Revista Jornalismo e Cidadania Nº 47

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número 47 - MARÇO/ABRIL 2022

Expediente

Editor Geral | Heitor Rocha Professor PPGCOM/UFPE

Editor Internacional | Marcos Costa Lima Pós-Graduação em Ciência Política/UFPE

Concepção Gráfica | Ivo Henrique Dantas Professor Caesar School

Diagramação | Rafaela Lima Bacharel em Biblioteconomia

Revisores | Laís Ferreira e José Bruno Marinho Doutorandos de Comunicação PPGCOM/UFPE

Colaboradores |

Alfredo Vizeu

(Professor PPGCOM UFPE)

Pedro de Souza

(Ex-supervisor executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento)

Túlio Velho Barreto

(Fundação Joaquim Nabuco)

Gustavo Ferreira da Costa Lima (Pós-Graduação em Sociologia/UFPB)

Anabela Gradim

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Ada Cristina Machado Silveira

(Professora da Universidade Federal de Santa Maria- UFSM)

Antonio Jucá Filho

(Pesquisador da Fundação Joaquim NabucoFUNDAJ)

João Carlos Correia

(Universidade da Beira Interior Portugal)

Leonardo Souza Ramos

Professor do Departamento de Relações

Internacionais da PUC –Minas Gerais e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Potências Médias (GPPM)

Rubens Pinto Lyra

(Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da UFPB)

Alexandre Zarate Maciel

(Professor da UFMA e Doutor em Comunicação pela UFP)

ÍNDICE

Heitor Rocha

O Que Biden Vê

Pedro de Souza

O Abominável Massacre dos Índios Durante a Ditadura Militar

Oswaldo Lima Neto

Cidades Para Quem?

Katarina Moraes

Guerra Constante e Intensa que Permanece

pela Mídia | 16

Susana e Benjamin Prizendt

Energia eólica: omissão e conivência dos órgãos ambientais | 18

Heitor Scalambrini Costa

A Opção pelo Esquecimento | 20

Marcos Costa Lima

Prefácios, posfácios e agradecimentos: conversando com os leitores | 23

Alexandre Zarate Maciel

Você não tem vida pessoal: prematuro fim (de carreira) no jornalismo | 26

Rui Miguel Pereira Caeiro

Urge Repensar a Formação Profissional do Jornalista | 29

Lílian Márcia Chein Féres

Acesse:

2 JORNALISMO E CIDADANIA |
| 3
Editorial
| 4
| 7
| 10 Mônica de Lourdes Neves Santana Cidades Vulneráveis | 12
Carolina E. Polessa da Silva
Ser mulher em Moçambique
Ana
| 14
Ignorada
facebook.com/ Jornalismoecidadania | issuu.com/revistajornalismoecidadania

EDITORIAL

Heitor Rocha

Aincitação à violência e a ameaça às instituições democráticas, como fazem os milicianos de Bolsonaro, especialmente Daniel Silveira, não passariam de exercício da liberdade de expressão, para quem acredita que é apenas uma questão de legitimação social, caprichosa e meramente simbólica, o cumprimento efetivo das leis e a própria integridade do estado de direito democrático. Nesta atitude, o que realmente importa é a legitimação sistêmica, é o poder (o “manda quem pode, obedece quem tem juízo”) e o dinheiro (afinal, todo mundo seria mercadoria e teria um valor de troca, ou seja, um preço).

Esta barbárie absolutista fica evidente na arrogante convicção com que Jair Bolsonaro declara que ele é A CONSTITUIÇÃO. Na sua característica ignorância, o atual presidente da República desconhece completamente a história da realeza francesa no final da Idade Média, quando o autoritarismo levou um soberano ao ridículo de declarar ser o próprio Estado e outro a ser guilhotinado, seguindo o mesmo absolutismo renitente diante do irreversível processo histórico de descentração democrática.

Nesta perspectiva, o nível de efetividade e/ou inefetividade no cumprimento das leis parece não ter nenhuma relação com a frequente ameaça que o processo civilizatório sofre da barbárie, quando são considerados engraçados os abusos praticados contra os menores, as mulheres, os negros, os pobres e vulneráveis. A lei é “letra morta”, “para inglês ver”, e funciona como moda, quando umas pegam e outras não, de acordo com a conveniência das elites poderosas.

É preciso se reconhecer que a inefetividade das leis do estado de direito democrático existe em todo mundo, inclusive nas sociedades consideradas mais civilizadas e desenvolvidas culturalmente, como nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e demais países da Europa central, pois é gritante nestes países ricos a falta de igualdade/universalidade jurídica no tratamento conferido não só aos negros, latinos e demais etnias consideradas inferiores, mas também aos pobres de uma maneira geral. Porém, em nenhum outro lugar no mundo além do Brasil o problema da inefetividade do estado de direito democrático é encarado como anedota, como motivo de piada, o que fez com que este fenômeno chegasse a ser denominado por estudiosos de “brasilização”, conferindo ao país este vergonhoso título de campeão na falta de respeito às leis, ou seja, mais conhecido como verdadeiro território de pirataria

institucionalizada.

Tudo isso de forma altamente injusta com a maioria da sociedade que é pobre e sobrevive em situação de extrema dificuldade, mas preserva padrão de dignidade e decência, orgulhando-se de pagar suas contas, ao contrário da minoria das elites proprietárias dos latifundiários, financistas e até industriais e comerciantes que constantemente têm suas dívidas perdoadas, lançam mão de expedientes como concordatas e outros meios legais para não pagar seus débitos, têm seus impostos “desonerados” e ainda enviam dinheiro para os paraísos fiscais no estrangeiro, como o ministro Paulo Guedes.

Neste cenário de esvaziamento do significado consentido e partilhado da cidadania nacional, operacionalizado pelos golpes das elites proprietárias em conluio com o Judiciário e a grande mídia, a coesão social torna-se um simulacro, uma armação ideológica em que tudo parece ser possível, sobretudo agora diante da vergonha (pelo menos de alguns) das aberrações cometidas pelo atual presidente. Assim, não parece contradição que precise ser explicada com autocrítica a posição do STF de prender o ex-presidente Lula depois da condenação em segunda instância, quando a Constituição impede isso enquanto houver possibilidade de recurso, para evitar a sua candidatura em 2018. Posteriormente, a validade jurídica desta “condenação” foi anulada pela mesma corte, numa decisão agora corroborada pelo Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesta trama, também é descarado o cinismo com que a grande mídia tenta dissimular sua má consciência pela participação no golpe, mas não consegue esconder sua facciosidade quando tenta minimizar a importância da decisão da ONU de absolver Lula e acusar seu julgamento de evidente perseguição política como tendo um significado apenas simbólico.

Heitor Rocha é Editor Geral da Revista Jornalismo e Cidadania, é professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

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PPGCOM/UFPE |
Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade -

O Que Biden Vê

Desde que foi eleito, o Presidente Biden deve ter concluído que a sua missão não era unir o povo americano, dividido por um personagem da televisão, um tal de Trump, mas unir o povo do mundo. O que isto significa? Significa fazer o homem acreditar na democracia representativa, nos direitos humanos. Até há bem pouco tempo isso era óbvio: não só a direita, os empresários, as entidades patronais lutavam pelos seus interesses dentro do quadro legal estabelecido desde o século XVIII, mesmo se usando, por vezes, métodos pouco católicos, mas também o povo, os militantes de esquerda queriam pelo menos impor os instrumentos da democracia representativa para oferecer ao povo as vantagens de que a burguesia gozava.

Tinha se criado o consenso de que sem a democracia representativa não havia futuro. Primeiro porque os governos de esquerda que não respeitavam os direitos humanos, a liberdade de expressão etc., eram isolados, boicotados, como aconteceu com Cuba ou a Venezuela. E também porque os governos de direita não conseguiam se sustentar, acabavam fomentando revoltas, como no Chile ou em Portugal ou mesmo no Brasil, porque desprezando o princípio que estabelece que quem detém o poder é o povo, esses regimes careciam de legitimidade. Era óbvio que quem detinha o poder era o povo e seus representantes e não o clube dos padeiros, ou qualquer outra agremiação de interesses particulares.

É verdade que as coisas não eram assim tão límpidas: havia regimes de esquerda em que os representantes careciam de real legitimidade, ou porque roubavam nas urnas, ou porque não havia liberdade de

expressão, etc., e havia regimes de direita que faziam o mesmo, não respeitavam os direitos humanos, nem obedeciam aos resultados das eleições. Mas todos apregoavam os mesmos princípios, por menos que os praticassem, e a convivência entre esses diversos regimes ou alianças era mais ou menos pacífica desde a Segunda Guerra Mundial (excluindo conflitos como os da Coreia, Vietnã etc.) A grande exceção eram os regimes muçulmanos integristas que não aceitavam esses princípios, nem fingiam, mas pagavam a sua sobrevivência com as armas que compravam com o dinheiro do petróleo, gás, e no fundo não incomodavam muito, salvo Israel. Até a Guerra Fria não era tão gelada, graças ao Gorbatchov e à superioridade da tecnologia americana.

Por várias razões que seria muito longo expor aqui, mas que certamente têm a ver com o progresso econômico da China, a invasão americana do Iraque e as redes sociais, que espalhavam informação falsa e verdadeira por todos os meridianos do planeta, esse clima de relativa concórdia foi apodrecendo.

Biden ao chegar, tal como Trump fizera, elegeu a China como o grande competidor dos EUA. Porém um terceiro parceiro, que durante anos tinha sido deixado meio de lado, como se já não contasse, foi acumulando armas sofisticadas e rancor: a Federação Russa. Ou antes a Rússia mesmo, porque a maioria dos povos que compõem a Federação ignora esses problemas, em nome da sobrevivência.

Então Biden viu que as coisas não eram bem assim. Primeiro Trump tinha interesses na Rússia, depois não reconheceu a vitória de Biden nas urnas, e incentivou a tomada de poder no Capitólio por mé-

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todos violentos, por parte de uma tropa de auditório de televisão, ou seja, pondo em causa, no seu templo, a democracia representativa. Além disso, ficou claro que a OTAN estava se desfazendo, como o próprio Macron apontou, e com isso vários países da Europa, e mesmo da União Europeia, a Polônia, a Hungria, estavam aderindo à Rússia, ou seja, desprezando os direitos humanos, enquanto outros e não dos menores, como a Alemanha e a Itália, dependiam quase que totalmente da Rússia para obter energia. Outros, como o Reino Unido, elegeram governos usando métodos escusos, baseados na manipulação de dados fornecidos por empresas de tratamento de dados obtidos junto às redes sociais. Nomeadamente ao Facebook. Logo mais Macron se retirou da África, onde combatia os extremistas muçulmanos, cansado de uma guerra cara e inglória, onde foram substituídos por uma organização de mercenários russos que já tinha atuado na Síria, depois da retirada dos americanos, e na Líbia, usando métodos mais que contestáveis a serviço de regimes ditatoriais ou chefetes de facções guerreiras. Ou seja, começou a ficar claro que a Rússia não aceitava um papel de segundo plano na política mundial, em nome de uma ideologia soviética mais que gasta, inspirada na sua incontestável vitória na Segunda Guerra Mundial, como se fosse possível voltar 75 anos atrás. E que a Rússia não só não respeitava a democracia representativa e os direitos humanos, como inspirava e apoiava financeiramente políticos, sobretudo europeus (como a Madame Le Pen, e, dizem, os separatistas catalães, alguns adeptos do Brexit, como Orban, o Primeiro-ministro da Hungria), para que seguissem a sua cartilha, isto é, que se subordinassem aos interesses da Rússia, numa unidade política que abrangesse desde Vladivostok até onde fosse possível, reabilitando a antiga União Soviética, ou a

Rússia Tzarista, mas sobretudo desagregando a União Europeia, cujos interesses e ideologia são incompatíveis com os seus. Depois Biden observou que vários governos de grandes países do mundo, como a China e a Índia, se recusavam a se afastar da Rússia, apoiando-a, e continuando a negociar com ela.

