Revista Jornalismo e Cidadania Nº 44

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Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima

Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Concepção Gráfica | Ivo Henrique Dantas Doutor em Comunicação e Professor Caesar School

Diagramação | Rafaela Lima

Graduanda em Biblioteconomia

Revisores | Laís Ferreira e José Bruno Marinho

Doutorandos de Comunicação PPGCOM/ UFPE

Colaboradores | Alfredo Vizeu

(Professor PPGCOM UFPE)

Túlio Velho Barreto

(Fundação Joaquim Nabuco)

Gustavo Ferreira da Costa Lima (Pós-Graduação em Sociologia/UFPB)

Anabela Gradim

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Ada Cristina Machado Silveira (Professora da Universidade Federal de Santa Maria- UFSM)

Antonio Jucá Filho

(Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco- FUNDAJ)

João Carlos Correia

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB)

Ana Célia de Sá (Doutora em Comunicação)

Alexandre Zarate Maciel (Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFP)

ÍNDICE

Editorial | 3

Heitor Rocha

Portugal: crise da representatividade, crise climática e pandemia | 5

Pedro de Souza

COP 26: Muito barulho por nada? | 9

Marcos Costa Lima

Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (III) | 13

Rubens Pinto Lyra

Mulheres escritoras de livros-reportagem: expansão e novos olhares | 16

Alexandre Maciel

Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo | 19

Marya Edwarda Lapenda

O Dilema do Crescimento Econômico | 22

Antonio Jucá

Programas Policiais Na TV - Violações de direitos ao vivo | 25

Ticianne Perdigão

Ombudsman de imprensa, opinião e qualidade do jornalismo | 28

Luiz Filipe Freire

Letramento nas redes sociais digitais e o pensamento crítico | 31

Luciana Ferreira e Cristiane Ferreira

Por uma maior visibilidade da literatura indígena | 34

Mônica de Lourdes Santana

“Filhas de cadela”, violência e machismo na eleição da Nicarágua | 38

Berta Marson

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EDITORIAL

Heitor Rocha

Atramitação do Projeto de Emenda Constitucional dos Precatórios exibiu com todas as tintas o simulacro que colonizou o estado de direito republicano reduzindo o Brasil a mero território de pirataria desde o golpe de Dilma Rousseff em 2015, com a deplorável encenação grotesca do Congresso Nacional, do Judiciário, do Poder Executivo, da grande mídia e das elites proprietários do dinheiro.

O Congresso Nacional protagonizou o “suborno público” através das emendas parlamentares, que sempre significaram, desde a apreciação do processo de impeachment de Temer, agora com sua ilegalidade agravada pelas emendas secretas, uma forma de corromper a representação conferida pela população brasileira aos seus representantes no Poder Legislativo, no conluio das reformas restauradoras contra a previdência social, a legislação trabalhista, administrativa e tributária, além da permanente ameaça de privatização do patrimônio nacional.

Nesta conspiração contra os interesses dos brasileiros, assumiu posição de relevo o governo miliciano de Bolsonaro que articula, além do calendário das “reformas” neoliberais e o desmonte da saúde pública incorrendo em crime de responsabilidade por omissão, mas também por ação, nas mais de 600 mil mortes, com a negligência na compra das vacinas para acobertar a corrução por dose de imunizante, os

madeireiros, garimpeiros, grilheiros, milicianos e outros bandidos no assalto à Floresta Amazônica, comprometendo o meio ambiente e, também, a economia com a ameaça do boicote econômico dos países importadores contra as exportações brasileiras. Tudo isso achando que as elites dominantes vão ter que continuar apostando na barbárie posta em funcionamento pela boiada do atual Poder Executivo por conta da chantagem ideológica da ameaça comunista.

O Poder Judiciário, a despeito de algumas medidas buscando recuperar a credibilidade comprometida na condenação sem provas de Lula (quando a única evidência de crime foi a intenção corruptora das empreiteiras), a prisão em segunda instância inconstitucional para tornar o ex-presidente inelegível e evitar a sua vitória na eleição presidencial de 2018, que seria inevitável, segundo os institutos de pesquisa de intenções de votos. Desta forma, não se pode deixar de ver esta política do Poder Judiciário de “soprar e morder” uma forma de manter sua credibilidade num equilíbrio instável entre a posição de lealdade e fidelidade às elites dominantes e, por outro lado, como no reconhecimento das ilegalidades dos promotores da Operação Lava a Jato e do comportamento faccioso, parcial e político do ex-juiz Sérgio Moro, na anulação das sentenças contra o ex-presidente, para tentar contornar a sua desmo -

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ralização diante da consciência jurídica nacional e, também, internacional, com manifestações de renomados juristas sobre a aberração do processo contra Lula.

A grande mídia, comandada pelo Rede Globo, também, desempenha um triste papel não só de cumplicidade e apoio na conspiração golpista neoliberal, mas até de inegável posicionamento político, até agora, quando as aberrações do presidente Bolsonaro, com suas descaradas mentiras e decisões absurdas, afrontam a sociedade brasileira e até mundial. Ao mesmo tempo que critica as barbaridades do presidente, para buscar manter uma linha de ambiguidade, a grande mídia continua fazendo a propaganda do calendário das

“reformas” conservadoras do ideário neoliberal como a única maneira de tirar o país a crise. Como todo veículo de comunicação não pode se manter sem um mínimo de credibilidade junto ao público, esse malabarismo torna-se uma necessidade técnica e não só uma concessão ao “politicamente correto”. Não pode ser descartada a possibilidade de um acordo nesta briga da Globo com o governo Bolsonaro, tendo em vista que se trata de algo conveniente para as duas partes: o governo Bolsonaro faz média com a sua base de apoio evangélica e outros setores truculentos, que não aceitam as novelas globais por considera-las muito liberais em termos de costumes; por outro lado, a TV Globo faz média com

as pessoas civilizadas e de cultura razoável que não aceitam a ignorância e o autoritarismo do atual chefe do Poder Executivo.

As elites proprietárias, por fim, encenam algumas posições de indignação diante das aberrações do brutamontes de plantão no Palácio da Alvorada, assinando manifestos contra a política de desmatamento e queimadas incentivada pelo governo federal, em face da possibi lidade de perderem dinheiro devido ao boicote dos países importadores das exportações brasileiras. Contudo, nada mais do que essas tímidas iniciativas do pessoal da Faria Lima. Costumeiramente, repetem-se os jantares em homenagem ao presidente por empresários sempre ávidos por privilégios, como agora os dois anos de desoneração das folhas de pagamentos, a pretexto de incentivar a geração de empregos, quando se sabe que esses empresários “patrióticos” pegam esse aumento nos lucros para especular nos paraísos fiscais, como dá o exemplo o ministro Paulo Guedes.

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Portugal: crise da representatividade, crise climática e pandemia

Pedro de Souza

Duas questões graves assolam hoje a capacidade de decisão dos nossos dirigentes: a pandemia e o clima, de que, em breve, resultarão a fome, as migrações em massa e catástrofes naturais em série. Para ambos os problemas, há soluções que talvez não sejam as ideais, mas que poderiam mitigar seriamente a sua gravidade: a vacinação em massa, inclusive para evitar novas estirpes do vírus, e a energia alternativa, solar, eólica etc.

Mas ligamos a televisão e o que vemos no telejornal da TV pública portuguesa? Uma entrevista de um político, advogado e homem de negócios chamado Pires de Lima, que resolveu se demitir de um partido, o CDS-PP, que não tem chegado aos 5% nas eleições legislativas. A quem isso interessa?

Nesse meio tempo, a África está praticamente por vacinar, e os países subdesenvolvidos, e alguns outros que passam por desenvolvidos, continuam exportando para os países pobres a sujeira da produção industrial, mandando toneladas de metano para os ares, desmatando, poluindo oceanos. Não há como não concluir que os nossos dirigentes não estão à altura dos problemas com que a humanidade defronta: democracias e ditaduras são, na maioria dos casos, dirigidas por políticos ineptos, quando não criminosos. As ideologias que norteiam a política desde a Revolução Industrial e aqueles que as defendem fazem parte do problema, não da solução. Muito deles estão hoje em Glasgow, depois do G20 em Roma, para mais uma inócua reunião sobre as políticas climáticas. Inócua porque a maioria dos dirigentes,

ao sair do avião no seu país de origem, já se esqueceu do que se trata e, sobretudo, dos seus compromissos. Em Glasgow, a organização é falha, e os preços astronômicos. O primeiro-ministro português, António Costa, ficou em casa.

Portugal é um país médio/pequeno no contexto europeu; os seus 10 milhões de habitantes não alcançam a população da Grande S. São Paulo. E um país pobre, sobretudo devido a séculos de analfabetismo promovido pela Igreja Católica, e zelado por 40 anos de salazarismo. Depois do 25 de abril, se conseguiu algumas melhorias sociais, com o auxílio da União Europeia (UE). Hoje o país desenvolveu, sobretudo, a indústria do turismo, que emprega muita mão de obra não especializada e barata, como, por exemplo, a brasileira. E continua na cauda da Europa. É claro que a solução não está em liberalizar a produção, pois poucos pa Duas questões graves assolam hoje a capacidade de decisão dos nossos dirigentes: a pandemia e o clima, de que, em breve, resultarão a fome, as migrações em massa e catástrofes naturais em série. Para ambos os problemas, há soluções que talvez não sejam as ideais, mas que poderiam mitigar seriamente a sua gravidade: a vacinação em massa, inclusive para evitar novas estirpes do vírus, e a energia alternativa, solar, eólica etc.

Mas ligamos a televisão e o que vemos no telejornal da TV pública portuguesa? Uma entrevista de um político, advogado e homem de negócios chamado Pires de Lima, que resolveu se demitir de um partido, o CDS-PP, que não tem chegado aos 5% nas elei -

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ções legislativas. A quem isso interessa?

Nesse meio tempo, a África está praticamente por vacinar, e os países subdesenvolvidos, e alguns outros que passam por desenvolvidos, continuam exportando para os países pobres a sujeira da produção industrial, mandando toneladas de metano para os ares, desmatando, poluindo oceanos. Não há como não concluir que os nossos dirigentes não estão à altura dos problemas com que a humanidade defronta: democracias e ditaduras são, na maioria dos casos, dirigidas por políticos ineptos, quando não criminosos. As ideologias que norteiam a política desde a Revolução Industrial e aqueles que as defendem fazem parte do problema, não da solução. Muito deles estão hoje em Glasgow, depois do G20 em Roma, para mais uma inócua reunião sobre as políticas climáticas. Inócua porque a maioria dos dirigentes, ao sair do avião no seu país de origem, já se esqueceu do que se trata e, sobretudo, dos seus compromissos. Em Glasgow, a organização é falha, e os preços astronômicos. O primeiro-ministro português, António Costa, ficou em casa.

Portugal é um país médio/pequeno no contexto europeu; os seus 10 milhões de habitantes não alcançam a população da Grande S. São Paulo. E um país pobre, sobretudo devido a séculos de analfabetismo promovido pela Igreja Católica, e zelado por 40 anos de salazarismo. Depois do 25 de abril, se conseguiu algumas melhorias sociais, com o auxílio da União Europeia (UE). Hoje o país desenvolveu, sobretudo, a indústria do turismo, que emprega muita mão de obra não especializada e barata, como, por exemplo,

a brasileira. E continua na cauda da Europa. É claro que a solução não está em liberalizar a produção, pois poucos países liberalizaram e desregulamentaram tanta atividade como Portugal nos últimos 30 anos. Embora os números continuem muito inferiores aos dos países do exbloco comunista (note-se que, no Império Austro-Húngaro, o cuidado com a educação era já muito superior ao equivalente no Império dos Bragança), nos últimos 20 anos Portugal progrediu nitidamente acima desses países no ensino secundário. Mas a base produtiva do bloco do leste continua muito superior à de Portugal, cuja política assentou, tanto nos governos de direita quanto nos socialistas, nos salários baixos (e na consequente emigração). Estamos no país da UE com o mais baixo nível de investimento público em percentagem do Produto Interno Bruto (PIB) — e com uma das mais baixas percentagens do emprego público no emprego total.

Nas eleições legislativas de 2015, o Partido Socialista, embora minoritário, conseguiu formar governo com o apoio parlamentar do Partido Comunista Português e do Bloco de Esquerda, dois partidos de extrema-esquerda antieuropeus. A governação foi, em geral, positiva, a julgar pela aprovação pelos eleitores nas eleições seguintes, em 2019, quando se repetiu o esquema, a geringonça — conforme ficou conhecida essa aliança informal entre o Partido Socialista (um partido de centro-esquerda), PCP e BE. Apesar da oposição da direita (PSD – CDS-PP – Iniciativa Liberal – Chega) e das ásperas negociações orçamentais, essa aliança sobreviveu até 2019, dada a habilidade do secretário-geral do PS, António Costa, filho de um poeta co -

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munista. Há poucos meses, depois de várias rodadas de negociações quanto ao orçamento para 2022, os três partidos se separaram sem acordo sequer na generalidade. O detalhe poderia ser discutido depois na Assembleia. A Constituição Portuguesa é semipresidencialista, e a Assembleia dispõe de amplos poderes. O orçamento para 2022 foi chumbado por todos os partidos com representação parlamentar, salvo o PS, e com a abstenção de alguns independentes. Portugal está sem orçamento para 2022, o que seria grave em qualquer circunstância, mas este ano se revela especialmente preocupante, pois, sem orçamento, não há liberação dos fundos de ajuda da Europa relativos à pandemia, e demais.

O PS fez várias concessões importantes, como a generalização das creches gratuitas. Mas, para os partidos de extrema-esquerda, não foi suficiente. Sobretudo porque medidas votadas em orçamentos anteriores têm sido “cativadas” pelo Ministério das Finanças, ou seja, as respectivas verbas não têm sido liberadas. O Partido Socialista, tal como os partidos de direita, continuam presos às velhas teorias monetárias que insistem que o orçamento de um país deve ser gerido como um orçamento familiar, com o menor déficit possível, teorias impostas ao governo português pelo Banco Central Europeu, visto que Portugal não cunha mais moeda.

