Revista Educação - Setembro 2022 - Edição 288

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Novo Enem

Inep falha e atrasa planejamento das escolas

Entrevista

Maioria LGBT é negra; racismo e LGBTfobia são evidentes

EDUCACAO

Internacional Perda de aprendizagem continua em alerta

ANO 26 Nº288

100 anos

Darcy Ribeiro, o construtor de utopias

A busca de Darcy para construir uma sociedade justa está na idealização dos Cieps, na defesa dos direitos dos indígenas, na criação de universidades e na incessante luta política

revistaeducacao.com.br
“Emprego para todos, comida na mesa e criança na escola”

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A Plataforma Educação, composta por edições digitais e impressas, site, redes sociais e eventos, é publicada por RFM Editores

Darcy Ribeiro, 100 anos

Esta edição faz uma justa homenagem ao antropólogo, educador, escritor e político brasileiro Darcy Ribeiro, que, se vivo, estaria completando 100 anos em 26 de outubro. Nasceu na cidade de Montes Claros, Minas Gerais. Sua trajetória de vida foi principalmente marcada pela luta em prol dos povos indígenas e em defesa de uma educação de qualidade para todos os brasileiros. Autor de vários livros, entre eles, O povo brasileiro e Terra dos índios. Foi ministro da Educação durante o regime parlamentarista do governo do presidente João Goulart (18 de setembro de 1962 a 24 de janeiro de 1963).

Seu trabalho no campo da educação lhe rendeu muitas homenagens, entre elas, o Campus da Universidade de Brasília que leva o seu nome e o prêmio Darcy Ribeiro de Educação instituído pelo Congresso Nacional.

Esta edição traz também, como destaque, a entrevista com Jaqueline Gomes de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, falando sobre a influência branca e europeia na constituição dos gêneros homem e mulher e o impacto da saúde mental nas “minorias”. Inclusive, foi a primeira gestora do sistema de cotas para negros da Universidade de Brasília.

Homenagear Darcy Ribeiro foi antes de tudo o compromisso da revista Educação em manter vivo este patrimônio do Brasil, um homem digno de receber, por mérito, o carinho e admiração de seu povo. Concluo lembrando uma de suas célebres frases “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Que esta frase nos inspire ao inconformismo, estejamos alertas na construção de um Brasil mais justo, democrático e plural, e nada melhor do que a educação para conseguirmos.

Boa leitura!

Imagem de capa: Luciana Whitaker/Folhapress

Ano 26 - Nº 288 setembro de 2022 ISSN 1415-5486 www.revistaeducacao.com.br

Conselho editoral

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Eduardo Deschamps

Fernando José de Almeida Iracema Nascimento Mozart Neves Ramos

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Parcerias Institucionais

Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) Undime SP (União dos Dirigentes Municipais de Educação) Jornal Joca - para jovens e crianças Sua Escola Ideal

Two Sides

Colaboraram nesta edição

Alexandre Pacheco da Silva

Alexandre Sayad

Damaris Silva

Fernando José de Almeida

Jill Barshay /The Hechinger Report

João Jonas Veiga Sobral

José Pacheco

Marcelo Daniel

Marco Antonio Araujo

Marina Feferbaum

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ATENDIMENTO

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Revista Educação 4
CARTA AO LEITOR
EDUCACAO REVISTA
Mozart Neves Ramos Membro do conselho editorial da Revista Educação

22 DARCY RIBEIRO

100 anos

O centenário de nascimento de um dos maiores intelectuais brasileiros é uma boa oportunidade para repensar o Brasil, seus sonhos, derrotas e vocação como país

NOVO ENEM 34 Travado 6

ENTREVISTA

Jaqueline Gomes de Jesus

Professora de psicologia do IFRJ e da Fiocruz alerta sobre os impactos do epistemicídio na saúde mental de pretos, indígenas e comunidade LGBT

e mais

Demora na publicação das matrizes de referência que serão a base do novo exame prejudica planejamento das escolas e atrasa implantação da reforma do ensino médio no país

EDUCAÇÃO BRASILEIRA 38 Leitura

Novo livro do jornalista Antônio Gois analisa 200 anos de educação brasileira, discute as razões do atraso, orçamento, políticas educacionais e principais desafios da área

INTERNACIONAL 60 Aprendizagem

Após o surgimento da pandemia, nos EUA o ritmo de aprendizado volta ao normal, mas perdas de aprendizado em matemática para alunos que concluíram a 8ª série na primavera deste ano podem ter aumentado de 19 semanas para 23 semanas – quase seis meses atrás

Revista Educação 5 14 Mosaico 18 Transformação 30 Midiática 42 Ensino superior 44 Educação infantil 46 Futuro da escola 48 Ensaio 52 GEE 56 Espaços inovadores 64 Diálogos 66 Entre margens SUMÁRIO
Arquivo central
Darcy recebe título de Doutor Honoris Causa pela UnB
UnB

Jaqueline Gomes de Jesus

Maioria LGBT é negra, com intersecções do racismo e da LGBTfobia

A afirmação é da professora de psicologia do IFRJ e da Fiocruz, que completa com reflexões sobre os impactos do epistemicídio na saúde mental de pretos, indígenas e comunidade LGBT

Jaqueline Gomes, primeira gestora da diversidade para apoio de alunos cotistas na UnB

Diversidade e saúde mental são alguns dos temas abordados por Jaqueline Gomes de Jesus nesta entrevista. Ela é pesquisadora e professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Atualmente, compõe a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e preside a Associação Brasileira de Estudos da Trans-Homocultura (ABETH). Tem 15 livros publicados.

É ativista desde os tempos de estudante na Universidade de Brasília (UnB), primeira universidade federal brasileira a instituir cotas para pessoas negras, em 2003. Um momento histórico, do qual Jaqueline participou de maneira decisiva. Logo em seguida, foi a primeira gestora da diversidade para apoio de alunos cotistas, criando a estrutura para o que hoje é o Centro de Convivência Negra, na própria UnB.

Jaqueline traz, ainda, aspectos da pesquisa Sexual and gender minority mental health in low and middle income countries (SMILE), título em inglês

ENTREVISTA
Dani Villar Idart

para Saúde mental de minorias sexuais e de gênero em países de baixa e média renda. Esse levantamento é uma parceria entre IFRJ, Fiocruz e a Duke University, na Carolina do Norte. Jaqueline é coordenadora da pesquisa no Brasil.

Além do Brasil, quais países participaram da SMILE e qual o estágio atual da pesquisa?

Terminamos o projeto piloto, que durou cinco anos, do qual participaram Brasil, El Salvador, Vietnã, Índia, Quênia e Camboja. Agora, focamos Brasil, Quênia e Vietnã, para coletar e analisar os dados com mais profundidade. Trabalhamos com grupos focais e amostragem. São milhares de pessoas de diferentes cidades desses países. A sintomatologia de saúde mental reúne quatro transtornos: depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e suicidalidade. O objetivo é avaliar como aquela amostragem se diferencia de acordo com a orientação sexual e identidade de gênero.

Há algum comparativo entre Brasil e os outros países?

Nos países com altas taxas de depressão, como Quênia e a Índia, quando comparamos com a população em geral ou com grupos específicos, também analisamos fatores sociais. Na Índia, boa parte das hijas – mulheres trans e travestis – tem pouco suporte social. Por exemplo, acessos a aluguel de uma residência ou serviço de saúde são mais negados. No Brasil, há mais apoio social, mais organização das entidades, da comunidade. Mesmo com falhas, o apoio é maior do que na Índia, para comparar esses dois países. Ou mesmo em relação ao Quênia, onde depressão e ansiedade têm alta incidência, principalmente entre mulheres lésbicas. Esse apoio social auxilia o controle dos níveis de depressão e ansiedade. No caso da Índia, há uma questão histórica importante. Eles não são binários como no Brasil e entendem que há três gêneros: homens, mulheres e hijas. É uma experiência mi-

lenar, de cerca de quatro mil anos, em que as hijas constituem uma categoria de gênero. Com o processo do imperialismo britânico e da colonização, elas ficaram isoladas, num contexto intenso de perseguição, lgbtfobia e transfobia. É impressionante a força da colonização: são milhares de anos de uma cultura com simbologias, divindades próprias, e há pouco apoio social para elas agora. No Brasil, há pessoas LGBT que, ao longo do processo de colonização, tiveram os nomes apagados. As pessoas não sabem porque isso não é ensinado no estudo da história, mas, desde antes da colonização, temos a diversidade sexual e de gênero, com diferentes nomes. No caso das hijas, o que chama a atenção é que elas são uma comunidade consistente, uma cultura consolidada há milhares de anos e, mesmo assim, o processo de colonização afetou a maneira como elas são apoiadas.

Há diferentes visões acerca da constituição dos gêneros?

Sim. A concepção binária, ou seja, homens e mulheres entendidos dentro de um determinado padrão de comportamento, foi uma imposição colonial europeia. Na própria Europa, até o século 16, havia apenas um gênero, o homem, aquela pessoa que tinha pênis e testículo, ou seja, eram os genitais que definiam o sexo, e por isso definiam como aquela pessoa se comportaria. Havia esse reducionismo da identidade da pessoa ao gênero dela, ao genital. O homem era o ser humano completo. As mulheres eram entendidas como um defeito de gênero. Há essa herança até hoje na língua portuguesa. Por exemplo, “homem” como sinônimo de ser humano. Houve uma transição dessa concepção, nos séculos 16, 17. Começaram a entender gênero de maneira binária e propagaram essa visão nas colônias, para culturas que não tinham necessariamente a mesma visão. Mesmo com essa transição ainda permanece esse padrão de reduzir as pessoas aos genitais.

Revista Educação 7
Na própria Europa, até o século 16, havia apenas um gênero, o homem, aquela pessoa que tinha pênis e testículo, ou seja, eram os genitais que definiam o sexo, e por isso definiam como aquela pessoa se comportaria

ENTREVISTA

Jaqueline Gomes de Jesus

Uma vez que os fatores culturais e históricos contribuem para a construção da identidade do ser humano, de que maneira o histórico escravista da sociedade brasileira e o consequente racismo contra pessoas negras influenciam na formação da identidade?

É importante lembrar que o Brasil passou por um processo de colonização muito particular, o de exploração. Os diferentes povos tiveram formas de resistência e sobrevivência ao processo de colonização e instalação do capitalismo. Somos frutos desse processo de mais de 500 anos, cuja base é o extermínio e a ocupação de territórios. Antes do extermínio, para justificá-lo, há o epistemicídio, que é a lógica do apagamento dos saberes, da forma de ser, é o não reconhecimento desses diferentes povos. Então, antes de ter a violência e a ocupação do território, houve o apagamento da identidade e da cultura. No Brasil, essa experiência terá um impacto mais explícito por causa da escravização em massa, um sistema nunca antes visto. A partir daí houve a construção dessas identidades sob uma perspectiva europeia do que significa ser branco, negro, indígena. Os diferentes povos indígenas e africanos não se reconheciam como indígenas nem como negros. Foi uma forma de atribuição dos europeus para efetuar o epistemicídio. O que tem ocorrido é que, ao longo dos

séculos, temos ressignificado não exatamente os termos, mas seus conteúdos. Por exemplo, os norte-americanos não usam o termo “negro”, eles usam “afro-americano” ou “afrodescendente”. No Brasil, continuamos adotando o termo, mas ressignificado. Hoje em dia, muito do que entendemos por ser negro, negra, não é igual ao que era no processo de colonização. Há também esse embate atual de não utilização do termo “índio”, como foi colocado pelo europeu. Essa experiência afetou nossa identidade, trouxe grande prejuízo, inclusive para a identidade nacional.

Como essas questões interferem mais especificamente na saúde mental dos jovens?