Quando Putin invadiu a Ucrânia ficou claro que não se tratava de especulação, mas que era para valer: Putin não suportava que um país satélite da Rússia, tão próximo do seu sob todos os aspectos, aderisse à ideologia ocidental, da representatividade e dos direitos humanos, que eventualmente aderisse à Nato e marcasse a presença americana no mar Negro, para onde os americanos avançavam sorrateiramente, como se constata no desempenho do exército ucraniano largamente financiado e materialmente apoiado pelos EUA.

Putin estava mal informado. Na realidade, a influência ocidental na Ucrânia era já muito mais profunda do que ele calculava, tanto do ponto de vista militar quanto em relação às aspirações da população, e o desempenho do exército russo também não era o que ele acreditava. A guerra de propaganda aumentou e Putin ameaçou por duas vezes empregar as armas atômicas (até 14/04) caso continuasse enterrado na lama deste começo de degelo primaveril, ou a Suécia e Finlândia entrassem para a OTAN.

É claro que se ele cumprir as ameaças de ataques atômicos isso representa o começo de uma guerra mundial. Entra-se, então, numa outra lógica, pois o Presidente dos EUA não lhe deixará a iniciativa de começar essa guerra. Se não houver negociações com alguma chance de sucesso e ficar claro que a opção de Putin são as armas atômicas, não tenhamos dúvidas que os EUA saberão destruir uma boa parte do armamento russo antes que Putin

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o use. A capacidade dos EUA de localizar antecipadamente de onde partirão os ataques russos é insofismável.

De qualquer forma, será uma desgraça para a humanidade, e é para a humanidade que os verdadeiros democratas devem olhar. A solução da atual crise não pode ser apenas militar. A verdade é que a abstenção que se tem verificado nas eleições nos países democráticos, sobretudo da parte dos jovens, mostra que os direitos humanos e sua faceta política não respondem mais às aspirações das sociedades contemporâneas. Nomeadamente a problemáticas como a das alterações climáticas, e informatização. Seria necessário, portanto, alargar essas negociações não para substituir os princípios em que baseiam os regimes democráticos, nomeadamente os direitos humanos, mas para que ganhem maior abrangência, profundidade e modernidade, e respondam igualmente aos desafios das sociedades tolhidas por preconceitos ultrapassados e a necessidades atentatórias à dignidade humana, que os países ocidentais ignoram quando não exploram em seu benefício.

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de Souza é editor, pesquisador e ex-Superintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.
Pedro

O Abominável Massacre dos Índios Durante a Ditadura Militar

Fig.1-Esquartejamento de uma índia ao meio por facão pelos agentes do Serviço de Proteção ao Índio (ou Latifundiários?)

Precisa ser um ser vil como o Bolsonaro para elogiar a ditadura e seus torturadores. A seguir relataremos um genocídio praticado contra os índios brasileiros durante a ditadura militar. Os fatos aqui narrados se originam no Relatório Figueiredo, produzido pelo procurador Jader de Figueiredo em 1968, com mais de 7.000 páginas contando todos os casos de tortura, morte, extermínios, sevícias praticadas contras os índios por agentes do extinto “Serviço de Proteção ao Índio – SPI e por latifundiários. Este relatório foi dado como perdido em um incêndio no Ministério da Agricultura e só foi encontrado por acaso por um pesquisador em 2003 no Museu do Índio. O relatório foi encontrado intato, e relata, por exemplo, que um dos principais instrumentos de tortura dos índios, juntamente com outros crimes bárbaros, era denominado de “tronco” e consistia na trituração dos tornozelos das vítimas colocadas entre duas estacas juntas nas extremidades e ligadas por roldanas que eram aproximadas lentamente. No relatório consta também caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atiradas de aviões, a contaminação intencional de varíola e a doação de açúcar misturado a estricnina e arsênico. O procurador Jader relata que ao chegar a uma aldeia presenciou o corpo de uma índia presa entre duas

estacas de cabeça para baixo e cortada ao meio por picadas de facão.

Estima-se que, pelo menos, 8.350 indígenas tenham sido mortos no período investigado pela Comissão Nacional da Verdade em decorrência da ação direta dos agentes do Estado e da sua omissão. No entanto, essa estimativa inclui apenas os casos estudados pela Comissão. Muitos outros casos deverão ser estudados para que se tenha uma ideia mais precisa do número de indígenas mortos durante esse período. Sem dúvida, esse número deve ser exponencialmente maior que a estimativa apresentada pela Comissão Nacional da Verdade.

Este Relatório resultou de Comissões Parlamentarem de Inquérito ocorridas entre 1962-1963 criadas para investigar essas denúncias, e a ocorrência de diversas outras denunciadas por parlamentares. O então ministro do Interior, o militar Afonso Augusto de Albuquerque Lima, decide abrir

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Fig.2- Índio sendo torturado Fig.3- Índios acorrentados como bichos

uma investigação e encarrega o Procurador Jader de Figueiredo de conduzi-la. Ele realiza uma expedição que percorreu 16.000 km pelo país e entrevistou dezenas de agentes do Serviço de Proteção ao Índio e visitou mais de 130 postos indígenas, registrando uma infinidade de crimes praticados pelos agentes e latifundiários e incluíram muitos outros narrados pelos índios. Ao final, o Ministro propôs a demissão de 33 agentes do SPI e a suspenção de 17 deles, porém isso não aconteceu e eles foram inocentados posteriormente pela justiça da época. Também nada aconteceu com 4 pessoas acusadas da posse ilegal de terras indígenas, os latifundiários: Abílio Ayres, Assis Barros, Airton de França e Arlan Cardec Martins Pedrosa.

Quando da apresentação do Relatório em 1968, já durante a ditadura, foi noticiado pela imprensa brasileira e estrangeira a ocorrência desses crimes. O Jornal do Brasil foi um dos que publicou com a manchete “Atrocidades Arquivadas”. E New York Times também publicou. O que aconteceu depois não foi a condenação dos criminosos, mas a perseguição aos funcionários que participaram da investigação. O próprio procurador Jader de Figueiredo foi perseguido e ameaçado de morte por latifundiários.

Quando da notícia do aparecimento do Relatório, o filho de Jader Figueiredo, advogado Jader de Figueiredo Junior, relatava a sua alegria e externava qual seria a maior decepção de seu pai: “é que essas denúncias ficassem no dito pelo não dito”. Infelizmente, o Procurador Jader de Figueiredo faleceu em um desastre de ônibus em 1976, sem nunca ter recebido as honrarias necessárias pela correção e coragem de investigar e redigir este relatório, fato que deveria ser sanado em um futuro próximo.

Para fechar com chave de ouro a conivência do Regime Militar com esse Genocídio, o Ministro de Interior José Costa Cavalcanti de 1969-1974, veio a público negar em entrevista que tenha havido Genocídio.

Como estas informações foram dadas por perdidas por mais de 45 anos elas não são de conhecimento público e se faz necessário que nos esforcemos para divulga-las para mais pessoas. Essas informações foram obtidas de um vídeo intitulado “Relatório Figueiredo - O Massacre – Genocídio de Índios Brasileiros”, encontrado em https://

apoia.se/paralelometaforico. Estes fatos são mais um dos que enlameiam a história do nosso país e que tenho esperança de que em um futuro próximo possamos passar a limpo esses terríveis acontecimentos para que isso sirva de lição para os nossos jovens, pois necessitamos urgentemente de uma país mais humano, mais inclusivo, mais solidário, mais justo, sem qualquer tipo de preconceitos e em que os povos indígenas tenham sua integridade e suas terras garantidas, com o fim imediatamente deste morticínio que infelizmente ainda ocorre atualmente.

Para atestar que este martírio das tribos indígenas continua trago algumas notícias da Rede Brasil Atual (https://www. redebrasilatual.com.br/politica/2021/01/ ataque-indigenas-crimes-impeachment-bolsonaro/, https://www.Redebrasilatual. com.br/cidadania/2021/08/povos-indigenas-denunciam-ataques-e-retrocessos-cometidos-pelo-governo-bolsonaro/) e Maria Laura Canineu e Andrea Carvalho para a UOL, com recentes denúncias deste governo genocida de Bolsonaro.

As comunidades formadas pelos cerca de 900 mil indígenas das 305 etnias do Brasil (Censo IBGE 2010), desde a eleição de Bolsonaro em 2018, têm sido alvos de ataques a direitos, de invasões violentas de suas terras e de crimes que expõem esses povos ao genocídio. A demarcação de terras também foi interrompida – único meio de sobrevivência física e cultural para os indígenas.

Soma-se a essas ameaças o abandono do governo federal diante dos perigos da covid-19. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a taxa de mortalidade entre indígenas é o dobro da registrada para o resto da população brasileira. Em 20 de janeiro 2021, havia 46.190 casos confirmados, atingindo 161 povos e levando à morte 927 indígenas.

O jurista Eloy Terena fala ainda sobre a preocupação com a ocupação ilegal das áreas indígenas. Segundo o advogado, o governo Bolsonaro está facilitando a legalização desse tipo de ocupação ilegal. E cita a Instrução Normativa número 9, publicada pela Funai de Bolsonaro em 22 de abril do ano passado. Nela, a Funai passa a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (documento

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que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena (TI) toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre Terra Indígena Homologada; Reserva Indígena; Terras Indígenas Dominiais. “Ou seja, libera para a compra, venda e ocupação todas as Terras Indígenas em estudo, as Terras Indígenas delimitadas pela Funai e as Terras Indígenas declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso”, explica.

Essa postura mais agressiva do governo Bolsonaro teve consequências perversas para as populações indígenas em seus territórios, conta o advogado. “No Mato Grosso do Sul, estado com o maior número de casos, um trator adaptado foi utilizado por fazendeiros em graves ataques contra comunidades indígenas. Segundo os moradores da TI Dourados, o trator possuía uma perfuração na lateral, através da qual eram disparados tiros em todas as direções. Na denúncia feita pelos indígenas, as investidas contra os Guarani-Kaiowá ocorriam sempre entre as 23h e as 4h.”

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontam para um aumento de 30% do desmatamento na Amazônia Legal em 2019 em relação a 2018, atingindo os estados de Roraima, Acre, Amazonas e Pará. As treze Terras Indígenas mais desmatadas, destaca Eloy Terena, foram: Ituna/Itatá, Apyterewa, Cachoeira, Trincheira Bacajá, Kayapó, Munduruku; Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Manoki, Yanomami, Menkü, Zoró e Sete de Setembro.

De acordo com o jurista, as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional, 98% delas ficam na Amazônia Legal e um terço dessas terras é alvo de cobiça das mineradoras.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou o Dossiê Internacional de Denúncias, no qual demonstra como o discurso de ódio do presidente Jair Bolsonaro foi transformado em política de estado. Ou seja, as ações e omissões do governo resultaram em mais violência e conflitos nos territórios indígenas. O desmonte das políticas voltadas aos povos indígenas é relatado a partir da própria Fundação Nacional do Índio (Funai). De órgão governamental responsável pela proteção e promoção dos direitos indígenas, foi transformado em uma agência ineficaz, sem recursos humanos,

técnicos e financeiros.

Quando no início do mês de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro mandou um projeto de lei ao Congresso para regulamentar a mineração, a exploração de recursos hídricos e outras atividades comerciais em territórios indígenas, pretendeu institucionalizar e impulsionar essa tendência perigosa, ao legalizar a exploração comercial de recursos naturais em territórios indígenas. O projeto estimularia ainda mais invasões e o desmatamento nesses territórios. Além de impactos ambientais diretos, projetos de mineração e infraestrutura de grande escala, como hidrelétricas, exigem estradas que estimulam o desmatamento, pois permitem um acesso facilitado à floresta para a exploração madeireira e a criação.

Como se vê é urgentíssima a saída deste governo genocida se quisermos salvar os povos indígenas e evitar a catástrofe ambiental provocadas por estes atos insanos.