Adiantando-se a qualquer outra possível solução (que seria complexa), o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que é de direita e tinha até aí convivido em relativa harmonia com a gerigonça, anunciou que, caso não houvesse acordo, dissolveria a Assembleia da República, uma possi -

bilidade prevista na Constituição, mas não obrigatória nessas circunstâncias.

E assim o fez.

O governo não se demitiu, continua em funções, até que seja eleita nova Assembleia, possivelmente no dia 30 de janeiro de 2022. A partir daí, entra-se numa zona de desconhecido. É de opinião mais ou menos geral que o presidente se precipitou. Acontece que, nas eleições locais de 26 de setembro passado, o presidente da Câmara Municipal (prefeito) de Lisboa, o socialista Fernando Medina, sucessor “in pecto” de António Costa, foi derrotado pelo candidato de direita, o ex-comissário europeu Carlos Moedas, do PSD (partido de centro-direita). É possível que essa vitória simbólica (pois os vereadores lisboetas continuam, na maioria, sendo de esquerda) tenha entusiasmado o “povo de direita” e o presidente, que se convenceu de que o mesmo poderia acontecer em eleições legislativas.

Não se pode excluir que isso venha a acontecer, visto que, tradicionalmente, a direita tem mais facilidade em se coligar que a esquerda. Mas a verdade é que os partidos de direita estão divididos por querelas de pessoas e de estratégia, entre os que admitem se coligar com o PS e os que recusam essa alternativa, entre o centro-direita e a direita pura e dura, entre os nacionalistas e os liberais. O único partido de direita certo de ganhar com a situação criada pelo presidente é o Chega, um partido de extrema-direita, equivalente ao Vox espanhol, ou ao Rassemblement National francês, que seduz os desiludidos da democracia, que são numerosos. Na esquerda é de se esperar que ganhe o voto útil, ou seja, que PCP e BE continuem perdendo eleitores, e

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que o PS roce a maioria absoluta. Não é impossível que tenha sido esta a intenção do presidente: diminuir o peso do PCP e BE na Assembleia, impedindo uma nova gerigonça. Mentes maquiavélicas sugerem que essa intenção poderia ser também a do secretário-geral do PS. Mas aí entramos no domínio da pura especulação. No entanto, uma nova geringonça se apresenta pouco provável, pelo menos com o Bloco de Esquerda. Os laços de António Costa com o PCP sempre pareceram mais próximos.

Aos dois grandes problemas da atu alidade, o clima e a pandemia, os governantes portugueses conseguiram somar um terceiro: uma crise política de que não se vê desfecho que não seja muito próximo ao da situação atual. Na sua raiz, não se trata de um problema novo, mas que se vem agravando: cerca de 50% dos eleitores portugueses não se deslocam mais para votar. A crise da democracia representativa fica patente: é provável que só uma boa dose da democracia participativa no trabalho, seja ele do Estado seja privado, possa destravar esse impasse. Mas as autodenominadas elites farão tudo para que isso não se verifique. Para que a acumulação de capital nos conduza ao desastre.

Fonte: ladroesdebicicletas.blogspot.com

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Pedro de Souza é editor, pesquisador e ex-superintendente executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
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COP 26: MUITO BARULHO POR NADA?

Marcos Costa Lima

Much ado about nothing?

William Shakespere

Após 12 dias de conversas, especialistas do clima alertaram em carta aberta (11/11/2021) que os compromissos atuais no projeto de acordo Cop26 estão sendo seriamente prejudicados pelos compromissos insuficientes sobre os combustíveis fósseis. A conferência da ONU em Glasgow foi encerrada após conversações entre 27 Estados-membros e delegados de mais de 100 nações, mas há uma forte preocupação com o uso de uma linguagem sem força e não comprometida com a dimensão do problema. Mais de 200 cientistas de todo mundo têm dito que ações urgentes e ‘em larga escala’ são obrigatórias para manter viva a meta de 1,5°C (Germanos, 2021).

Segundo os Especialistas em meio ambiente a meta de um aumento de 1,5°C nas temperaturas globais precisa ser mantida viva para permitir que a humanidade sobreviva, mas os compromissos atuais sobre petróleo, gás e carvão na Cop26 não são suficientes.

Depois de duas semanas, a Conferência do Clima chegou ao fim no sábado 13/11 em Glasgow, na Escócia, com um resultado aquém do esperado diante da emergência climática que cobra a cada dia um preço mais alto ao planeta. Mas há vozes otimistas: “Talvez essa seja a grande beleza de Glasgow, o despertar da sociedade civil para a agenda do clima”, avalia Claudio Angelo, do Observatório do Clima.

Enquanto o grupo de centenas de cientistas instou os negociadores da COP26 a reconhecer a mais recente ciência climática, comprometendo-se a “ações imediatas, fortes, rápidas, sustentadas e em larga escala”, o chefe das Nações Unidas expressou pessimismo quanto à possibilidade das negociações

terminarem com um acordo que limite o aquecimento ao limiar-chave de 1,5°C. Segundo ele, o último relatório climático do IPCC “mostra inequivocamente a extensão das mudanças climáticas induzidas pelo homem”, acrescentando que “as emissões cumulativas de gases de efeito estufa até agora já comprometem nosso planeta a mudanças fundamentais do sistema climático que afeta a sociedade humana e os ecossistemas marinhos e terrestres, alguns dos quais são irreversíveis para as próximas gerações” ( Germanos, nov,11).

Aqueles que facilitaram as negociações em Glasgow advertiram que um acordo ainda era possível, com o secretário-geral das Nações Unidas, Antonio Guterres, alertando as nações a não fazerem promessas “ocas” sobre o combate às mudanças climáticas, dizendo à conferência Cop26 que os anúncios feitos estão longe de ser suficientes.

O presidente da Cop26, Alok Sharma, disse que os delegados “não têm escolha a não ser forçar cada delegado “a fazer da cúpula climática um sucesso. A Cop26 pode ser estendida à medida que as críticas aumentam sobre compromissos insuficientes com relação aos combustíveis fósseis”.

Contudo, a ativista climática ugandense Vanessa Nakate alertou que o planeta estava “à beira do abismo” e que a ciência era “inequívoca” sobre a redução das emissões de carbono. Ela disse na conferência do clima que milhares de ativistas “não veem o sucesso que está sendo aplaudido” na cúpula. “Historicamente, a África é responsável por apenas 3% das emissões globais e ainda assim os africanos estão sofrendo alguns dos impactos mais brutais da crise climática. Mas, embora o sul global esteja na linha de frente da crise climática, ele não está nas primeiras páginas dos jornais mundiais” (BBCNEWS–Brasil,2021).

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Expressando seu ceticismo quanto às promessas feitas por líderes mundiais e empresas, ela disse: “Promessas não impedirão o sofrimento do povo, promessas não impedirão o planeta de se aquecer. Apenas ações imediatas e drásticas nos tirarão do abismo.”

Segundo o filósofo e religioso Leonardo Boff, o Acordo de Paris de 2015 sobre a mitigação dos gases de efeito estufa, que dava alguma esperança, não foi observado. Ao contrário, a emissão cresceu 60%. A China é o maior emissor com 30,3%, seguida pelos USA com 14,4, os europeus com 6,8%. A deterioração foi generalizada (Boff, 2021).

Também Patricia Espinosa, Secretária Executiva da ONU sobre Mudanças Climática, na abertura da COP26 alertou: “Estamos a caminho de um aumento de temperatura global de 2,7 graus quando deveríamos atingir a meta de 1,5 graus. Sabemos que com este nível de aquecimento, grande parte das espécies não conseguirão se adaptar e desaparecerão. Milhões de humanos pobres e vulneráveis estarão sob grave risco”.

Como nos disse Naomi Klein, não se trata de aquecimento global, mas de capitalismo. A mudança climática é causada pelo caráter do desenvolvimento social e econômico predatórios, produzido pela natureza da sociedade capitalista que se mostra insustentável, no que foi instrumentalizada para a busca irrefreável de minério, de petróleo, de terras, de água. Portanto, o problema não é o clima mas o capitalismo que não conhece uma ecologia ambiental e político-social, nem tem uma política à altura. O que foi recomendado na COP 26 foi o de reduzir os gases até 2030. E quando chegarmos lá, quais serão as prospectivas?

O pacote de decisões aprovado na tarde de sábado 13/11 por mais de 190 nações foi tido como imperfeito e com muito desconforto, por não conseguir a redução urgente de emissões de gases de efeito estufa em linha com o objetivo

do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global em 1,5o C neste século. A salvação do clima foi adiada mais uma vez, para 2022, quando o mundo volta a se reunir em Sharm el-Sheikh, no Egito, para avaliar metas mais ambiciosas para 2030. Mas quando ouvimos as vozes que veem das ruas, como as de Greta Thumberg, a coisa fica ainda pior: “Não é segredo que a COP26 é um fracasso. Deveria ser óbvio que não podemos resolver uma crise com os mesmos métodos que levaram ao início dessa crise”. Disse ainda: “Precisamos de cortes anuais imediatos e drásticos nas emissões como o mundo nunca viu antes”. E acrescentou que “as pessoas no poder podem continuar a viver em sua bolha cheia de fantasias, como o crescimento eterno em um planeta finito e soluções tecnológicas que aparecerão de repente do nada e apagarão todas essas crises em um piscar de olhos” (BBC NEWS Brasil).

O Observatório do Clima (Planeles et al. 2021) resume bem alguns dos resultados, criticados duramente pelos ativistas, como o fracasso em Glasgow em assegurar financiamento consistente dos países ricos para os países em desenvolvimento. Por influência principalmente dos ricos, a proposta de criar um mecanismo de financiamento expresso para as perdas e danos sofridas por nações vulneráveis por conta de impactos climáticos foi descartada. O que deveria ser um mecanismo virou um “diálogo”. A representante das Maldivas, na plenária de apresentação do texto final, resumiu a questão: “Quero notar que o que é equilibrado e pragmático para outras partes não vai ajudar as Maldivas a se adaptar a tempo (…). Enquanto reconhecemos o alicerce que este resultado provê, por favor façam-nos a cortesia de reconhecer que ele não traz esperança aos nossos corações, mas serve como uma conversa na qual nós colocamos nossos lares em risco enquanto aqueles que têm opções decidem o quão rápido

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eles querem ajudar a salvar aqueles que não têm”. Ela também traduziu em tempo a tarefa gigantesca que o processo multilateral da Convenção do Clima tem diante de si: guiar o mundo para reduzir as emissões pela metade em apenas 98 meses.

Um Fracasso - Estima-se que os países africanos já gastem por ano 10% de seu PIB com impactos de eventos climáticos extremos. A sucessão extraordinária de eventos extremos em 2021 mostrou que não pode haver mais adiamento na criação de um instrumento que permita aos países vulneráveis acessar imediatamente recursos sem se endividar para ações de proteção, prevenção e reconstrução. Os países desenvolvidos não aceitaram.

Sobre as mitigações necessárias, a COP 26 reconhece que: 1.as emissões terão de cair 45% em 2030 em relação a 2010 e para zero líquido “por volta do meio do século” para estabilizar o aquecimento global. 2. Decide estabelecer um plano de trabalho para acelerar a ambição da mitigação e da implementação nesta década, a ser adotado na COP27, em 2022. 3.Requerer às partes que atualizem e reforcem até o fim de 2022 suas metas nacionais (NDCs) para 2030 de forma a alinhá-las com a meta de estabilização do Acordo de Paris. 4. Propõe a realização de reuniões ministeriais anuais para tratar de ambição pré2030 — a partir da COP27. 5. Exorta as partes a “acelerar os esforços” para reduzir gradativamente (phase down) o carvão mineral “sem abatimento” e os

“subsídios ineficazes” a combustíveis fósseis.

Com relação ás florestas e ao metano, duas novidades da COP26 foram os acordos, assinados logo na primeira semana, para reduzir as emissões globais de metano em 30% em 2030 em relação a 2020 e para zerar e reverter a perda de florestas no mundo até 2030. São objetivos externos à negociação, mas que podem dar um impulso importante para o cumprimento das metas de Paris.

O acordo sobre florestas é especialmente importante para o Brasil, que em 2020 tinha 46% de suas emissões advindas de desmatamento. Mesmo que o atual governo brasileiro não tenha intenção de cumpri-lo, os três principais compradores de commodities do Brasil — China, Estados Unidos e União Europeia — aderiram ao pacto, e a China anunciou que considerará a legislação para barrar importações de produtos advindos de desmatamento.

No tocante ao Financiamento, o documento “Nota com profundo pesar” que os países ricos não cumpriram a meta de mobilizar US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020 para bancar adaptação e mitigação nos países em desenvolvimento. Exorta os países ricos a prover clareza sobre a entrega e a cumpri-la com urgência até 2025. Decidiu ainda estabelecer um programa de trabalho entre 2022 e 2024 para estabelecer a meta de financiamento climático que valerá após 2025 e que, segundo o Acordo de Paris, terá de ser

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substancialmente maior que US$ 100 bilhões por ano.

Para concluir é preciso registrar as constrangedoras cenas produzidas pelo Ministério do Meio Ambiente do Brasil quando, além de buscar “tapar o sol com peneira” sobre a destruição da Amazônia, o assassinato dos indígenas, alugou um amplo pavilhão, com patrocínio da indústria, para mostrar o que chamava de “Brasil real”, credenciando um grande número de representantes dos lobbies do agronegócio (9) e da indústria (6), além de 25 empresários ou executivos de empresas. Não convenceu muita gente, a julgar pelo pavilhão pouco movimentado. Sem contar que um funcionário do Ministério do Meio Ambiente, no perfeito estilo Bolsonaro, protagonizou uma das cenas mais revoltantes da COP ao agredir verbalmente a estudante de direito Txai Suruí, única voz brasileira na Cúpula de Líderes no dia 1o/11, que denunciou as ameaças aos povos indígenas no país. Finalmente, dizer que o Brasil cortou 93% da verba para pesquisa em mudanças climáticas.