O racismo tem impacto geracional. Nossos ancestrais já tiveram que lidar com violências geracionais. Quando analisamos a saúde da população negra, vemos que muitos agravos têm a ver mais com o racismo que afetou as gerações do que com características biológicas, como na ocorrência das doenças cardiovasculares, alergias, situações de abuso de álcool e outras drogas, para além das questões de herança genética propriamente, como na ocorrência da anemia falciforme. A análise de saúde mental tem aspectos históricos e precisam ser analisados no contexto em que vivemos. O jovem negro enfrenta o racismo estrutural. É estrutural porque a própria sociedade reverbera e reproduz. Além disso, a geração atual vive um contexto de neoliberalização da vida, em que cada vez mais as relações são individualizadas. Hoje temos mais acesso a profissionais de saúde mental. Mesmo com o SUS precarizado, não dá nem para comparar, por exemplo, ao século 19, em que o acesso à saúde e a ideia de cidadania estavam vinculados ao ofício. Apesar disso e de haver mais acesso à tecnologia, os cuidados não são coletivizados. Nossos ancestrais tinham núcleos de cuidados: o terreiro, a comunidade cristã, o quilombo, a comunidade urbana, a família. É fundamental termos profissionais de

Dani Villar Idart
No Brasil, antes de ter a violência e a ocupação do território, houve o apagamento da identidade e da cultura
“Desde antes da colonização, temos a diversidade sexual e de gênero, com diferentes nomes”

ENTREVISTA

Jaqueline Gomes de Jesus

saúde que trabalham com base em evidências, em método científico, mas o SUS, grande conquista do século 20, está precarizado, o que provoca impactos negativos na área de saúde mental. Têm aumentado os dados de ansiedade e depressão, as pessoas se sentem perdidas. A resposta é muito individualizada. Por exemplo, a pessoa está sofrendo “porque não sabe empreender, não está se esforçando”. O grande fator da diferenciação da juventude de hoje para a de outras épocas é que os cuidados não são coletivizados, e isso é extremamente grave, porque os jovens dependerão mais de um sistema público de cuidado.

As perspectivas do conhecimento científico branco, colonial, oferecem instrumentos para compreensão da saúde mental de uma sociedade tão diversa como a brasileira?

Temos a vantagem do acesso a tratamentos e cuidados em saúde. Houve um desenvolvimento científico no sentido de construir estratégias e métodos de cuidado. O grande desafio é que ela foi pautada muito tempo por uma perspectiva brancocêntrica, heteronormativa, cisgênera. Por séculos foram utilizados como instrumento o pensamento social racista, lgbtfóbico. O método científico, em si, não é um problema, mas é como tem sido usado pelos colegas. Como eu falei, o processo de colonização foi antecedido pelo epistemicídio. Ainda hoje persiste o estereótipo de que apenas os europeus têm ciência, como se não houvesse produção de conhecimento sistematizado, seja de forma popular, seja como teoria científica, por outros povos. Então, há esse contexto de cuidados em saúde, mas os pesquisadores precisam se abrir para uma perspectiva menos eurocêntrica. É difícil, porque as próprias estruturas das instituições – Fiocruz, por exemplo, e todo o sistema de pensar saúde e cuidados – são construídas nessa lógica: quem produz o conhecimento é o homem branco, cisgênero, supostamente heterossexual. Como se a própria população – as

mulheres negras, LGBTs, indígenas – não produzissem conhecimento científico. O ensino superior foi pautado no modelo europeu, inclusive desconsiderando a produção de saberes na África, Oriente Médio e Ásia. Então, é difícil para os colegas se desapegarem desse modelo e da ideia de que não estão falando por todos. É preciso tomar cuidado com essa posição, porque há histórico vinculado ao racismo científico, à psicopatologização de mulheres, de populações LGBT.

As opressões aos grupos LGBTs são similares às sofridas pela população negra?

Sim, há uma intersecção muito forte. No caso do Brasil, a maioria da população LGBT é negra, então há intersecções do racismo e da lgbtfobia, e que ainda não foram bem analisadas. Em geral, quando se analisa a saúde da população LGBT, se desconsidera sua diversidade étnico-racial. E isso tem impacto, muito mais numa sociedade judaico-cristã, com tantas questões relacionadas a gênero e sexualidade. As primeiras que foram alvo de epistemicídio, para chegar ao extermínio, foram as mulheres, na figura da bruxa, que é a demonização da sexualidade da mulher. Foi daí que surgiram os crimes sexuais como a sodomia, a obrigação de relações sexuais reprodutivas dentro de um contexto heteronormativo, que é presente ainda. Essa experiência ainda é forte e a intersecção com o aspecto racial a intensifica, pois o processo colonial e a tradição europeia se sobrepõem.

O ambiente pouco diverso nas universidades tem impactos negativos?

Vemos muitos problemas de saúde mental na academia que se relacionam com a desvalorização da diversidade. Há muitas dificuldades na relação entre docentes e discentes. As pessoas denunciando machismo, sexismo; as mulheres que engravidam e que perdem pontuação, porque não estão publicando ou orientando. Há colegas que acreditam e afirmam

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Quem produz o conhecimento é o homem branco, cisgênero, supostamente heterossexual. Como se a própria população – as mulheres negras, LGBTs, indígenas – não produzissem conhecimento científico

que mulheres pesquisadoras são mais fracas, são piores que os homens. Em 2020, a Nature publicou um artigo de pesquisadores que coletaram o seguinte dado: mulheres que orientam são menos lidas e seus orientandos, mulher ou homem, também. As pesquisas de homens e seus orientandos têm mais divulgação. A análise responsabilizou as mulheres, afirmando que elas têm que investir mais em divulgação. Ficou evidente que faltou um debate de gênero para entender que a própria organização social da academia valoriza os orientadores homens, até porque, em geral, homens orientam homens. Uma das saídas que debatemos é que os homens orientem mais mulheres. Também não conheço nenhuma pessoa trans que tenha bolsa de produtividade no CNPq.

As ações afirmativas contribuem para a diversidade nas instituições de ensino superior? A quem são dirigidas?

As ações afirmativas são voltadas para qualquer população que tenha sofrido algum tipo de desvantagem histórica. Para a população negra, mulheres, LGBTs, pessoas com deficiência. Há diferentes métodos para as

ações afirmativas. Mas é preciso pensar como fazer para garantir o acesso dessa população excluída historicamente. No Brasil, se pensa em cotas, em reservas de vagas. Há outras estratégias que os países têm usado. Nos EUA, fazem benefícios fiscais; a instituição comprova que garantiu acesso a populações que estavam excluídas e ganha benefícios fiscais. A Harvard e outras universidades se beneficiam disso. É fundamental; sem o acesso dessas pessoas não se faz gestão da diversidade. Não tem sentido.

Como foi a implantação de cotas na UnB, há quase 20 anos?

“As ações afirmativas são voltadas para qualquer população que tenha sofrido algum tipo de desvantagem histórica”

Acompanhamos as conferências preparatórias, no Brasil, para a Conferência de Durban, na África do Sul, de enfrentamento ao racismo, xenofobia e intolerâncias correlatas, ocorrida em 2001. Essas conferências movimentaram muito a sociedade brasileira, tanto que as discussões sobre a necessidade de ações afirmativas no Brasil levaram a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) a criar uma lei que obrigasse as universidades estaduais do Rio a terem cotas para a população negra. Em 2003, a UERJ foi a primeira universidade estadual a implantar as cotas. À época, a saudosa reitora Nilcea Freire levou essa luta adiante. Na UnB estávamos discutindo. Também em 2003, foi apresentado um plano de metas para inclusão étnico-social ao Conselho de ensino, pesquisa e extensão, que o analisou e aprovou. Considerando a dívida histórica, a UnB tinha que adotar ações afirmativas de três formas: vestibular próprio para a população indígena, o programa para estudantes da escola pública, portanto, com recorte social, e a ação que ficou mais famosa: o sistema de cotas para negros e negras. Foram reservados 20 por cento das vagas para o sistema de cotas dentro do sistema universal do vestibular.

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No caso do Brasil, a maioria da população LGBT é negra, então há intersecções do racismo e da lgbtfobia, e que ainda não foram bem analisadas
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SAIBA MAIS:

LEONARDO ENGENHARIA UFAL E UFV

MARCA TETRACAMPEÃ. PELO 4º ANO, A MARCA MAIS LEMBRADA ENTRE OS SISTEMAS DE ENSINO DO BRASIL. KÁSSIA EDUCAÇÃO FÍSICA - UEPG

FELIPE CASTANHARI EMBAIXADOR DO FTD SISTEMA DE ENSINO

Recuperação da aprendizagem é prioridade e desafio

Pesquisa ouviu 3.245 municípios brasileiros que apresentam suas estratégias para recompor a aprendizagem

Por conta da pandemia, a recomposição/recuperação da aprendizagem é o desafio mais urgente das redes municipais de ensino, revela a oitava onda da pesquisa realizada pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) com apoio do Unicef e Itaú Social.

Ouvindo 3.245 secretarias municipais de educação, a pesquisa apresenta as principais estratégias que têm sido utilizadas para recompor aprendizagens. Reuniões com coordenadores e diretores fazem parte da rotina mensal ou bimestral de 91% das redes; seguidas de visitas às escolas (90%), reuniões com professores (72%) e monitoramento dos resultados de avaliações internas (71%).

Entre os desafios apontados pelas redes para o planejamento e a implementação de estratégias de recomposição/ recuperação da aprendizagem está, principalmente, a falta de condições logísticas e de infraestrutura. Isso inclui dificuldades de transporte escolar dos estudantes e alimentação para a reali-

zação de atividades presenciais no contraturno, e falta de conectividade para realizar essas atividades remotas. Outros desafios incluem a participação das famílias e a motivação de estudantes e professores.

“Nas duas últimas edições da pesquisa, os municípios apontaram a questão da conectividade como um dos grandes desafios para gerar acesso dos estudantes às possibilidades de recomposição/recuperação, de potencialização das ações pedagógicas e, sobretudo, de equidade. Isso reforça a necessidade de garantirmos a implementação da Lei nº 14.172/21, a chamada Lei da Conectividade, com a distribuição dos recursos para redes municipais, além de para as estaduais”, ressalta o presidente da Undime, Luiz Miguel Martins Garcia, que é dirigente municipal de Educação de Sud Mennucci, SP.

REABERTURA DAS ESCOLAS E BUSCA ATIVA ESCOLAR

A maioria das redes está ofertando educação totalmente presencial

nas diferentes etapas de ensino, com adesão total ou quase total dos estudantes. Uma exceção é a educação de jovens e adultos, em que quase 15% das redes afirmam ter apenas metade, ou menos da metade dos alunos frequentando as aulas presenciais.

Para apoiar as escolas na oferta de ensino, as redes têm utilizado diferentes estratégias, mensal ou bimestralmente. Entre elas, destaca-se a busca ativa para enfrentar a evasão escolar, realizada por 87% das redes respondentes. Para realizar essa busca, mais de 70% das redes afirmam já utilizar a estratégia da Busca Ativa Escolar proposta pelo Unicef e a Undime, e outras 15% estão em processo de adesão à estratégia.

Além disso, 79% das redes dizem estar implementando atividades para estudantes que apresentam maiores dificuldades de aprendizagem; e 76% afirmam fazer acompanhamento individual de professores.

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O cenário de avanços tecnológicos e, ao mesmo tempo, a desigualdade de acesso a esses recursos em instituições de ensi no motivaram Bruna Braga de Paula a investigar a cultura maker em esco las públicas e particulares brasileiras, que proporcionam o desenvolvimento de uma cul tura de mão na massa, com materiais e ambien tes acessíveis para diferentes realidades. O resultado está em sua dissertação de mestrado profissional em inovação tecnológica do Instituto de Ciência e Tecnologia (ICT) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Como especialista em matemática, a pesquisadora direcionou seu olhar para as aulas da disciplina.

“A cultura maker envolve tecnologia, mas não é só isso. É fundamental, quando se pensa nas escolas públicas, a atuação com salas makers, robótica e programação. O trabalho manual e o conserto de materiais e objetos,

A cultura maker no Brasil Aumento de tiroteios limita essência pedagógica

que podem ser recriados e não apenas descartados, por exemplo, desenvolvem a capacidade de identificar o problema e resolvê-lo de outras formas”, explica Bruna.  Nas aulas de matemática, a cultura maker contribui para desenvolver o raciocínio lógico e conceitos matemáticos por meio de atividades que envolvam pesos e medidas e de análises para cortar, colar e criar os projetos, além da tecnologia para programação e robótica. Leia a dissertação finalizada aqui: https://bit.ly/3ApZEKh.

Alunos do ensino fundamental e médio de Dallas, no Texas, estão usando mochilas transparentes oferecidas pelo distrito escolar. A regra vale desde agosto e busca evitar violência no ambiente escolar, no caso, tiroteio. Há especialistas que discordam dessa medida.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, a presidente de um sindicato de professores da Flórida, Karla Hernandez-Mats, destaca que o objetivo dos docentes é cuidar e dar educação, só que após um ataque a uma escola de Parkland, em 2018, que deixou 17 pessoas mortas, as regras mudaram. “Desde então, não temos mais campi abertos, buscamos o máximo de proteção em relação ao lado de fora com o objetivo de limitar o acesso à escola. Temos um policial em cada escola. E ensinamos às crianças como se esconder e se proteger quando dissermos que há um código vermelho...Elas repetem palavras que os adultos dizem, mas realmente não entendem por que estão sendo treinadas. É muito triste”, disse Karla à Folha.