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Oswaldo Lima Neto é Professor Titular Aposentado da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

Ser Mulher em Moçambique

Mônica de Lourdes Neves Santana

Comecemos esse texto tecendo comentários sobre a situação em Moçambique. Ele é o nono país menos desenvolvido do mundo no valor de 0,456 antes da pandemia da Covid-19, estando na posição 181 no Índice de Desenvolvimento Humano, abaixo da África subsaariana (0,547), segundo as Nações Unidas (OBSERVADOR, 2020).

Um país que tenta se livrar das desigualdades sociais, segundo as organizações dos direitos das mulheres, com implementação e promoção de ações públicas de igualdade, como, por exemplo, acesso a cargos públicos (PNUD, 2013, p.162). Neste sentido, apesar da grande representação de mulheres no legislativo e executivo, parece que a realidade não corresponde às necessidades repleta de “[...] insensibilidade e/ou pouca capacidade política em definir estratégias de defesa dos direitos das mulheres” (OSÓRIO, 2010, p. 60).

Se no início de tudo a mulher possuía lugar central por ser aquela que tem a capacidade de gerar uma vida, esse privilégio vai por água abaixo e sofre uma grande reviravolta com a revolução industrial e o surgimento do capitalismo. A partir desses acontecimentos, a África se tornou um lugar de exploração dos recursos materiais e humanos até a exaustão (SANTOS, 2016). Na sociedade capitalista atual, o modelo predatório é retratado como o mal necessário em que se privilegia a forma de viver, enquanto que a vida das pessoas e suas emoções são descartadas como mercadorias.

De agora em diante, a vida das mulheres não segue o mesmo ritmo, ela é cercada de opressão, violência e ameaças de morte proveniente da dominação de homens poderosos, detentores de riquezas e de conhecimento, se posicionando acima de homens comuns e mulheres (PEREIRA, 2010). O que prevalece é a reprodução de ideias de inferioridade sobre grupos baseados nas diferenças biológicas e culturais.

Mediante este cenário, trago questões perturbadoras, como: que desenvolvimento seria esse que traz sofrimento e impactos negativos para as mulheres moçambicanas? Como é ser mulher em Moçambique? É im-

portante e necessário problematizar essas vidas, tendo em vista que, apesar de trabalharem muitas vezes mais que os homens, são as que menos conseguem ser remuneradas. Concentram os menores salários, incluindo os serviços prestados e não pagos. Ademais, sofrem violência por misoginia, em que são mortas por seus parceiros ou parentes (SANTOS, 2016).

Segundo Osório (2010), a participação das mulheres nos espaços públicos se localiza em meio a ambiguidades de um discurso e uma prática incoerente. Temos de um lado um discurso de incentivo, mas as ações seguem na contramão, com uma linha de pensamento voltada para a hierarquia em função do sexo.

O presidente Samora Machel, em 1976, realizou um discurso na abertura da II Conferência da Organização da Mulher Moçambicana, o que nos daria a entender seu apoio à causa: “a mulher moçambicana esteve também nos campos de batalha contra ‘o colonizador’, foram as mulheres que não mediram esforços trabalhando nas fábricas, plantações, hospitais” (MACHEL, 1976, p. 6). Mas na verdade o que se vê é que, “ao mesmo tempo em que se promove o acesso das raparigas à educação, se ignora os mecanismos que estruturam as relações patriarcais” (OSÓRIO, 2010, p. 18). Existe a ideia da hierarquização entre homens e mulheres com papeis predeterminados, como nas situações de vulnerabilidade, violência, na purificação das viúvas e nos casamentos entre homens velhos e crianças e/ou adolescentes.

O Fundo de População das Nações Unidas, UNFPA mostrou em 2011 a difícil situação das mulheres em relação ao número de partos entre adolescentes. “Estas frequentemente são casadas com homens mais velhos que talvez tenham tido inúmeras parceiras, com altas chances de contrair infecções pelo HIV” (UNFPA, 2011, p. 17).

A Lei de Família, aprovada em 2004, proibiu que as meninas se casassem antes dos 16 anos, mas ironicamente são os pais que concedem o casamento das filhas o mais rápido possível. E, quando a análise chega na zona rural, a situação só piora, pois as

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meninas não têm acesso à informação de contraceptivos (UNFPA, 2011). Acrescente-se o tabu que abafa o assunto afetando a qualidade de vida e trazendo como consequência a gravidez precoce e contaminações por HIV.

Com a ausência e descaso do Estado na resolução dessas e outras questões, são as ONGs que atuam no desenvolvimento de políticas frente à violência contra a mulher. O bom de tudo isso é a possibilidade de a mulher ter algum grau de autonomia independente do homem graças à criação das cooperativas sob a coordenação da Organização das Mulheres Moçambicanas - OMM, e a União Geral das Cooperativas – UGC, com o dever de assessorar e apoiar essas cooperativas. Com a capacidade de organização das instituições, as mulheres ampliaram a capacidade técnica para outros ofícios, como gestoras e contadoras. Algumas cooperativistas reconhecem a possibilidade de maior ganho financeiro. Diz-se que as mulheres são as maiores e melhores poupadoras da região sul de Moçambique.

No entanto, surge um grande obstáculo para o fortalecimento e manutenção das cooperativas: a ausência de jovens como um sinal de que tudo pode estar com os dias contados. Em alguns relatos, diz-se que os jovens só querem fazer trabalhos de segurança ou de criação de frangos por acreditarem que o campo seja um lugar de gente sem instrução. Existe a ideia de que o trabalho no campo é inferior, “coisa de velho e de quem não estudou” (SANTOS, 2016, p. 134).

Sobre a divisão do trabalho doméstico, os maridos nada fazem, não apoiam as esposas no trabalho de campo e as tarefas são divididas com os filhos e filhas. O papel indicado para o casamento é de cuidar, ser responsável pelo bem estar da família, mantê-la em harmonia na forma do Estado moderno. A comunidade, de forma ferrenha, assume o papel de fiscalizar e controlar se a mulher está respeitando o marido (SANTOS, 2016, p. 147).

Finalmente, em Moçambique a terra representa a existência e sobrevivência para muitas. O fato é que mais de 80% vivem e sobrevivem da terra e são constantemente ameaçadas de morte. Estima-se que pelo menos 90% das mulheres economicamente ativas estão na agricultura. Importante fri-

sar que não existem outras oportunidades de subsistência além do cultivo para viver ou morrer de fome. As mulheres se veem forçadas a trabalhar na agricultura durante a ausência de seus maridos, sobrevivendo em meio a subnutrição, insegurança alimentar, entregues ao destino, desamparadas pelo Estado.

Concluo estas palavras deixando aqui uma realidade a ser resolvida: as terras são destruídas, as comunidades são deixadas sem nada e as mulheres utilizadas como instrumentos de guerra no conflito do país. Em minhas reflexões, acredito que a participação das mulheres na construção da democracia e cidadania em Moçambique é necessária para um Moçambique mais forte e unido pela justiça. Para uma vida de liberdade, dignidade humana e bem-estar coletivo.

Referências

OBSERVADOR. Moçambique é o nono pior no Índice de Desenvolvimento Humano. Disponível em https://observador.pt/2020/12/15/mocambique-e-o-nono-pior-no-indice-de-desenvolvimento-humano/. Disponibilidade:03/02/2022.

CAPIRE. Feminismo em Moçambique: pela terra, liberdade, sororidade e uma vida livre de violência, publicado em https://capiremov.org/analises/feminismo-em-mocambique/. Acesso em: 06/01/2022.

MACHEL, S. Discurso do Presidente na II Conferência da Organização da Mulher Moçambicana. República Popular de Moçambique. 1976. OSÓRIO, C. Gênero e Democracia: as eleições de 2009 em Moçambique. Maputo: Editora WLSA, 2010.

PEREIRA, E. De missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verianos, moçambicanos e são-tomenses. Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Língua Portuguesa). Universidade de São Paulo, 2010.

PNUD- Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório de desenvolvimento Humano – 2013. http://www.pnud.org.br/Noticias.aspx?id=3703.>Acesso em: 03 de fevereiro de 2022.

SANTOS, A. D. Mulheres Moçambicanas: Resistência, Associativismo, Feminismo. Tese de Doutorado. Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais. PUC. São Paulo. 2016

UNFPA, Fundo de População das Nações Unidas. Relatório sobre a situação da População Mundial2011. Acesso em : 04/02/2022.

Mônica de Lourdes Neves Santana é pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
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Cidades Vulneráveis

Ana Carolina E. Polessa da Silva

Nos últimos 20 anos, passamos a acompanhar a difusão de variadas propostas relacionadas às smart cities, partindo de iniciativas de governos, empresas privadas, institutos de pesquisa e organizações internacionais, com a promessa de tornar as cidades mais eficientes, sustentáveis e competitivas.

A principal característica de uma smart city é gerar um número expressivo de dados e metadados que são produzidos não apenas por pessoas, mas também por coisas, como carros conectados, bueiros inteligentes, semáforos, etc; e as informações geradas, ficam armazenadas em nuvem ou névoa, reduzindo não apenas os gastos no setor de Tecnologia da Informação, mas, quando bem implementados, se tornariam facilitadores em tomada de decisões mais direcionadas e para uma melhor administração dos recursos urbanos.

Mas como a nossa privacidade é afetada nesse contexto? A privacidade foi sistematizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e, desde 1980, há diretrizes relativas à política internacional sobre a proteção da privacidade e dos fluxos transfronteiriços de dados pessoais.

Elas representam um consenso internacional sobre a orientação geral a respeito da coleta e do gerenciamento da informação pessoal. Por exemplo, o usuário tem direito a obter das empresas, descritas como controladoras, confirmações e informações sobre armazenamento ou uso de seus dados pessoais (OCDE; 2013), e essas diretrizes são constantemente atualizadas e ampliadas.

Graças à ascensão das novas tecnologias, a Privacy International, uma ONG britânica fundada em 1990 com o principal objetivo de “monitorar a vigilância e as invasões de privacidades individuais conduzidas por governos e organizações”, ampliou suas diretrizes para um novo conjunto de domínios que engloba tanto a privacidade quanto a vigilância nas cidades inteligentes. Uma das preocupações da Privacy International se refere aos espaços cada vez mais vigiados, o que compromete o anonimato em espaços públicos. Além disso, o amplo uso de dados para tomada de decisões refletiria desigualdades já existentes, uma vez que populações historicamente marginalizadas teriam pouco acesso à tecnologia e o fato de não haver dados suficientes poderia prejudicá-las na tomada de decisões das políticas públicas. (PRIVACY INTERNATIONAL; 2017).

A recolha de dados, principalmente

por meio de dispositivos IoT (sigla em inglês para internet das coisas), é essencial para aperfeiçoar os serviços e, muitas vezes, leva a consequências opressivas à nossa privacidade e segurança, não nos oferecendo a opção de não fornecer informações para terceiros para fins de análise (ZUBOFF; 2019).

É importante lembrar o Knowing Capitalism, um conceito difundido por Nigel Thrift em 2005 para denotar uma nova forma de economia global que depende não apenas de tecnologias que geram grandes quantidades de dados digitais, mas também da mercantilização desses dados: uma grande economia, uma vez que sua energia opera através de modos de comunicação. (THRIFT; 2005).

Uma vez que as empresas têm domínio desses dados, somente elas teriam autoridade para apresentar dados digitais gerados rotineiramente por populações como um subproduto das transações das próprias organizações: dados de vendas, listas de discussão ou dados de assinaturas, identificados, muitas vezes, a partir de localização residencial e de padrões de consumo (SAVAGE e BURROWS; 2007).

Mas foi Shoshana Zuboff (2019) que buscou desenvolver sua ideia a partir da lacuna existente entre a experiência e os dados, no processo de transformar um em outro. Ela explica que o capitalismo de vigilância funciona como ambos os lados de uma equação: ao mesmo tempo que as tecnologias são projetadas para aprimorar nossa experiência em dados, ainda que quase sempre sem nosso consentimento, muitas vezes, ao nos depararmos com uma rede social ou um artefato tecnológico disponibilizamos nossas experiências de maneira consciente, gerando um arranjo inovador (ZUBOFF; 2019).