Referências

BOFF, Leonardo, A COP26 não respondeu à emergência climática https://leonardoboff.org/2021/11/11/a-cop26-nao-respondeu-a-emergencia-climatica/

BBC NEWS – Brasil, “Greta Thunberg e COP26: as duras críticas da jovem ativista à cúpula sobre mudanças climáticas”, https://www.bbc. com/portuguese/internacional-59190477 , 6 novembro 2021 Acessado em 14/11/2021

Germanos, Andréa, “200+ Global Scientists Say Urgent and ‘Large-Scale Actions’ Mandatory to Keep 1.5°C Goal Alive”. In:https://www.commondreams.org/news/2021/11/11/200-global-scientists-say-urgent-and-large-scale-actions-mandatory-keep-15degc-goal nov. 11/2021

Observatório do Clima, “Glasgow adia novamente a salvação do clima”. in:https://www.oc.eco. br/glasgow-adia-novamente-a-salvacao-do-clima/ 13.11.2021, Acessado em 15/11.

PLANELLES, MANUEL / ÁLVAREZ, CLEMENTE

“Balance de la cumbre de Glasgow”, in El País, https://elpais.com/autor/manuel-planelles/ Acessado em 14/11/2021

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Marcos Costa Lima é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade

Maquiavel: Dissenso, Liberdade e Lei (III)

Nopensamento dialético de Maquiavel, minuciosamente dissecado por Negri (2002, p. 127), “a ordem das coisas encontra em sua base a ação, a dissensão – motor e sentido do processo histórico a ser constituído pela práxis humana que se organiza na desunião universal, e é através da desunião que descobre e organiza o poder constituinte”.

Outro aspecto indicativo da índole democrática do pensamento de Maquiavel (1994) é sua proposta de criação de uma milícia armada, recrutada no povo para defender a Cidade-Estado, e não composta por mercenários pagos. Portanto, “se o Estado se arma e se organiza como Roma, se os cidadãos experimentam diariamente seu valor e sua sorte, conservarão a coragem e a dignidade, qualquer que seja a situação que enfrentem” (MAQUIAVEL, 1994, p. 395).

Na interpretação de Negri, com a construção da milícia popular “a multidão se faz una e a democracia nasce armada.” (NEGRI, 2002, p. 121). A reiterada valorização do protagonismo popular e a elevação à categoria de “príncipe coletivo” de um povo dotado de virtù, como o romano, se sintonizam com o “parti pris” de Maquiavel com a plebe. Sempre melhor avaliada do que os grandes, que querem, sem cessar, explorá-la cada vez mais. Nas suas palavras:

[...] o povo é mais prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso do que o Príncipe. Não é sem razão que se diz ser a voz do povo a voz de Deus. Com efeito, vê-se a opinião universal produzir efeitos tão maravilhosos em suas previsões que parece haver nela uma potência oculta, a predizer o bem e o mal [...] Se o povo se deixa às vezes seduzir [...] isto ocorre ainda mais frequentemente com os governantes, que se deixam arrastar por suas paixões,

mais numerosas e difíceis de resistir do que as do povo. (MAQUIAVEL, 1994, p. 181-182).

E acrescenta:

[...] se as monarquias têm durado muitos séculos, o mesmo acontece com as repúblicas. Mas umas e outras precisam ser governadas por meio de leis. O Príncipe que se pode conceder todos os caprichos geralmente é um insensato; e o povo que pode fazer tudo o que deseja comete muitas vezes erros imprudentes. No caso de um Príncipe ou um povo submetido a leis, o povo terá virtudes superiores às do Príncipe. E se considerarmos os dois como igualmente livres de qualquer restrição, veremos que os erros do povo são menos freqüentes, menos graves e mais fáceis de corrigir. (MAQUIAVEL, 1994, p. 181-182).

Essas concepções inserem Maquiavel na corrente histórica dos grandes pensadores que, desde a Antiguidade, contribuíram, com suas reflexões, para a construção dos ideais de liberdade e de democracia. Aliás, por fazer do povo o suporte da única honestidade possível a ser encontrada na sociedade e pelo fato de “desvalorizar radicalmente as pretensões dos grandes à virtude”, importantes estudiosos o consideram o “primeiro pensador democrático” (MANENT, 1990, p. 31) ou o “profeta da democracia” (NEGRI, 2002, p. 103).

Contudo, o fato de Maquiavel apresentar teses com ingredientes fortemente democráticos, muito à frente de seu tempo, não o faz, propriamente, um democrata, haja vista que não existia, nem podia existir, democracia nas condições materiais próprias da época em que viveu. Destarte, o secretário florentino nunca vislumbrou a possibilidade de eliminação de classes existentes nem incitou os pobres à sublevação – tais questões não se colocavam no seu hori-

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zonte histórico. Por isso, ele se deteve na percepção do antagonismo de classes. Não chegou a antever, como resultado dessa luta de contrários, uma síntese dialética libertadora, ou seja, o advento de uma sociedade sem explorados e exploradores. Mas soube identificar o “contrapeso da plebe”, atribuindo a esta a condição de sujeito capaz de forjar espaços de liberdade e instituições – como o Tribunato – de que o povo necessitava para refrear a ganância desmedida dos opressores. Assim, a análise maquiaveliana aponta, dialeticamente, para:

A destruição da continuidade e a fundação da liberdade. Ao modelo biológico, ele oporá sempre o modelo da desunião e da ruptura; à dialética naturalista das formas de Estado, ele opõe as determinações bem concretas das lutas de classe (NEGRI, 2002, p. 166).

A afirmação de Maquiavel (escandalosa, na dicção de Lefort) para os “sábios” de Florença e demais componentes dessa República medieval – de que as leis que se fazem a favor da liberdade nascem da divisão entre os Grandes e o povo – “impede o leitor de limitar sua interpretação à história de Roma. Ela o obriga a verificar sua aplicação no Estado moderno e a se interrogar sobre o discurso político de seu tempo” (LEFORT, 1986, p. 475).

A lucidez e o caráter pioneiro da obra maquiaveliana podem mais bem ser apreciados, contrastando-se sua contribuição para a secularização da política com as trevas em que mergulharam, na atualidade, incipientes democracias, como a do Brasil, pretendendo estabelecer a tutela da religião sobre a política.

O PAPEL DA RELIGIÃO EM MAQUIAVEL

Em pleno século XXI, se assiste, com toda força, ao retorno de concepções obscurantistas, no Brasil e em vários outros países, que têm deixado sua

marca nos programas de governo e nas suas políticas públicas, quando conquistam o poder. Uma das suas principais características, no Brasil, é o “fundamentalismo, especialmente o evangélico, que avança sempre mais, provocando uma mistura tóxica entre o sagrado e o profano” (PACHECO, 2020).

No Brasil, esse retrocesso pode ser melhor compreendido comparando-se o pensamento de Maquiavel com o obscurantismo religioso atualmente em ascensão. Há quinhentos anos, ele secularizou o Estado, expulsando a religião da política, promovendo a sua secularização ao explicar o seu surgimento e o da própria religião como produto, exclusivamente, da práxis humana.

O secretário florentino conferiu papel relevante à religião, mas somente como meio extremamente eficaz de controle social, pouco lhe interessando se seus preceitos eram verdadeiros ou falsos. Na concepção maquiaveliana, esclarece AMES, a religião é tanto mais importante quanto, “para garantir à comunidade política coesão e duração, o fundamento da obediência precisa ser buscado em algo diverso da força” (2006).

O 11º capítulo do livro Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, a sua mais destacada obra, deixa claro esse entendimento ao afirmar que Rômulo, o primeiro monarca de Roma, “voltou o olhar para a religião como o agente mais poderoso da manutenção da sociedade” (MAQUIAVEL, 1994, p. 57).

No mesmo sentido, o 13º capítulo dessa obra mostra “como os romanos se serviram da religião para organizar o governo da República em seus empreendimentos e reprimir desordens” (1994, p. 63). Mas ela se revela nociva, produzindo um efeito desestabilizador, quando partido ou grupo político dela se apossa para utilizá-la em seu proveito. Assim, Maquiavel enfatiza, no 12º capítulo dos Comentários, que, “quando os oráculos

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começam a tomar partido dos poderosos e a fraude é percebida, os homens se fazem menos crédulos, dispostos a contestar a ordem estabelecida” (1994, p. 61).

O que Maquiavel denuncia ocorre hoje, no Brasil. O voto evangélico, na sua maioria, serviu de trampolim para a ascensão de um suposto “mito” à Presidência da República (O VOTO: 2018). Os “oráculos” – no caso, os líderes evangélicos Malafaia, Edir Macedo, R.R. Soares et caterva – pretenderam ungir o Messias Bolsonaro de uma suposta escolha divina. Alguns deles foram além, revelando a intenção de criar um “Estado evangélico” (BARROS E ZACARIAS: 2019). Mas Bolsonaro não está só. Espelha-se na Hungria, que abandonou sua tradição laica inserindo a religião como política pública. A sua Constituição, agora emendada, deixa claro que o país é cristão e que as crianças devem ser educadas de acordo com seus valores (MODELO: 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o seu potencial destruidor, Bolsonaro encarna uma verdadeira antítese do “moderno príncipe” (O VOTO, 2018), nos fazendo suportar “uma forma de poder em que se combinam a anti-ideia, a obturação dos canais da percepção, a disfunção da experiência e a recusa ao conhecimento” (FREITAS, 2020).

As concepções reacionárias do bolsonarismo têm como escopo atingir em cheio as conquistas democráticas e científicas que nos foram legadas. Seu ostensivo desprezo pelo conhecimento se expressa no negacionismo (a “gripezinha”). Suas ideias sociais e políticas obscurantistas se manifestam no racismo não assumido, que vai até a justificação do escravismo; na tentativa de subordinar o Estado aos “princípios cristãos”; na criminalização dos conflitos entre as classes sociais e na reconversão do Estado a mero instrumento de

opressão dos “Grandes”.

Tão clamoroso retrocesso contrasta com o legado revolucionário das ideias de Maquiavel, de surpreendente atualidade, tão à frente de seu tempo. Elas continuam a inspirar a reflexão de todos que reconhecem o seu pioneirismo, tanto pela sua contribuição ao conhecimento da política quanto pela sua condição de precursor da democracia. O pensador florentino apreendeu, com translúcida nitidez, as características da sociedade e da política do seu tempo – como efetivamente eram. Isso tornou possível delinear os contornos do Estado Moderno, a sua ética e as suas funções de árbitro dos conflitos sociais, cuja dinâmica, por ele enaltecida, constitui a mola propulsora a práxis democrática.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.

Referências

FREITAS, Jânio. No Brasil não existe racismo, fala de Mourão é a mais racista das falas. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 nov. 2020.

MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UnB, 1994.

NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. O VOTO evangélico garantiu a eleição de Jair Bolsonaro. Revista Ihu, São Leopoldo, nov. 2018. Disponível em: http://www.ihu.unisinos. br/78-noticias/584304-o-voto-evangelico-garantiu-a-eleicao-de-jair-bolsonaro. Acesso em: 16 dez. 2020.

PACHECO, Ronilson. Fundamentalismo evangélico corrompeu a fé cristã, diz autora de best-seller evangélico. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 set. 2020.

Rubens Pinto Lyra é Doutor em Direito Público e Ciência Política e Professor Emérito da UFPB.

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Livro-reportagem, jornalismo e contexto

Mulheres escritoras de livros-reportagem: expansão e novos olhares

Quando o autor desta coluna desenvolveu a sua tese de doutorado “Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil”, entre os anos de 2014 e 2018, percebeu que a participação das jornalistas mulheres no universo editorial do livro-reportagem ainda era tímida. Tanto que dentre os 10 jornalistas escritores que entrevistou em 2016, sendo alguns de renome, como Ruy Castro, Fernando Morais e Zuenir Ventura, ouviu apenas duas mulheres: Daniela Arbex e Adriana Carranca. A primeira havia surpreendido o mercado editorial com o livro “Holocausto brasileiro”, lançado em 2013, e que, até a ocasião da entrevista, já estava próximo das 300 mil cópias vendidas, mesmo tratando de um tema árido, como a morte por descaso e abandono dos internos em um hospital psiquiátrico clássico de Minas Gerais.

Já Adriana Carranca encontrava mais projeção como escritora em 2016, no seu terceiro livro, “Malala: a menina que queria ir para a escola”, do ano anterior, marcado pela experiência de uma narrativa de não ficção elaborada para leitores e leitoras crianças e adolescentes. Outra jornalista de destaque no período, que vinha reunindo reportagens em livros desde o início dos anos 2000, era Eliane Brum, com obras como “A vida que ninguém vê” (2006) e “O olho da rua” (2008). O trabalho de Eliane, marcado por um exercício de olhar subjetivo, humanizado e narrativa elaborada de forma cuidadosa, inclusive chama bastante atenção do campo acadêmico de estudos da área de jornalismo literário, com dezenas de artigos científicos esquadrinhando os seus métodos. No Brasil, é perceptível uma atenção maior à publicação de livros-reportagem de jornalistas escritoras a partir do

prêmio Nobel de literatura concedido à jornalista bielorrussa Svetlana Alexiévitch, em 2015, o que levou a Companhia das Letras a publicar, em português, as suas principais obras, como “Vozes de Tchernóbil”, “A guerra não tem nome de mulher” e “O fim do homem soviético”. O estilo de Svetlana é singular: ela faz longas entrevistas com os seus personagens, como sobreviventes de guerras e acidentes nucleares e organiza um mosaico, ou coro de vozes que se amalgamam, dando tom dinâmico à narrativa.

Fonte: Amazom.com.br

Mulheres jornalistas biógrafas e no campo do jornalismo político e econômico

Em artigo publicado em 2021 na revista científica de comunicação Lumina, os pesquisadores Felipe Adam e Antonio Holfeldt apresentam um estudo preliminar, proveniente da tese de dou-

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torado que o primeiro está desenvolvendo na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), a respeito da presença tanto de jornalistas biógrafas quanto mulheres biografadas. Eles concentraram o olhar de pesquisadores sobre as duas maiores editoras que publicam obras do gênero no Brasil: Companhia das Letras e Editora Record, especificamente sobre o catálogo de livros lançados entre 1990 e 2020. Entre os personagens biografados na Companhia das Letras, “o número de homens é cinco vezes maior (38 mulheres contra 201 homens); já na Record, o valor é quase o triplo (54 mulheres versus 152 homens)” (ADAM & HOLFELDT, 2021, p. 65-67).