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Podcast exclusivo de educação

Desde o ano passado, a revista Educação tem um programa de podcast intitulado Brasil Educação. Já são mais de 12 episódios que você pode escutar gratuitamente no Spotify e Apple e que tem como patrocinadoras as empresas educacionais International School e Edify Education, cada uma com um episódio por mês. Confira temas de alguns episódios:

Débora Garofalo: a importância da tecnologia social com escuta ativa no Brasil das desigualdades

Profissão de professor não atrai os jovens. Por quê?

Periferia: voz cultura e literatura com Sérgio Vaz

O papel das escolas no apoio à saúde mental e emocional das crianças e jovens

Educação ambiental nas escolas, urgente

Primeira infância: desenvolvimento e neuroeducação

Novo ensino médio: desafio das escolas na implementação

Viralizou nas redes

O redário da Escola Municipal de Educação Infantil Alegria, em Juruti, PA, ganhou destaque após postagem nas redes sociais, isso porque a atividade pedagógica intitulada Desenhar é arte, ler é prazer incentiva as crianças a terem os primeiros contatos com a leitura no balanço da rede. O uso da rede foi adicionado por conta do forte costume dos moradores locais e faz parte de uma das três etapas pedagógicas de leitura da escola.

A professora Marilei Costa escreveu em sua publicação do Facebook: “literatura infantil é um caminho que leva a criança a desenvolver a imaginação, emoções e sentimentos de forma prazerosa significativa ( sic ). Hoje a dimensão da leitura infantil é muito mais ampla e importante, proporcionando um desenvolvimento social e emocional”.

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Herciane Coelho

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Com o CNA Toolbox, para os alunos do ensino fundamental (anos iniciais), aprender inglês sempre será de forma divertida para os seus alunos. Diferentes habilidades da BNCC são trabalhadas em cada unidade dos livros, com uma abordagem pedagógica de pensar e aprender centrada no fazer, além da integração de outras disciplinas, como Ciências Humanas, Ciências da Natureza, Artes e Matemática. Tudo isso abordando competências para o século XXI, como o pensamento científico, crítico e criativo, repertório cultural, comunicação, cultura digital, empatia e cooperação, responsabilidade e cidadania, entre outras.

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Educação antirracista tem que ser permanente TRANSFORMAÇÃO

Você já teve uma parte de seu corpo contestada e, seguido desse gesto, ouviu uma indagação que questionasse sua existência? A existência de seus ancestrais? Pois foi assim que Chirley Pankará iniciou seu relato na mesa online Como incluir uma educação antirracista, promovida pelo Grande Encontro de Educação e que contou com a minha mediação. Na fala, a primeira indígena codeputada estadual em São Paulo relatou que uma senhora branca tocou seu nariz e disse que ela não parecia ser indígena. A reação imediata de Chirley foi a perplexidade, a inação infelizmente comum àqueles que algum dia já sofreram um ataque racista. Dentre outras situações, Chirley ressaltou quão naturalmente violento é o cotidiano permeado de pequenas violências. A mesa, também composta por Iracema Santos do Nascimento, professora na Faculdade de Educação da USP e membra do conselho editorial da revista Educação, e Janine Rodrigues, escritora e educadora, foi um momento privilegiado para refletirmos sobre como podemos criar uma educação antirracista e por quê.

Cirúrgica, Iracema elencou ao público um conjunto de condições necessárias à escola para que um projeto de educação antirracista se consagre verdadeiramente. Dentre eles, a valorização e fomento da presença de pessoas negras em posições de prestígio e liderança no ambiente escolar, bem como a implementação da perspectiva antirracista nos projetos político-pedagógicos, desdobrados nas escolhas de materiais didáticos que valorizem a cultura negra para a humanidade e que representem pessoas negras de modo positivo. Segundo ela, o primeiro passo é o do reconhecimento da existência do racismo dentro da escola, uma vez que ele está presente em todas as estruturas sociais brasileiras. É a partir disso que se inicia a urgência do nosso enfrentamento. A educadora destaca que o processo de criação e desenvolvimento de uma educação antirracista deve ser permanente, como parte de um compromisso ético de todos frente aos mais de 500 anos de barbárie e violência às quais somos submetidos.

Janine, por sua vez, acionou o direito à memória: conhecer o passado e construir o futuro, sobretudo a partir do le-

Iracema Nascimento pesquisa a gestão democrática da educação e diversidade

tramento racial. Para isso, ela resgata um percurso histórico violento e de privação de direitos dos negros brasileiros. Desde o relato de 1452 em que o papa Nicolau V consagra ao rei de Portugal o poder da escravização, do assassinato, do subjugamento daqueles que não eram “iguais” à Lei da Vadiagem, que perdurou até 1975, considerando, por exemplo, a capoeira como um ato ilícito e passível de prisão. Janine trouxe uma série de outras leis e do percurso histórico do qual o letramento racial nos ajuda a desconstruir e reconstruir olhares e opiniões. Por fim, a escritora narrou uma história sobre uma garota que está definindo se sua graduação será em arquitetura ou veterinária e da preocupação de seu pai sobre uma viagem a Nova York. Ao final, ela nos convida à reflexão sobre como imaginamos essa família - brancos ou negros? A imagem que criamos põe à prova todos os nossos preconceitos, desestabiliza para reestruturar a mentalidade tão tacanha que nos acompanha há séculos. Um encontro lindo, necessário e potente.

Assista no canal do YouTube da revista Educação ao título Grande Encontro da Educação 2022 – DIA 3 (tempo: 8:23:55): https://bit.ly/3ALzWkN

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Desnaturalizar o cotidiano violento de negros e indígenas e incluir essas pessoas em cargos de poder na escola são parte de um longo caminho
Damaris Silva mestre em letras e especialista em gestão escolar Janine Ribeiro é especialista em diversidade, educação e ESG Chirley Pankará é pedagoga e doutoranda em antropologia social
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(1922-1997)

O arquiteto de utopias

O centenário de nascimento de um dos maiores intelectuais brasileiros é uma boa oportunidade para repensar o Brasil, seus sonhos, derrotas e vocação como país

“Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, em vão. Tentei fazer uma universidade séria, desde a sua base, fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente – e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem venceu.”

Esta é a mais conhecida declaração feita por Darcy Ribeiro. É, na verdade, uma compilação adaptada de seu histórico discurso na Universidade de Sorbonne, quando, em 1978, recebeu o título de doutor honoris causa da conceituada instituição francesa. A perenidade dessa retórica se destaca, apesar do tom sombrio, sem falsa humildade ou autocomiseração, por elencar, de forma engenhosa, algumas das grandes obras perpetradas (e não concluídas inteiramente) por um dos maiores pensadores, educadores e políticos brasileiros.

O centenário de nascimento desse cidadão do mundo nascido em Montes Claros, em Minas Gerais, se

completa neste 26 de outubro. Partiu em 17 de fevereiro de 1997, vítima de câncer, deixando um legado que nem seus inimigos e detratores podem ousar chamar de fracasso. Dentre as múltiplas atividades que encampou, sempre de forma superlativa, estão a de antropólogo, historiador, sociólogo, romancista, etnólogo, indigenista, professor, idealizador e primeiro reitor da Universidade de Brasília (UnB), membro da Academia Brasileira de Letras, ministro da Educação do governo parlamentarista que sucedeu a Jânio Quadros, chefe da Casa Civil no governo João Goulart, secretário de Estado da Cultura e coordenador do Programa Especial de Educação do Rio de Janeiro (na gestão Leonel Brizola) e senador da Re-

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DARCY RIBEIRO

No ideário de Darcy Ribeiro, desenvolvimentista e nacionalista, grandiosa também era sua paixão pelo povo brasileiro. Fotografia tirada em julho de 1988

pública. Darcy foi um gigante, e isso é uma constatação. Além da UnB (e da Universidade Estadual do Norte Fluminense), deixou heranças monumentais, como o Parque Nacional do Xingu, pensado e implantado junto com os igualmente lendários irmãos Villas-Bôas. Quando secretário de Brizola, criou também a Biblioteca Pública Estadual, a Casa França-Brasil, a Casa Laura Alvim. Contribuiu para o tombamento de 98 quilômetros de belíssimas praias e encostas, além de mais de mil casas do Rio antigo. Convidou Oscar Niemeyer para projetar o sambódromo da Marquês de Sapucaí, estrutura sob a qual foram instaladas 200 salas de aula, hoje desativadas. O sambódromo, posteriormente, recebeu o nome de Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro.

“A UNIVERSIDADE NÃO É FLOR QUE SE CHEIRE”

Seu trabalho no MEC o levou a ser convidado a participar de reformas universitárias no Chile (sob Salvador Allende), Peru (de Velasco Alvarado), Venezuela, México e Uruguai, depois de deixar o Brasil, cassado e expulso pela ditadura militar de 1964. Escreveu nesse período os cinco primeiros volumes dos Estudos de Antropologia da Civilização (O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros: Teoria do Brasil e Os índios e a civilização), livros que atingiram mais de 90 edições em diversas traduções. A essa coleção viria se somar

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Niels Andreas/Folhapress

DARCY RIBEIRO (1922-1997)

(e encerrar o sexteto) O Povo Brasileiro, publicado em 1995 e desde sempre fonte de consulta obrigatória sobre a identidade nacional.

Foi responsável pela criação e pelo projeto cultural do Memorial da América Latina, centro cultural, político e de lazer, inaugurado em 1989, em São Paulo, assim como articulou o projeto de lei que deu origem à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996. A LDB, então, recebeu o nome de Lei Darcy Ribeiro.

Mas o que deveria ser sua maior façanha remonta ao lamento indignado do discurso em Sorbonne. Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) hoje não mais existem, fora escombros. Aí, sim, uma derrota –segundo o próprio Darcy, resultado da perversão do Brasil: “Nosso país é enfermo de desigualdade, de brutalidade, de perversidade. Escravocrata”.

O desmonte dos CIEPs foi um massacre cuja vítima maior foi o pensamento pedagógico mais inclusivo,

Houvesse na educação brasileira uma Santíssima Trindade, seria composta por Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Amém

audacioso, responsável e idealista da melhor geração de educadores deste país. Houvesse na educação brasileira uma Santíssima Trindade, seria composta por Paulo Freire, Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro. Amém. Contemporâneos, sonharam juntos uma escola universal, integral, democrática, acolhedora e, sim, libertária. Uma sala de aula de onde sairiam cidadãos letrados, críticos e bem alimentados de corpo e alma. Uma utopia.

Sim, Darcy era, sobretudo, um utópico assumido (“por todos os lados, de cima a embaixo”). Muito mais que a acidez nas falas, a coragem nos enfrentamentos aos poderosos, a resiliência diante de inimigos, a firmeza no isolamento (ficou nove meses preso, em 1968), Darcy Ribeiro era um homem movido a utopia – que ele resumia, enfaticamente, assim: “emprego para todos, comida na mesa e criança na escola”.

”Utopia (na sua origem etimológica, ‘em lugar nenhum’, ‘que não existe’) é inventar o país que você quer.” E os CIEPs eram o alicerce dessa nação. O conceito dessa base é de uma obviedade até hoje constrangedora: o ensino de crianças e jovens tem de ser integral, assim como o comprometimento de todos os profissionais envolvidos.

E o projeto pedagógico de Darcy (considerado por muitos como visionário e revolucionário) previa assistência das 8 da manhã às 5 da tarde, com atividades escolares regulares, horários para reforço, educação física, iniciação esportiva, projetos culturais, aulas de música, artes plásticas e teatro. O básico, incluídas todas as refeições do período (café da manhã, lanche da manhã, almoço, lanche da tarde e

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“AS COISAS MAIORES DA MINHA VIDA AINDA ESTÃO POR SEREM FEITAS”
jantar). Darcy Ribeiro, quando era ministro da Educação, durante visita ao 2º Salão da Criança, em 16 de outubro de 1962 Acervo UH/Folhapress

Entrega do título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília a Darcy Ribeiro e mudança do nome do Campus Universitário para Campus Universitário Darcy Ribeiro, em março de 1995

“O FUTEBOL É O ÚNICO REINO EM QUE O POVO TEM A SUA PÁTRIA”

Foram implementados 500 CIEPs durante o governo Brizola. O projeto arquitetônico ficou a cargo do companheiro de sempre, Oscar Niemeyer, e era concebido em módulos pré-fabricados, o que barateava o custo final da obra. Dali, nenhuma criança sairia sem “ler, escrever e contar”.

