Pois é. Esse é o problema. Por mais que a prática do encoxamento pareça estranha por si só, o fato de ela acontecer de surpresa e sem o consentimento da vítima é que deveria receber a maior parte da atenção. É comparável a você estar em um espaço público e, de repente, alguém passar e cortar seu cabelo sem você estar de acordo. Ou pegar seu celular da sua mão e ir embora sem sua permissão. Absurdo, não é? No entanto, coisas como o próprio encoxamento, a cantada na rua e até mesmo um conselho do tipo “paga umas tequilas pra ela, assim ela fica bêbada e vocês se pegam”

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às vezes passam despercebidas no campo da “absurdez” da vida cotidiana. Já é tão comum ouvirmos essas histórias que parece algo normal pra muita gente. Os amigos do estagiário de criação publicitária Lucas Matuda, por exemplo, acharam que esse ”conselho” era a melhor saída para ele conseguir ficar com a menina que ele queria. “Todo mundo me disse que é assim mesmo que um amigo pega uma amiga, que é normal”, ele conta, dizendo que ficou chocado com a idéia e que “não esperava isso de amigos, que são todos universitários, ou seja, relativamente bem informados. Achei que as pessoas trataram esse tipo de abuso com um certo descaso, como uma meta a ser cumprida, sem levar em consideração como minha amiga ia se sentir depois. Não me pareceu justo”. A moça pretendida por Lucas teve sorte por ele pensar assim, mas a estudante de Arquitetura Jéssica Neves, nem tanto. Depois de passar o dia bebendo com amigos num churrasco e fazer uma competição com virada de shots de tequila com um rapaz, Jéssica ficou bêbada e ele começou a dar em cima dela. “Até antes de começar a competição eu queria ficar com ele, mas depois eu já estava fora de mim, e ele me levou pro quarto e começou a me beijar”, ela relata. revistalampiao.com

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arte: Gabriel de Castro

“Sabe quando você está acordada, mas fica sem reação e parece que te dá um branco? Eu não conseguia pensar e o cara em cima de mim, passando a mão e tal”, ela diz. Pelo menos Jéssica voltou a si a tempo de não deixar o caso evoluir para o pior: “Na hora que ele ia tentar algo a mais, eu levantei, comecei a chorar, pedi para parar e saí de lá. Lembro que vários amigos me viram indo pro quarto e meio que começaram a brincar com a situação sem saber da gravidade daquilo”. Segundo ela, só uma amiga ficou revoltada com a história quando Jéssica contou o que aconteceu.

Em um cenário como o que temos na nossa sociedade, em que esse tipo de violência é algo considerado “normal” e muitas vezes nem reconhecido como violência de verdade, o que não pode ser absurdo é falar sobre cultura do estupro. A nomenclatura assim, forte, assusta a ponto de fazer alguns pensarem que isso é exagero. No entanto, o que o termo caracteriza é exatamente o que praticamente todas as mulheres vivem no dia a dia: o desrespeito e a violência sexual como algo tão natural que chega a fazer parte da cultura de um povo.

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foto: Reprodução

Serviço: Mapa: http://chegadefiufiu.com.br

É aí que entram também as cantadas, tidas como tão inocentes por uma parcela da população. Para quem emite um “linda!”, “gostosa!”, entre outras variações mais ofensivas em espaço público para desconhecidas, essa prática é algo comum e inofensivo. Tem gente que até justifica seu “poder” de cantar uma mulher como liberdade de expressão. Enquanto isso, para as receptoras do assédio, existe um sentimento de intimidação e constrangimento. Com certeza sua professora do primário, em algum momento, disse que a sua liberdade termina quando começa a do outro. É isso que as pessoas que ainda consideram cantada um elogio precisam perceber. Chega de Fiu-Fiu! Sabendo que esse problema existe e havendo a necessidade de provar que não era mero achismo, o site Think Olga organizou uma pesquisa para descobrir onde, o quanto e como as mulheres sofrem com o assédio sexual. Depois de obter resultados que confirmavam a hipótese inicial, o segundo passo foi criar uma ferramenta colaborativa para ajudar a localizar os pontos mais problemáticos de violência contra a mulher no Brasil. Assim, surgiu o mapa Chega de Fiu-Fiu, onde a mulher (ou o homem, por que não?) pode relatar um assédio