Outro dado curioso apontado pelos pesquisadores é que “no Grupo Companhia das Letras, dos 51 livros em que mulheres assinam sozinhas narrativas biográficas, somente em 17 (33,3%) delas os protagonistas também são mulheres”. Enquanto no Grupo Editorial Record, “das 76 obras biográficas cujas mulheres são autoras exclusivas, 32 (42,10%) delas também tratam de mulheres”.No campo biográfico brasileiro, três mulheres vêm se destacando. Adriana Negreiros mergulhou em arquivos históricos e depoimentos para trazer uma perspectiva feminina do universo dos cangaceiros na obra “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” (2018). A vida e obra de Jorge Amado foi investigada e narrada com detalhes por Josélia Aguiar no livro “Jorge Amado - uma biografia” (2018), que venceu o prêmio Jabuti de Biografia, Documentário e Reportagem do ano seguinte. Em “Samuel Wainer, o homem que estava lá” (2020), a jornalista Karla Monteiro apresenta, com detalhes, a trajetória de um dos jornalistas mais importantes do Brasil em sua época.

Destaque para as mulheres escritoras, também, no jornalismo político. Thaís Oyama disseca o primeiro ano do

governo do presidente Jair Bolsonaro, encontrando um adjetivo apropriado para o título, em “Tormenta - o governo Bolsonaro” (2020). E Patrícia Campos Melo, no mesmo ano, trouxe à tona o didático e assustador “A máquina do ódio: Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, sobre a disseminação criminosa de notícias falsas e a própria história da jornalista, vítima de uma campanha de difamação virtual após denunciar o esquema, a princípio, no jornal em que trabalha, a Folha de S. Paulo. Essas produções mais recentes indicam que as jornalistas escritoras buscam descortinar os mais variados temas com responsabilidade e ética.

O olhar das jornalistas escritoras: um toque feminino?

A leitura mais atenta de livros-reportagem escritos por jornalistas mulheres aponta reflexões sobre o olhar feminino como uma peculiaridade do fazer jornalístico. Daniela Arbex, em entrevista ao autor desta coluna (MACIEL, 2018) acredita que existe até mesmo um jeito feminino de narrar, que transparece na escolha dos temas, das abordagens, do olhar e na forma como os personagens aparecem no livro-reportagem: “Tem coisas... Por exemplo: no caso do Holocausto brasileiro, o que mais me tocou? As mães que não puderam alimentar seus filhos. Porque eu estava amamentando o meu. E eu chegava em casa e ficava: ‘Meu Deus, como se arranca isso de uma mãe?’”.

Especializada em coberturas sobre a situação da mulher no Oriente Médio, Adriana Carranca, por sua vez, acredita que quanto mais a jornalista convive com uma realidade diferente da sua, “mais pautas você derruba”. Ela exemplifica que é fácil “apontar o dedo, falar das mulheres oprimidas do Afeganistão”. Mas, quando ouve um depoimento de uma delas dizendo que não quer tirar a burca, mesmo com a insistência

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do marido, que não quer vê-la vestida assim, percebe que é importante ficar cada vez mais nos ambientes para derrubar o que o olhar mais apressado pode sugerir. Mesmo em biografias sobre homens, como a de Jorge Amado, por exemplo, percebe-se que a jornalista Josélia Aguiar tenta contrabalancear a importância da esposa e também escritora Zélia Gattai para a vida e carreira do escritor baiano. Karka Monteiro, por sua vez, lança luzes sensíveis ao papel da primeira esposa de Samuel Wainer, Bluma, e também dedica várias páginas ao papel crucial da segunda mulher, Danuza Leão, na trajetória do jornalista e empresário. Cabem, enfim, mais pesquisas acadêmicas sobre o papel mais recente das jornalistas escritoras no universo dos livros-reportagem brasileiros contemporâneos.

Referências

ADAM, Felipe; HOLFELDT, Antonio. A memória do feminino: um esboço do catálogo biográfico da Companhia das Letras e Record (1990-2020). Lumina – Revista do programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Juiz de Fora: PPGCOM UFJF, v. 15, n. 2, p. 55-71, mai./ago. 2021.

MACIEL, Alexandre Zarate. Narradores do contemporâneo: jornalistas escritores e o livro-reportagem no Brasil. Recife, 2018. Tese (Doutorado em Comunicação)-Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Macie l, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo

Apesar de teoricamente superado, o paradigma positivista da objetividade jornalística persiste na formação dos profissionais que se aferram ao princípio (ou método) como um camponês mediterrânio com seu colar de alho à volta do pescoço para afastar o mal, conforme a metáfora utilizada por Gaye Tuchman (2016). O mal, no caso do jornalismo, seriam as críticas e a descredibilização que são contrapostas com o argumento jornalístico de estar sendo “objetivo” no seu trabalho. A reivindicação de objetividade por meio do uso de estratégias é questionada pela socióloga norte-americana. Por exemplo, a apresentação de uma ou mais versão dos fatos não pressupõe a objetividade, já que esta significa uma “prioridade aos objetos externos ao pensamento do sujeito” e as diversas versões disputam uma pretensão de verdade subjetiva. Enquanto a apresentação de provas auxiliares, outra estratégia que parte da premissa de que “os fatos falam por si”, nega a própria construção social da realidade. Além disso, a construção da notícia pelo lead - que reivindica uma objetividade metodológica - é uma estratégia que ignora o processo de escolha do profissional na técnica da pirâmide invertida (TUCHMAN, 2016).

Na verdade, como bem explicita Bakhtin (2002), o signo (que é a unidade de significação) reflete a realidade e suas transformações sociais, configurando as palavras como a materialização dessas mudanças, sendo “tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 2002, p. 40). Portanto, a objetividade jornalística carece de uma fundamentação absoluta, porque omite o fato de que qualquer ato comunicativo está inserido em um contexto social, político e cultural. Warren Breed (2016) reforça que o princípio positivista esconde a interferência dos interesses empresariais na produção noticiosa e disfarça a onipresença da orientação política da empresa.

A objetividade faz parte, pois, da ideologia do profissionalismo (SOLOSKI, 2016). Ela levanta conflitos entre jornalistas e dirigentes das organizações, quando os primei-

ros se pautam pelo ideal de serviço público a favor da pluralidade de opiniões, fazendo da atividade do jornalismo o lugar de mediação e articulação do conflito, enquanto os segundos perseguem os interesses ideológicos e corporativos do grupos das elites de que fazem parte, mesmo que, na visibilidade do espaço público, assegurem veementemente seu compromisso com a autocompreensão normativa que a sociedade cobra dos veículos jornalísticos, ou seja, que se orientem pelo interesse coletivo e o bem comum.

O jornalismo, por constituir uma narrativa, essencialmente, construída “tecendo a teia da intriga” (MOTTA, GUAZINA, 2017, p. 132), está sempre envolvido numa atividade conflituosa, em que visões de mundo entram em disputa pela conquista do espaço público. Contudo, o jornalismo também não pode ser sempre reduzido a uma prática manipulatória a favor da ideologia dominante. Neste sentido, a perspectiva marxista-estruturalista incorre, por influência de uma visão mecanicista e economicista, no equívoco de atribur aos meios de comunicação a única função de reproduzir os interesses da classe dominante, não contemplando, mesmo que eventualmente em situações de crise, a possibilidade de o jornalismo contribuir no processo de mudança e emancipação social. Portanto, o jornalismo não é - como pretende o positivismoum espelho da realidade, nem mesmo uma ferramenta submetida totalmente aos donos do capital – ideia a que se sujeitam as noções marxistas economicistas capitulando diante de uma pretensa onipotência da ideologia burguesa-capitalista.

Na visão althusseriana, os meios de comunicação são aparelhos ideológicos do Estado, cujo papel primordial é perpetuar as relações dominantes de poder por meio da ideologia (ALTHUSSER, 1970). No que se convencionou chamar de “marxismo economicista” (que não se confunde com o pensamento do próprio Marx) acredita-se que a superestrutura - sistema político, intelectual, moral, filosófico -, dentro da qual está o jornalismo, é sempre determinada pelo sistema econômico e pelas condições de produção - infraestrutura. Sendo assim,

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os jornalistas seriam profissionais reduzidos à função manipulatória à serviço do capital, sem nenhuma margem de resistência ou autonomia, mesmo que relativa. Pois, no marxismo economicista, existe uma condição pré-determinada e independente da vontade do sujeito, que não pode ser controlada, apenas compreendida (WILLIAMS, 1979).

No entanto, se, conforme Motta (2017), o jornalismo é uma experimentação da realidade em movimento, dinâmica e sujeita a transformações de sentido, então ele é mais que mero instrumento de manipulação, mas um mediador e até mesmo participante ativo na disputa simbólica das classes hegemônicas e contra-hegemônicas. Se toda mobilização social se dá à nível da linguagem, o jornalismo - e o jornalista - é uma ferramenta essencial de estabelecimento de novas formas sociais de vida. Se constituindo, assim, como uma atividade de compartilhamento intersubjetivo de significados, que estabelece configurações de mundo provisórias que, após novas tensões e conflitos, são substituídas por outras configurações.

O jornalismo e a comunicação midiática são instâncias de estabelecimento de consensos intersubjetivos. O agir comunicativo, na terminologia habermasiana, valida pretensões de verdade que são reconhecidas pelos sujeitos e servem de base para o agir comum. As estruturas normativas - nas quais se inclui o jornalismo - não obedecem ao desenvolvimento do processo de produção; possuem uma autonomia, uma “história interna” (HABERMAS, 1983). Apesar de coações e distorções a favor da classe dominante serem frequentes, existem possibilidades de mudanças sociais efetivas por via comunicativa.

A autoridade do público e a deontologia jornalística, por exemplo, são fatores de pressão externa e interna à atividade dentro das empresas de comunicação. O jornalismo, segundo o modelo pragmático de Manuel Chaparro (1993), sofre interferência de atores sociais de diversas esferas, abertas em três polos de interação: a sociedade, que normatiza princípios, costumes, razões éticas e morais; a atualidade, representada pelo que acontece e por aquilo que as pessoas querem dizer e saber; e a recepção ativa, formada por expectativas e pers-

pectivas do outro (incluindo as expectativas do público em relação ao cumprimento da função social e ética do jornalismo na sociedade). Em suma, a intersubjetividade faz do jornalismo uma atividade em processo constante de negociação de interesses. As transformações sociais, os progressos, as mudanças nas formas de funcionamento da sociedade acompanham, portanto, mudanças que se dão a nível comunicativo. A teoria do agir comunicativo de Habermas eleva a comunicação - e inserida nela, a atividade jornalística - a um patamar privilegiado na perspectiva dialética materialista histórica da realidade. No entanto, a defesa de uma perspectiva marxista da história tendo como eixo a comunicação não significa um abandono da ênfase na reprodução material da vida. “A transição de um paradigma ligado à produção para um paradigma ligado à comunicação, que advogo, significa naturalmente que a teoria crítica da sociedade não precisa se fiar mais nos conteúdos normativos do modelo expressivista da alienação e reapropriação de forças essenciais” (HABERMAS, 1987, p. 94)

Preferimos, ao rejeitar um determinismo exagerado, acreditar no jornalismo como o lugar das contradições, assim como Raymond Williams (1979) que reconhece os limites e pressões exercidos por uma “determinação” que foge do controle do sujeito - no caso, o jornalista, que não trabalha em liberdade absoluta nos meios de comunicação comerciais -, mas que defende a própria “infraestrutura” como o âmbito das relações em movimento, contraditórias e dinâmicas. A “superestrutura” não seria, assim, um conteúdo (apenas) refletido, reproduzido e dependente dessa instância determinista. Assim corrobora Habermas (1987), ao defender que o materialismo enquanto abordagem teórica deve explicar a formação social particular e entendê-la como transitória:

Entendi ‘materialismo’ no sentido marxista como uma abordagem teórica que não simplesmente afirma a dependência da superestrutura em relação à base, do mundo da vida em relação aos imperativos do processo de acumulação, como uma constante ontológica, mas ao mesmo tempo a explica e denuncia como função latente de uma formação social particular e historicamente transitória (HABERMAS, 1987, p. 94).

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A retrospectiva otimista que Habermas (1987, p. 99) faz em relação aos últimos 200 anos de história da Europa e da América, “apesar de todas as catástrofes”, identificando avanços no processo civilizatório por conta dos “movimentos de libertação nacional, (...) nos movimentos de trabalhadores, no atual feminismo, nas revoltas culturais, nas formas de resistência ecológica ou pacifista”, não se pode esquecer, a despeito dos prejuízos causados à democracia deliberativa pela comunicação sistematicamente distorcida, que o jornalismo tem participado neste processo com uma contribuição significativa para conquista de mudança social e emancipação das estigmatizações e repressões impostas pela estrutura de poder.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume, 2002

BREED, Warren. Controle social na redação: Uma análise funcional. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

CHAPARRO, Manuel. Pragmática do jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 1994.

HABERMAS, Jurgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

___________. Um Perfil Filosófico-Político: Entrevista com Jurgen Habermas. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, nº 18, setembro de 1987.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Narrativas jornalísticas e conhecimento de mundo: representação, apresentação ou experimentação da realidade? In: PEREIRA, Fábio; MOURA, Dione; ADGHIRNI, Zélia (Orgs). Jornalismo e Sociedade: Teorias e Metodologias. Florianópolis: Insular, 2017.

___________; GUAZINA, Liziane. O conflito como categoria estruturante da narrativa política: o caso do Jornal Nacional. Brazilian Journalism Research, volume 6, número 1, 2010, Sociedade Brasileira de Pesquisa rm Jonalismo (SBPJor).

SOLOSKI, John. O Jornalista e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

TUCHMAN, Gaye. A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFPE).

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O Dilema do Crescimento Econômico

Os pontos condutores deste texto são, primeiro, a problemática socioambiental do crescimento econômico; depois aborda-se seus condicionantes locais e globais, sociais e ambientais; a seguir, indaga-se se a recuperação e a regeneração permitiriam o desenvolvimento?

