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Por uma maior visibilidade da literatura indígena

Por uma maior visibilidade da literatura indígena

Mônica de Lourdes Neves Santana

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Todo brasileiro, mesmo o alvo de cabelo louro, Traz na alma, quando não na alma e no corpo (...) A sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro ( GILBERTO FREIRE - Casa Grande & Senzala)

Aliteratura indígena brasileira a partir dos anos 90 apresenta-se como um dos fenômenos político-culturais de relevância na esfera pública, inserida no campo do ativismo, no engajamento de minorias marginalizadas e invisíveis ao longo da história (ROCHA, 2021).

Embora a produção no Brasil esteja em crescimento com autores reconhecidos de várias etnias e publicações das mais diversas, recebendo premiações pela qualidade de suas obras, observa-se que tal circulação ainda é reduzida se compararmos com autores de outros países.

O que se sabe é que os índios lutam por maior visibilidade. Vejamos a instauração da lei nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008) que obriga a inclusão da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo oficial da rede de ensino. De fato, um grande passo alcançado, pois abre portas para uma revisão da história única contada pelos colonizadores europeus.

Neste sentido, a produção textual indígena ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente da narrativa oficial. Como afirma Peres (2018), é através da escrita indígena que será possível a denúncia da exclusão física como a demarcação de terras, racismo, resistência e luta. Sem falar que esse tipo de literatura divulga outros mundos, culturas, tradições pela voz do próprio indígena. Assim, somos convidados a ver os índios sem as lentes eurocêntricas.

Acato a ideia de que, com a visibilidade da literatura indígena, os escritores farão a representação das várias etnias, um número que hoje é de 206 povos. Cada um deles apresentando suas particularidades e suas próprias tradições, funcionando como ferramenta de afirmação de identidade na corrente literária indígena. Felizmente, neste tipo de produção, os indígenas deixam de ser o outro objeto de uso colonial, mas um sujeito que tem voz amplificada e se impõe como nação indígena brasileira (ALMEIDA, 2019).

Peres (2018) declara que o índio foi representado de forma negativa desde nossa colonização e refletida em um imaginário que perdura até hoje. A verdade é que não se pode mais pensar em um indígena da colonização do Brasil que nos foi ensinada pelos livros didáticos “goela a baixo”. A ‘presença’ dessa categoria de sujeito é assinalada por exclusões que têm conotações na dupla via: colonialismo e colonialidade. Além de encontrar resíduo, ainda, no antigo modelo colonial, o indígena precisa reagir às atuais concepções de poder exercidas no âmbito da colonialidade (PINTO; LIMA, 2018).

Os índios devem ser pensados e inseridos em nossa sociedade como formadores da nação brasileira, tendo em mente que fazem parte de uma cultura com sua singularidade. Apresentam uma cultura rica, histórica e que deve ser preservada. Uma cultura considerada um livro escrito há gerações de forma oral através do contador de histórias, o portador do conhecimento que tinha o objetivo de transmitir às novas gerações o legado cultural dos seus ancestrais (KAMBEBA, 2018).

O indígena brasileiro usou, a princípio, a oralidade, pelo desenho em pedras e em seus artefatos como vasilhas

de cerâmica e agora ele faz uso das tecnologias. Eis que surge a literatura com contornos ancestrais para a perpetuação e como mecanismo de que nós, os não indígenas, conheçamos sua riqueza cultural.

Vale ressaltar o questionamento de Sá (2012), ao observar que, apesar da literatura brasileira fazer uso da intertextualidade como a literatura indígena, muito pouco se fez pela causa indígena.

Acredito ser mais que necessário uma desconstrução dos estereótipos consolidados pelo mundo ocidental. Por falar em desconstrução, nos apropriamos de Jacques Derrida ao afirmar que a produção literária indígena assola o cânone literário mostrando seu lugar ao sol e no mundo.

E falando em lugar no mundo, me recordo da obra Meu lugar no mundo (2005), escrito pela índia Sulami Katy, nascida em 1978 em uma aldeia na Baía da Traição, no litoral da Paraíba. Ela narra duas viagens que precisou fazer. Na primeira, ela deixou a aldeia e foi para Campina Grande estudar. “Passei a morar ali com minha mãe. Mas não podia ficar longe de meu povo. Por isso, nos fins de semana e nas férias sempre voltava para eles” ( KATY, 2005, p. 33). Sulami sentiu na pele as dificuldades de assimilação na escola pelos não-índios: “sofria quando riam dos meus brincos e roupas” (KATY, 2005, p. 35).

Na segunda viagem, a jovem potiguara precisou ir a São Paulo convidada pelo Daniel Munduruku para divulgar a cultura indígena. Eis que a obra infringe os murros, as normas literárias do lugar de pertencimento de fala quando ela conquista um lugar que antes lhe era negado. Sulami trabalha com a memória/ arquivo como ferramenta para reafirmar o papel do indígena e sua tradição, possibilitando sentidos e sendo transmitida de geração em geração. Dentro dessa necessidade de visibilidade existem outros nomes. Vejamos alguns: Quem é Daniel Munduruku? Nascido em Belém, tem licenciatura em História e Psicologia pela USP. Autor indígena, professor, xamã da tribo Yanomami, porta voz dos povos isolados na floresta do Amazonas, um dos responsáveis pela demarcação do território Yanomami em 1992 e quem mais publicou dentro da literatura infantil. Totalizando cerca de 40 livros, suas sobras ganharam prêmios e foram traduzidas no exterior. Sua tese O Caráter Educativo do Movimento Indígena Brasileiro 1970- 1990, escrita com um estilo epistolar, tem como objeto de estudo o Movimento Indígena em que a história da sociedade indígena no Brasil está vinculada ao processo de colonização da visão eurocêntrica, trabalho este pouco reconhecido.