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Central de Atendimento à Mulher: 180 Secretaria de Políticas para as Mulheres: ouvidoria@spm.gov.br / spmulheres@spmulheres.gov.br

que aconteceu consigo ou com alguma conhecida. Entre os campos que devem ser preenchidos estão endereço, tipo de assédio e período do dia, além do espaço em que pode ser feita uma descrição mais detalhada do que ocorreu. O nome e endereço de e-mail de quem denuncia não são publicados, mas ainda assim há a opção de fazer uma declaração anônima. Para quem quer apenas consultar os dados, é possível pesquisar por uma cidade e ver “pins” no mapa, que denunciam as áreas mais perigosas do país. Segundo o site, a intenção de mostrar os lugares em que acontecem mais assédios não é diminuir ainda mais a liberdade da mulher e delimitar por onde é seguro passar e por onde não é, mas sim avaliar quais locais precisam de mais mudanças e ações para que deixem de ser áreas de risco. No entanto, mesmo com medidas de proteção à mulher que começam a ser tomadas – e que de maneira nenhuma são irrelevantes –, o mais importante é a mudança de comportamento de quem percebe o mal que faz ao perpetuar ações que, se passarem por uma reflexão crítica, deixam de ter sentido. É mais ou menos aquilo que andam falando por aí: não adianta ensinarmos meninas a se protegerem da agressão sexual se não ensinamos meninos a pararem de agredir. revistalampiao.com

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POR QUE “COISA DE MENINA”?

AO ROMPER COM O ESTEREÓTIPO MASCULINO, A METROSSEXUALIDADE SOFRE COM PRECONCEITO Por Maria Eduarda Amorim

A

sociedade enfatiza diariamente a afirmação de que

homens e mulheres pertencem a universos diferentes “Homens são de Marte, mulheres são de Vênus”. “Azul é cor de menino, rosa é cor de menina”. “Menino brinca de carrinho, menina brinca de boneca”. “Homem não chora”. “Cozinha é lugar de mulher”. Essas frases já estão tão enraizadas no nosso dia a dia, que, muitas vezes, seu caráter preconceituoso não é percebido. É uma visão constituída historicamente, que influencia o pensamento humano de maneira sutil e estabelece o universo feminino como inferior e poluidor da masculinidade. A professora de Antropologia da Unesp Larissa Pelúcio acredita que os exemplos domésticos são uma prova disso. “A gente tem uma cultura machista sim. Provavelmente, a primeira vez que um menino ouviu o termo ‘mulherzinha’ foi para desprestigiá-lo, para dizer para ele que não poderia se aproximar desse campo, dessa zona dita como inferior”, ela afirma. Por isso, sempre que um homem apresenta uma atitude ligada ao mundo feminino, ele é alvo de preconceito, como o músico Bruno Daniel. Ele se define metrossexual por ter alguns cuidados com o corpo, se preocupar com a pele, fazer depiliação e cuidar do visual, e conta que sofre repressão de amigos e da família. “Mesmo não sendo gay, sofro um preconceito homofóbico. Minha mãe mesmo já me questionou várias vezes por eu

me depilar. O homem foi criado para ser bruto e e eu saio do padrão (...) E quem não compreende esse mundo, fala que eu nunca mais vou namorar por ser assim.”, ele relata. A professora Larissa explica que isso acontece porque são estabelecidos limites entre os gêneros como resultado do binário homem x mulher. Somente o heterossexual é visto como “normal” e tudo que se desviar dele não é aprovado. Assim, é necessário criar uma nova definição para os homens que forçam esses limites, mas que procuram preservar sua heterossexualidade. O termo metrossexual, por exemplo, foi criado em 2004 por um inglês para definir os homens que se preocupam com a vaidade e com o estilo, e para afirmar que eles podem usar cremes e vestir roupas de designers sem perder a masculinidade. Hoje, outro termo foi criado pelo mesmo jornalista inglês. O “spornsexual” tem sua origem nas palavras esporte, pornô e sexual e mapeia a nova estética masculina de se preocupar musculação e tatuagens para deixar o corpo mais atraente. E gradualmente outros termos serãs criados para definir novas vertentes do masculino, sempre buscando separá-lo do universo feminino. E a questão que fica é: por que esses limites precisam ser tão rígidos e bruscos? Afinal, como diz Larissa Pelúcio, o que pode ser mais parecido com um homem do que uma mulher?

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VENDENDO MACHISMO Por Gabriel

“M

de

Castro

ostre para ela que o mundo é dos homens”. Caso

fosse veiculado hoje, o slogan das gravatas Van Heusen, da década de 1950, causaria um choque aos olhos do público. O machismo, inerente à época, se mostra em diversas outras peças publicitárias. O limpador Tomorrow Lestoil, de 1968, apresenta a seguinte frase: “A mulher do futuro fará da Lua um lugar limpo para se viver”. A criatividade, cérebro da publicidade, é o que vende os produtos para o público. Por estar imersa em uma sociedade cuja mentalidade explicita a superioridade do homem e o estereótipo de masculinidade e feminilidade, não é surpresa que a publicidade apresente tais traços. E, segundo a doutora em Ciências da Comunicação e publicitária Christiane Santarelli, esses vestígios podem ser encontrados até hoje pelos mesmos motivos. “Se ainda temos publicidade com apelo ao machismo é porque a sociedade brasileira ainda é bastante machista”, ela diz. A recorrência a propagandas do século passado mostra como as raízes são profundas. Recentemente, algumas peças publicitárias chamaram a atenção do público, como o caso da Heineken.