Definindo o Dilema

OCrescimento

Econômico é associado ao crescimento do PIB, independentemente da questão distributiva, qualitativa e ambiental. Em geral não se opera a dicotomia entre crescimento e desenvolvimento e tal crescimento envolve alguma forma de degradação ambiental, “crescimento significa sempre, irrefutavelmente, alguma forma de degradação do meio ambiente, de perda física” (GEORGESCU-ROEGEN, 1974 apud CAVALCANTI, 2001, p.25).

Em ciência, a afirmativa de irrefutabilidade leva sempre a polêmicas e a quebra de paradigmas recai muitas vezes sobre afirmações tidas como irrefutáveis, mesmo que isto seja circunstanciado no lugar de simplesmente negado. A degradação se insere em ciclos retroativos de desorganização-organização, o que não é em geral observado.

O desenvolvimento, o crescimento e a diversificação das espécies atuam sobre os ambientes moldando-os, estabelecendo trocas mutuamente benéficas e reforçando a resiliência dos ecossistemas e paisagens. A degradação de uns é o crescimento de outros, processos no mundo biótico e no mundo abiótico. Assim, o crescimento pode não significar necessariamente degradação, mas até o contrário. Deixa-se, no entanto, a questão relevante: o crescimento do PIB sem limite vem para atender às necessidades sociais?

As necessidades sociais podem ser

básicas como em saúde, educação e habitação, mas podem ser criadas, serem consumistas, artificiais e tomadas como prosperidade ao custo do trabalho de pessoas e do trabalho da natureza, ou seja, bens naturais e alheios. A questão da prosperidade é associada à acumulação de riquezas ou acesso a bens e serviços que, do ponto de vista ecológico, devem se articular com os processos naturais. Segundo Binswanger: “desenvolvimento sustentável significa qualificar o crescimento e reconciliar o desenvolvimento econômico com a necessidade de se preservar o meio ambiente” (BINSWANGER, 2001, p.41).

A luta pela natureza — contra a depleção, a poluição, a degradação e as perturbações ambientais - não é alcançada apenas com novas soluções técnicas. Moscovici (2007) aponta para o crescimento populacional e da produção que implicam em esgotamento de recursos finitos, mas não concebe qualquer alternativa sistêmica recursiva e pró-natureza. É notável que desde 1972, Moscovici já escrevera a “Sociedade contra a Natureza” e que esta obra serviu, inclusive, de inspiração ao ecofeminismo. Realizou a crítica ao consumismo capitalista e ao produtivismo socialista e, em um sentido mais epistemológico, colocou a necessidade de descompartimentar o conhecimento, que a teoria da complexidade desenvolve.

Em síntese, isto consiste em questionar o progresso científico enquanto apolítico, ou seja, desde que este progresso vem a devir da política tecnológica, onde se questiona seu direcionamento associado à questão do crescimento econômico, como na energia nuclear (embora muitos físicos a consideram segura) para a geração de energia, do uso de sementes transgênicas e venenos na agricultura e outras que são consideradas tecnologias, em certos aspectos,

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perturbações para a vida na biosfera, como hoje a conhecemos. Segundo Moscovici, o que nos informa a história natural é que o crescimento sem reconhecimento de limites, ou descontextualizado, desarticulado, contra-natureza, finda por se colapsar.

Os economistas ecológicos argumentam que a qualidade de vida decresce, a partir de certo ponto, com o crescimento do PIB (DALY, 2001). Contudo, tanto as economias socialistas quanto capitalistas almejam o crescimento contínuo, que faz parte da sustentação política, econômica e geopolítica, enquanto os ecologistas apontam para a melhoria do bem viver por um crescimento qualitativo.

Aqui, Moscovici, se aproxima da proposta de Oswald de Andrade (com a antropofagia cultural), Porto-Gonçalves (com a colonialidade) ou mesmo Joaquim Nabuco, quando fala da reciclagem de despejos culturais, sobre o passado que continua portador de vida (diria: vivo, ou passível de renascimento conforme as circunstâncias) e seu contato nos é necessário (diria: e seu reconhecimento nos é fundamental).

Há possibilidade de escolhas, inclusive de não submissão ao progresso associado ao crescimento. Todavia, há a crença de que no caráter ilimitado de resposta do progresso técnico-científico aos problemas (que ele mesmo gera), como se este fosse apolítico e não dependesse de interesses de poder e riqueza. Neste ponto pode-se colocar a tese de que não é preciso ser contra o progresso, mas qualificá-lo ambientalmente, por meio de uma política científica e tecnológica adequada.

Fica implícito que, mesmo para aqueles que necessitam de crescimento por necessidades básicas, este deva se dar no sentido da redução das desigualdades e com a requalificação pró-natureza do mesmo. Associar liberdade ao aumento quantitativo da oferta de bens na sociedade industrial é uma limitação

efêmera.

Neste contexto, a centralidade e importância da economia perde importância por seu antropocentrismo patológico. A consideração de que os ecologistas são inimigos do progresso confunde qualidade com quantidade e resulta de uma associação biunívoca entre progresso e crescimento econômico sem contextualização social e ambiental, gerando o crescimento auto-destrutivo, o culto ao consumismo nas economias construídas para o consumo de “gadgets”, inutilidades descartáveis.

Para alguns economistas políticos, o desenvolvimento associado ao crescimento econômico é considerado uma contradição, por aumentar a pressão sobre os bens e processos naturais. Contudo, considerando as necessidades sociais básicas, não há como dispensar o crescimento econômico, onde isto é mister.

Pelo exposto, o dilema ambiental do crescimento econômico se define: por necessidade social de crescimento-distribuição de bens e serviços; que pode significar pressão sobre os ambientes, ou perturbação ambiental, mas não necessariamente.

As estratégias de contorno do Dilema do Crescimento Econômico, como a-crescimento - alguns decrescem para que outros possam crescer -, sobre o que se observa como dificuldade política e sistêmica. Quem desenvolveria tal política, implementaria e coordenaria tais ações? Qual seria seu balanço em termos de emissões, biodiversidade e outros indicadores ambientais? Pode-se ainda associar crescimento econômico à recuperação e à regeneração ambiental e, ainda assim, quem coordenaria tal política? Qual o balanço em termos de emissões, biodiversidade e outros indicadores ambientais?

Das condições locais e globais, sociais e ambientais

As evidências apontam que o ca-

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minho é buscar a adequação do desenvolvimento local, considerando o global, tendo em vista questões sociais e ambientais. As formas de encaminhar este processo envolvem uma coordenação sofisticada em várias escalas e um desenvolvimento tecnológico próprio que envolve: a produção de energia limpa; a logística reversa (a produção pensada para a reutilização de seus resíduos); a institucionalização da governança (para conhecimento, adequação das políticas e exame das realidades).

As formas de encaminhar este processo envolvem uma coordenação sofisticada em várias escalas e um desenvolvimento tecnológico próprio que, por sua vez, envolve a educação ambiental (para o desenvolvimento da consciência ambiental coletiva), a luta política e o planejamento integrado de longo prazo.

O planejamento integrado de longo prazo pressupõe a articulação de várias disciplinas do conhecimento para o desenvolvimento de políticas, planos, programas e projetos socioambientais, seus desdobramentos em várias escalas, culminando na institucionalização da gestão planejada, em consonância com a institucionalização da governança.

A recuperação e a regeneração exigiriam para seu desenvolvimento a substituição de combustíveis fósseis; a economia da floresta em pé; a recuperação de áreas degradadas; o reflorestamento associado à pecuária adensada; a mudança de hábitos alimentares; o uso de plásticos biodegradáveis; o saneamento básico e ambiental; o planejamento urbano e da paisagem concomitante a desconcentração das redes urbanas.

Referências

CAVALCANTI, Clovis (Org). Meio ambiente, desenvolvimento sustentável e políticas públicas. São Paulo: Cortez, Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2001.

MOSCOVICI, Serge. Natureza: para pensar a ecologia. Rio de Janeiro: Mauad X: Instituto

Gaia, 2007.

PERREAULT, Tom; BRIDGE, Gavin and MCCARTHY, James (editors). Therout ledge handbook of political ecology, New York: Routledge, 2015.

PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A ECOLOGIA POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA: reapropriação social da natureza e reinvenção dos territórios. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis/UFSC, Vol. 9, Nº1, Jan/Jun 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.5007/ 1807-1384.2012v9n1p16 Antônio

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Jucá é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. JORNALISMO E CIDADANIA |

PROGRAMAS POLICIAIS

NA TV - Violações de direitos ao vivo

Ticianne Perdigão

Avisibilidade alcançada pelo apresentador Sikêra Júnior no Alerta Nacional (RedeTV!) retomou o debate sobre os limites éticos ultrapassados por programas policiais. Com uma postura cênica e uma linguagem popular em tons de deboche e revolta, Sikêra gera polêmicas ao comemorar a morte de suspeitos com o jargão “CPF cancelado” ou chamar homossexuais de “raça desgraçada”.

Desde os anos 1960, programas policialescos, como Polícia às suas Ordens, da TV Excelsior (1966); Patrulha da Cidade, da TV Tupi (1965); e a primeira versão de O Homem do Sapato Branco, exibido pela Rede Globo (1968), já faziam a cobertura de crimes dramatizando a realidade com trilhas sonoras de suspense e sons de sirenes e tiros. No entanto, foi no começo da década de 1990 que o programa Aqui Agora, do SBT (1991), inovou o formato, transferindo a narrativa radiofônica para a televisão. Seu principal expoente, o ra-

dialista Gil Gomes, destacava a entonação das palavras e aumentava os efeitos de suspense e a emoção. A linguagem coloquial aproximou os públicos C e D dos programas denominados informativos, gerando uma forte audiência. A mudança de horário também foi importante. Exibidos mais cedo, seu sucesso rendeu versões regionais e se multiplicou pelo país.

Atualmente, o apresentador tem maior destaque, mais tempo de estúdio e notícias transmitidas “ao vivo”. É o âncora condutor do programa, que interfere na cobertura, que pede o enquadramento e a repetição de imagens e produz um discurso fortemente opinativo e recheado de juízos de valor contra os suspeitos.

De modo geral, a construção narrativa é marcada pela ausência de contextualização dos problemas relativos à violência e à segurança pública. O maniqueísmo bem versus mal é um traço definidor do discurso simplista utilizado para alcançar rapidamente a compreensão do público. “Um bandido que comete um crime como esse não tem Deus no coração.” Reconhecem? Deus e o diabo. Polícia e ladrão. Marginal e trabalhador. Posicionar o suspeito contra o “cidadão de bem” engaja o público em uma sensação de pertencimento e compartilhamento de emoções.

Ainda, os discursos frequentemente apoiam a truculência militar e defendem a violência e o recrudescimento das leis penais contra o crescimento da criminalidade. De outro modo, por vezes, há um incentivo à “justiça com as próprias mãos”, que fragiliza instituições democráticas. Nesse cenário, os apresentadores se colocam como defensores da moral e dos bons costumes, em prol da paz social. O tom de indignação serve, ao telespectador, como forma de despressurizar seu medo da violência ou suas dificuldades econômicas e sociais –do preço do gás alto ao ônibus lotado.

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Quando Sikêra chama os homossexuais de “raça desgraçada”, o apresentador defende o retorno aos valores tradicionais, a exemplo de família e religião, como forma de restauração da ordem social. Essa pauta conservadora pareceu mais evidente nas eleições de 2018, mas programas policiais sempre estiveram aí. De acordo com pesquisa realizada pela socióloga Esther Solano, a cultura militar relacionada à ética, à disciplina e à defesa da moral e dos bons costumes foi essencial para eleger o último presidente1. Em 2015, um estudo realizado pela Andi localizou mais de 8 mil violações de direitos em programas policiais em apenas trinta dias, como: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime e à violência; incitação à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoa ou família; discurso de ódio e preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional.

É relevante observar que, enquanto concessionárias do serviço público, as emissoras estão sujeitas a deveres, inclusive acerca do conteúdo veiculado. Na Constituição, existem orientações sobre os princípios e as finalidades que devem ser seguidos pelas emissoras, como a preferência pelas atividades culturais, educativas e informativas. No plano infraconstitucional, há atos normativos mais específicos, como o Código Brasileiro de Telecomunicação e o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão. O Código Brasileiro de Telecomunicação é de 1962 (Lei n. 4.117) e o Regulamento de Serviços de Radiodifusão é de 1963 (Decreto n. 52.795). Ambos foram modificados durante o período da ditadura militar. Mesmo considerados ultrapassados, o engessamento é mantido exatamente pela incapacidade de provocar riscos a emissoras, mesmo que aprofundem as orientações de conteúdo e prevejam fiscalização e sanção estatal para as emissoras.

No entanto, mesmo diante do prejuízo social, o Estado não toma medidas para coibir abusos produzidos pelas emissoras. De 2011 a 2018, apenas cinco emissoras receberam algum tipo de sanção por extrapolarem limites da liberdade de expressão (O levantamento foi realizado pela autora)2. São três os tipos de sanção: multa, suspensão de um a trinta dias da programação e cassação (art. 122 da Lei n. 4.117). Nesta última, a Constituição Federal determina que o cancelamento da cassação só pode ser feito por decisão judicial. Nesse caso, especificamente, o processo deve ser encaminhado para apreciação do Poder Judiciário. Nos exemplos citados, as emissoras foram penalizadas por: “transmitir programas que atentem contra o sentimento público, expondo pessoas a situações que, de alguma forma, redundem em constrangimento, ainda que seu objetivo seja jornalístico” (art. 28, 12, “b”, do Decreto n. 52.795/1963) e “promover campanha discriminatória em razão de classe, cor, raça ou religião” (art. 122, V, do Decreto n. 52.795/1963).

Diante da inércia do Estado, a via judicial é utilizada como saída. Mas o diagnóstico também não é bom. Quando a alternativa de proteção desses direitos depende de ações civis públicas pelo Ministério Público contra conteúdos televisivos ofensivos à dignidade da pessoa humana, as decisões foram 83,3% desfavoráveis (A pesquisa foi realizada pela autora sobre 24 ações que chegaram à segunda instância. Não houve delimitação temporal, sendo consideradas todas as ações localizadas no site dos tribunais até 2012)3. Além disso, o tempo médio de julgamento é de cinco anos, o que contraria a lógica imediata televisiva. A ausência de fiscalização estatal e a morosidade judiciária tornam o ambiente televisivo livre para exibir o corpo estendido no chão. A chegada do streaming e a expansão de público do YouTube elevaram a competitividade do setor.