Os críticos e futuros desmanteladores dessas unidades alegavam que o custo de manutenção era muito alto. De fato, eram. “Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”, rebatia Darcy. Dessa época, Darcy só lamentava ter desapropriado, para erguer as escolas, “muitos terrenos que eram usados como campo de pelada na periferia. Eu me arrependo”.

“A escola pública é desonesta, feita para os 20% de classe média e que abandona os 80% de pobres.” Nesse modelo, são despejados das escolas milhares de semiletrados, analfabetos funcionais e gente despreparada para o mercado de trabalho e para a pró -

pria cidadania. Não faltam exames, testes e avaliações nacionais e internacionais que comprovam que esse descaso governamental é o responsável pelo fracasso como nação.

De acordo com o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp), 96,6% dos alunos da rede estadual paulista concluíram o ano letivo de 2021 com desempenho abaixo do adequado em matemática. Alunos do 3º ano do ensino médio apresentaram nota de proficiência adequada à de um estudante de 7º ano do ensino fundamental, uma defasagem de quase seis anos. “A crise educacional no Brasil não é uma crise, é um projeto”, eis outro lema de Darcy. Impossível discordar.

O esforço pelo ensino público integral não foi de todo abandonado. Ainda há governos que trabalham, de maneira esporádica, por escolas que atendam a esse objetivo. A gestão Marta Suplicy, quando ainda no Partido dos Trabalhadores, no início deste século, construiu 200 CEUs (Centros Educacionais Unificados) e deixou 24 planejados, por exemplo. Mudou o nome, esse vício da política brasileira, mas estava lá o pensamento de Darcy. Governos estaduais, pontualmente, investem em unidades de ensino com horários estendidos. Mas nenhum deles carrega o sonho de tornar escolas a principal referência arquitetônica e comunitária em seus bairros e cidades.

AO SEU POVO E A SEU TEMPO”

No ideário de Darcy Ribeiro, desenvolvimentista e nacionalista, grandiosa também era sua paixão pelo povo

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“OS INTELECTUAIS NÃO
PRESTAM NÃO. NÃO TÊM FIDELIDADE
Conhecer o Brasil, nele se embrenhar e daí sonhar com um país tão gigantesco quanto o tamanho de seu território, lhe deu o ímpeto para lutar pelos indígenas, pelos negros, pelo povo
Arquivo central UnB

DARCY RIBEIRO (1922-1997)

Seu trabalho no MEC o levou a ser convidado a participar de reformas universitárias no Chile (sob Salvador Allende), Peru (de Velasco Alvarado), Venezuela, México e Uruguai, depois de deixar o Brasil, cassado e expulso pela ditadura militar de 64

brasileiro, que ele colocava em uma perspectiva maior, de uma identidade latino-americana, visão que influenciou diversos estudiosos do século 20. Essa leitura começa em 1946, após formar-se em antropologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. O início de sua vida profissional foi dedicado ao estudo dos indígenas do Pantanal, do Brasil Central e da Amazônia. Foi um mergulho profundo. Etnólogo do Serviço de Proteção aos Índios (atual Funai), entrou em contato com dezenas de povos indígenas, escreveu uma vasta obra etnográfica e fundou o Museu do Índio, do qual foi diretor.

Essa vivência despertou a inquietude que forjaria em Darcy o entendimento de que o Brasil é vocacionado a ser “uma nova Roma, lavada em sangue índio, lavada em sangue negro”. Essa grandiloquência se sustenta na convicção de que, apesar de uma imensa diversidade, temos uma unidade nacional cultural, a qual se baseia, justamente, na mistura de raças, origens e lutas incessantes.

“NÓS, BRASILEIROS, SOMOS UM POVO SEM SER, IMPEDIDO DE SÊ-LO. UM POVO MESTIÇO NA CARNE E NO ESPÍRITO, JÁ QUE AQUI A MESTIÇAGEM JAMAIS FOI CRIME OU PECADO”

A colonização, o longo período escravocrata, a industrialização com a mão de obra imigrante europeia, a urbanização desenfreada e caótica, a globalização

selvagem a que o país foi submetido, os golpes institucionais sofridos, as rupturas na democracia ainda claudicante, nenhuma dessas contínuas adversidades foi capaz de anular a cultura brasileira única, resultante de vários processos de miscigenação e de progressos civilizatórios. Civilização, à brasileira, que começou há mais de dez mil anos, com os povos que habitavam esse continente. Era essa a ideia central e visceral do professor Darcy.

Após terminar o ensino médio em Montes Claros, Darcy começou a estudar medicina. Nessa época, sempre fez questão de dizer, pensou seriamente em suicídio. Não via razão para viver. Foi quando viajou a São Paulo e começou a atuar na área de ciências políticas. Segundo ele, conhecer o Brasil, nele se embrenhar e daí sonhar com um país tão gigantesco quanto o tamanho de seu território, lhe deu o ímpeto para lutar pelos indígenas, pelos negros, pelo povo, construir instituições, elevar museus, erguer grandes escolas, escrever leis e arquitetar utopias. Ao final, deixa por escrito e na memória de todos os brasileiros a história de um grande homem. Vitorioso.

Obras de Darcy Ribeiro

Darcy produziu diversas obras e ensaios nas áreas de antropologia, sociologia e educação.

• Culturas e línguas indígenas do Brasil (1957)

• A política indigenista brasileira (1962)

• A Universidade necessária (1969)

• Os índios e a civilização (1970)

• Os brasileiros – Teoria do Brasil (1972)

• Configurações histórico-culturais dos povos americanos (1975)

• O dilema da América Latina (1978)

• Nossa escola é uma calamidade (1984)

• América Latina: a pátria grande (1986)

• O povo brasileiro (1995)

Romances

• Maíra (1976)

• O Mulo (1981)

• Utopia Selvagem (1982)

• Migo (1988)

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DARCY RIBEIRO (1922-1997)

Leitura em sala

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o corpo e o tumbeiro. Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e nos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar, no dia seguinte, até à exaustão.

Sem amor de ninguém, sem família, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém – seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnios, inimigos –, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas para trabalhar atento e tenso. Semanalmente, vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilação de dedos, do furo de seio, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob 300

chicotadas de uma vez, para matar, ou 50 chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida através de séculos sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós, brasileiros, somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos. Descendentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhe caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

(Do livro “O povo brasileiro”, editora Companhia das Letras, 1995)

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“A mais terrível de nossas heranças”
*Marco Antonio Araujo é jornalista e foi editor da revista Educação

A novidade que não acabou

Em tempos de metaverso, o rádio mantém sua importância, seja nos lares ucranianos para levar informações de qualidade, seja em escolas brasileiras para fomentar a aprendizagem

Finais apocalípticos chamam sempre mais a atenção do que conclusões complexas ou mesmo transformações de cenários e personagens. No caso de como enxergamos a trajetória das mídias, isso não é diferente.

O cinema, por exemplo, foi precocemente decretado como extinto com o advento da televisão, depois do videocassete, posteriormente do DVD e então com os serviços

de streaming. Ao contrário, hoje vivemos um tempo de imensa necessidade de curadoria; nunca se produziu tanto audiovisual cinematográfico. Antes disso, a morte do serviço de informações e entretenimento via ondas sonoras, que chamamos de rádio, foi decretada inúmeras vezes desde que nasceu, há 100 anos. O fato é que o rádio continua vivo, atuante e exerce um papel fundamental também no desenvolvimento da educação e cidadania. O rádio foi considerado o primeiro veículo de comunicação de massa (embora o jornal e até o cinema já se desenvolviam a passos largos na segunda década do século 20) porque driblava as limitações impostas pelos parcos índices de escolaridade da época. Para se ter uma ideia, o Brasil contava com 80% da população não alfabetizada. Além de uma produção pouco custosa, e o consequente barateamento dos aparelhos receptores, o país viveu 1930 como uma década de ouro, com radionovelas, orquestras e programas jornalísticos.

Durante a Segunda Guerra, o rádio também teve um papel importante, num combate às fake news da época. A BBC (British Broadcasting Company), o serviço público e comu-

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MIDIÁTICA
Eric Nopanen/Unsplash

nitário de transmissão britânico, contou com repórteres no front, improvisou estações subterrâneas em Londres em caso de bombardeio à cidade, e, por meio das ondas curtas (ao contrário do que parece, são as mais abrangentes), chegou a toda a Europa com jornalismo confiável. Na mesma época, a educação começou a se aproximar do rádio; o médico e educador polonês Janusz Korczak (codinome de Henryk Goldszmit), justamente durante a segunda grande guerra, utilizou a mídia para promover a democracia e a livre expressão nos lares de órfãos que comandava. Adepto desde a infância de correntes que pregavam o pensamento livre, Korczak criou jornais internos e estações de rádio improvisadas para as crianças se expressarem. Como legado de seu trabalho, também utilizou o sistema de rádio para gravar palestras, algumas que misturavam a educação às questões de saúde. A crueldade nazista não permitiu que essa história terminasse bem, mas o legado do chamado “bom doutor” inspirou ações educativas e comunitárias até hoje. Recentemente, a novidade do rádio mostrou não chegar ainda ao fim. Por volta de 2010, o relevante relatório anual de tendências da Deutsche Welle, o serviço de transmissão de interesse público da Alemanha, apontou para uma tendência pouco crível para a recente geração de jornalistas digitais, acostumados com blogs e redes sociais: um renascimento do rádio na forma de pequenos arquivos, cujo conteúdo tem foco específico, e que poderiam ser baixados por demanda do ouvinte. O podcast, esse papo íntimo ao pé dos fones de ouvido, surgia então como a mais nova tendência das ondas sonoras no jornalismo. O resultado é perceptível até hoje.

Por outro lado, embora a frequência AM tenha praticamente se extinguido na Europa, e perdido audiência nas Américas, a transmissão analógica de rádio ainda mostra força na contemporaneidade. Durante o recente conflito entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, a BBC voltou a mostrar-se relevante, ao “ressuscitar” seus sinais de ondas curtas para transmitir informações de qualidade, checadas, aos lares ucranianos. Ao mesmo tempo, em países com pouca infraestrutura digital, como banda larga, o rá-

dio e a televisão mantêm papel central. Esse foi o caso do Brasil, cujas notícias a respeito da covid-19 chegaram a mais pessoas por esses meios, segundo pesquisa da Abert.

O poder de penetração do rádio mesmo frente às tecnologias digitais foi percebido pelo médico Eugênio Scannavino, ainda nos anos de 1980, quando resolveu combater a mortalidade infantil em comunidades ribeirinhas do rio Tapajós, PA. Seguindo a trilha deixada por Janusz Korczak, ele criou com seu irmão, o comunicador Caetano Scannavino, a Rádio Mocoronga. Trata-se de um sistema de som adaptado a um barco que percorre as comunidades transmitindo informações relevantes de saúde púbica - e que está ativo até hoje. Fruto dessa ação inicial, a organização Saúde e Alegria, comandada pelos irmãos, é reconhecida globalmente pelo trabalho que reúne comunicação, educação e saúde pública.

O recurso pedagógico do podcast ou das rádios escolares ganhou também novo fôlego com o barateamento dos recursos técnicos. O programa Educom Rádio, por exemplo, tornou-se política pública na cidade de São Paulo há 15 anos. Nele, estudantes da rede pública utilizam a linguagem para explorar a criatividade, narrativa, inventividade e até para combater as notícias falsas.

Engana-se quem pensa, portanto, que o fato de o rádio utilizar apenas o som o torne uma comunicação menos completa, ainda mais em tempos de metaverso. É justamente a imaginação provocada no ouvinte que faz da mídia uma das mais instigantes; desde a radionovela até os atuais podcasts. Construir e lapidar uma história apenas com sons é um desafio pedagógico importante no desenvolvimento de narrativas, interpretação de fatos históricos e até na checagem de notícias falsas. Com todo esse potencial, o centenário rádio prova ter ainda muita lenha para queimar.