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O caso da cervejaria, ao contrário de grande parte das propagandas da bebida, não apresenta nenhum apelo sexual vinculado à mulher. No entanto, a forma com a qual a marca se refere ao gênero feminino é o que provocou a tão grandediscussão. Explica-se: a Heineken sugere uma promoção em uma loja de sapatos como uma forma de “sua esposa pensar somente em sapato, em vez de onde você está”. Após o contato, a Heineken afirmou que sua “intenção com a campanha ‘Shoe Sale’ era divulgar a grande final da UEFA Champions League de maneira bem humorada. A marca não teve a intenção de reforçar estereótipos ou causar qualquer desconforto ou constrangimento”. A cervejaria pediu desculpas aos que se sentiram ofendidos e, por respeito aos consumidores, tirou a campanha do ar. É difícil imaginar que conceitos tidos como certos até pouco tempo sejam imediatamente mudados. São tantas situações em que o machismo se apresenta que alguns até imaginam se tratar de um mundo “muito politicamente correto”. O caso citado, por exemplo, explora o humor através de estereótipos femininos (a mulher que só se importa com sapatos). “E a revistalampiao.com

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questão da discriminação pode ser ampliada além do Masculino x Feminino, passando por questões como homofobia, preconceito contra idosos, pessoas acima do peso, pessoas fora dos padrões de beleza, etc”, comenta Christiane. A professora Lana Cristina Santos, coordenadora da pós-graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista, também acredita que “marcas, produtos e serviços, quando veiculados em qualquer tipo de comunicação, apresentam posicionamentos da sociedade na qual estão inseridos”. Porém, Lana atenta para o outro lado da publicidade. “Devemos lembrar que qualquer campanha ou peça, para ser veiculada, depende da aprovação do cliente, de quem efetivamente paga a conta”, ela diz. Ao mesmo tempo em que as propagandas de cerveja começam a explorar outros assuntos que não a sexualidade feminina, outros aspectos machistas continuam a servir às peças. “Mas não podemos esquecer que hoje o receptor ou consumidor tem cada vez mais voz”, Lana diz. “Cabe, portanto, um olhar mais atento de quem cria, de quem aprova e de quem recebe”, ela conclui.

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cultura

RESENHA:

“BEYONCÉ”

Artista: Beyoncé Gravadora: Parkwood Entertainment e Columbia Records Por Gabriel

E

de

Castro

ra uma sexta-feira quando

Beyoncé Knowles-Carter disponibilizou seu 5º álbum de estúdio na internet. O auto-intitulado Beyoncé (2013) traz 14 músicas inéditas, todas acompanhadas de vídeos, dando um ar de “álbum visual”, como a própria cantora o caracterizou. Ao contrádio de 4 (2011), esse disco revela um trabalho amadurecido de Beyoncé, que tem se mostrado como representante feminista no universo da música pop. O álbum tem início com a seguinte pergunta: “What is your aspiration in life?” (Qual sua aspiração na vida?). A resposta, proferida pela própria artista, é “My aspiration in life would be to be happy” (Minha aspiração é ser feliz). A faixa “Pretty Hurts” traz um discurso sobre a imposição de um padrão de beleza e a ilusão de ascenção no universo pop. A maior peculiaridade é que a música não é escrita por Beyoncé, mas sim pela australiana Sia, e, mesmo assim, a artista consegue interpretá-la de modo que a música pareça sua. A pegada R&B se mostra presente em faixas como “Blow”, que explora a sexualidade pela própria letra e também pelos sons emitidos, tanto na melodia quanto na forma de cantar da artista. A liberdade em abusar da sexualidade já é uma característica antiga sua, e também pode ser observada em “Drunk in Love”, faixa com a participação de Jay-Z, marido da cantora. A conexão do dueto é perceptível a qualquer ouvido e a interpretação de Beyoncé consegue ser, ao mesmo tempo, suave e intensa. A principal característica do álbum é a utilização do ambiente interior da artista. Em “Blue”, quem faz uma participação é Blue Ivy, filha do casal, aumentando ainda mais a atmosfera intimista. Outros que contribuiram com o novo disco foram Drake e Frank Ocean.