A grande questão da IoT está em sua proposta estrutural de ubiquidade e centralização de decisões, pois, muitas vezes, há uma empresa na área de tecnologia desde o projeto até o processamento dos dados (no Rio, por exemplo, o projeto foi desenvolvido pela Cisco e pela IBM Smart City), o que mostra que a vigilância se despersonifica cada vez mais e passa a ser realizada por tecnologias e algoritmos, como se não houvesse nenhuma pessoa por trás.

Na verdade, a visão centralizadora de empresas e organizações que vêm promovendo e moldando os rumos (e objetivos) dessas cidades, com base na recolha de dados de todos os tipos, mas, em especial, nos dados comportamentais e de localização. (IBM; 2009, NYTIMES; 2012).

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Essa centralização contribui para a criação de espaços constantemente vigiados por qualquer agência ou empresa, facilitando, por exemplo, abusos aos direitos humanos no que se refere a leis de dados, de transparência e de algoritmos abertos que, muitas vezes, não estão facilmente acessíveis. Dessa maneira, ela gera deficiência na tomada de decisões em áreas que não possuem tal cobertura. (PRIVACY INTERNATIONAL; 2017).

Cheney-Lippold (2017) destaca que vivemos em um mundo imerso em uma rede ubíqua e interconectada, em que as tecnologias que constituem a internet são tecidas em nossas vidas cotidianas e viver sem sua existência nos parece até inimaginável: “Este é o mesmo mundo de uma vigilância onipresente, um mundo onde as mesmas tecnologias ajudaram a gerar uma impressionante rede de infraestruturas governamentais, comerciais e não afiliadas da obsessão e controle em massa” (CHENEY-LIPPOLD; 2017, p. 12).

É possível observar uma mudança dramática na forma que se estruturam e administram as cidades, além de importantes contribuições para o campo da vigilância e da privacidade, averiguando que as cidades inteligentes estão se tornando, acima de tudo, cidades vulneráveis.

Referências

CHENEY-LIPPOLD, J. We Are Data: Algorithms and The Making of Our Digital Selves. NYU Press, 2017.

OCDE. Guidelines on the Protection of Privacy and Transborder Flows of Personal Data. 2013. Disponível em: < https://tinyurl.com/y2yytaka > Acesso em: 23 fev. 2019.

PRIVACY INTERNATIONAL. Utopian Vision, Dystopian Reality. 2017. Disponível em: < https://tinyurl.com/y29f6ap6 > Acesso em: 26 dez. 2018.

THRIFT, NIGEL. Knowing Capitalism. London: Sage, 2015.

ZUBOFF, SHOSHANA. The Age of Surveillance Capitalism, PublicAffairs, 2019.

____. Big other capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação in Tecnopolíticas da vigilância. Rio de Janeiro, Boitempo, 2019.

Ana Carolina E. Polessa da Silva é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e integrante do Grupo de Modelagem Computacional Aplicada da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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Cidades Para Quem?

Lembro o dia em que fui à Rua da Aurora, um dos principais cartões-postais do Recife, após a inauguração de parte da primeira etapa de revitalização, no final de 2021. O lugar, que já tinha sido cenário de várias de minhas reportagens sobre abandono no espaço público, estava, enfim, ocupado a partir da simples instalação de bancos e mesas de madeira e de certa divulgação nas redes sociais. A empolgação inicial, no entanto, foi indo embora enquanto eu olhava ao redor e percebia que, aparentemente, todos os presentes pertenciam a classes sociais semelhantes e à raça dominante. Onde estavam os que mais necessitavam de lugares de convivência gratuita como aqueles?

Pela via ter uma baixa cobertura de transporte público, com apenas quatro linhas passando pela praça, quem precisa se deslocar pela cidade de ônibus não tem fácil acesso a, talvez, uma das mais belas vistas do Rio Capibaribe, tampouco quem tem baixo poder de compra, já que os imóveis em suas margens custam acima de R$ 1 milhão desde que sofreu uma intensa valorização imobiliária na última década. Entre 2010 e 2015, o tinir dos martelos se sobrepôs à voz de urbanistas, que apontavam que as construções não integravam as comunidades do entorno. Não adiantou. À época, o argumento era que a região estava esvaziada e precisava ser reabitada, e que, pior do que estava, não ficaria.

Aquele cenário de esvaziamento na Rua da Aurora pode ser comparado à situação atual dos bairros do Recife, de São José e Santo Antônio, no Centro da cidade, alvos do Programa Recentro, da Prefeitura do Recife, que estuda como pode reavivá-los turística e culturalmente, além de trazer de volta o caráter habitacional e comercial que foi perdido. Uma iniciativa que é louvada por diferentes atores, já que a região passa por um processo de abandono desde 1964, a partir da construção da Avenida Dantas Barreto, e acentuado em 1975, com as enchentes que causaram uma migração para o então pacato bairro de Boa Viagem, na Zona Sul, mas que nos traz mais uma pergunta: será revitalizada para quem?

Enquanto a classe média esvaziou o Centro por escolha, a miséria o ocupou por necessidade, fazendo com que pessoas em situação de rua passassem a viver em suas calçadas. Principalmente, a partir da chegada da pandemia da Covid-19, quando o desemprego bateu recorde no País, fazendo com que, inclusive, o poder municipal iniciasse uma nova contagem dessa população no último ano, ainda não divulgada.

Além disso, o último Plano Local de Habitação de Interesse Social da Prefeitura, de 2017 (Conselho da Cidade, 2019), divulgou que o déficit por moradia da cidade era de 71.160 casas. Entre esse número, 4.725 casas eram consideradas precárias, rústicas ou improvisadas.

Essa emergência generalizada causou, nos últimos anos, o crescimento das ocupações pela cidade — embora não haja um levantamento específico desse número, a própria Prefeitura admitiu o aumento em entrevista (JC, 2021a). Novas delas foram formadas por centenas de famílias sem-teto, que passaram a viver às margens da BR101, na Iputinga, na Zona Oeste; em terreno no bairro de Boa Viagem e em edifícios em desuso no Centro do Recife, como o do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), em Santo Antônio; dos Correios, no Bairro do Recife; e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na Boa Vista. Mesmo assim, o projeto apresentado para o Centro não contém qualquer planejamento já estruturado que direcione por quem ele será ocupado, ainda que haja uma crescente demanda por moradia e lazer na cidade. Até então, a promessa de que haverá mistura de diferentes classes sociais está nos planos das palavras da Prefeitura do Recife, por meio da secretária do Gabinete pelo Centro, Ana Paula Vilaça (JC, 2021b), e de um estudo de Parceria Público-Privada (PPP) para habitação social na região, com o objetivo de ofertar, no mínimo, 450 unidades habitacionais, prioritariamente na área central, voltadas para famílias com renda máxima de três salários mínimos.

Ainda não está confirmado se estas essas pessoas seriam abrigadas em imóveis que já existem ou em novas edificações, embora a ociosidade de prédios seja um dos grandes calos dos três bairros históricos. É o que traz o estudo Moradia no Centro: da reflexão à ação, um levantamento de imóveis vazios e ociosos no bairro de Santo Antônio (2018), feito pela ONG Habitat Brasil, mostrando que, só no Bairro de Santo Antônio, 37,5% dos imóveis estavam totalmente desocupados ou com menos da metade de sua área ocupada de 112 analisados. Só neles, poderiam ser implantadas 2.106 unidades de habitação popular.

A necessidade de trazer e fincar a classe trabalhadora no Centro não é só uma questão social, mas urbanística — sendo fundamental para o funcionamento pleno de uma cidade. “Empurrar” os pobres para áreas periféricas (e, quando digo periféricas, refiro-me à distância delas do Centro) pode impactar não só na rotina deles, que vão

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enfrentar percursos mais longos para chegar ao trabalho, pondo dificuldades à mobilidade como um todo, entre outros pontos, mas gerar até 6,3% de aumento no preço dos aluguéis de uma cidade, segundo estudo (Lima, 2018) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Na contramão, desde o lançamento do Recentro, em novembro de 2021, os incentivos fiscais estão em vigor para as imobiliárias, colocando a região histórica da cidade sob olhares de construtoras e os mais pobres sob perigo da expulsão por um eventual aumento do custo de vida. Um exemplo é a Comunidade do Pilar, considerada uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) desde o último Plano Diretor (Recife, 2021) — que, apesar de, finalmente, ter dado a ela esse título, afrouxou a proteção às Zeis, que, agora, podem ser modificadas caso haja a necessidade da implantação de uma obra de interesse público.

Outra discussão a ser feita é sobre os conjuntos arquitetônicos que não estão sob proteção na região, que é considerada uma Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural (ZEPH). A dissertação da arquiteta e urbanista da UFPE Iana Ludermir (2018) mostra que há áreas de terrenos, galpões e postos de abastecimento que, legalmente, podem abrigar novas torres, o que seria semelhante ao “boom” que aconteceu na Rua da Aurora. É o caso da Rua Imperial e suas edificações construídas na transição entre os séculos XIX e XX. Legalmente, os diferentes estilos que a compõem, vindo do Art déco a arquitetônicos modernos, poderiam ser completamente destruídos — e ainda não foi apresentado um plano para mantê-los.

Quando perguntada sobre quais medidas tem tomado para que a área protegida da cidade não seja estruturalmente modificada, a gestão respondeu que o Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS) vem elaborando fichas técnicas com parâmetros urbanísticos a serem observados para as construtoras que tenham interesse em construir ou revitalizar imóveis da região, levando em consideração as características do conjunto edificado por quadra, e que, quando finalizadas, serão disponibilizadas ao público através do Portal de Licenciamento Urbanístico.

Acredito que nem só um recifense discorde da necessidade de dar novos ares ao centro histórico da cidade. Por isso, o Recentro é uma iniciativa comemorada; mas, antes mesmo de abrir a região para a iniciativa privada, seu esboço precisava ter sido construído sobre a urgência da redução do déficit habitacional e da preservação das características arquitetônicas de seus bairros para, então, reocupá-los — não somente para quem pode arcar com uma moradia que ultrapassa a casa do milhão e para os turistas, como aconteceu na Rua da Aurora em seu processo de gentrificação, mas sim sob a premissa de que cidades, segundo a grande urbanista Jane Jacobs, “têm a capacidade de prover algo para todos, somente porque, e somente quando, são criadas por todos nós”.

Referências

Bernardino, Iana Ludermir. Mercado imobiliário residencial em áreas centrais tradicionais: produção de novas espacialidades e obsolescência imobiliária na definição de submercados residenciais. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Recife, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/32344/1/TESE%20Iana%20Ludermir%20Ber nandino.pdf

Habitat para a Humanidade Brasil. Moradia no Centro: da reflexão à ação, um levantamento de imóveis vazios e ociosos no bairro de Santo Antônio. Recife, 2018. Disponível em: https://habitatbrasil.org.br/wp-content/uploads/2018/09/MORADIA-NO-CENTRO_ HABITAT-B RASIL.pdf

Lima, Ricardo Carvalho de Andrade. Patterns of Land Use, Zoning and Economies of Scale in Cities: Three Essays on Urban Economics for Brazil. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Recife, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/32294/1/TESE%20Ricardo%20Carvalho%20 de%20Andrade%20Lima.pdf

Moraes, Lucas. Recife vira cidade das ocupações, com aluguel caro, pobre sem renda e falta de política habitacional. JC, Recife, 24 de outubro de 2021a. Economia. Disponível em: https://jc.ne10.uol.com. br/economia/2021/10/13616374-recife-vira-cidade-das-ocupacoes-co m-aluguel-caro-pobre-sem-renda-e-falta-de-politica-habitacional.html. Acesso em 5 de março de 2022.

Moraes, Katarina. Novo gabinete da Prefeitura do Recife é criado para revitalizar o Centro, mas acende alerta sobre como atuará. JC, Recife, 18 de novembro de 2021b. Pernambuco. Disponível em: https://jc.ne10. uol.com.br/pernambuco/2021/11/13628271-novo-gabinete-da-prefeitura-do-recife-e-criado-para-revitalizar-o-centro-mas-acende-alerta-sobre-como-sera-sua-atuacao.html. Acesso em 5 de março de 2022.

