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Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo

Do paradigma positivista às abordagens marxistas no jornalismo

Marya Edwarda Lapenda

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Apesar de teoricamente superado, o paradigma positivista da objetividade jornalística persiste na formação dos profissionais que se aferram ao princípio (ou método) como um camponês mediterrânio com seu colar de alho à volta do pescoço para afastar o mal, conforme a metáfora utilizada por Gaye Tuchman (2016). O mal, no caso do jornalismo, seriam as críticas e a descredibilização que são contrapostas com o argumento jornalístico de estar sendo “objetivo” no seu trabalho. A reivindicação de objetividade por meio do uso de estratégias é questionada pela socióloga norte-americana. Por exemplo, a apresentação de uma ou mais versão dos fatos não pressupõe a objetividade, já que esta significa uma “prioridade aos objetos externos ao pensamento do sujeito” e as diversas versões disputam uma pretensão de verdade subjetiva. Enquanto a apresentação de provas auxiliares, outra estratégia que parte da premissa de que “os fatos falam por si”, nega a própria construção social da realidade. Além disso, a construção da notícia pelo lead - que reivindica uma objetividade metodológica - é uma estratégia que ignora o processo de escolha do profissional na técnica da pirâmide invertida (TUCHMAN, 2016). Na verdade, como bem explicita Bakhtin (2002), o signo (que é a unidade de significação) reflete a realidade e suas transformações sociais, configurando as palavras como a materialização dessas mudanças, sendo “tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios” (BAKHTIN, 2002, p. 40). Portanto, a objetividade jornalística carece de uma fundamentação absoluta, porque omite o fato de que qualquer ato comunicativo está inserido em um contexto social, político e cultural. Warren Breed (2016) reforça que o princípio positivista esconde a interferência dos interesses empresariais na produção noticiosa e disfarça a onipresença da orientação política da empresa. A objetividade faz parte, pois, da ideologia do profissionalismo (SOLOSKI, 2016). Ela levanta conflitos entre jornalistas e dirigentes das organizações, quando os primeiros se pautam pelo ideal de serviço público a favor da pluralidade de opiniões, fazendo da atividade do jornalismo o lugar de mediação e articulação do conflito, enquanto os segundos perseguem os interesses ideológicos e corporativos do grupos das elites de que fazem parte, mesmo que, na visibilidade do espaço público, assegurem veementemente seu compromisso com a autocompreensão normativa que a sociedade cobra dos veículos jornalísticos, ou seja, que se orientem pelo interesse coletivo e o bem comum.

O jornalismo, por constituir uma narrativa, essencialmente, construída “tecendo a teia da intriga” (MOTTA, GUAZINA, 2017, p. 132), está sempre envolvido numa atividade conflituosa, em que visões de mundo entram em disputa pela conquista do espaço público. Contudo, o jornalismo também não pode ser sempre reduzido a uma prática manipulatória a favor da ideologia dominante. Neste sentido, a perspectiva marxista-estruturalista incorre, por influência de uma visão mecanicista e economicista, no equívoco de atribur aos meios de comunicação a única função de reproduzir os interesses da classe dominante, não contemplando, mesmo que eventualmente em situações de crise, a possibilidade de o jornalismo contribuir no processo de mudança e emancipação social. Portanto, o jornalismo não é - como pretende o positivismo - um espelho da realidade, nem mesmo uma ferramenta submetida totalmente aos donos do capital – ideia a que se sujeitam as noções marxistas economicistas capitulando diante de uma pretensa onipotência da ideologia burguesa-capitalista.

Na visão althusseriana, os meios de comunicação são aparelhos ideológicos do Estado, cujo papel primordial é perpetuar as relações dominantes de poder por meio da ideologia (ALTHUSSER, 1970). No que se convencionou chamar de “marxismo economicista” (que não se confunde com o pensamento do próprio Marx) acredita-se que a superestrutura - sistema político, intelectual, moral, filosófico -, dentro da qual está o jornalismo, é sempre determinada pelo sistema econômico e pelas condições de produção - infraestrutura. Sendo assim,

os jornalistas seriam profissionais reduzidos à função manipulatória à serviço do capital, sem nenhuma margem de resistência ou autonomia, mesmo que relativa. Pois, no marxismo economicista, existe uma condição pré-determinada e independente da vontade do sujeito, que não pode ser controlada, apenas compreendida (WILLIAMS, 1979).

No entanto, se, conforme Motta (2017), o jornalismo é uma experimentação da realidade em movimento, dinâmica e sujeita a transformações de sentido, então ele é mais que mero instrumento de manipulação, mas um mediador e até mesmo participante ativo na disputa simbólica das classes hegemônicas e contra-hegemônicas. Se toda mobilização social se dá à nível da linguagem, o jornalismo - e o jornalista - é uma ferramenta essencial de estabelecimento de novas formas sociais de vida. Se constituindo, assim, como uma atividade de compartilhamento intersubjetivo de significados, que estabelece configurações de mundo provisórias que, após novas tensões e conflitos, são substituídas por outras configurações.