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Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance
Construir e lapidar uma história apenas com sons é um desafio pedagógico importante no desenvolvimento de narrativas, interpretação de fatos históricos e até na checagem de notícias falsas
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Inep falha e atrasa educação

Demora na publicação das matrizes de referência que serão a base do novo exame prejudica planejamento das escolas e atrasa implantação da reforma do ensino médio no país

Em 2017 foi criada por lei a chamada reforma do ensino médio; em 2018, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) desta etapa, bem como as novas diretrizes curriculares; em 2019, foram editadas as diretrizes do ensino técnico profissional. Veio a pandemia e, depois de um longo período de suspensão de aulas presenciais, foi marcado para 2022 o início obrigatório da implantação do novo ensino médio, cuja característica central é a flexibilidade introduzida pelos chamados itinerários formativos. Tudo parecia caminhar rapidamente, com total adesão dos estados e municípios, mas... onde an-

dará o novo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio)?

Sim, a peça final e decisiva para dar liga ao grande conjunto de transformações no ensino médio se tornou um angustiante compasso de espera para escolas de todo o país. Afinal, como virar o currículo de cabeça para baixo, dividindo-o entre a formação geral básica (60% do tempo curricular) e os itinerários formativos (40%), sem saber como os alunos serão avaliados no exame que é a principal bússola para a sociedade brasileira na escolha de escola para os filhos, e ainda um dos principais mecanismos de acesso para universidades federais, estaduais e até particulares?

Faltando quatro meses para o fim de 2022, já se sabe que a edição 2024 do Enem mudará na forma, sendo

NOVO ENEM
Currículo de transição por conta de incertezas no Enem de 2024 é a saída do Colégio Rio Branco, em SP Divulgação

realizado em duas etapas diferentes – uma justamente para os conteúdos gerais, idênticos para as escolas brasileiras, e outras quatro diferentes provas para avaliar as competências desenvolvidas por meio dos itinerários formativos, conforme as escolhas dos alunos ao longo do ensino médio. Sabe-se, também, que haverá questões de múltipla escolha e abertas, em proporção semelhante. Mas, não há sinal à vista da matriz de referência a partir da qual os itens serão criados – e, conforme os especialistas, o tempo está se esgotando.

É preciso lembrar que a atual matriz de referência do Enem, criado em 1998, foi baseada na prova aplicada na educação de jovens e adultos, denominada Encceja. Posteriormente, houve modificações importantes, introduzidas quando a prova foi adotada como forma de seleção para o ensino superior, inchada com novos conteúdos. “Por isso, o exame que aí está não tem nada a ver com o novo ensino médio”, diz a presidente do Conselho Nacional de Educação, Maria Helena Guimarães Castro, uma das responsáveis pela política de avaliação de larga escala no país quando presidiu o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) entre 1995 e 2002.

Em abril deste ano, foi realizada uma audiência pública no Congresso justamente para cobrar agilidade na divulgação das características do novo Enem. Um relatório externo apresentado pela deputada Tabata Amaral elencou diversos problemas, apontando a falta de velocidade do processo e o esvaziamento do banco de itens existente. Desde então, até que surgissem novidades – a principal delas foi a nomeação de um reconhecido técnico de carreira do Inep, autarquia responsável pela elaboração e aplicação do Enem. A partir de julho, o pesquisador Carlos Moreno é o responsável pela condução dos trabalhos. Mas há grandes desafios.

“Vão pairar dúvidas enquanto o Ministério da Educação não definir as matrizes. Vai ser um problema, es-

pecialmente nas privadas, que disputam as melhores notas no Enem. E todos estão tendo de implementar currículos sem essa definição”, alerta o consultor Eduardo Deschamps, ex-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e um dos principais protagonistas da reforma.

Para Maria Helena, o MEC já deveria ter preparado o novo Enem conforme as diretrizes curriculares e a BNCC. “Mas houve, em 2019, uma paralisia na educação básica, e depois veio a pandemia”, diz, apontando como causa as sucessivas trocas de comando no Ministério e nas diferentes áreas que cuidam da avaliação. Mas os estados e municípios fizeram sua parte. Ao final de 2021, todos já tinham homologado seus novos currículos do ensino médio. “Se o Inep tivesse divulgado as matrizes de referência do novo ensino médio até o final de 2020, como estava previsto na lei, todo mundo já estaria tranquilo”, assegura a presidente do CNE.

A previsão é que as matrizes do novo Enem comecem a ser divulgadas até o final de 2022. “Mas, para que dê tempo de haver a prova em 2024, é preciso preparar banco de itens, testar, e isso não é simples. O MEC precisa publicar isso logo para que as escolas tenham um pouco de previsibilidade”, defende Maria Helena.

E, de fato, país afora as escolas começam a viver a ansiedade de mudar o programa de ensino sem saber como os alunos serão depois avaliados. Em Fortaleza, CE, o Colégio Master é conhecido pelas altas taxas de aprovação de seus alunos nas mais disputadas universidades, e recebeu bem a reforma do ensino médio. O colégio investiu em formação e planejamento, preparando-se há alguns anos. Introduziu já em 2020 o tema do projeto de vida (um dos componentes previstos na BNCC) e reestruturou a carga horária da formação básica em 2021. “Percebemos que, desse modo, as mudanças seriam mais facilmente compreendidas pelos

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Divulgação Colégio Motiva, unidade João Pessoa. Atividades alinhadas ao novo ensino médio ocorrem desde 2020

NOVO ENEM

Sem definição de como será o Enem, a saída para os itinerários formativos foi tornar alguns componentes abrangentes, conta o diretor do cearense

alunos, professores e pela equipe técnica, e não seriam tão bruscas”, conta o diretor Nazareno Oliveira. Em 2022, os alunos passaram a escolher eletivas dentro do seu itinerário, para que entendessem a liberdade e a responsabilidade de realizar essas escolhas. “A introdução dos itinerários traz novidades que buscam aperfeiçoar o ensino médio e torná-lo mais direcionado à formação que o aluno almeja. Porém, existem questões práticas”, analisa.

“Sem definição clara de como será o Enem, tivemos que adotar uma postura para tornar os itinerários voltados para alguns componentes mais abrangentes, de modo que, depois que essa definição for divulgada, direcionaremos cada um dos itinerários ao objetivo dos alunos, sem que nenhum deles seja prejudicado”, conta Nazareno Oliveira. A estratégia adotada previu esforços iniciais focados nos componentes da formação geral básica, para que seja possível ajustar os itinerários quando a matriz de 2024 for publicada. “Com essa possibilidade, enquanto aguardamos o momento oficial de informação da matriz, nos mantemos mais tranquilos”, avalia o diretor.

Da mesma maneira, o Colégio Motiva, com unidades em João Pessoa e Campina Grande, iniciou a implantação do novo ensino médio em 2020, e logo deu início aos itinerários formativos. “O modelo possibilita práticas como a investigação científica, mediação e intervenção sociocultural, processos criativos e empreendedorismo. Avaliamos ser de extrema importância para os alunos a sua aplicação na nossa escola”, diz o diretor Carlos Barbosa.

Ainda assim, para ele, a falta de uma definição mais clara sobre as matrizes do novo Enem deixa as escolas brasileiras confusas pela ausência de um norte pedagógico para a construção das trilhas de aprendizagem. Ele acredita, no entanto, que não haverá prejuízo para os alunos. “Ao colocar em prática o novo modelo, refletimos de uma forma mais ampla sobre os objetivos educacionais deste novo milênio”, diz.

Em São Paulo, no Colégio Rio Branco, a diretora Esther Carvalho também se preocupa. Sua equipe trabalhou ao longo da pandemia para adequar a proposta pedagógica ao novo ensino médio, mas sabe que ainda não chegou a um desenho definitivo. “Construímos um currículo diferente e no qual acreditamos, correndo grandes riscos, mas entendendo que é um movimento de transição – pois não temos o cenário completo. O Enem é importante e conversa com esse desenho”, diz. “Nos sentimos fazendo um quebra-cabeça enorme, cheio de céu para colocar pecinhas, e faltando peças que estão no bolso de alguém”, resume. Por isso, a opção do Rio Branco foi iniciar as mudanças pelo 1º ano do ensino médio, explicando para as famílias passo a passo. “Queremos ter a possibilidade de um futuro ajuste, frente a tantas indefinições. Se o cronograma tivesse sido correto, o cenário seria outro, mas não é”, diz a diretora.

Por todas essas razões, há grande expectativa sobre os próximos movimentos do Inep. Segundo Maria Helena, do CNE, os impactos estão para além da preparação dos alunos – vão mesmo abalar as tradições do ensino superior. Para ela, além de permitir a consolidação do novo modelo do ensino médio, a prova criará pressão para que as universidades atualizem seus sistemas de acesso e também seus cursos de graduação, como vem ocorrendo em todo o mundo. “O novo ensino médio e o novo Enem vão forçar as universidades a reverem seus currículos. Se o ensino superior não mudar, não vai preparar ninguém para o mundo do trabalho”, acredita.

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Divulgação
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EDUCAÇÃO BRASILEIRA Questão do docente, o desafio da educação

Livro do jornalista Antônio Gois analisa 200 anos de educação brasileira, discute as razões do atraso, orçamento, políticas educacionais e principais desafios da área

Ocenário atual da educação brasileira é o resultado de um longo processo de descaso e de decisões equivocadas que até hoje geram um alto preço ao país. Essa é a premissa principal do livro recém-lançado O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente (FGV ed.), do jornalista Antônio Gois, diretor da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca).

“No livro eu mostro estudos que demonstram que o principal problema do Brasil é que o professor costu-

Antônio Gois: há uma falsa ideia de que a educação pública no passado seria melhor

ma dar aula em duas, três, quatro escolas, acumulando muitas turmas, o que resulta em menos tempo para se aperfeiçoar constantemente. Existem outras questões também, como melhorar a gestão das escolas e do sistema, mas se eu fosse eleger o principal desafio, ele está na questão do docente”, afirma Antônio Gois, que desde 1996 cobre a pauta da educação.

Outro tema abordado pela obra é a falsa ideia de que a educação pública no passado seria melhor. A partir de estudos e da análise das estatísticas históricas, o livro traz farta evidência de que o sistema educacional era, na verdade, uma grande máquina de exclusão em massa que abusava do expediente da repetência sem que isso gerasse melhor qualidade.

Nesta conversa com a revista Educação, o autor discorre sobre temas como o orçamento do setor, premissas equivocadas do passado e quais são os principais obstáculos da educação brasileira. Confira.

Você afirma que, como sistema, o Brasil nunca teve educação de qualidade. Em algum momento o país teve um projeto de Estado que desse a devida importância para a educação?

Para responder essa pergunta temos que separar o discurso da prática. No discurso, tivemos vários projetos educacionais até bastante ousados. No Estado Novo, por exemplo, apesar das críticas que podem e

Obra conta com 208 páginas. A apresentação, sob o título de A falsa prioridade, é de Luís Roberto Barroso, ministro do STF

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Alice Vergueiro/Jeduca | Por Raul Galhardi

merecem ser feitas, havia uma concepção, muito desigual, de uma escola para rico e outra para pobre. O Gustavo Capanema pensou um projeto educacional para o país, só que ele não foi bem executado. Nessa época, o gasto por aluno e o crescimento das matrículas foram muito ruins.

Apesar da narrativa de que está tudo ruim e piorado, o período da redemocratização foi muito bom para a educação em termos de aumento de investimento, matrículas e, parcialmente, de qualidade. As melhorias, entretanto, ainda foram muito insuficientes.

No livro, você fala que existem algumas ideias do passado na educação brasileira que são equivocadas e que continuam influenciando políticas do presente. Você poderia dar exemplos?

Uma delas é que a aprovação automática seria um dos mais graves problemas da educação pública. A lógica por trás disso afirma que o sistema educacional tinha qualidade antes e com a aprovação automática ela caiu. Portanto, seria melhor ter repetência do que aprovar automaticamente.

Qual é a premissa equivocada sobre o passado? Que se tinha uma qualidade que se perdeu com a aprovação automática, o que não é verdade. Primeiro porque os indicadores de reprovação sempre foram muito altos e não havia indicadores para mensurar a qualidade com os parâmetros que a gente tem hoje. Não há nenhum estudo comprovando que, por causa da aprovação automática, a qualidade caiu, mas, no entanto, se repete isso. Aliás, se olharmos o percentual de alunos com aprendizagem adequada no 5º do ensino fundamental, entre 1995 e 2019, o que vemos é um aumento de alunos com aprendizagem adequada.

Em relação ao orçamento da educação, discute-se que ele seria adequado, mas que não é utilizado de forma eficiente. Isso é verdade?