Katarina de Moraes é jornalista formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e repórter de urbanismo do Jornal do Commercio.
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Guerra Constante e Intensa que Permanece Ignorada pela Mídia

Susana e Benjamin Prizendt

Atualmente, a situação social e ambiental do nosso próprio país é extremamente problemática – o que já daria material para muitos artigos neste espaço. Mas não há como deixar de comentar o tema do momento: a Guerra Rússia X Ucrânia ou Rússia X OTAN + EUA, já que ela escancarou a insustentabilidade do modelo produtivo que domina os nossos dias.

Embora a mídia brasileira aborde o conflito a partir do ponto de vista do agronegócio e do mercado, ou seja, trata da dificuldade de importarmos fertilizantes da Rússia e do aumento no preço do petróleo, este não será nosso foco aqui. Isto porque, para a agroecologia, existem outras formas de conquistar e garantir a fertilidade do solo e sabemos que a importação de insumos agroquímicos traz consequências bem danosas ao país. Além disso, defendemos os circuitos curtos de comercialização, valorizando a produção local e o contato direto entre quem vende e quem compra, evitando o uso de combustíveis para os imensos deslocamentos feitos pelos caminhões.

Nosso foco está na imensa exploração midiática que vem sendo feita, apresentando o conflito como uma calamidade e um perigo gravíssimos à humanidade (o que não discordamos), enquanto se cala em relação a uma outra guerra, antiga e contínua, que vem ocorrendo “debaixo de nossos narizes”. Artistas, escritores e filósofos têm a capacidade de descrever cenários com até séculos de antecipação. Leonardo da Vinci já desenhara um projeto de helicóptero; telas planas já apareciam no seriado “Jornada nas Estrelas”, bem como relógios com recursos de informática já se destacavam com James Bond. Entretanto, tivemos que esperar séculos, na história da humanidade, para que a palavra ecologia ganhasse vida (apesar de continuar até hoje sem ter o devido espaço na grande mídia). A demora tem sido ainda maior para perceber a extensão dos desequilíbrios que nosso modo de vida produz sobre esse ser vivo que é Gaia.

Muitas vezes consideramos, incorretamente, como “acidentes”, as manifestações decorrentes de nossas (ilusórias) soluções e das ações tecnológicas (mais do que ques-

tionáveis) que criamos para promover o desenvolvimento humano. A insistência no uso de combustíveis fósseis e seu impacto no aquecimento global são provas de como fortíssimos interesses econômicos prevalecem sobre o bem comum, a saúde de nossa casa: o planeta Terra - a única casa que pode nos abrigar, apesar da busca desenfreada que os bilionários vêm fazendo para tentar colonizar outros locais nesse imenso Universo.

A destruição da biodiversidade tem superado todas as estimativas feitas nos últimos tempos. Um estudo atual promovido por cientistas da Universidade Nacional Autônoma do México e das universidades estadunidenses de Stanford, de Princeton e da California apresenta fortes argumentos para demonstrar que a Sexta Extinção em Massa já começou. As cinco anteriores teriam ocorrido nos últimos 450 milhões de anos, com o extermínio de até 75% das espécies, em curtos espaços de tempo. Entretanto, a atual tem a característica de ser impulsionada pela atividade humana e pode atingir 41 % de todas espécies de anfíbios e 26% de todos os mamíferos (dados da União Internacional para a Conservação da Natureza - IUCN na sigla em inglês). Segundo os autores, “a taxa média de perda de espécies de vertebrados no último século é até 114 vezes maior do que seria sem a atividade humana”.

A Lista Nacional de Espécies Ameaçadas de Extinção dobrou de tamanho nos últimos oito anos e ganhou mais de 700 novos animais, revelando que a monocultura e a criação de gado têm feito um estrago imenso nos nossos biomas. A própria Amazônia já está chegando a um ponto sem volta, como revela um estudo publicado no periódico Nature Climate Change há alguns dias atrás.

Um dos efeitos do desequilíbrio gerado na natureza tem sido a atual sequência de epidemias que rapidamente atingem todos os países do globo, como consequência da destruição de habitats naturais, consumo de animais silvestres, criação intensiva de animais domésticos e mudanças climáticas. Com essas atividades, deslocamos vírus que antes não nos atingiam, pois estavam imer-

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sos na biodiversidade e estáveis em seus hospedeiros. É o caso do SARS Covid que saltou de morcegos para humanos e que levou à morte mais pessoas do que muitas guerras militares.

Como explica o pesquisador Allan Carlos Pscheidt, doutor em biodiversidade vegetal e meio ambiente, professor das Faculdades Metropolitanas Unidas, em São Paulo: “o vírus (da covid-19) ocorre naturalmente no planeta (...) vive no morcego, seu hospedeiro. Ele evolui junto com o morcego, naquele ambiente isolado. Quando ele chega ao ser humano, não dá tempo para o organismo humano se adaptar a esse vírus e temos esse surto. O vírus acaba tendo uma ação muito pesada no organismo humano porque a gente não tem tempo necessário para criar um sistema imunológico para se proteger.”

Então, o que mais é preciso ocorrer para os seres humanos perceberem que estão sendo protagonistas de uma guerra contínua e avassaladora contra a vida? Que estamos disparando nossas armas, em sua maior parte silenciosas, contra a natureza que nos permite existir? Já destruímos grande parte dos ecossistemas mundiais e nossas “bombas” diárias seguem eliminando o que ainda resta. Ainda não percebemos que nesta guerra suicida, quanto mais atacamos, mais somos atingidos pelos nossos próprios ataques. Somos nossos próprios inimigos.

Frente ao clamor geral (muitas vezes repleto de hipocrisia) para que o conflito na Ucrânia cesse e a tal “paz” que reinava até então seja restabelecida, vamos seguindo calados em relação aos combates permanentes que travamos contra a biodiversidade que sustenta a vida na Terra.

Sim, queremos paz na Ucrânia, bem como em todos os outros países, sobretudo porque quem sofre com as guerras é o povo e não quem as decreta. Mas há uma outra paz, mais ampla e complexa, que precisamos começar a construir ou os conflitos por recursos naturais vão gerar cada vez mais guerras, como a que a mídia tem alardeado aos quatro ventos.

Para que exista a chance de estabelecermos algum tipo de paz no planeta, é necessário rever nosso modelo produtivo e é aqui que a Agroecologia se faz essencial. Não basta mais interromper o processo des-

trutivo que vem levando à extinção de espécies da fauna e da flora do mundo todo, é necessário regenerar os ecossistemas. Somente uma agricultura de base agroecológica é capaz de promover a regeneração do solo, estimular a biodiversidade, recuperar o sistema hídrico e, o que é vital para a humanidade: produzir alimentos saudáveis e nutritivos para toda a população planetária.

Sim, a guerra na Ucrânia é abominável, assim como as demais guerras que têm ocorrido e estão ocorrendo neste momento em diversas regiões do mundo, impulsionadas pela disputa de poder e pela ganância das grandes potências imperialistas e suas indústrias bélicas, sobretudo a dos EUA. É verdade que elas têm impacto econômico em todo o globo, ampliando a fome e a miséria onde ambas já causam sofrimento, e que corremos o risco de uma dessas guerras caminhar para um conflito nuclear. Mas é preciso agir urgentemente contra a guerra contínua que estamos travando contra a natureza, antes que, entre as espécies eliminadas nesta sexta extinção em massa, esteja incluída a própria espécie humana. Que a paz possa ser semeada e envolver todos os seres que habitam nossa Gaia, permitindo que a Vida siga radiante em seu constante ciclo de renovação.

Susana e Benjamin Prizendt são arquitetos urbanistas, atuando em projetos socioambientais e políticas públicas na área agroalimentar e integrando a Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e Pela Vida do Movimento Urbano de Agroecologia – Muda e da Articulação Paulista de Agroecologia. E fazem parte também da Rede Josué de Castro de Soberania Alimentar.

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Energia Eólica: Omissão e Conivência dos Órgãos Ambientais

Nosso país possui um enorme potencial em energias renováveis, em particular a energia dos ventos (energia eólica) na região Nordeste, com a qual poderá gerar energia para as atuais e futuras gerações, e, assim, contribuir no enfrentamento às mudanças climáticas, com a redução da emissão de gases de efeito estufa.

Todavia, o atual crescimento vertiginoso das instalações dos parques eólicos, nos estados nordestinos, e em Pernambuco em particular, está assentado em um modelo de expansão predatório, que não respeita o homem do campo e a natureza que o rodeia, assim contribuindo para inúmeros conflitos e impactos socioambientais.

Os órgãos do governo federal, estadual e municipal, que deveriam zelar e proteger o ambiente e as pessoas (segundo a Constituição Federal), se omitem, e, muitas vezes, são coniventes com situações que privilegiam os interesses econômicos dos empreendimentos, sem levar em conta as questões socioambientais. Locais de nascentes de água, resquícios de Mata Atlântica (“ilhas”), áreas costeiras, vegetação do bioma Caatinga, brejos de altitude, têm sido ameaçados e impactados pelos “negócios do vento”.

Não se pode aceitar que o poder econômico dos grupos empresariais que estão à frente dos “negócios do vento” um total controle das decisões, em nome de prometerem “energia limpa”, emprego e renda. No campo, verifica-se que não são cumpridas as boas práticas socioambientais nem são levadas em conta questões fundamentais relacionadas aos direitos humanos, como a saúde, o bem-estar dos moradores das áreas rurais, e os direitos da natureza, com sua proteção e conservação ambiental, respeitando seus limites.

Não somos contrários à energia eólica nem a outras fontes renováveis de energia, mas é necessária uma maior transparência nas relações que envolvem o arrendamento e a compra da terra, o respeito à legislação vigente, a proteção e conservação ambiental nas fases de implantação dos empreendimentos. Importante não é somente garantir uma maior segurança energética, mas também respeitar o modo de vida das

populações rurais e a saúde ambiental. Pernambuco, assim como outros estados nordestinos, tem dado um péssimo exemplo de como não se deve proceder com relação à utilização das fontes renováveis de energia, chegando, assim, a comprometer as excelentes vantagens intrínsecas dessas fontes energéticas (Sol e vento).

É a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco (Semas) que tem a missão institucional de “assegurar a realização de políticas públicas ambientais e sustentabilidade, defendendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e equânime, promovendo a preservação, conservação, recuperação dos ecossistemas e qualidade de vida para todas as gerações”.

A essa secretaria cabe, entre suas competências, executar as atribuições do Estado relativas ao licenciamento e à fiscalização ambiental. Um dos lamentáveis equívocos cometidos no processo de licenciamento ambiental para complexos eólicos (e também usinas solares) é considerar que as fontes renováveis de energia são “limpas” (https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/576649-energia-eolica-nao-e-limpa) e, assim, de baixo impacto ambiental. Dessa forma, acabam isentando o empreendedor de apresentar avaliações mais pormenorizadas sobre a intensidade e dimensão do impacto no meio ambiente provocado pelo empreendimento. A exigência atual é o Relatório Ambiental Simplificado (RAS) para a implantação de parques eólicos, que é insuficiente para atender aos requisitos dos projetos eólicos.

Pesquisas e estudos realizados nos últimos anos pelas universidades públicas nordestinas (em especial, UFC, UFPE, UFCG, UFBA e UFRN), pelos centros de pesquisas, pelo Observatório da Energia Eólica da UFC, por organizações não governamentais e por dioceses têm apontado vários impactos provocados no meio ambiente e que afetam as pessoas que vivem próximas aos empreendimentos.

Em Pernambuco, no bioma Caatinga, é onde se localizam as pessoas mais atingidas diretamente pelos “negócios do vento”, é onde vivem os agricultores familiares e as populações originárias. Todavia, tais

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impactos têm uma abrangência global. Por exemplo, o desmatamento para instalação dos equipamentos/aerogeradores e para a construção de estradas de acesso afeta o aquecimento global e, assim, todo o planeta.