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A busca pela audiência gera disputas acirradas, intensificando ainda mais seu caráter sensacionalista.

Por isso, a criação de uma legislação específica oportunizaria um modelo mais consistente e estável. Em um plano ideal, a legislação contemplaria um sistema sancionatório robusto, com maior agilidade e hipóteses claras de infração. A aplicação das sanções seria feita por um novo órgão fiscalizatório independente, dinâmico e com representantes de diversos setores da sociedade.

Enquanto isso não acontece, os casos que chegam aos olhos do Estado ou que ativam o sistema judiciário têm em comum uma forte mobilização social. Diante da dificuldade de mudanças estruturais a curto prazo, pressionar políticos, debater e dar visibilidade ao tema movimentam as peças disponíveis. Aqui agora.

Referências

1. SOLANO, E. Crise da democracia e extremismos de direita. São Paulo: FriedrichEbert-Stiftung, 2018.

2. CABRAL, Ticianne M. P. Fiscalização estatal sobre o conteúdo televisivo: violações de direitos em programas policiais. Tese (Doutorado em Comunicação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Recife, 2019.

3. CABRAL, Ticianne M. P. Controle jurisdicional de conteúdo da programação televisiva comercial aberta. Dissertação (Mestrado em Direito) –Programa de Pós-Graduação em Direito. Recife, 2013.

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Ticianne Perdigão é mestra em Direito (UFPE), doutora em Comunicação (UFPE) e professora universitária.

Ombudsman de imprensa, opinião e qualidade do jornalismo

Há mais de 30 anos instituído no Brasil, o ombudsman de imprensa é uma figura que até hoje gera controvérsias sobre a importância de seu papel. Primeiramente, por conta da desconfiança sobre até que ponto um jornalista pago pelo próprio jornal para tecer uma crítica pública à sua cobertura tem realmente liberdade para fazer isso. Segundo, porque, em tempos de tantas possibilidades para o leitor fazer sugestões ou reclamações sobre o desempenho dos jornais por meio das redes sociais, por exemplo, emerge o questionamento sobre se o ombudsman ainda é necessário e oportuno.

Nos tempos áureos desta atividade no Brasil, na década de 90, quando esse cargo de mediador entre os leitores e os jornalistas foi implantado em mais de uma dezena de jornais, trocas de acusações públicas entre aquele profissional e colegas de redação insatisfeitos com críticas direcionadas às suas matérias eram comuns, bem como reações do público sobre conseguir ou não incidir sobre a cobertura jornalística por meio de manifestações enviadas ao jornal e intermediadas pelo ombudsman. Atualmente, apenas a Folha de S. Paulo e O Povo (CE) mantêm esses profissionais em seus quadros, um indício da perda de espaço de uma iniciativa outrora louvada como símbolo da busca pela melhoria da qualidade e da correção dos jornais.

Daniel Cornu (1999) elenca o instituto do ombudsman entre as iniciativas de setores da imprensa para enfrentar a necessidade de reforçar o compromisso com o direito do público de ter acesso a uma informação de qualidade e a jornais que reconheçam seus erros, mas com a devida ressalva sobre essa ser uma forma de autorregulação interna aos veículos de comunicação, diferentemente dos códigos deontoló-

gicos e institutos como o Conselho da Imprensa da Noruega (1912), o Tribunal de Honra da Suécia (1916) e a Carta dos Jornalistas (França, 1918), que também têm o intuito de normatizar o exercício jornalístico e de prever moções contra práticas consideradas antiéticas no jornalismo, mas no âmbito mais amplo do campo profissional dos jornalistas, além do controle da organização empresarial.

Nos Estados Unidos, a instituição do ombudsman pode ser entendida como uma ferramenta para garantir a autorregulação interna às organizações empresariais dos veículos jornalísticos como alternativa a um código deontológico amplamente aceito e submetido ao controle social, o que, evidentemente, fortaleceria o jornalista empregado no cabo de guerra enfrentado para garantir pluralismo e perspectivas múltiplas às suas matérias diante da tendência da política editorial das empresas de impor a interpretação monológica da ideologia dominante do “fato” como sendo a própria realidade (epistemologia positivista da objetividade com a distinção entre fato e opinião). Assim, surgiu nos EUA o ombudsman de imprensa, em julho de 1967, nos jornais Louisville Courier Journal e Louisville Times, como detalhado em histórico resgatado por Caio Túlio Costa (2006), primeiro ombudsman de imprensa do Brasil. O trabalho dele na Folha de S. Paulo, primeiro jornal do país a implantar esse instituto na América Latina, começou em 1989. O cargo segue ativo no periódico até hoje e foi responsável por gerar a publicação de número superior a 1.400 colunas. Os jornalistas que ocupam essa posição têm mandato por tempo determinado, gozam de estabilidade no emprego e podem criticar direcionamentos de pautas, abordagens, disposição gráfica de elementos relati-

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vos às matérias e outras temáticas que afetem o modo como se consome a notícia, sempre privilegiando a aparição das manifestações dos leitores, ainda que isso não signifique endossar todas elas, levando em conta que o público também está sujeito a equívocos, paixões e incompreensões sobre o fazer jornalístico.

Apesar de o ombudsman de imprensa estar reduzido a poucos jornais, de sofrer questionamentos sobre supostamente não ter plena liberdade para criticar os veículos de comunicação que pagam seus salários e de ver o público valer-se de outras ferramentas de manifestação, sem intermediários, a investigação sobre seu papel controverso pode contribuir para trazer à tona indícios de outra constatação: a da manutenção de espaços com conteúdo opinativo nos jornais como forma de gerar um debate público qualificado em tempos de ameaça à credibilidade da imprensa. Nas páginas da própria Folha de S. Paulo, que não abre mão do ombudsman, mesmo com todos esses fatores de questionamento, há a presença de um time de mais de 140 colunistas, composto não por maioria de jornalistas, mas, sim, por personalidades de outras profissões com discursos de autoridade sobre assuntos como economia, política, relações internacionais etc.

Essa realidade parece ser um contraponto interessante ao paradigma positivista da objetividade jornalística, que sempre pregou a produção de textos ditos impessoais, sem indícios da autoria do profissional da notícia, exaltando uma falsa separação entre fatos e opiniões. Ou seja, à luz desse entendimento frágil epistemologicamente, o público é levado a acreditar que, ao ler conteúdo opinativo, está sujeito a uma interpretação assumidamente enviesada de determinado acontecimento, enquanto que, ao ler notícias atinentes aos fatos, escritas de forma impesso-

al, está consumindo um conteúdo desprovido de opiniões e ideologias. Essa crença, que serve para oprimir os jornalistas nas redações e para ocultar omissões da cobertura jornalística sobre assuntos de interesse público, é desmascarada por autores como Michael Schudson (2010), Gaye Tuchmann (1999), Edward Ross (2006) e John Soloski (2016) e contribui para a perda de densidade das notícias e de qualidade dos jornais, que, ao reproduzirem apenas as versões oficiais, se distanciam do compromisso de garantir o direito de acesso do público a uma informação noticiosa mais qualificada e pluralista para permitir o funcionamento da esfera pública em nível da reflexão crítica imprescindível à consolidação da democracia.

A destinação de um espaço significativo para o conteúdo opinativo na Folha, por meio da publicação dos pareceres de mais de uma centena de colunistas, não seria uma alternativa ao raquitismo de aprofundamento das matérias jornalísticas, resultado da tradição positivista do objetivismo pregada nas redações e em muitas escolas de jornalismo? Se assim for, é possível interpretar esse como mais um movimento dos meios de comunicação para, conforme a linguagem de Habermas (1997), assumirem sua autocompreensão normativa ou seu contrato com o público, de modo a buscar suprir os leitores de elementos importantes para o debate público em meio a um deserto de opiniões balizadas e de matérias aprofundadas. Ou seja: diante do risco de perda de credibilidade, a mídia se rende ao seu compromisso com o interesse público, a despeito de todas as amarras impostas pela ideologia do profissionalismo jornalístico.

A investigação das respostas para esses questionamentos pode ajudar, inclusive, a encontrar explicações convincentes sobre a importância do papel do ombudsman ainda hoje, considerando

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que sua instituição na Folha de S. Paulo também foi tachada como mera iniciativa de marketing por jornais concorrentes, no início dos anos 90. Caio Túlio Costa se arrisca a dizer que, mesmo em um cenário de perda de espaço dessa atividade, ela se justifica por ser uma ferramenta didática e educativa sobre o próprio jornalismo, com uma tarefa que “vai além da própria crítica” e que é, por isso, ainda tão oportuna (COSTA, 2018). Ou seja, embora o público também possa criticar os jornais sem intermediários, o ombudsman desempenha essa atividade de forma embasada tecnicamente, explicando os porquês das decisões editoriais e revelando informações de bastidores às quais o público não necessariamente teria acesso sem esse mediador, algo similar ao que se espera de conteúdos opinativos em um jornal – análises que extrapolem os bloqueios editoriais e a falta de aprofundamento das matérias comuns. O ombudsman, então, segundo esse entendimento, seria importante, ao menos, pelo papel de sentinela que alerta a audiência o tempo todo – e os próprios jornalistas – sobre as razões pelas quais essa relação entre ambos os polos foi constituída e sobre os princípios éticos com base nos quais se deve fazer jornalismo – com qualidade e responsabilidade perante o público.

Referências

CORNU, D. Jornalismo e verdade: para uma ética da informação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

COSTA, C. T. Prefácio. In: JAVORSKI, E. GADINI, S. (Org). Ombudsman no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2018.

________. Ombudsman: o relógio de Pascal. 2 ed. São Paulo: Geração Editorial, 2006.

HABERMAS, J. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

JAVORSKI, E. GADINI, S. (Org). Ombudsman

no jornalismo brasileiro. Florianópolis: Insular, 2018.

ROSS, E. A supressão das notícias importantes. In: BERGER, C; MAROCCO, B. (Org.). A era glacial do jornalismo II. Porto Alegre: Sulina, 2006.

SCHUDSON, M. Descobrindo a notícia: uma história social dos jornais nos Estados Unidos. Petrópolis: Vozes, 2010.

SOLOSKI, J. O jornalista e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho jornalístico. In. TRAQUINA, N. (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

TUCHMANN, G. A objetividade como ritual estratégico: uma análise da noção de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, N. (Org). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1999.

Luiz Filipe Freire é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.

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Letramento nas redes sociais digitais e o pensamento crítico

Acomunicação através da linguagem é uma característica essencial da natureza humana. Para Paulo Freire é uma forma de dialogar, como uma mudança revolucionária na perspectiva do oprimido e, por isso, é uma relação social contextualizada e histórica. Esse ponto de vista de Freire é expresso em seu livro “Extensão ou Comunicação?” (1983), no qual deduz o significado de comunicação como um propósito de condução do conhecimento direcionada ao outro sujeito através de signos e elementos com o mesmo significado para ambos, e também que o conteúdo deste conhecimento é gerado num terreno comum às partes comunicantes.

O que acontece, entretanto, na maior parte das vezes quando se trata de comunicação mediada por tecnologias é a tendência das trocas de mensagens reduzirem-se a técnicas de propaganda, de persuasão, no vasto setor que é chamado meios de comunicação de massa . As redes sociais na internet quebraram parte deste monopólio da comunicação, mas também deram vazão a todo tipo de mensagem de qualidade, com conteúdos relevantes e verificáveis. Mas também acolheram a mentira e a desinformação, num fator de exclusão social exponencial, simplesmente pelo propósito de confundir e descontruir conquistas sociais, econômicas e civilizatórias.

Por esse contexto descrito, resolvemos, de forma introdutória, relacionar dois temas importantes nas questões contemporâneas, como o letramento e as redes sociais na internet. Observamos se as trocas de mensagens nas mídias sociais podem ser consideradas práticas de letramento, contribuindo para a reflexão critica, ou essas redes de comunicação apenas se constituem como mais um veículo a serviço do poder e da manipulação.

Olhando do ponto de vista de Freire sobre como acontece a comunicação, podemos entender que nas redes sociais encontramos alto grau de reciprocidade e conexão cultural entre seus membros,

pois há acordo em torno dos signos como expressão do objeto significado, que é a linguagem. Porém, existe também empecilho ao pensamento crítico, já que as configurações dos algoritmos dessas redes dificultam a entrada do contraditório e do diferente, tornando o pensamento crítico mais distante, embora não inacessível. Já é óbvio que a tecnologia por si só não irá fazer o papel de mediador da comunicação (no sentido dialógico), se não houver pessoas com pensamento crítico por trás da ação, pois, se assim não for, as relações sociais de extensão continuarão as mesmas. A questão aqui analisada é que os sujeitos para melhor se comunicarem têm que adquirir senso crítico, saber buscar e filtrar as informações, seja na internet ou nas mídias tradicionais, “tem que saber separar o que é importante do que não é” (FREIRE; GUIMARÃES, 2003, p. 144).

Redes sociais na internet como instrumentos de práticas de letramento A possibilidade das mensagens através dos meios digitais serem descentralizadas, horizontais e em rede trouxe grande esperança, no sentido de promoverem a comunicação dialógica. Mas a realidade é que, apesar de muitas mudanças positivas neste sentido, para se estabelecer uma prática de letramento (crítico) não basta apenas o conhecimento das tecnologias; é preciso uma série de ações promotoras de práticas sociais voltadas para o desenvolvimento do pensamento crítico do sujeito.

Essas questões desencadearam novas abordagens por parte dos educadores e pesquisadores de mídias para os estudos do letramento, sobretudo quanto ao letramento midiático, devido à multiplicação de novas possibilidades de comunicação geradas pela transformação das interações humanas provocada pelas tecnologias digitais com sua extraordinária abundância de informações.