Dependendo de como a conta é feita, o orçamento varia entre 5% e 6% do PIB, então é verdade que o Bra-

sil já gasta em educação valor equivalente ao de países desenvolvidos. Só que o investimento per capita é muito baixo e quando isso é traduzido em gasto por aluno também é verdade que o Brasil fica muito abaixo dos países desenvolvidos nesse quesito, então as duas afirmações são verdadeiras.

O que eu defendo no livro é que se queremos fazer um debate público sério é preciso considerar essas duas informações. Eu argumento que precisamos melhorar a eficiência do gasto público, mas discordo (e apresento no livro evidências) que o investimento público desde a redemocratização tenha sido inútil.

Aumentou o número de alunos em creches (de 5% para 37% entre 1989 e 2020), a quantidade de alunos no ensino médio (de 14% para 75% entre 1985 e 2020), o percentual de crianças com aprendizagem adequada no 5º ano fundamental. Porém, o peso do atraso no Brasil é muito grande, então todo esse aumento dos investimentos ainda não foi suficiente para diminuir a distância do Brasil para os países ricos. Isso é um fato que não dá para esconder.

Quais são os principais gargalos na educação brasileira?

O primeiro desses obstáculos é a questão do professor, olhando apenas para o setor educacional sem levar em conta fatores externos como pobreza e a escolaridade dos pais. É preciso uma política que pague salários atrativos, pelo menos na média do mercado, e que forneça uma formação que prepare esse professor para os desafios que ele enfrentará na prática. É necessário melhorar as condições de trabalho e criar nas escolas um ambiente de constante aperfeiçoamento profissional. No livro eu mostro estudos que demonstram que o principal problema do Brasil é que o professor costuma dar aula em duas, três, quatro escolas, acumulando muitas turmas, o que resulta em menos tempo para se aperfeiçoar constantemente. Existem outras questões também, como melhorar a gestão das escolas e do sistema, mas se eu fosse eleger o principal desafio, ele está na questão do docente.

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Mostro estudos que demonstram que o principal problema do Brasil é que o professor costuma dar aula em duas, três, quatro escolas, acumulando muitas turmas

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Cai ingressantes de até 24 anos

País precisa reverter essa queda para ter a população jovem apta a encarar as demandas de um futuro que exige mais capacitação

| Da revista Ensino Superior

A12ª edição do alentado Mapa do Ensino Superior no Brasil, preparado pelo Instituto Semesp, confirma o crescimento do EAD em 2020, cuja pandemia ajudou a consolidar esse modelo, e evidencia a queda das matrículas presenciais. Ao olhar os números, vê-se que o setor andou de lado nesse ano, mas a subida do EAD traz uma preocupação: o público ainda não é o jovem, embora comecem a aparecer sinais de adesão. Mas a taxa de escolarização líquida cai e o país fica numa situação delicada para ter trabalhadores capazes de suprir a mão de obra especializada que a indústria tanto reclama.

A seguir, alguns dados, mas vale uma conferida na obra de 330 páginas e que traz um estudo detalhado do setor da saúde e os dados dos estados brasileiros. O total de matrículas cresceu 0,9% de 2019 para 2020, queda de 50% em comparação ao período anterior, quando as matrículas tinham aumentado 1,8%.

ALUNOS DE ATÉ 24 ANOS EM BAIXA

De 2019 a 2020, o número de ingressantes até 24 anos de idade em cursos presenciais caiu 13,9%: 16,5% na rede privada e 7,7% na rede pública. 69,0% desses novos alunos estão na rede particular. Historicamente, o público mais jovem tem preferência pela modalidade presencial e pode ter optado por adiar o ingresso no ensino superior em virtude da pandemia. Os ingressantes da faixa etária até 24 anos representam 67,9% no total de novos alunos em cursos presenciais.

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ENSINO SUPERIOR
Shutterstock

NÚMERO DE IES DIMINUI

De 2019 para 2020, primeiro ano da crise sanitária, houve uma queda de apenas 5,8% no total de instituições de ensino superior (IES) no país, com decréscimo de 6,6% na rede privada. Ainda assim, 87,6% das IES brasileiras são particulares, concentrando 77,5% das matrículas de graduação.

4,2% DAS IES SÃO UNIVERSIDADES

81,4% das IES privadas são classificadas como faculdades, ou seja, são instituições com enfoque em formações específicas de uma área. Apenas 4,2% das IES da rede privada são consideradas universidades, com um portfólio de cursos mais abrangente. Na rede pública, 36,8% das IES são classificadas como universidades.

3% DAS IES TÊM 59,6% DOS ALUNOS

As IES de porte pequeno seguem sendo a maioria no país. Na rede privada representam 80,7% das instituições. Na rede pública são 36,7%. As IES de porte gigante, com mais de 20 mil matrículas, representam apenas 3% da rede privada e 15,5% na rede pública. As mantenedoras de porte gigante acumulam 59,6% das matrículas do país, contra 10,9% das IES de pequeno porte, apontando uma concentração do setor na mão de poucas instituições.

Depois de subir 14,0%, o número de polos entre 2020 e 2021 desacelerou em 2022, com um aumento de 1,1% na rede privada, que segue controlando as matrículas da modalidade (91,2%).

O FREIO DA PANDEMIA

Com o acréscimo de apenas 1,8% das matrículas de 2018 para 2019, o país registrou um aumento ainda menor de 2019 para 2020, de 0,9%, um provável resultado do primeiro ano da pandemia da covid-19. O aumento tímido no total das matrículas em 2020 foi puxado por uma queda de 6,0% de alunos na rede pública, que demorou a adotar o ensino remoto emergencial. Mesmo com a pandemia, a rede particular registrou um aumento de 3,1% nas matrículas no período, puxada pela modalidade EAD. Segundo projeções feitas pelo Instituto Semesp com base na Pnad Contínua do IBGE, 2021 deve registrar uma queda de cerca de 7,0% no total das matrículas.

NO SUDESTE, QUASE 50%

São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro concentram 42,8% das matrículas do ensino superior do país. Rondônia é o estado com maior percentual de alunos em IES privadas (86,0%), seguido pelo Amazonas (84,7%) e Pará (84,4%), os três da região Norte. O Rio Grande do Norte é o estado com menor percentual de alunos matriculados na rede privada, 57,8%.

POUCOS NEGROS

A rede privada registrou um aumento de 1,4 ponto percentual de alunos negros de 2013 para 2020. Na rede pública, esse crescimento foi um pouco maior, 2,3 pontos percentuais, resultado da Lei de Cotas.

EAD ESTÁ NA IES PARTICULAR

94,9% dos alunos de EAD estão em IES particulares. De 2019 para 2020, a modalidade registrou crescimento de 26,8% das matrículas: 28,6% de acréscimo na rede privada e queda de 0,2% na rede pública.

CAI PRESENCIAL

72,7% dos ingressantes de 2020 entraram em uma IES da rede privada. Mas houve queda de 15,6% no número de calouros nos cursos presenciais de 2019 para 2020. Na rede pública, o decréscimo foi de 9,1%.

EAD SEGURA QUEDA

As matrículas no EAD aumentaram 7,7% de 2019 para 2020, saltando de 19,1% para 26,8%. Com queda de 3,8% em 2019, as matrículas presenciais diminuíram mais 5,6%, chegando a uma baixa de 9,4% em 2020. Do 1º semestre de 2021 (até maio), comparando com o mesmo período de 2020, houve queda de 16,8%, resultado da redução de 20,2% para cursos presenciais e aumento de 20,8% para cursos EAD.

MENOS JOVENS DE 18 A 24 ANOS

Diminui a população de jovens de 18 a 24 anos: 2,4% de 2019 para 2020. Isso tem se refletido no arrefecimento das matrículas e de ingressantes no ensino superior dessa faixa etária: diminuição de 4,9% das matrículas e redução de 6,1% no número de ingressantes de jovens entre 18 e 24 anos.

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EDUCAÇÃO INFANTIL

P

Para Jon-Roar Bjørkvold, uma das maiores autoridades mundiais em antropologia musical, as escolas minam a criatividade e a inspiração das crianças com o excesso de regras e a supressão da cultura oral

Por que a obra de Paulo Freire lhe causou tanto impacto e de que maneira ela está presente em seu trabalho?

or que suas escolas não ouvem mais Paulo Freire?” Esse é o questionamento do norueguês Jon-Roar Bjørkvold quando lhe contamos que o preparo para a alfabetização é uma preocupação presente nas escolas de educação infantil brasileiras. É um crítico mordaz da cultura escolar, que ele considera fria, formal, baseada na obediência, na disciplina e na supremacia da escrita sobre a cultura oral; Admirador de Paulo Freire e Dom Hélder Câmara, o professor de musicologia na Universidade de Oslo, pesquisador e palestrante, afirma que a música, a criatividade e a brincadeira carregam similaridades que transcendem tempo, espaço e cultura. Elas também permeiam a nossa existência desde a vida intrauterina até o nosso último suspiro. Confira a seguir os principais trechos da entrevista concedida à revista Educação Infantil:Eu tive o meu primeiro filho em 1970 e acompanhei bem de perto o seu desenvolvimento. Ao longo dessa trajetória, concluí que a aprendizagem infantil é principalmente social, emocional, física, oral e subliminar – e não sistematicamente escolar, baseada em livros e logicamente intelectual. Fiquei alarmado. Por que isso acontece? A maioria das crianças em todo o mundo aprende a falar fluentemente a língua materna (muitas são até bilíngues) muito antes de entrar na escola. Foi nesse ponto que li o

Pássaros engaiolados Envato elements

livro de Paulo Freire A pedagogia do oprimido. Ele apontou para uma lacuna assustadora entre as culturas orais e as formas de aprendizagem de seu Brasil natal, entre a criatividade e o sistema escolar europeu-ocidental das escolas brasileiras da época. Eu estendi seu pensamento para abraçar culturas infantis orais em todo o mundo; todas as crianças estão sendo oprimidas da mesma maneira.

Um conceito muito importante em seu livro Música, inspiração e criatividade — Uma linguagem universal (Summus Editorial) é o do ser musal. Como o senhor o define?

O título original do livro é Det musiske menneske, sendo musisk derivado do antigo mito grego do nascimento das musas – o mito está incluído no livro. As musas nasceram para dar ao mundo vozes criativas de expressão; até o nascimento das musas, o mundo era mudo. O ser musal carrega os poderes criativos que são próprios da criança. Estes poderes têm de ser fortalecidos, e não subjugados pelas escolas.

Em seu trabalho, a criatividade é definida como a chave para se encontrar na vida, criar e compreender a si mesmo. O fato de os adultos de hoje estarem buscando cursos para ativar a criatividade indica que perdemos a capacidade natural de cultivá-la?

A musa interior flui na criança desde o início da vida, ainda quando estão no útero. Nós, adultos, pelo menos na Escandinávia, esquecemos o poder da música. Então, quando eu ensino, o canto é crucial como a chave para redescobrir a musa interior. A experiência pode ser muito forte, de fato. Recorrendo a tradição filosófica, voltando pelo menos ao período iluminista do século XVIII, temos Descartes que dizia: Dubito, ergo cogito, cogito ergo sum (Duvido, portanto, penso. Penso, portanto, existo). Em nome das crianças de todo o mundo, eu digo: Canto, ergo vivo, canto ergo sumus (Eu canto, portanto, vivo. Eu canto, portanto, somos).

O senhor diz que as escolas são instituições comprometidas com a repressão da infância. Quais práticas o senhor enxerga com mais ressalvas?

Os jardins de infância europeus estão sendo invadi-

dos por um viés escolar muito forte. Na Noruega, o início da escolarização mudou para os seis anos (antes era sete anos) em 1997. Passados 20 anos da mudança, as pesquisas mostram que não houve melhora no aprendizado. Mas as taxas de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) estão subindo acentuadamente, seguindo um padrão internacional. O uso da medicação Ritalina é generalizado e o campo da psiquiatria infantil e juvenil cresceu. Se você perde seu poder de expressão criativa, algo vital em você vai embora também. Sua musa interior sofre.

No Brasil, muitas escolas de educação infantil também antecipam a introdução de crianças no mundo letrado, reduzindo o papel da cultura oral. Em nosso país, muitos pais também vão ao tribunal para alfabetizar seus filhos antes dos seis anos de idade. O que isso revela sobre a nossa sociedade?

Seus ritmos de samba e congado, suas tradições carnavalescas são mundialmente famosos; gingando, a seleção brasileira é a melhor do mundo. Por que suas escolas não ouvem mais Paulo Freire? O impacto da Europa Ocidental no pensamento escolar de seu país era, e ainda é, muito dominante, me parece.