Recentemente, por sugestão da representação da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco (Fetape) no Conselho Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (Consema-PE), foi criado um Grupo de Trabalho (GT) cujo objetivo é o de avaliar o cenário da geração eólica em Pernambuco, sob o aspecto da conservação ambiental de áreas protegidas, e a proteção das condições de vida dos trabalhadores rurais.

Lamentavelmente, houve um desvirtuamento dos objetivos do GT, transformando as reuniões em espaços para justificar tais empreendimentos sob a ótica econômica, como uma atividade essencial para a economia pernambucana. Sem, ao menos, levar em conta, a proposta original para criação do GT, que foi a de avaliar os impactos socioambientais dos complexos eólicos instalados.

Tal situação na condução do GT, de forma unilateral, ignorando as ponderações para que os aspectos socioambientais fossem levados em conta no licenciamento e na fiscalização dos parques eólicos, motivou o envio de uma carta assinada por membros desse Conselho para o secretário estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, presidente do Consema-PE, exigindo a retomada do objetivo que motivou a criação do GT.

Uma das principais formas de controle ambiental e social dos impactos de empreendimentos é o licenciamento ambiental. Essa obrigatoriedade, com regras e etapas para avaliação dos estudos ambientais, que auxiliam na tomada de decisão acerca da autorização ou não de atividades impactantes, está prevista na Resolução 01/1986 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).

Com relação à postura da presidência do Consema-PE de se negar a ouvir e atender os movimentos sociais, fica evidente que esta atitude revela o lado autoritário, o desprezo pela ciência e a total subserviência a outros interesses que não o do meio ambiente e o de cuidar das pessoas.

Exigimos a abertura de diálogo sobre os impactos socioambientais da instalação de parques eólicos (usinas solares). Exigi-

mos que o poder público exerça seu papel de regular, fiscalizar e punir os excessos cometidos; que a lei seja cumprida. Exigimos respeito ao homem do campo e seus modos de vida. Exigimos políticas públicas que venham responder às demandas dessa população, assim como proteger o bioma Caatinga.

Sem dúvida, exigir o Relatório de Impacto do Meio Ambiente (Rima) e o Estudo do Impacto Ambiental (EIA), para empreendimentos de larga escala com fontes renováveis de energia, é nada mais do que seguir o que a ciência ensina a partir dos fatos revelados ao longo dos últimos 10 anos e o que a legislação determina.

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Heitor Scalambrini Costa é professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.

A Opção pelo Esquecimento

Em geral tem-se falado em Neurologia cognitiva quando aparece como uma anormalidade a dimensão do esquecimento, da perda de memória, do alzeheimer, entre outros sintomas vinculados ao esquecimento e a perda de memória.

Mas o que quero tratar aqui é da preocupação quando se trata de fenômeno coletivo, nas esferas de governo, nas instituições e em escala midiática global. Evitar o medo, ou pior, o pânico. E aqui vale o adágio popular “o pior cego é aquele que não quer ver”, porque dessa forma ele se torna conivente com os males que afligem a sociedade e protege os que oprimem.

No caso, a dimensão ambiental, e mais, a emergência ambiental que vem nos batendo a porta, já desde os anos 1970, que não tem tido uma preocupação a altura por parte dos governantes. Quando pensamos em governos europeus, estes têm uma preocupação nos próprios territórios, muitas vezes invejável, mas em função de práticas coloniais ainda bem vivas, suas multinacionais são amplamente desrespeitosas nas casas alheias.

Este breve artigo tem por objetivo evidenciar os alertas apresentados pela comunidade científica e pela própria ONU, através da realização das COPs anuais, que tem afinado seus instrumentos de medida e aferição do aquecimento global. O mais chocante, além da inércia dos poderes governamentais, é fazer de um fenômeno que está a ameaçar a civilização humana no planeta como se fosse algo facilmente tratado pela ciência. O que é falso, e a discussão teórica sobre o Antropoceno nos diz a respeito: as épocas geológicas foram definidas no século XIX, embora na época não fosse possível prever quanto o desenvolvimento tecnológico nos permitiria voltar no tempo. Especificamente, com a descoberta da datação radiométrica no início do século XX, a história geológica do nosso planeta tornou-se muito mais longa, estendendo-se a 4,5 bilhões de anos atrás. No entanto, continua sendo difícil definir com precisão em que época geológica estamos vivendo hoje; melhor: a resposta não é uma só (Vybarr Cregan-Reid, de Primate Change: How the world we made is remaking us, 2018 Oc-

topus Publishing Ltda).

A primeira resposta, mais tradicional, é que, desde o final da última era glacial, cerca de 11.700 anos atrás, estamos vivendo no Holoceno. Esta época é uma fase relativamente estável e quente da história da Terra, que se seguiu a um período glacial que, como Vybarr Cregan-Reid aponta, durou 100.000 anos. Um dos elementos que precisa ser entendido é que, por Holoceno, entende-se um período de tempo relativamente breve; a era anterior, o Pleistoceno, durou 2,5 milhões de anos. O autor destaca como, em particular, a última glaciação teve significativos efeitos no corpo humano: houve pelo menos vinte ciclos de congelamento e aquecimento e, em média, as temperaturas globais foram cinco graus mais baixas que as atuais. O planeta era mais árido e havia muito menos água na atmosfera, pois a maioria estaria presa nas espessas calotas polares. Era um ambiente difícil para o Homo sapiens e, se não fosse por essas condições, talvez ainda existissem no planeta hoje outras espécies humanas diferentes da nossa.

A segunda resposta possível é que estamos vivendo no Antropoceno (do grego anthropos, “humano” e kainos, “recente” ou “novo”). O termo foi cunhado pelo ganhador do Nobel Paul Jozef Crutzen, químico atmosférico (Paul J. Crutzen, Benvenuti nell’Antropocene. L’uomo ha cambiato il clima, la Terra entra in una nuova era. Sagrate. Mondadori. 2005).

O nome está a um passo do reconhecimento oficial. Os estudiosos que determinam que tempos e nomes devem ser admitidos são os membros da International Union of Geological Sciences (IUGS), fundada em 1961, com o objetivo de iniciar a cooperação internacional no campo da geologia (“A humanidade já ultrapassou os limites da resiliência do Planeta, artigo de José Eustáquio Diniz Alves,” in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 3/10/2018, https:// www.ecodebate.com.br/2018/10/03/a-humanidade-ja-ultrapassou-os-limites-da-resiliencia-do-planeta-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/.)

O peso das atividades antrópicas já ultrapassou os limites da resiliência da Terra,

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como nos diz o demógrafo José Eustaquio Diniz. O crescimento do consumo é apenas um lado da equação. Não se pode ignorar o outro lado da equação que é o crescimento populacional. O déficit ambiental nacional ocorre quando a multiplicação do padrão de consumo (pegada ecológica) pelo volume da população excede a biocapacidade do país. Globalmente o déficit estava em 70% em 2014 e crescendo. O sucesso do progresso humano se deu às custas do retrocesso ambiental.

O principal recado, mais uma vez, do sexto Relatório de Análise (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), teve seu terceiro e último fascículo publicado no início desta semana, 4 de abril. Os dois primeiros blocos (divulgados em agosto de 2021 e fevereiro de 2022) trataram das evidências científicas do aquecimento global, das suas consequências para o clima do planeta e para a espécie humana, e da necessidade urgente de preparação e adaptação a essas mudanças. Já este terceiro fascículo descreve o que é necessário fazer para impedir que a situação piore ainda mais daqui para frente — as chamadas “medidas de mitigação”. E atenção: o cenário não é nada bom (Escobar, 2022 in https://jornal.usp.br/ciencias/emergencia-climatica-solucoes-existem-mas-e-preciso-agir-agora/ acesso em 21/04/2022).

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chegou a classificar o relatório como um “arquivo da vergonha”, elencando todas as “promessas vazias que nos colocam firmemente no caminho para um mundo inabitável”. “Estamos em um caminho rápido para o desastre climático”, sentenciou ele, em um duro discurso no dia 4.

Os números assustam: as emissões globais de gases de efeito estufa (GEEs) na década de 2010 a 2019 foram as maiores de todos os tempos. Ou seja, a espécie humana nunca jogou tanto gás carbônico na atmosfera como agora, apesar de todos os alertas, desastres e acordos climáticos das últimas décadas. A média no período foi de 56 bilhões de toneladas lançados na atmosfera por ano; 9 bilhões a mais por ano do que na década anterior (2000-2009) e bem mais do que em qualquer outro período da história humana.

Ainda mais certeza, pois cerca de dois terços dessas emissões, segundo o relatório, são de dióxido de carbono (CO2) gerado pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) na indústria, principalmente para a geração de energia e transportes. As emissões de CO2 oriundas das chamadas “mudanças de uso do solo e florestas” são 11% do total, enquanto que as de metano (CH4) respondem por 18%, segundo o relatório. É nessas duas últimas categorias que o Brasil dá sua maior contribuição para o aquecimento do planeta, por meio do desmatamento (que libera quantidades enormes de CO2 para a atmosfera) e da agropecuária (que é uma grande fonte de CH4), como mostra o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.

Para que tenhamos uma chance razoável (acima de 50%) de manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC — que é o “limite de segurança” estipulado pela ciência e definido como meta pelo Acordo de Paris — as emissões globais de GEE precisam parar de subir até 2025, no máximo, e depois cair

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43% até 2030, segundo o relatório. Para um limite de 2ºC, essa redução precisa ser de 25%.

“Mais do que qualquer outro relatório lançado (até agora), este aponta a necessidade da urgência de redução de emissões”, disse o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, sobre o tema, organizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O relatório fala que nós precisamos agir já”, completou ele, ressaltando que as mudanças climáticas não são mais uma preocupação do futuro, mas “uma questão do presente”.

Chega de Oblivion. A sociedade Civil mundial tem que se planejar para uma agenda efetiva e bem estruturada, inclusive ampliar suas exigências sobre a ineficácia dos governos.

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Marcos Costa Lima é Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco.

Livro-reportagem, Jornalismo e Contexto

Prefácios, posfácios e agradecimentos: conversando com os leitores

Fonte: Amazon

Tanto para o pesquisador acadêmico quanto para o leitor comum, os prefácios, posfácios, agradecimentos e campos intitulados “Este livro” são formas de conhecer melhor os métodos e as motivações dos jornalistas escritores de livros-reportagem. Esses pré ou pós-textuais das obras complementam o processo de leitura e asseveram o valor da apuração e checagem jornalísticas. No prefácio de “Arrastados”, de Daniela Arbex, que narra os bastidores do rompimento da Barragem de Brumadinho (MG), Pedro Bial (2022, p. 11) define a obra como “livro-monumento”: “Trata-se do duplo papel que cumpre uma das maiores reportagens já realizadas no Brasil: memorial em narrativa, narrativa imemorial, donde monumento”. A definição é certeira para classificar a produção de um livro-reportagem, que, ao contrário do jornalismo cotidiano, debruça-se sobre as problemáticas e acontecimentos após certo tempo que eles transcorreram, quando seus sedimentos se assentaram de alguma forma. Bial também aponta duas questões essenciais em um livro-reportagem: ouvir múltiplas testemu-

nhas e narrar com destreza e emoção. “O livro tem mais de 200 personagens. Aqui está documentado, com precisão de detalhes, o que aconteceu naquele 25 de janeiro de 2019”. E acrescenta: “O leitor sente gosto de terra, vive a angústia das pessoas que foram por ela engolidas e acabaram cuspidas do tsunami de lama” (BIAL, 2022, p. 12). A própria Daniela Arbex explica detalhes de seu processo no posfácio “Brumadinho nunca mais?”. A sensibilidade da repórter para perceber, nos detalhes, formas inusitadas de abordar a tragédia aparece ressaltada no trecho em que Arbex (2022, p. 305) conta de sua surpresa ao verificar desenhos de crianças que perderam familiares em Brumadinho. “Nos desenhos que fizeram tudo foi pintado de marrom. Até conhecidos personagens da TV, como Bob Esponja, mudaram de cor aos olhos infantis”. Logo depois, revela: “A dor simbolizada naqueles desenhos mexeu muito comigo. Aos poucos, fui descobrindo que o medo era um sentimento comum e alcançava não só as crianças, mas principalmente os adultos. As pessoas sentiam medo de tudo, inclusi-

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ve de dar entrevistas”. A transparência para os leitores desse olhar subjetivo da repórter complementa o sentido do livro-reportagem.