Mas qual a real importância do letramento (crítico) no processo da troca de

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informações em redes? Pode-se dizer que tais trocas de mensagens através das mídias sociais são também práticas de letramento? Antes de adentrar nas questões da prática, é importante revisar o que seja letramento. Nos estudos é comum se entender como a habilidade para ler e escrever. É frequentemente pensado como um atributo individual no qual uma pessoa pode fazer alguma ação (PAPEN, 2016). Por exemplo, as crianças precisam aprender a ler, escrever e falar. No caso da fala, o aprendizado ocorre informalmente - elas aprendem copiando, exercitando. Já ler e escrever não é tão facilmente aprendido apenas por repetição. Essas são habilidades precisam ser ensinadas através de técnicas específicas e mais complexas. E, por isso, nas sociedades contemporâneas, as habilidades de leitura e escrita são amplamente consideradas como os principais meios pelos quais adquirimos conhecimento, aprendemos sobre o mundo e nos tornamos experientes em uma variedade de outras habilidades. O letramento é visto, portanto, como uma ferramenta essencial para a aprendizagem (BARTON et al ., 2007). E se atualmente a maior parte das informações ainda são transmitidas por meio de texto impresso ou digital, isto significa que, para se “inserir” socialmente, é necessário saber ler e escrever.

E não é uma coincidência que nos últimos trinta anos as habilidades de letramento têm sido cada vez mais consideradas por pesquisadores e profissionais da educação como algo mais do que competências que devem ser adquiridas (BARTON, 2012). O letramento passa a ser entendido como indissociável das práticas sociais e culturais, cujos significados e propósitos variam com o contexto de uso.

Há, portanto, o reconhecimento da diversidade das atividades de letramento e das possibilidades do que as pessoas fazem com ele. Essas atividades são chamadas de ‘práticas de letramento’, habilidades adquiridas não só por crianças, mas também por adultos. A vida cotidiana requer muitas habilidades adquiridas de uma pessoa, as quais são frequentemente repetidas, seja no trabalho, na escola ou como parte da vida familiar e de lazer. As práticas de letramento não são diferentes e as tecno-

logias digitais já são consideradas como parte dessas práticas, na medida que proporcionam novas formas de comunicação e interações.

Ocorre que, apesar da internet ter removido parte da hierarquização nas comunicações mediadas, estas ainda se estabelecem em ambientes de relações de desigualdade e poder. Ou seja, a desigualdade está no cerne da sociedade e nos sistemas educacionais (PAPEN, 2016). E é a partir do foco da desigualdade que os pesquisadores sobre letramento o examinam de uma perspectiva crítica, como foi o caso do Paulo Freire.

Apesar das dificuldades de transformação sistêmica, é evidente que entidades, instituições e as pessoas buscam se adaptar às novas tecnologias de comunicação e a se utilizar dela para transmitir seus saberes, promovendo práticas de letramento. E a maior parte das pessoas com acesso as tecnologias de comunicação vigentes é diariamente envolvida em um turbilhão de dados, informações e opiniões.

Para fazer desse novo sistema comunicativo uma relação dialógica, como ferramenta que se contraponha à lógica dominante das grandes corporações, há que se enfrentar o grande e urgente desafio para o sistema educacional vigente, que é se direcionar para aquisição do letramento de qualidade. Ou seja, desenvolver a concepção freiriana de comunicação na qual os sujeitos absorvem de maneira seletiva e consciente as informações, problematizando o cotidiano para gerar, com isso, uma transformação social positiva.

A internet, como um novo meio de comunicação, gerou forte controvérsia sobre o surgimento de novos padrões de interação social em variadas situações. E a formação de redes de comunicação online tem sido interpretada como o ponto culminante de um processo histórico de dissociação entre a necessidade de presença física e a sociabilidade na formação das comunidades. Em outras palavras, surgiram padrões novos e seletivos de relações que substituem formas sociais de interação humana limitada territorialmente.

Os críticos da internet, segundo Castells (2003), apoiavam a ideia de que a ex-

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pansão da Internet levaria ao isolamento social e à ruptura da comunicação social e da vida familiar, porque a percepção era de que os indivíduos se refugiavam no anonimato, praticavam uma sociabilidade aleatória e abandonavam a interação face a face em espaços reais. Não foi o que aconteceu.

Atualmente já é possível equilibrar os padrões de sociabilidade resultantes da prática real na Internet, pelo menos nas sociedades onde há uma produção e difusão massiva através da rede. De acordo com Castells (2003), os usos já estão intimamente relacionados com trabalho, família, educação e vida cotidiana dos usuários. As interações através das redes sociais online e as práticas de letramento estão no ápice dessa nova sociabilidade contemporânea.

O desafio para fomentar o pensamento crítico no sujeito já está lançado para educadores e comunicadores quando se trata de promover práticas sociais e letramento crítico nas redes online. Se os sistemas pós-massivos (LEMOS; LÈVY, 2010) de comunicação modificaram a forma tradicional de conceber emissor e receptor da informação, esse modo informacional é marcado por conteúdos que são criados e postados pelos próprios usuários das mídias sociais, e isso modifica profundamente as formas de comunicação entre os sujeitos. As práticas de letramento (crítico) possíveis a partir da internet são ilimitadas e reforçam as mudanças na forma de pensar e de realizar o processo da comunicação no modo dialógico, pensado por Paulo Freire.

Referências

Barton, D. Literacy: an introduction to the ecology of written language , 2nd edition. Oxford, UK and Cambridge, MA: Blackwell, 2012.

Barton, D., Appleby, Y., Hodge, R., Ivanicˇ, R. and Tusting, K. Literacy, lives, and learning . London: Routledge, 2007.

CASTELLS, M. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade . Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2003

FREIRE, P.; GUIMARÃES, S. Sobre educação – volume 2: (diálogos). 3º edição, São Paulo,

Paz e Terra, 2003.

LEMOS, André; LÉVY, Pierre. O futuro da internet : em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

PAPEN, Uta. Literacy and Education : policy, practice and public opinion. Editora Routledge, New York, 2016.

Luciana Ferreira é Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade da Beira Interior e investigadora no LABCOM – IFP.UBI.PT.

Cristiane Ferreira é Professora Assistente na Universidade Estadual da Bahia e Doutoranda na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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Por uma maior visibilidade da literatura indígena

Mônica de Lourdes Neves Santana

Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, Traz na alma, quando não na alma e no corpo (...) A sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro ( GILBERTO FREIRE - Casa Grande & Senzala)

Aliteratura indígena brasileira a partir dos anos 90 apresenta-se como um dos fenômenos político-culturais de relevância na esfera pública, inserida no campo do ativismo, no engajamento de minorias marginalizadas e invisíveis ao longo da história (ROCHA, 2021).

Embora a produção no Brasil esteja em crescimento com autores reconhecidos de várias etnias e publicações das mais diversas, recebendo premiações pela qualidade de suas obras, observa-se que tal circulação ainda é reduzida se compararmos com autores de outros países.

O que se sabe é que os índios lutam por maior visibilidade. Vejamos a instauração da lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008) que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino. De fato, um grande passo alcançado, pois abre portas para uma revisão da história única contada pelos colonizadores europeus.

Neste sentido, a produção textual indígena ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente da narrativa oficial. Como afirma Peres (2018), é através da escrita indígena que será possível a denúncia da exclusão física como a demarcação de terras, racismo, resistência e luta. Sem falar que esse tipo de literatura divulga outros mundos, culturas, tradições pela voz do próprio indígena. Assim, somos convidados a ver os índios sem as lentes

eurocêntricas.

Acato a ideia de que, com a visibilidade da literatura indígena, os escritores farão a representação das várias etnias, um número que hoje é de 206 povos. Cada um deles apresentando suas particularidades e suas próprias tradições, funcionando como ferramenta de afirmação de identidade na corrente literária indígena. Felizmente, neste tipo de produção, os indígenas deixam de ser o outro objeto de uso colonial, mas um sujeito que tem voz amplificada e se impõe como nação indígena brasileira (ALMEIDA, 2019).

Peres (2018) declara que o índio foi representado de forma negativa desde nossa colonização e refletida em um imaginário que perdura até hoje. A verdade é que não se pode mais pensar em um indígena da colonização do Brasil que nos foi ensinada pelos livros didáticos “goela a baixo”.

A ‘presença’ dessa categoria de sujeito é assinalada por exclusões que têm conotações na dupla via: colonialismo e colonialidade. Além de encontrar resíduo, ainda, no antigo modelo colonial, o indígena precisa reagir às atuais concepções de poder exercidas no âmbito da colonialidade (PINTO; LIMA, 2018).

Os índios devem ser pensados e inseridos em nossa sociedade como formadores da nação brasileira, tendo em mente que fazem parte de uma cultura com sua singularidade. Apresentam uma cultura rica, histórica e que deve ser preservada. Uma cultura considerada um livro escrito há gerações de forma oral através do contador de histórias, o portador do conhecimento que tinha o objetivo de transmitir às novas gerações o legado cultural dos seus ancestrais (KAMBEBA, 2018).

O indígena brasileiro usou, a princípio, a oralidade, pelo desenho em pedras e em seus artefatos como vasilhas

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de cerâmica e agora ele faz uso das tecnologias. Eis que surge a literatura com contornos ancestrais para a perpetuação e como mecanismo de que nós, os não indígenas, conheçamos sua riqueza cultural.

Vale ressaltar o questionamento de Sá (2012), ao observar que, apesar da literatura brasileira fazer uso da intertextualidade como a literatura indígena, muito pouco se fez pela causa indígena.

Acredito ser mais que necessário uma desconstrução dos estereótipos consolidados pelo mundo ocidental. Por falar em desconstrução, nos apropriamos de Jacques Derrida ao afirmar que a produção literária indígena assola o cânone literário mostrando seu lugar ao sol e no mundo.

E falando em lugar no mundo, me recordo da obra Meu lugar no mundo (2005), escrito pela índia Sulami Katy, nascida em 1978 em uma aldeia na Baía da Traição, no litoral da Paraíba. Ela narra duas viagens que precisou fazer. Na primeira, ela deixou a aldeia e foi para Campina Grande estudar. “Passei a morar ali com minha mãe. Mas não podia ficar longe de meu povo. Por isso, nos fins de semana e nas férias sempre voltava para eles” ( KATY, 2005, p. 33). Sulami sentiu na pele as dificuldades de assimilação na escola pelos não-índios: “sofria quando riam dos meus brincos e roupas” (KATY, 2005, p. 35).

Na segunda viagem, a jovem potiguara precisou ir a São Paulo convidada pelo Daniel Munduruku para divulgar a cultura indígena. Eis que a obra infringe os murros, as normas literárias do lugar de pertencimento de fala quando ela conquista um lugar que antes lhe era negado. Sulami trabalha com a memória/ arquivo como ferramenta para reafirmar o papel do indígena e sua tradição, possibilitando sentidos e sendo transmitida de geração em geração.

Dentro dessa necessidade de visibilidade existem outros nomes. Vejamos alguns: Quem é Daniel Munduruku? Nas-

cido em Belém, tem licenciatura em História e Psicologia pela USP. Autor indígena, professor, xamã da tribo Yanomami, porta voz dos povos isolados na floresta do Amazonas, um dos responsáveis pela demarcação do território Yanomami em 1992 e quem mais publicou dentro da literatura infantil. Totalizando cerca de 40 livros, suas sobras ganharam prêmios e foram traduzidas no exterior. Sua tese O Caráter Educativo do Movimento Indígena Brasileiro 1970- 1990, escrita com um estilo epistolar, tem como objeto de estudo o Movimento Indígena em que a história da sociedade indígena no Brasil está vinculada ao processo de colonização da visão eurocêntrica, trabalho este pouco reconhecido.

E Davi Kopenawa? Juntamente com Bruce Albert escreveu A queda do céupalavras de um xamã yanomami, conta a vida do xamã mais conhecido no mundo. Relata a rotina, a cultura, as palavras de alerta dos Yanomami sobre a destruição das florestas seguido de nossa morte, e as experiências do contato com o homem branco. Kopenawa é intitulado porta voz dos povos da Amazônia em resistência às reincidentes invasões coloniais através dos garimpos, das grande e poderosas mineradoras e hidrelétricas. Uma obra rica com quase 800 páginas está disponível a todos que desejem aprender sobre os povos indígenas.

Temos o indígena Ailton Alves Lacerda Krenak da tribo crenaque. Mineiro, líder indígena, ambientalista, filósofo, professor Honoris Causa (2016) e escritor. Eleito o intelectual do ano, é uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro de reconhecimento internacional, despertando o interesse do grande público em suas obras: Ideias para adiar o fim do mundo, lançado em 2019, O amanhã não está à venda (2020) e A vida não é útil (2020). Com ideias anticapitalistas, Krenak superou 60 mil exemplares vendidos. Seguindo seus ancestrais, ele se expressa de for-

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ma oral e posteriormente em textos escritos. Dizem ainda que Krenak foca no “certo é certo”.

E finalmente Auritha Tabajara de 40 anos, cearense, curandeira, neta de uma das maiores contadoras de histórias do povo Tabajara. Seguiu seus passos e mantém o conhecimento de sua tribo levando as histórias para as salas de aula, apesar do preconceito existente no próprio professor. É a primeira cordelista indígena do Brasil. Com nove anos rascunhou a própria história em cordel. Em uma tarde concluiu o texto e mostrou a sua avó, considerada a biblioteca viva na tribo (SOUZA, 2021).

No livro Magistério Indígena em verso e Poesia (2010), Auritha escreveu o relato em cordel sobre as aulas no magistério e hoje seu material foi adotado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará nas escolas públicas. De lá par cá, Auritha vem buscando novas cordelistas entre as mulheres da tribo. Existem outros indígenas a serem valorizados como Graça Graúna e Cristino Wapichana.

Em uma breve interpretação pós-colonial, podemos afirmar que a literatura indígena realiza um discurso, uma releitura das desigualdades valorizando os saberes e as vozes dos periféricos. Trata-se de trabalhar a questão da independência, da democracia, do reconhecimento dos direitos dos subalternos e principalmente da luta por identidade. Torna-se, assim, mais do que afirmação de identidade, torna-se uma forma de preservar conhecimentos e de (re)existência.

No entanto, é necessário precaução, pois existe a tentativa de enquadrar a literatura indígena no modelo ocidental, o que pode ser uma armadilha ou um apagamento de expressões artísticas dos povos nativos.