Como inserir mais músicas nas escolas sem a presença de professores especialistas?

Canção pertence a todos, desde o início da canção de ninar na vida até o leito de morte, quando as primeiras músicas da vida são a única coisa que ainda lembramos. Faz parte da nossa identidade. O canto diário em sala de aula não deve ser profissionalizado, é universalmente humano, diferente da educação musical na escola, que, de fato, exige professores especialistas.

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Radek Duopovec
O uso da medicação Ritalina é generalizado e o campo da psiquiatria infantil e juvenil cresceu
Crianças estão sendo oprimidas

Instituto

Frei João Pedro de Sexto, Ceará Inclusão, competências e habilidades em uma escola de 70 anos

IFJPS promove educação para a cidadania em diálogo entre família e ambiente educacional

Datam de 1950 as primeiras atividades educacionais do que viria a ser o Instituto Frei João Pedro de Sexto (IFJPS), unidade escolar de educação infantil ao ensino fundamental 2, localizada em Messejana, bairro da zona sudeste da cidade de Fortaleza, no Ceará.

De início, as atividades eram totalmente voltadas às pessoas carentes da região. Mais para o final da década, passou a firmar convênios com as secretarias de Educação estadual e municipal. Por fim, em 1972, passou a receber o nome atual, em homenagem ao religioso italiano, fundador da congregação mantenedora, no início do século passado. Desde então, as premissas que movem o trabalho dessa instituição são as mesmas. “Temos a missão de atuar na sociedade civil promovendo uma educação para a cidadania, justiça e fraternidade, à luz dos valores evangélico-franciscanos, fazendo com que nossos educandos sejam agentes e construtores de uma nova

sociedade”, explica a coordenadora pedagógica, irmã Francisca Edivalda Rosendo. O IFJPS integra a rede particular de ensino e é mantido pela Associação das Irmãs Missionárias Capuchinhas, como pessoa jurídica sem fins lucrativos.

NO PALCO E NA VIDA

Quem está por dentro das atividades do Instituto, seja pelas redes sociais ou em outros canais de divulgação, costuma acompanhar, com frequência, as crianças em espaços que vão além das carteiras escolares –como os palcos e apresentações.

“Buscamos trabalhar competências e habilidades e, sendo assim, o teatro, a música, a dança mostram-se como um ambiente de oportunidade para liberação de emoções e relacionar conteúdos de maneira interdisciplinar”, pontua a irmã Francisca, que ressalta também que, nos tempos de pandemia, foi dada uma atenção especial à execução dessas dinâmicas também no segmento audiovisual.

AMBIENTE INCLUSIVO

A irmã Francisca Edivalda Rosendo é a coordenadora pedagógica desde 2012

Outro ponto de destaque nas atividades diárias do IFJPS é o vínculo com as propostas inclusivas no ambiente de ensino. De acordo com a coordenadora, a inclusão é experimentada para que o estudante, de fato, participe das vivências escolares, sem que seja uma maneira em que ele esteja apenas presente, mas não participante. “A inclusão, para nós, ocorre tanto do meio para com a pessoa, como da pessoa para o meio”, explica.

Para ela, um dos maiores desafios dessa temática nos dias de hoje está no entendimento dos pais de que seus filhos precisam ser desafiados, e que são capazes de superar as adversidades, no seu tempo.

FUTURO DA ESCOLA Série apoiada pela
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“Não há necessidade de ser tratado de forma exclusiva porque apresenta algum tipo de laudo; incluir não deveria significar excluir a criança do convívio habitual com os outros alunos, mas mostrar caminhos que ela possa trilhar nesse meio”, pontua.

CONTEÚDO EM TEMPOS DE DISTANCIAMENTO

Segundo a Unesco, bastou alguns meses desde o início da pandemia do novo coronavírus, em 2020, para que 300 milhões de estudantes, de 22 países, em três continentes diferentes, já fossem severamente impactados pela interrupção das atividades presenciais. No IFJPS não foi diferente. No entanto, soluções pedagógicas, com apoio da tecnologia, como o uso de uma plataforma de conteúdo, foram responsáveis por conectar professores, alunos, familiares e a gestão em um único ambiente digital.

“As atividades propostas foram importantes para captar a atenção dos participantes que estavam em casa e contribuíram para a maior imersão durante o dia a dia em sala”, complementa Edivalda, que ressalta que o sucesso desse fluxo, durante o distanciamento, fez com que a medida permanecesse, também, nos dias atuais, em que as atividades presenciais foram retomadas.

As rotinas hiperconectadas, no entanto, ainda obedecem a um caminho de transição nas dependências do Instituto. Como explica a coordenadora, apesar da estrutura escolar com computadores, rede de internet Wi-Fi, webcams e outros softwares, ainda existem níveis de

interação com esses recursos, envolvendo educandos, corpo docente e famílias, que devem ser respeitados. Conforme relata, existem diferenças na forma de lidar com esses mecanismos, que são notadas em pequenas ocorrências cotidianas, como a facilidade em consultar uma agenda online ou, ainda, a constante perda de senhas de acesso de softwares institucionais, seja por esquecer a senha, seja por algum motivo de bloqueio.

“Nivelar é o primeiro desafio que enfrentamos. Uma vez superada essa etapa, temos conseguido inserir tecnologias atuais para agregar às mais tradicionais, como sala de aula invertida, tour virtual, dentre outras”, exemplifica.

À frente das demandas dos 400 matriculados nos dias de hoje, irmã Edivalda prossegue com uma jornada que se iniciou há quase 20 anos, em 2003. À época, ingressou como coordenadora do serviço de orientação religiosa, promovendo a ligação entre a espiritualidade e as atividades diárias – o atual cargo foi assumido em 2012.

“Desde então tenho buscado trabalhar com nossos alunos e alunas, fazendo uma ponte entre família e escola”, conclui.

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Reprodução/Facebook Alunos em iniciativa de doação em 2018
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O IFJPS tem período integral, o que inclui atividades esportivas e acompanhamento pedagógico

ENSAIO

A educação brasileira não está em crise

200 anos de Independência do Brasil e apenas 20 anos de independência da educação pública

Enquanto a política brasileira oficial comemora o bicentenário da Independência, a escola pública chega apenas a seus 20 anos de independência democrática e republicana.

Escola para todos, gratuita e laica e com condições básicas de financiamento é uma novidade no país. Sua construção se iniciou, de fato, com marcos legais na Constituição, com a promulgação da LDB de 1996, com financiamento claro, com o início de avaliação nacional iniciada a partir de 1997 e com políticas mais claras de formação de professores, que tem como um dos marcos a Universidade Aberta do Brasil. As bases curriculares nacionais vão fechar esse ciclo apenas em 2017.

Apesar desse retardo histórico de atenção à educação escolar, contraditoriamente, ouso dizer que: A educação brasileira não está em crise!

“Nunca as escolas foram tão ruins!” dizem alguns analistas míopes, escandalizados. Se acreditarmos, sem senso histórico, nas notícias da grande imprensa que caem sobre nossos corações, então não há salvação.

Do lado de alguns dos usuários há um conjunto de insatisfações que se somam, se contradizem e se consolidam. Pena.

Vejamos quais.

Alguns pais acham que falta rigor de cobrança, autoridade e produtividade.

Os mais velhos dizem que “no nosso tempo, sim, havia qualidade”. E a lista segue... “Os professores são mal formados, o currículo é antiquado e não corresponde ao que as crianças e jovens desejam. A avaliação é sem

critério ou é muito exigente assim como, para alguns, a aprovação automática é que gera esse disparate de rebaixamento do nível da aprendizagem”... etc. etc.

Todos os argumentos são repletos de uma série de meias verdades e omissões de alguns resultados.

Apesar disso, contraditoriamente, ouso dizer que:

A educação brasileira não está em crise!

A escola pública é vitoriosa no Brasil. O país, suas leis, seu conceito de democracia, sua real vontade de cuidar da cultura da aprendizagem democrática só se operou nos últimos 20 anos. Já foi uma vitória em poucos anos ter tido tanta coisa realizada. A economia mercantil do país e o descaso de suas elites, que se consolidam em suas políticas públicas, retardaram tanto quanto puderam a independência e eficácia da escola pública. Por isso, pode-se dizer que a escola pública brasileira fez milagre nos 20 anos iniciais

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Escola para todos, gratuita e laica e com condições básicas de financiamento é uma novidade no país

É preciso compreender e valorizar os direitos básicos conquistados e que fazem parte da história do país. Na foto, alunos da EMEF João Pinheiro, Vila Matilde, SP

deste século 21, porque ela conseguiu ter as primeiras características e condições de um aparelho republicano de Estado: a escola para todos.

O país, sua economia, sua política, suas elites resistiram 500 anos a fazer a independência da escola. Até então a escola pública era para a pequena minoria que trazia condições próprias para cursá-la. Era entendida como uma escola de qualidade.

Por isso, a Independência, que comemoramos em 2022, foi feita, de fato, apenas para a política institucional e não para a educação.

Continuamos, 200 anos depois da chamada Independência de Portugal, sem que a totalidade da população tenha tido escola gratuita e laica.

Mas as críticas a ela não se silenciaram, querendo que os resultados aparecessem imediatamente.

Pergunta-se: e a qualidade? Parece-nos que cobrar qualidade da educação é perguntar pela qualidade social da educação, pela qual só há qualidade se for para todos e com atendimento às questões carregadas pela sociedade para o conhecimento escolar. Não se trata de qualidade laboratorial ou de termos poucas escolas-modelo com recursos excepcionais inalcançáveis pela totalidade das demais escolas. Nesse caso, podemos dizer que “qualidade para poucos não é qualidade, é privilégio”.

As críticas se acumulam em torno de um princípio

perverso que é: “tá vendo, a escola pública não dá certo”, trazendo os seguintes argumentos: os jovens não gostam de estudar ou têm déficits irrecuperáveis; os professores são mal formados e incompetentes; o currículo é desmotivante, pois não é lúdico, não atende ao que o aluno quer e tem que ter resultados imediatos; concluindo taxativamente: “o Estado é inepto para conduzir o processo escolar, portanto, devolvamos as crianças às famílias ou aos estudos individualizados”. Tais conclusões são prematuras e equivocadas.

Ouso dizer que, nesse contexto, a escola é de alta qualidade social, apesar de seus 25 anos de início de constituição como uma dimensão republicana.

Destaco aqui alguns desses elementos: a escola fez a tarefa de universalização do acolhimento das crianças e foi estendido seu período obrigatório que hoje vai dos quatro anos aos 17 anos (da educação infantil ao ensino médio). Importante destacar que o ensino médio colocado como obrigatório é recente.

O crescimento dos anos estudados e a inclusão social de todos exigem um período de ações afirmativas dos estados (município, estado e federação) que permitam o financiamento, o acesso às tecnologias da informação e comunicação (banda larga, equipamentos, formação, metodologias...), a formação de novos professores surtirem amplos efeitos positivos perceptíveis. Os números de seus efeitos não são medidos pelo crescimento incremental das faculdades de formação inicial e de reorganização curricular nem das avaliações internacionais ou locais. A medida de seus resultados só será justa ao termos criado uma cultura de prestígio e condições intersetoriais para os resultados da escola pública. Além do mais, há que se levar em conta a nova fase da sociedade brasileira tocada gravemente pelas consequências de uma pandemia desoladora.

Por isso, o 7 de setembro será a ocasião de nos lembrar que a educação ainda não está liberta, mas em um processo de emancipação que só se consolidará com o entendimento de que a educação é uma prática da liberdade, de cultura e de educação para todos.

Fernando José de Almeida

é professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e foi secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (2001-2002).

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Gustavo Mori t a/ r evi st a E d u c a ç ã o

Inovação em processo harmônico com educadores

Como a Escola Bosque, instituição de mais de meio século, coloca em prática a

tecnologia na área pedagógica e coleciona cases nacionais e internacionais

Crianças e adolescentes que frequentaram a Escola Bosque, no início do século, exerceram uma experiência incomum para as salas de aula naquele momento no país. Há 22 anos, a instituição, localizada na Vila Mascote, bairro da zona sul de São Paulo, que oferece do ensino infantil ao ensino fundamental 2, trabalha com projetos de educação tecnológica e robótica pedagógica.

O fato revela o estilo de gestão da unidade, constantemente aberta à implementação de novidades em tecnologias e metodologias de ensino. A mais recente? Seus alunos estão construindo um carro elétrico.