Prefácios do passado já tratavam das motivações dos jornalistas escritores

Desde o pioneiro “Os sertões”, de Euclides da Cunha, considerado um híbrido de olhar jornalístico com ensaio literário, a “voz” do profissional já aparecia transparente na apresentação da obra. Filtrando a experiência e cotejando diversos outros saberes, Euclides da Cunha elaborou, com tempo, seu livro Os sertões, diferente do material fugaz, baseado em telegramas, publicado originalmente no jornal “A Província de S. Paulo”, hoje “O Estado de S. Paulo”. No prefácio original, o autor descreve seu propósito: “Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil” (CUNHA, 2010, p.19). O autor acreditava que os sertanejos estavam próximos ao “desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra”. Em seguida, reafirma que o que aconteceu em Canudos foi, “na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo” (CUNHA, 2010, p.20). Ou seja, já desde antes do início da narrativa, Euclides declarava como o texto final estruturado em livro era diferente da cobertura telegráfica publicada no calor da guerra. Paulo Barreto, ou João do Rio, no entanto, é realmente o primeiro jornalista que percebe a importância de perpetuar seu trabalho – espalhado na forma de crônicas-reportagens no jornal carioca Gazeta de Notícias e na revista Kosmos, publicações das primeiras décadas do século XX – no formato livro. As obras mais clássicas são Religiões do Rio (1906), Cinematógrafo (1909), A alma encantadora das ruas (1910), Vida vertiginosa (1911) e Os dias passam (1912). Interessante perceber como o próprio João do Rio explicava aos seus leitores o seu trabalho. Em uma crônica do livro A alma encantadora das ruas, chamada A rua, João do Rio (2007, p. 31) explica o seu método de investigação: “É preciso ter o espírito vagabundo, cheio de

curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes: a arte de flanar”. Lugar de repórter é no olho do furacão da rua, portanto.

Pesquisadora destaca a importância de detalhar o processo jornalístico

Na imprensa cotidiana, com exceção cada vez mais rara da grande reportagem, o processamento das notícias não deixa tempo disponível para uma análise epistemológica mais reflexiva. Os jornalistas precisam de uma noção operativa de objetividade, como apontou Tuchman (1983), para reduzir os riscos colocados pelos prazos de elaboração de notícias dentro da periodicidade, pelas ameaças de processos difamatórios e pelas constantes pressões dos superiores pela obtenção de “furos”, especialmente a apresentação antecipada dos acontecimentos antes dos concorrentes. Já no processo de elaboração do livro-reportagem e também no caso especial das grandes reportagens, com o tempo mais dilatado de que dispõe, o jornalista pode ensaiar uma superação da objetividade como um ritual estratégico, como constata Marocco (2011), apoiada nas concepções de Foucault (1996). Pressionado pelas rotinas produtivas do jornalismo, o repórter de redação tentaria esconder indícios de autoria em seus textos, invocando marcas discursivas de impessoalidade, que, por si, produziriam efeitos de imparcialidade. Buscando apoio na ciência positivista para seu reconhecimento social, esse jornalista teria, segundo Marocco (2011, p.2), abandonado o “discurso de opiniões sobre o cotidiano” por outro, supostamente “neutro”. Porém, Marocco (2011, p.5) enxerga nos livros-reportagem a possibilidade do “comentário”, como um tipo de texto que se ocupa do jornalismo para “dele elaborar outro texto que oferece o desvendamento de certos processos jornalísticos, ou a crítica dos mesmos, em operações de produção de sentidos”. Assim, nessas obras, como na de Zuenir Ventura, o jornalista naturalmente “fará um exercício de interpretação criativa do que é considerado jornalismo”. Adotando uma postura diferenciada e mais liberta de pressões, o autor de livros-reportagem pode superar os manuais de redação e seus

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preceitos e inserir em sua própria narrativa, sem medo, as ponderações e autocríticas sobre as práticas jornalísticas que utiliza para compor sua obra.

Referências

BIAL, Pedro. Prefácio: livro-monumento. In: ARBEX, Daniela. Arrastados. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

CUNHA, Euclides da. Os sertões: v. 1 e 2.

São Paulo: Abril, 2010.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.

São Paulo: Edições Loyola, 1996

MAROCCO, Beatriz. Os “livros de repórteres”, o “comentário” e as práticas jornalísticas. Contracampo, v. 22, p. 116129, 2011. Disponível em: <http://www.contracampo.uff.br/index. php/revista/article/view/86>. Acesso em: 1 jul. 2016.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo, Martin Claret, 2007.

TUCHMAN, Gaye. La producción de lanoticia: Estudio sobre laconstrucción de larealidad. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli S. A., 1983.

Elaborada pelo professor do curso de Jornalismo da UFMA, campus de Imperatriz, e doutor em Comunicação pela UFPE, Alexandre Zarate Maciel, a coluna Prosa Real traz, todos os meses, uma perspectiva dos estudos acadêmicos sobre a área do livro-reportagem e também um olhar sobre o mercado editorial para esse tipo de produto, seus principais autores, títulos e a visão do leitor.

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Você Não Tem Vida Pessoal: Prematuro Fim (de carreira) no Jornalismo

Baixos salários, excesso de trabalho, declínio de independência editorial e falta de perspectivas profissionais: segundo Camarotto (2019), são esses os principais motivos que, pelo menos desde 2009, têm levado diversos/as jornalistas experientes do Diario e da Folha de Pernambuco – dois dos jornais pernambucanos de maior circulação – a migrar para empregos no governo estadual ou municipal (assessoria, relações públicas etc.). Em que pesem as particularidades de cada contexto, os dados relatados são reflexo de um fenômeno que, não sendo completamente novo – com base em questionários aplicados em 31 países (Brasil incluído) ao longo de 15 anos (1996-2011), Willnat, Weaver e Choi (2013, p. 166) já apontaram a tendência de jovens ingressarem na profissão “para ganhar alguma experiência antes de saírem para empregos mais estáveis e lucrativos em outros campos” –, também não apresenta tendência de inversão: dos 181 indivíduos que, em 2019, trabalhando nas principais empresas de jornalismo no Recife, participaram de estudo sobre condições de trabalho e regulação da mídia (CAEIRO, 2022), apenas um em cada três não pensava abandonar a profissão no prazo de três anos; também nesse caso, o motivo mais vezes mencionado foi a baixa remuneração, seguido da não realização profissional e das insuficientes condições de autonomia profissional. Saídas prematuras, voluntárias ou não, de redações de veículos noticiosos estão, assim, diretamente relacionadas aos elevados índices de precariedade laboral que afetam o setor, não raras vezes bem conhecidos daqueles/as que escolhem a profissão – e, quando não, que deles depressa se tornam próximos/as. É, julgo, essa familiarização – uma socialização na precariedade –, como ela é construída (concretizada e, não menos importante, pensada), que também contribui para a reprodução de tal realidade.

Por “socialização na precariedade”, faço referência à aprendizagem sobre o ser e se fazer jornalista (e, consequentemente, jornalismo), processo coordenado por, ao menos, dois elementos: a valorização

do papel social que é atribuído à profissão (de modo geral, o serviço à população em sociedades democráticas) e a normalização da precariedade laboral (constituída – no seio de relações capitalistas orientadas por uma governabilidade neoliberal – como característica, e não exceção, da profissão). Nesse contexto, uma das principais competências que aspirantes à posição de jornalistas aprendem é a disponibilidade constante, não apenas porque a profissão, como outras que estão orientadas para o serviço público, o “exige”, mas porque a entrada no competitivo mercado de trabalho é assumida como bastante difícil, nunca estando a permanência – muitos menos, a progressão – assegurada. Tal adequação à disponibilidade para o trabalho (precário) começa, se não antes, durante a frequência dos cursos de graduação, período em que a procura de realização de estágios tem início desde cedo – tanto porque são tidos como oportunidades para a conquista de experiência, conhecimentos e contatos profissionais, quanto devido à antecipação do prazer pelo trabalho, onde, para além da construção de relações interpessoais positivas, gostos e competências pessoais que tendem a coordenar a escolha da profissão poderão ser colocados em prática e alcançar maior visibilidade. A centralidade do trabalho-profissão na vida daqueles/ as que optarem e conseguirem permanecer nele será uma constante, aspecto que, frequentemente, tem consequências negativas em outras dimensões, como a da saúde e das relações familiares. Para isso, apontam as entrevistas realizadas com alguns/umas dos/as jornalistas que, em 2019, trabalhavam em veículos com sede no Recife (CAEIRO, 2022): no início da carreira, Elis (os nomes de entrevistados/as são fictícios) foi hospitalizada duas vezes com desidratação porque não se “alimentava, não dormia, só trabalhava [...] foram seis meses assim... mal, por conta dessa dedicação extrema”; outro exemplo é Adriano, que, relembrando um longo período em que, mensalmente, tinha apenas um fim de semana livre para a família, permanecendo na redação, em média, dez horas diárias, questiona:

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quando volta [para casa], você acha que consegue fazer mais alguma coisa? Você está tremendo, estressado, morto. Você toma banho, come alguma coisa e só quer... aí não pode nem dormir, porque você precisa ler, precisa se informar, precisa ver todos os telejornais da noite para amanhã às cinco da manhã estar acordado [risos] de novo no batente. Você não tem vida pessoal. Não tem, esqueça.

Entretanto, apesar dos insatisfatórios ganhos materiais e das influências negativas na qualidade de vida, somente seis dos/ as 115 jornalistas no Recife que conjecturavam abandonar a profissão indicaram como motivo o excesso de tempo dedicado ao trabalho, aspecto que pode estar relacionado ao fato de as longas jornadas – durante e após o horário de expediente – nem sempre serem consideradas excessivas, seja porque “o” jornalista, figura profissional idealmente orientada pela constante produção de notícias (em que são invisibilizados outros marcadores e papéis sociais, como os de gênero e parentalidade), não tem períodos de descanso definidos, seja porque os/as jornalistas, trabalhadores/as precarizados/as, antecipam a possibilidade de compensadores ganhos em médio-longo prazo (por exemplo, progressão na carreira) se apresentarem elevado envolvimento com a profissão (CAEIRO, 2022). Tal orientação ajuda a compreender (mas não explica por completo) porque elevados índices de insatisfação laboral e frequentes descumprimentos a direitos trabalhistas (que podem ser comprovados, por exemplo, através dos comunicados emitidos pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Pernambuco nos últimos anos) não reverberam em majoritárias taxas de sindicalização no país. Para Moreira (2015, p. 111), o que poderia ser compreendido como algo paradoxal é, na verdade, “resultado de uma opção consciente, baseada numa visão identitária que coloca o jornalista como um intelectual, distante, portanto, da realidade plena de dificuldades e de lutas que compõem o universo das demais categorias profissionais”.

Ainda que concorde com a hipótese

de que o processo histórico da construção da identidade jornalística, mais fortemente ancorada na noção de “profissional” do que de “trabalhador/a”, seja importante variável a ter em conta, julgo que ela não explica por completo o aparente paradoxo: a ela, para além de outras eventuais (como sejam as relações entre instituições – sindicatos, universidades etc. – e indivíduos – jornalistas –, influenciadas por transformações sociais mais abrangentes – a exemplo da reforma trabalhista que, desde o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu direitos e organizações representativas da sociedade civil), é importante considerar as condições materiais que alimentam o ciclo de precarização e individualismo, perceptível nas falas de dois outros jornalistas entrevistados no já citado estudo (CAEIRO, 2022):

existe muito conformismo... todo mundo precisa pagar as suas contas, a gente é trabalhador também... a gente é explorado também. E... somos o elo mais fraco da corrente... temos muito medo de... se envolver em sindicalismo. Lá na redação, tem um sindicalista. A TV não pode demiti-lo. Mas a TV tirou ele do cargo que tinha... e deixou ele na redação, à deriva. Quem quer isso? Pior do que isso, não sei se fica, era melhor pedir demissão. Mas o cara tem família (EMANUEL). hoje, infelizmente, a grande preocupação do jornalista é: manter o emprego... e ter sanidade [risos] para conseguir estar nesse emprego, sabe? Você tem pouco tempo para cuidar de si... e menos tempo ainda para se engajar em causas de melhoria da categoria (ELAINE).