Referências

ALMEIDA, Clara. Literatura indígena brasilei-

ra: origens, desenvolvimento e importância. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/ index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/15026-literatura-ind%C3%ADgena-brasileira-origens,-desenvolvimento-e-import%C3%A2ncia. Acesso em: 25 de setembro de 2021.

BRASIL. Lei nº 11.645. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 2008.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jcques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

KAMBEBA, Márcia Wayna. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. Literatura Indígena Brasileira contemporânea. Criação, Crítica e Recepção. Dorrico et al (orgs). Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

KATY, Sulami. Meu lugar no mundo. 1.ed. São Paulo: Ática, 2005.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu- palavras de um xamã. 1 ed. Companhia das Letras. 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo. 2 ed. Companhia das letras.2020.

____________. A vida não é útil. 1 ed. Companhia das letras.2020.

_____________. O amanhã não está à venda. Companhia das letras. 2020.

MUNDURUKU, Davi. O Caráter Educativo do Movimento Indígena Brasileiro 1970- 1990.

PERES, Julie Stefane Dorrico. A leitura da literatura indígena: para uma cartografia contemporânea. Revista Igarapé, Porto Velho ( RO), v.5, n.2, p. 107- 137, 2018.

PINTO, Milena Costa; LIMA, Elizabeh Gonzaga. Escrituras indígenas como espaço decolonial: atravessamentos e ancoragens em metade cara, metade máscara de Eliana Potiguara.Miguilim. Revista eletrônica do netlli. Vol.7 numero 3, sete-dez. 2018.

ROCHA, Wesley H. A. MEMÓRIAS DE ÍNDIA: UMA LEITURA DA LITERATURA INDÍGENA DE SULAMI KATY. Revista de Letras Norte@mentos. Estudos

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Literários. Sinop., v. 14, n.35, p 120-129, jan/ jun.2021.

SÁ, Lúcia. Literatura da floresta: textos amazônicos e cultura latino- americana. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

SOUZA, Roberta. Diário do Nordeste. Conheça a cearense Auritha Tabajara, primeira mulher indígena a publicar livros em cordel no Brasil. 2021. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/conheca-a-cearense-auritha-tabajara-primeira-mulher-indigena-a-publicar-livros-em-cordel-no-brasil-1.3063460

TABAJARA, Auritha. Magistério Indígena em verso e Poesia. São Paulo. 2010.

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Mônica de Lourdes Neves Santana é pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
“Filhas de cadela”, violência e machismo na eleição

da Nicarágua

Oslenços vermelhos e pretos se confundem em meio aos aplausos de um grupo de pessoas que celebra o discurso inaugural do quarto mandato da família Ortega Murillo na Nicarágua. Algumas pessoas levantam sua voz em meio aos aplausos, lembrando-me de uma espécie de culto religioso, quando o ditador proclama, levantando sua voz, que “aqueles que estão presos ali são os filhos de cadela dos imperialistas ianques. Deveriam levá-los para lá, para os Estados Unidos, porque não são nicaraguenses. Eles deixaram de ser nicaraguenses há muito tempo” (1). Rosario Murillo, esposa de Ortega e vice-presidenta da Nicarágua, aumenta seu aplauso com alegria quando seu marido enfatiza esses filhos e filhas de cadela, ou de puta, uma das frases mais características do patriarcado ao longo dos séculos em seu desejo misógino recorrente de diminuir as mulheres.

Espero que o Sr. Ortega saiba que a prostituição, ao longo da história, faz parte de uma indústria que tem entre seus pilares a exploração sexual da mulher a fim de satisfazer os desejos masculinos. Em geral, as prostitutas não escolhem esta profissão por desejo, mas por necessidade, e muitas vezes obrigadas por outros homens a lucrar com seu corpo. No momento, 1,8 milhões de crianças são prostituídas no mundo (2). Os “filhos e filhas de cadelas ou putas” do mundo são nada mais e nada menos que crianças nascidas de vítimas da exploração sexual masculina. Dentro do núcleo familiar, a figura mais frequentemente identificada como causa de violência sexual na infância é o padrasto (3). Este fato está alinhado com a acusação de violência sexual que assombra o presidente da Nicarágua e sua esposa, Rosario Murillo, mesmo em seu quarto mandato como presidente do país.

A Nicarágua tem uma vice-presidenta mulher; entretanto, isto não representa um avanço nas políticas de gênero e na garantia dos direitos das mulheres dentro de nossa diversidade étnico-racial, de classe social e gênero. É importante lembrar que o patriarcado é um sistema tão fortemente impregnado na vida cotidiana que a presença do patriarca não é necessária para ativar mecanismos de opressão e abuso de poder, que poderiam ser desencadeados por outras mulheres que o reproduzem.

Assim como há mulheres dentro da estrutura de poder do estado patriarcal e colonial da Nicarágua, também há mulheres presas políticas em regime de isolamento que só falam com quem as interroga há vários meses. Há outras mulheres cuja prisão está dentro de seus próprios territórios ancestrais, como o caso das mulheres da Nação Mayangna, Caribe do Norte da Nicarágua, que são vítimas de violência sexual e impedidas de ir às suas próprias colheitas para procurar alimentos devido à existência de grupos armados no Caribe Norte que provocaram massacres, como o ocorrido em 23 de agosto de 2021 no morro de Kiwakumbaih. Neste episódio de terror, mais de 20 pessoas dos povos Miskitu e Mayangna foram assassinadas, e duas mulheres foram abusadas sexualmente, sendo uma delas morta após o abuso (4). Algumas semanas antes das eleições presidenciais, o governo nicaraguense lançou uma represália contra vários meios de comunicação que denunciaram este e muitos outros massacres que mostram o genocídio indígena em curso, caracterizando estes meios de comunicação como ocidentais, provenientes da burguesia e em aliança com os Estados Unidos (5).

É impossível não notar a grande contradição do governo Ortega-Murillo,

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que, embora acusando vários grupos que defendem territórios ancestrais na Nicarágua, especificamente na Moskitia (6), de serem ocidentais, eles preservam o modelo do estado colonial e patriarcal de origem ocidental. Esta não seria a primeira vez que Ortega, ou o próprio Sandinismo nos anos 80, acusou os povos indígenas e étnicos do Caribe de terem uma aliança com os Estados Unidos por causa de sua reivindicação ancestral de propriedade coletiva da terra e preservação dos modelos de governo comunitário. A própria base marxista do sandinismo na Nicarágua, também de origem ocidental, está ligada a concepções tecnicistas, positivistas, progressistas e desenvolvimentistas que têm sido violentamente impostas às lógicas ameríndias não ocidentais e da diáspora africana.

O sandinismo adotou uma compreensão do mundo e da sociedade que ignora o mundo habitado por outras sociedades que não pertencem a esta lógica colonizada, e despersonaliza espécies e entidades em mundos que desconhece e ataca de forma constante. Para descolonizar o sandinismo e iniciar uma reflexão crítica sobre o que reproduzimos como sociedade a partir da violenta herança colonial, seria necessário desvincular o poder de uma única pessoa e talvez gerar práticas comunitárias de governança coletiva, mas o quarto mandato de Ortega indica que esta reflexão está longe de acontecer dentro do sandinismo e da família Ortega-Murillo. No entanto, ir contra a família presidencial significa ser categorizada como ocidental e imperialista no discurso, mesmo que as práticas governamentais sejam marcadas pela reprodução da violência colonial.

A retórica anti-imperialista que prevalece na defesa sandinista das diferentes frentes de oposição é cada vez mais enfraquecida e contestada pela digna raiva das lutas ancestrais, pelas organizações de diferentes grupos de mulhe-

res que denunciam o machismo estrutural e por uma diversidade de mundos e gêneros que este grupo revolucionário nunca imaginou enfrentar. De fato, é curioso como na América Latina as revoluções e conquistas mais conhecidas e amplamente divulgadas foram lideradas por brancos e mestiços cujos movimentos não contestaram as bases coloniais de organização social. Nas comemoradas conquistas revolucionárias da América Latina, há uma enorme dívida de reconhecimento daquelas lideradas por povos negros e indígenas, como a revolução do povo Guna em 21 de fevereiro de 1925, em resposta a uma ocidentalização forçada pelo governo do Panamá, ou a independência do Haiti, uma insurreição realizada por escravos e escravas negras que estremeceram o mundo colonial moderno. Esta mesma invisibilização das lutas é experimentada na Nicarágua, dando mais crédito à revolução sandinista e ignorando a resistência ancestral dos povos da Moskitia da costa do Caribe. Tudo indica que as revoluções legitimadas na região estão intimamente ligadas à raça/etnia, e a preservação das bases coloniais, já que estas são as mais aceitas dentro do número de revoltas populares que aconteceram no continente.

Hoje, uma velha ferida se abre na memória coletiva de muitas pessoas na Nicarágua e está ligada à disputa geopolítica ainda em curso entre as grandes potências, em sua intenção de repartir o mundo: a possibilidade de outro embargo econômico. O Presidente dos EUA Joe Biden assinou a “Lei Renascer” em 10 de novembro. Esta lei autoriza o governo dos EUA a avaliar sua relação comercial com a Nicarágua, estabelecida através do Acordo de Livre Comércio, com a possibilidade de eliminar os benefícios do comércio exterior com o país. A lei representa uma das muitas formas de sanções que os EUA tomaram contra a Nicarágua, após alegações de repressão e crimes contra a humanidade cometi-

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dos pelo governo Ortega-Murillo. Os EUA são o maior parceiro comercial da Nicarágua, responsável por receber 62% das exportações do país. Sem dúvida, toda sanção dos EUA contra o governo Ortega-Murillo é paga internamente com prisão e aumento da repressão contra a oposição em geral, mesmo aqueles setores que não estão ligados a nenhum contato com governos ou partidos políticos no exterior. Isto tem gerado uma série de equívocos sobre a diversidade da oposição na Nicarágua, ligando todos os grupos ao imperialismo norte-americano.

Isto pode ser visto claramente em uma nota de felicitações emitida pelo Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil ao processo eleitoral fraudulento que ocorreu no dia 7 de novembro na Nicarágua. Segundo a nota do PT, as eleições na Nicarágua foram caracterizadas por uma “grande manifestação popular e democrática”, como resultado do apoio de “uma população e um projeto político cujo objetivo principal é a construção de um país socialmente justo e igualitário” (7). Um dos maiores obstáculos da esquerda nacionalista e marxista latino-americana tem sido evidentemente a falta de diálogo e reconhecimento da diversidade das lutas anticoloniais que oferecem outras formas de resistência e luta deslegitimadas por um projeto de esquerda ainda baseado em um projeto de estado-nação colonial.

Dois dias após a vitória fraudulenta de Ortega-Murillo, o advogado Santos Sebastian Flores Castillo é encontrado morto na prisão Modelo em Tipitapa, Nicarágua. Preso e torturado desde 2013, Santos Sebastian acusou Daniel Ortega de violar sua irmã quando ela tinha 15 anos de idade (8), e são essas acusações de violência sexual que têm perseguido Ortega, e muitos outros sandinistas, durante anos, evidenciando a condição patriarcal desse movimento revolucionário. Até hoje, a morte de um

prisioneiro que estava sob custódia extrema e fazendo uma acusação de um tema “sensível” que assombra a família Ortega-Murillo como um fantasma, ainda não foi esclarecida.

A prostituição e a desvalorização secular da mulher é um claro produto do patriarcado. Existe uma estreita relação entre prostituição e escravidão na região, perpetuada principalmente em mulheres negras e indígenas. As prostitutas, ou cadelas, como colocadas no discurso inaugural de Ortega, aplaudidas por Murillo, nada mais são do que mulheres cujos corpos foram explorados como objetos de prazer pelo patriarcado. Os filhos e filhas de prostitutas, ou de cadelas, como Ortega decidiu chamar a oposição, são nada mais do que pessoas nascidas de estupro como resultado do desejo sexual masculino. De diferentes feminismos temos denunciado a condição colonial e patriarcal do Estado, seja de esquerda, centro ou direita, alegando que a revolução será feminista, ou não será. Para Ortega e para o sandinismo representamos um pesadelo, sendo as filhas das vítimas cujas ideias e reivindicações não conseguiram calar.

Referências

(1) https://www.eltiempo.com/mundo/latinoamerica/daniel-ortega-llama-hijos-de-perra-a-opositores-presos-630995

(2) https://www.unicef.es/causas/mundo/proteccion-ninos

(3) “Child Abuse and Father Figures: Which Kind of Families Are Safest to Grow Up In?”

https://www.center4research.org/child-abuse-father-figures-kind-families-safest-grow/

(4)

https://www.revistaamazonas. com/2021/08/27/pronunciamiento-del-gobierno-de-mujeres-mayangnas-de-nicaragua-sobre-la-nueva-masacre-a-originarios-del-territorio-mayangna-sauni-as-ciudad-e-bonanza-del-triangulo-minero-nicaragua/

(5) https://www.el19digital.com/articulos/ver/ titulo:121865-la-verdad-sobre-la-violencia-en-

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-bosawas-nicaragua

(6) Moskitia - A Moskitia está localizada na América Central, a leste de Honduras e Nicarágua, ao longo da costa do Mar do Caribe. O território é habitado principalmente por povos indígenas e afrodescendentes. Tendo escapado dos domínios da colonização espanhola, esta área geográfica teve uma presença britânica em seu território, mas preservou modelos ancestrais de governos comunitários. As questões relativas a esses povos são decididas através de assembleias territoriais nas quais a autoridade máxima para tomar decisões é a própria comunidade.

(7) https://brasil.elpais.com/brasil/2021-11-10/ pt-celebra-eleicao-fraudulenta-de-ortega-na-nicaragua-mas-volta-atras-e-tira-nota-do-ar.html

(8) https://www.diariolasamericas.com/america-latina/muere-la-carcel-abogado-que-denuncio--ortega-violacion-menor-4236629n?fbclidIwAR3W88F-Qp8bhsEQMOKd_QltSoRGPxo2ncZrLvY6U4WN9bhcoQtMo5BF6cM

Berta Marson é pseudônimo da autora pós-graduanda que precisa ficar no anonimato por motivo de segurança.
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