O jornalismo e a comunicação midiática são instâncias de estabelecimento de consensos intersubjetivos. O agir comunicativo, na terminologia habermasiana, valida pretensões de verdade que são reconhecidas pelos sujeitos e servem de base para o agir comum. As estruturas normativas - nas quais se inclui o jornalismo - não obedecem ao desenvolvimento do processo de produção; possuem uma autonomia, uma “história interna” (HABERMAS, 1983). Apesar de coações e distorções a favor da classe dominante serem frequentes, existem possibilidades de mudanças sociais efetivas por via comunicativa.

A autoridade do público e a deontologia jornalística, por exemplo, são fatores de pressão externa e interna à atividade dentro das empresas de comunicação. O jornalismo, segundo o modelo pragmático de Manuel Chaparro (1993), sofre interferência de atores sociais de diversas esferas, abertas em três polos de interação: a sociedade, que normatiza princípios, costumes, razões éticas e morais; a atualidade, representada pelo que acontece e por aquilo que as pessoas querem dizer e saber; e a recepção ativa, formada por expectativas e perspectivas do outro (incluindo as expectativas do público em relação ao cumprimento da função social e ética do jornalismo na sociedade). Em suma, a intersubjetividade faz do jornalismo uma atividade em processo constante de negociação de interesses. As transformações sociais, os progressos, as mudanças nas formas de funcionamento da sociedade acompanham, portanto, mudanças que se dão a nível comunicativo. A teoria do agir comunicativo de Habermas eleva a comunicação - e inserida nela, a atividade jornalística - a um patamar privilegiado na perspectiva dialética materialista histórica da realidade. No entanto, a defesa de uma perspectiva marxista da história tendo como eixo a comunicação não significa um abandono da ênfase na reprodução material da vida. “A transição de um paradigma ligado à produção para um paradigma ligado à comunicação, que advogo, significa naturalmente que a teoria crítica da sociedade não precisa se fiar mais nos conteúdos normativos do modelo expressivista da alienação e reapropriação de forças essenciais” (HABERMAS, 1987, p. 94) Preferimos, ao rejeitar um determinismo exagerado, acreditar no jornalismo como o lugar das contradições, assim como Raymond Williams (1979) que reconhece os limites e pressões exercidos por uma “determinação” que foge do controle do sujeito - no caso, o jornalista, que não trabalha em liberdade absoluta nos meios de comunicação comerciais -, mas que defende a própria “infraestrutura” como o âmbito das relações em movimento, contraditórias e dinâmicas. A “superestrutura” não seria, assim, um conteúdo (apenas) refletido, reproduzido e dependente dessa instância determinista. Assim corrobora Habermas (1987), ao defender que o materialismo enquanto abordagem teórica deve explicar a formação social particular e entendê-la como transitória:

Entendi ‘materialismo’ no sentido marxista como uma abordagem teórica que não simplesmente afirma a dependência da superestrutura em relação à base, do mundo da vida em relação aos imperativos do processo de acumulação, como uma constante ontológica, mas ao mesmo tempo a explica e denuncia como função latente de uma formação social particular e historicamente transitória (HABERMAS, 1987, p. 94).

A retrospectiva otimista que Habermas (1987, p. 99) faz em relação aos últimos 200 anos de história da Europa e da América, “apesar de todas as catástrofes”, identificando avanços no processo civilizatório por conta dos “movimentos de libertação nacional, (...) nos movimentos de trabalhadores, no atual feminismo, nas revoltas culturais, nas formas de resistência ecológica ou pacifista”, não se pode esquecer, a despeito dos prejuízos causados à democracia deliberativa pela comunicação sistematicamente distorcida, que o jornalismo tem participado neste processo com uma contribuição significativa para conquista de mudança social e emancipação das estigmatizações e repressões impostas pela estrutura de poder.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

Referências

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume, 2002

BREED, Warren. Controle social na redação: Uma análise funcional. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

CHAPARRO, Manuel. Pragmática do jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 1994.

HABERMAS, Jurgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.

___________. Um Perfil Filosófico-Político: Entrevista com Jurgen Habermas. São Paulo: Novos Estudos CEBRAP, nº 18, setembro de 1987.

MOTTA, Luiz Gonzaga. Narrativas jornalísticas e conhecimento de mundo: representação, apresentação ou experimentação da realidade? In: PEREIRA, Fábio; MOURA, Dione; ADGHIRNI, Zélia (Orgs). Jornalismo e Sociedade: Teorias e Metodologias. Florianópolis: Insular, 2017.

___________; GUAZINA, Liziane. O conflito como categoria estruturante da narrativa política: o caso do Jornal Nacional. Brazilian Journalism Research, volume 6, número 1, 2010, Sociedade Brasileira de Pesquisa rm Jonalismo (SBPJor). SOLOSKI, John. O Jornalista e o profissionalismo: alguns constrangimentos no trabalho. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

TUCHMAN, Gaye. A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas. In: TRAQUINA, Nelson. (Org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Florianópolis: Insular, 2016.

Marya Edwarda Lapenda é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM/UFPE).