Ponto importante: a precariedade no jornalismo – como em outros campos – não afeta apenas aqueles/as que desenvolvem, ou prematuramente abandonam, esse trabalho-profissão. Demissões, juvenilização, rebaixamento salarial, contratos precários, densificação do trabalho, elevados níveis de adoecimento físico e mental, bem como incertezas sobre o futuro, são aspectos que têm influência direta sobre a autono-

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mia profissional e qualidade das produções jornalísticas, fundamentais, como tantas vezes já demonstrado na história do país, ao desenvolvimento e aprimoramento (ou o contrário) de uma sociedade democrática. Nesse trajeto, nunca finalizado, resta a abertura para a crítica e o diálogo, a construção de alianças solidárias e identificação de afastamentos necessários, a recusa de precárias soluções individuais para problemas coletivos que, ainda na atualidade, são alimentados pela pretensa inevitabilidade de um destino sem histórias ou sujeitos.

Referências

CAEIRO, Rui. Relações que moldam o campo jornalístico: estudo com foco nas percepções de jornalistas sobre condições de trabalho e regulação da mídia. Tese de doutorado. Recife e Covilhã: doutoramento em Comunicação. Universidade Federal de Pernambuco e Universidade da Beira Interior, 2022, 361f.

CAMAROTTO, Murillo. Local media in Brazil: draining the newsrooms in the country’s poorest region. Oxford: Reuters Institute for the study of Journalism, 2019.

MOREIRA, Manoel. Do partidarismo à informação: as mudanças estruturais no jornalismo brasileiro e a formação dos impérios midiáticos. Tese de doutorado.

Brasília: doutoramento em Comunicação. Universidade de Brasília, 2015, 214f. WILLNAT, Lars; WEAVER, David; CHOI, Jihyang. The global journalist in the twenty-first century, a cross-national study of journalistic competencies. Journalism Practice, v.7, n.2, 2013, p.163-183.

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Rui Miguel Pereira Caeiro é Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em regime de cotutela com a Universidade da Beira Interior/Portugal.
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Urge Repensar a Formação Profissional do Jornalista

Lílian Márcia Chein Féres

Notícia, segundo a definição do Dicionário de Comunicação (RABAÇA; BARBOSA, 1987), é o relato de fatos ou acontecimentos atuais, de interesse ou importância para a comunidade, e capaz de ser compreendido pelo público. Celso Kelly acrescenta que “o que é matéria-prima do jornalista não é palavra, é notícia: esta é a matéria-prima com que se constrói o jornal”. Para Fraser Bond, “a notícia não é um acontecimento, ainda que assombroso, mas a narração desse acontecimento”.

Já os editores da revista Colliers Weekly, definem notícia:

como tudo o que o público necessita saber; tudo aquilo que o público deseja falar; quanto mais comentário suscite, maior é o seu valor; é a informação exata e oportuna dos acontecimentos, descobrimentos, opiniões e assuntos de todas as categorias que interessam aos leitores; são os fatos essenciais de tudo o que aconteceu, acontecimento ou ideia, que têm interesse humano. A notícia se funda, pois, no público, e deve-se avaliar seu interesse apreciando nela o que interessa ao público. A essência, pois, da notícia, está determinada pelo interesse público. (RABAÇA; BARBOSA, 1987, p. 7)

Ampliando a discussão para o âmbito da informação em geral, afinal, o que é informação? Notícia é informação. Recorrendo à definição de informação, no Dicionário de Comunicação encontramos que é o ato ou efeito de emitir ou de receber mensagens. Para Wiener, “a informação está sempre ligada a uma função”. Ela só é retida por um organismo se lhe for significativa. Portanto, os homens e os animais – sim, também os animais – só absorvem a informação de que necessitam e/ou que lhes seja inteligível.

Acrescentemos que informação é a medida de uma possibilidade de escolha, na seleção de uma mensagem. Tudo o que reduz a incerteza, eliminando certas possibilidades, é dotado de informação. Assim, a

informação de um evento depende de sua probabilidade e não de si mesma. Conforme o próprio Umberto Eco afirmou, “a informação não é tanto o que é dito, mas o que pode ser dito”:

uma mensagem computável num bit (a escolha entre duas possibilidades equiprováveis) e uma computável em 3 bits (a escolha entre oito possibilidades equiprováveis) distinguem-se pelo número maior de escolhas possíveis que a segunda situação apresentava – na fonte – em relação à primeira. No segundo caso, a mensagem informa mais, porque – na fonte – havia mais incerteza acerca da escolha que iria ser feita. A informação representa a liberdade de escolha que se tem ao construir uma mensagem, e deve, portanto, ser considerada como uma propriedade estatística da nascente das mensagens. Em outras palavras, a informação é aquele valor de equiprobabilidade entre muitos elementos combináveis, valor esse tanto maior quanto mais numerosas forem as possibilidades de escolha. (RABAÇA; BARBOSA, 1987, p. 7)

No que concerne à informática, informação é uma coleção de fatos ou outros dados fornecidos à máquina com a finalidade de se objetivar um processamento (RABAÇA; BARBOSA, 1987, p. 4). Porém, aqui, as informações são sempre codificadas para uma linguagem que a máquina consegue compreender para que possa executar as tarefas solicitadas pelo homem – a linguagem de máquina. Esta, binária, compõe o software (construídos a partir de algoritmos) com o objetivo de capacitar o computador a identificar a informação através de sua restrita e elementar (mas fundamental) capacidade de distinguir entre dois estados. Como assim?! Algo está imantado num sentido ou no sentido oposto. A uma destas opções, o computador associa o valor 1, e à outra, o valor 0. Por meio de uma

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combinação de bits, através de um código, evidentemente, pode-se chegar a representações variadas. Num código desses, as letras e símbolos especiais poderão ter, também, suas representações e características individuais. Vale salientar que os elementos necessários ao processamento das informações estão sistematicamente organizados na memória, sendo que quanto maior ela for maior será sua capacidade de armazenar informações.

Consoante nos mostrou Umberto Eco, temos informação onde há opção de escolha. Então, entremos no mundo das tecnologias, especificamente na internet, para encontrarmos a informação em seu sentido mais latu. Uma informação, hoje “controlada” e “pautada” pelos algoritmos – sim, àqueles que antes serviam à construção lógica dos mais variados software.

Onde isso nos leva? Nesta sociedade da (des)informação, alicerçada nos algoritmos e na “fácil” captação de informação, urge repensar a formação do profissional de jornalismo para então, sim, reencontrar o modelo de negócio, seja ele qual for, para os jornais e demais meios de comunicação que “sobrevivem” do jornalismo.

O jornalista precisa passar por uma radical mudança no que tange às suas técnicas de apuração e redação dos fatos. Apesar da tecnologia ser ligada à tecnicidade, ao abandonar o lado humano dos acontecimentos, é possível resgatar o valor humano nesta sociedade tão tecnocrática.

A virada que ocorre na era tecnológica é radical, ao instalar-se uma grande indústria de produção e divulgação de informações, que já não têm mais nada a ver com aquela oferta multivariada de pequenos jornais. Não é apenas uma mudança no volume da produção jornalística. Ocorre aqui uma alteração na qualidade de produto cultural, a saber, o que se tem aqui é uma indústria cujo resultado é a desinformação provocada pelo excesso. A marca da imprensa, na sociedade tecnológica, é a da produção em alta escala de informações, repercutidas em todos os jornais, rádios, estações de televisão, no

país e no exterior, de tal maneira que esse volume, essa intensidade provocam a redundância, que leva ao desinteresse, à apatia, `a desinformação, em última análise. (MARCONDES FILHO, 1993, p. 124-125)

Para Marcondes, a partir de um certo ponto, o processo informativo, devido ao excesso, passa a girar em alta escala repetidamente, viciosamente, sem produzir mais nenhum efeito, tornando-se ritualístico, circular. Ocorre um processo de negação do caráter informativo da informação e, não por acaso, atualmente a primeira pergunta que surge ao ler uma notícia: “é fake news?”, dando margem à criação de uma suposta nova área denominada fact checking. Mas é pressuposto que esta verificação de factos anteceda a publicação da notícia e não, como atualmente, que sucede.

O excesso, a embriaguez com a coisa se esvaziam. Assim acontece com uma série de processos sociais, assim acontece com o jornalismo na sociedade tecnológica. Atuar na imprensa significa lubrificar regularmente esta máquina para a produção do mesmo todos os dias, apesar da aparente novidade ou necessidade de o jornalismo trazer sempre fatos novos. (MARCONDES FILHO, 1993, p. 126)

A missão do jornalista não pode ser tão reducionista e técnica ao ponto de se restringir à mera coleta e transcrição de dados. Com o apoio das novas tecnologias, o trabalho jornalístico deverá ir além. Para Cremilda Medina, o jornalista precisa ter uma postura aberta à construção de categorias de análise, emersas do objeto de leitura e da intimidade com ele.

Se os jornalistas montassem um projeto de pesquisa de linguagem e estudassem os escritores contemporâneos bem como os clássicos, seriam narradores mais eficientes e expressivos. A partir da leitura cultural da literatura, assim como a partir da leitura cultural das vivências de

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JORNALISMO E CIDADANIA |

reportagem, os mediadores da informação coletiva, poderiam incorporar as seguintes competências: a) percepção e observação do real disciplinadas para a narrativa da complexidade, neutralizando o comodismo simplificado das fórmulas de trabalho (do tipo responder esquematicamente ao quem, o quê, onde, quando, como e por que); b) enriquecimento do repertório de informações, conceitos e situações socioculturais, a fim de se operacionalizar a interpretação e a inter-relação dos dados; c) armazenamento de opções para colocá-las em prática no discurso da ruptura: do monólogo do poder ao triálogo inter-regulador da mediação social; da palavra burocrática à palavra reveladora; da descrição pretensamente objetiva dos fatos à narração viva da cena social; do narrador autocrático ao narrador mediador e mutante, sutil e discreto, democrático e polifônico; da retórica pseudo referencial à expressão sintético-analítica do fato social. (MEDINA, s.d.)

Na sociedade telemática ou sociedade da informação (pós-industrial), mais do que na industrial, faz-se necessário o jornalista reconhecer que seu papel de colher informações e declarações no real imediato não se restringe à objetivação da entrevista, mas principalmente à subjetivação da interação humana ali representada. Para MEDINA: “se o mediador procura vozes pluralistas – dos anônimos oscilantes, aos portadores do discurso do poder e àqueles críticos, que lhe fazem oposição – e as faz representar nas suas reportagens, processa-se, pela mediação do discurso do jornalismo, a comunicação trialética: emissor de mensagens, mediação social e recepção, que se interagem alimentadas pelo tônus participativo”. Esta comunicação urge ser posta em prática, antes do processo de degenerescência total de uma sociedade que, caminha a passos largos, para a falta de diálogo (comunicação e entendimento), onde tudo se revolve pelo “berro” esquizofrênico.

Referências

CAMARÃO, Paulo César Bhering. Glossário de Informática. Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos Editora, 1989.

MARCONDES FILHO, Ciro. Jornalismo fin-de-siècle. São Paulo. Scritta Editorial, 1993.

MEDINA, Cremilda de Araújo. Povo e personagem. São Paulo, USP, tese de livre-docência.

RABAÇA, Carlos Alberto; BARBOSA, Gustavo. Dicionário de comunicação. São Paulo, Editora Ática, 1987.

Lílian Márcia Chein Féres é Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, bacharel em Comunicação Social pela FACOM/UFJF, membro do LabCom da Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, doutoranda em Ciências da Comunicação pela UBI/Portugal e empresária (www.parakalo.pt).

31 Revista Eletrônica do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade - PPGCOM/UFPE |
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