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foto: Divulgação

Desprendendo-se das parcerias, no entanto, é que mais se percebe o teor único que o álbum parece ter para Beyoncé. “XO”, a que tem mais “potencial mercadológico”, constroi um universo em que o ouvinte imerge. Os efeitos de reverberação e de eco dão a impressão de que se adentra em um novo mundo durante os mais de três minutos de música. Além disso, a melodia alegre e a temática mais leve também dão um ar mais pop à faixa. Por fim, a faixa 11 do disco também merece destaque. “Flawless” chama a atenção não pelo aspecto musical, mas sim pela mensagem transmitida. Mais próxima a “Run the World”, do álbum passado, desta vez Beyoncé traz um trecho de uma palestra da feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie durante um TED. A música exala poder, a cantora esbanja intensidade e a mensagem passada, não só durante o discurso, mas ao longo da letra toda, é clara. Em artigo publicado recentemente, Beyoncé disse que “precisamos ensinar aos nossos garotos regras de igualdade e respeito para que, quando eles crescerem, a igualdade de gênero se torne natural”. O final do discurso de Chimamanda diz “Feminista: a pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica dos gêneros”. Produzido por grandes nomes, como Roc Nation, Justin Timberlake e Pharell Williams, o álbum demonstra maturidade e coesão por parte de Beyoncé. Um trabalho unido, com faixas que se entrelaçam e formam o disco como um todo, que mescla músicas mais sombrias com outras suaves e ainda outras intensas. A postura desafiadora, seja no aspecto musical, pessoal ou socio-político, é o que mais impressiona. Ultimamente tornou-se comum artistas lançarem álbuns auto-intitulados, sem que a nomenclatura nem fosse questionada. Beyoncé, contudo, vai na contramão disso, já que não poderia ter um nome que melhor representasse o que o álbum é. revistalampiao.com

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RESENHA:

“CLUBE DE COMPRA DALLAS” foto: Reprodução

“Dallas Buyers Club”, 2013 Direção: Jean-Marc Vallée Elenco: Matthew McConaughey e Jared Leto Duração: 116 minutos Por Vanessa Souza

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Jared Leto (esq.) e Matthew McConaughey (dir.) em “Clube de Compra Dallas. Clique na imagem para assistir ao trailer do filme.

Ron Woodroof (Matthew McConaughey) pergunta à Drª Eve (Jennifer Garner) se “alguma vez você sentiu falta de ter uma vida normal”, já nos últimos dez minutos do filme, ele estava resumindo da melhor maneira possível sua trajetória até ali. Clube de Compras Dallas (2013) é um filme baseado na história real de um homem heterossexual e homofóbico que, depois de descobrir que tinha AIDS numa época em que só gays e usuários de drogas injetáveis eram considerados parte do grupo de risco, viu sua vida social e profissional desmoronar por causa do preconceito e ignorância das pessoas com quem convivia. A partir de então, ele começa a correr contra o tempo e usar todos os recursos que encontra para conseguir sobreviver, já que os médicos o deram uma expectativa de vida de no máximo 30 dias depois de receber o diagnóstico. Um desses recursos foi montar um negócio ao lado da transexual Rayon (Jared Leto): um clube de compras de medicamentos alternativos para quem também não quer se tratar com o AZT, único método legal disponível nos anos 80 para tentar controlar a AIDS, mesmo sendo um recurso terapêutico ainda um tanto quanto duvidoso. A construção do personagem de McConaughey foi admirável desde a preparação do ator, que emagreceu cerca de 21kg para o filme, até a evolução dele durante o drama: por mais que uando

a vida tenha amolecido um pouco o cara durão que Woodroof era, sua personalidade não mudou tanto a ponto de torná-lo inconsistente. Leto também perdeu bastante peso – aproximadamente 13kg – para representar sua personagem, além de mudar sua voz para incorporar a transexual de um jeito muito convincente. Ainda assim, o diretor Jean-Marc Vallée perdeu a chance de chamar uma atriz verdadeiramente transexual para o papel de Rayon, já que isso não é algo comum nos filmes mainstream. Seria uma experiência interessantíssima, mesmo que Leto não tenha decepcionado em sua atuação. Outro detalhe relevante do longa, mesmo que sutil, são as telas numerando os dias da vida de Woodroof, que aparecem durante o filme logo depois que o personagem recebe a notícia de que tem só mais um mês para viver. Isso cria uma expectativa sobre o que vai acontecer na história à medida que a narrativa vai se aproximando do 30º dia. Clube de Compras Dallas, por mais que pudesse seguir o caminho fácil de virar um filme somente sobre rendição, conseguiu se livrar do clichê aparente: o personagem principal meio mal caráter a princípio só ajudou outros doentes a conseguir remédios pela garantia de lucro nas vendas, e não por altruísmo. Além de, é claro, ninguém ter se rendido à doença durante toda a história.

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