E Davi Kopenawa? Juntamente com Bruce Albert escreveu A queda do céu- palavras de um xamã yanomami, conta a vida do xamã mais conhecido no mundo. Relata a rotina, a cultura, as palavras de alerta dos Yanomami sobre a destruição das florestas seguido de nossa morte, e as experiências do contato com o homem branco. Kopenawa é intitulado porta voz dos povos da Amazônia em resistência às reincidentes invasões coloniais através dos garimpos, das grande e poderosas mineradoras e hidrelétricas. Uma obra rica com quase 800 páginas está disponível a todos que desejem aprender sobre os povos indígenas.

Temos o indígena Ailton Alves Lacerda Krenak da tribo crenaque. Mineiro, líder indígena, ambientalista, filósofo, professor Honoris Causa (2016) e escritor. Eleito o intelectual do ano, é uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro de reconhecimento internacional, despertando o interesse do grande público em suas obras: Ideias para adiar o fim do mundo, lançado em 2019, O amanhã não está à venda (2020) e A vida não é útil (2020). Com ideias anticapitalistas, Krenak superou 60 mil exemplares vendidos. Seguindo seus ancestrais, ele se expressa de for-

ma oral e posteriormente em textos escritos. Dizem ainda que Krenak foca no “certo é certo”. E finalmente Auritha Tabajara de 40 anos, cearense, curandeira, neta de uma das maiores contadoras de histórias do povo Tabajara. Seguiu seus passos e mantém o conhecimento de sua tribo levando as histórias para as salas de aula, apesar do preconceito existente no próprio professor. É a primeira cordelista indígena do Brasil. Com nove anos rascunhou a própria história em cordel. Em uma tarde concluiu o texto e mostrou a sua avó, considerada a biblioteca viva na tribo (SOUZA, 2021).

No livro Magistério Indígena em verso e Poesia (2010), Auritha escreveu o relato em cordel sobre as aulas no magistério e hoje seu material foi adotado pela Secretaria de Educação do Estado do Ceará nas escolas públicas. De lá par cá, Auritha vem buscando novas cordelistas entre as mulheres da tribo. Existem outros indígenas a serem valorizados como Graça Graúna e Cristino Wapichana.

Em uma breve interpretação pós-colonial, podemos afirmar que a literatura indígena realiza um discurso, uma releitura das desigualdades valorizando os saberes e as vozes dos periféricos. Trata-se de trabalhar a questão da independência, da democracia, do reconhecimento dos direitos dos subalternos e principalmente da luta por identidade. Torna-se, assim, mais do que afirmação de identidade, torna-se uma forma de preservar conhecimentos e de (re)existência.

No entanto, é necessário precaução, pois existe a tentativa de enquadrar a literatura indígena no modelo ocidental, o que pode ser uma armadilha ou um apagamento de expressões artísticas dos povos nativos.

Referências

ALMEIDA, Clara. Literatura indígena brasileira: origens, desenvolvimento e importância. Disponível em: http://www.multirio.rj.gov.br/ index.php/leia/reportagens-artigos/reportagens/15026-literatura-ind%C3%ADgena-brasileira-origens,-desenvolvimento-e-import%C3%A2ncia. Acesso em: 25 de setembro de 2021.

BRASIL. Lei nº 11.645. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 2008.

DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura: uma entrevista com Jcques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

KAMBEBA, Márcia Wayna. Literatura indígena: da oralidade à memória escrita. Literatura Indígena Brasileira contemporânea. Criação, Crítica e Recepção. Dorrico et al (orgs). Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

KATY, Sulami. Meu lugar no mundo. 1.ed. São Paulo: Ática, 2005. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu- palavras de um xamã. 1 ed. Companhia das Letras. 2015.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo. 2 ed. Companhia das letras.2020.

____________. A vida não é útil. 1 ed. Companhia das letras.2020.

_____________. O amanhã não está à venda. Companhia das letras. 2020.

MUNDURUKU, Davi. O Caráter Educativo do Movimento Indígena Brasileiro 1970- 1990.

PERES, Julie Stefane Dorrico. A leitura da literatura indígena: para uma cartografia contemporânea. Revista Igarapé, Porto Velho ( RO), v.5, n.2, p. 107- 137, 2018.

PINTO, Milena Costa; LIMA, Elizabeh Gonzaga. Escrituras indígenas como espaço decolonial: atravessamentos e ancoragens em metade cara, metade máscara de Eliana Potiguara.Miguilim. Revista eletrônica do netlli. Vol.7 numero 3, sete-dez. 2018.

ROCHA, Wesley H. A. MEMÓRIAS DE ÍNDIA: UMA LEITURA DA LITERATURA INDÍGENA DE SULAMI KATY. Revista de Letras Norte@mentos. Estudos

Literários. Sinop., v. 14, n.35, p 120-129, jan/ jun.2021.

SÁ, Lúcia. Literatura da floresta: textos amazônicos e cultura latino- americana. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2012.

SOUZA, Roberta. Diário do Nordeste. Conheça a cearense Auritha Tabajara, primeira mulher indígena a publicar livros em cordel no Brasil. 2021. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/conheca-a-cearense-auritha-tabajara-primeira-mulher-indigena-a-publicar-livros-em-cordel-no-brasil-1.3063460

TABAJARA, Auritha. Magistério Indígena em verso e Poesia. São Paulo. 2010.

Mônica de Lourdes Neves Santana é pós-doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.