Em uma iniciativa internacional, mais de 10 mil estudantes ao redor do mundo se dedicam ao desenvolvimento do e-kar, um protótipo sustentável. A escola paulistana foi convidada a integrar a primeira equipe binacional da competição, ao lado da Inglaterra. Em outubro, os jovens participantes estarão de malas prontas para competirem no Circuito de Goodwood, em Chichester, Reino Unido.

Professores integrados

Por apresentar uma postura aberta ao que é novo no segmento educacional, a diretora pedagó-

Fotos: Divulgação

A transformação no ambiente educacional passa por um ecossistema de quatro passos, destaca o engenheiro de soluções Carlos Almeida

A diretora

entende que os professores são o elemento-chave no processo de inovação

gica da Escola Bosque, Silvia Scuracchio, frequentemente é convidada a conceder entrevistas e a fornecer relatos sobre as experiências de ensino.

Em suas falas, é comum ressaltar a importância dos professores no processo de inovação. “Na verdade, eles são o elemento-chave nessa questão. A inovação deve ocorrer como um processo harmônico onde todos os educadores envolvidos trabalhem em sintonia e consonância com as novas ideias”, pontua.

Dentro dos muros da escola, há a preocupação em se falar do aprendizado do estudante, mas sem negligenciar o aprender do corpo docente, incentivando um clima de mudança de mindset. “Não basta, apenas, oferecer cursos de formação ou capacitação profissional, é preciso criar acolhimento, incentivo e levar o prazer do aprendizado para esses profissionais, transformando-os em lifelong learners”, diz.

A mudança de paradigma é necessária, observa, pois eles passam a ser aprendizes como os alunos e não apenas os detentores do saber e transmissores de conhecimento. “Começam a construir o conhecimento de forma colaborativa”, relata.

APRESENTADO POR studio
escolar Silvia Scuracchio

Recursos de qualidade

Na Escola Bosque, as aulas de tecnologia se iniciam na educação infantil, com as propostas integradas ao conteúdo programático. Para colocar em prática as dinâmicas necessárias para os públicos da instituição, contam com equipamentos robustos, que oferecem a estrutura para o desenvolvimento das atividades.

“A parceria com a Lenovo nos possibilitou ampliarmos o uso de ferramentas digitais, em devices com maior capacidade e com qualidade inigualável”, explica a diretora pedagógica. “São dispositivos que se transformam em tablets, adequados ao uso dos alunos, pois são bastante resistentes e com processadores rápidos e confiáveis”, observa.

Silvia cita o bom desempenho das câmeras e do som, como facilitadores para o desenvolvimento de encontros virtuais com estabelecimentos ao redor do mundo. “Além disso, a parceria tem uma área educacional, que cria uma rede de apoio para as escolas e isso é extremamente importante nessa jornada de transformação digital.”

Em 1971, o casal Danute e Walter foi responsável pela fundação da Escola Bosque. Eram os pais da atual diretora, que garante que a instituição permanece com seus valores iniciais. “Acreditamos na importância de uma educação de qualidade, baseada na afetividade e na inovação pedagógica.”

Na Escola Bosque, as aulas de tecnologia se iniciam já na educação infantil

Tecnologia deve ser meio e não fim

O engenheiro de soluções para educação da Lenovo, Carlos Almeida, recorda-se de que, há alguns anos, o tablet, notebook e smartphone na sala de aula eram desligados e devidamente guardados nas mochilas. Ironicamente, a pandemia trouxe um sentimento de urgência e esses recursos passaram a ser fundamentais para a continuidade das atividades. “Com o retorno das aulas presenciais, há escolas querendo voltar ao modelo antigo – e a pergunta que fica é: por que não optar por algo misto?”, comenta. Para o desenvolvedor, é importante que as instituições implementem os recursos tecnológicos como meio e não como fim.

Adequação ao segmento

Carlos pontua que, para atuar no segmento educacional, a Lenovo utiliza parcerias pedagógicas para cada área, além de desenvolver um produto específico para esse segmento. Na prática, isso significa que os equipamentos em contato com o mundo escolar são específicos e não apresentam os mesmos padrões do varejo. “É um notebook com resistência à queda e ao derramamento de líquidos, por exemplo – se ele cair de uma carteira, com altura média de 75 cm do chão, não vai acontecer nada”, garante. Para o especialista, trata-se de um ecossistema de quatro passos decisivos para bons resultados nos estabelecimentos de ensino: os dispositivos, a etapa pedagógica, a gestão e, por fim, a transformação no ambiente educacional.

Debate reúne mais de 50 especialistas A

primeira diretora transexual da rede pública de SP, Paula Beatriz de Souza Cruz, o coletivo indígena acreano Kayatibu, tendo como porta-voz Rita Huni Kuin, o mestre maranhense da cultura popular Tião Carvalho, e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), representada por Renato Janine Ribeiro, foram os quatro homenageados do Grande Encontro da Educação deste ano, evento realizado pela revista Educação e revista Ensino Superior. Gratuito e híbrido nos dias 16 e 17 de agosto – presencial no Instituto de Tecnologia e Liderança (Inteli), localizado em SP – e somente online em 18 e 19 de agosto, o evento oportunizou ao público, composto de diretores(as) e educadores(as), a reflexão junto a mais de 50 renomados especialistas brasileiros que participaram de painéis sobre os mais diversos temas relacionados ao mundo da educação. Isso sem contar as oficinas realizadas na modalidade presencial. Tudo gratuito.

A íntegra dos quatro dias você pode assistir em nosso canal no YouTube, revista Educação.

Confira um resumo do que aconteceu nos dias presenciais do evento que este ano chegou à sua oitava edição.

Revista Educação 52 GEE
A importância de um compromisso social com a educação brasileira foi destaque dos quatro dias da oitava edição do Grande Encontro da Educação
Paula Beatriz de Souza Cruz foi a homenageada desse dia e abriu o evento. Ela é a primeira diretora trans da rede pública de SP Beatriz Abuchaim, gerente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, dividiu mesa com a pesquisadora Juliana Diamente e a coordenadora pedagógica Michelle Tambroni (esq. para a dir.). As três falaram sobre Educação infantil, BNCC e o diálogo com o território
OURO
16 de agosto
DIAMANTE

Painel oferecido pelo Cel.Lep

Os desafios de uma educação bilíngue intercultural e insurgente foram os eixos das falas de Antonieta Megale, professora de pósgraduação em letras da Unifesp, e Fernanda Liberali, pesquisadora e professora da PUC-SP no Departamento de Ciências da Linguagem e Filosofia (esq. para a dir.). A mediação ficou por conta do publisher Edimilson Cardial

Neuroeducação em pauta no painel com o moçambicano e doutorando em distúrbios de desenvolvimento Gerson Muitana, com a doutoranda em neurociências do desenvolvimento Fernanda Teixeira e com a neuropsicóloga Adriana Fóz (dir. para a esq.)

O publisher da revista Educação, Edimilson Cardial, e a CEO do Inteli, Maíra Habimorad também marcaram presença

Painel oferecido pela Faber-Castell Edux

Carolina Luvizoto, especialista em formação de professores e produção editorial de materiais didáticos pautados em projetos, falou sobre Criatividade, uma importante habilidade do século 21 - um olhar educacional

O diretor aposentado Braz Rodrigues Nogueira busca transformar Heliópolis, em SP, em um bairro educador. Ele participou da mesa Diretor escolar transformador com a diretora-geral do Colégio Oswald de Andrade, SP, Andrea Andreucci (de branco) e com a pesquisadora Filomena Siqueira (de preto). A mediação ficou por conta de Mônica Gouvêa, diretora educacional do jornal Joca

O encerramento do primeiro dia ficou por conta de Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades, Arthur Fonseca Filho, presidente da Abepar e diretor do Colégio Uirapuru, Sorocaba, e Gustavo Torrezan, pósdoutor em educação e novas tecnologias (esq. para a dir.)

Revista Educação 53
PARCEIRO ESPECIAL PRATA APOIO REALIZAÇÃO PARCEIRO INSTITUCIONAL

O Grupo Kayatibu, coletivo de jovens indígenas multimídia do povo Huni Kuin, do Acre, foi o homenageado do segundo dia. Maspã, Laura Rachid, editora da revista Educação, Rita e Bixku (esq. para a dir.)

Eduardo Deschamps presidiu as comissões do Ensino Médio e da BNCC no Conselho Nacional de Educação. Junto ao diretor pedagógico do Colégio Santo Américo, SP, Rodrigo Teixeira Conceição (esq. para a dir.), falou no painel Quem tem medo do novo ensino médio

Painel oferecido pela International School

Eduardo Oliveira, coordenador e editor de materiais didáticos de formação, falou sobre Os caminhos do ensino híbrido

Práticas para uma educação inclusiva: o papel dos educadores teve como painelistas Gláucia Affonso, orientadora educacional dos anos finais do fundamental e professora universitária no Instituto Vera Cruz, e Luiz Conceição, coordenador de formação do Instituto Rodrigo Mendes

Taís Bento e Roberta Bento, do SOS

Educação, realizaram uma cobertura especial do Grande Encontro. As educadoras têm se destacado na internet por defenderem o diálogo entre famílias e escolas

Maria Helena Guimarães de Castro, atual presidente do CNE e presidente do Inep (entre 1995 e 2002), trouxe esclarecimentos sobre o novo Enem. Ela dividiu mesa com Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco, SP, e Vera Lúcia da Costa Antunes, coordenadora pedagógica no Curso e Colégio Objetivo (dir. para a esq.)

Marcio Vera Mirim, cacique Guarani Nhandeva da aldeia Yvy Porã da Terra Indígena Jaraguá-SP, Leonice dos Santos Fonseca, neuropsicóloga, e Ana Carla Crispim, gerente de projetos no Instituto Ayrton Senna (esq. para a dir.), falaram sobre A urgência da saúde mental na escola

Talk show oferecido pela Editora do Brasil

Avaliação escolar: do planejamento à ação contou com Francisca Paris, consultora pedagógica e organizadora de cursos de formação continuada

Painel oferecido por Systemic Bilingual

Vanessa Tenório, especialista em neurociências e comportamento, falou sobre Que resultados devo esperar ao oferecer educação bilíngue na minha escola?

Revista Educação 54
Arquivo pessoal
17 de agosto
Revista Educação 55 (humorista) (pentacampeão) (palestrante)
HOPE.APOIAR.CO/3 VENCENDO O CÂNCER DOAR É CURAR eu ajudo! MARCÃO PENTACAMPEÃO MARCOS ROSSI PALESTRANTE MARCOS CHIESA (BOLA) HUMORISTA AJUDE A CASA HOPE A CUIDAR DE CRIANÇAS COM CÂNCER. HOPE.ORG.BR
Faça como o Bola, Marcos Rossi e marcão. Doe agora, ajude. DOE:

ESPAÇOS INOVADORES

Por que as faculdades devem falar ainda mais sobre inovação

A elaboração de respostas para a preservação de capacidades humanas a partir dos impactos que novas tecnologias geram sobre valores e princípios é uma das causas

Alexandre Pacheco da Silva2

Você provavelmente deve ouvir falar, de forma cada vez mais frequente, em inovação. Em diversos ambientes universitários, centros de pesquisa, entre docentes e discentes, o tema está em alta. Mas, por que as faculdades estão tão focadas na criação de um ambiente denominado inovador?

As transformações pelas quais o mundo está passando são muitas e de diversas ordens: econômicas, sociais, tecnológicas, culturais. E já estamos tendo que lidar com esses impactos no mundo, na vida pessoal e no mercado de trabalho.

Um cenário que ilustra bem esse contexto são as mudanças que diferentes tecnologias têm promovido em nossa economia. Se pensarmos no modo como nos locomovemos, por exemplo, fazemos de uma maneira bas-

tante distinta do que há alguns anos, quando tínhamos como opção coletiva o transporte público ou os táxis. Hoje, os aplicativos de transporte nos aproximam de trabalhadores autônomos, que exercem essa atividade enquanto trabalho principal ou secundária em sua vida, usando seus meios privados para a oferta do serviço. Alterou-se o tipo de serviço que é oferecido e a forma como podemos usufruir dele.

Todavia, há uma mudança mais profunda do que a reestruturação de prestação de determinados serviços, há uma mudança no conjunto de habilidades que passam a se tornar úteis ou não em um mundo mediado por tecnologias da informação. Há alguns anos, para se chegar do ponto A ao ponto B tínhamos que desenvolver certas habilidades de localização no espaço. Em primeiro lugar, precisávamos nos localizar, sabermos onde estávamos para poder identificar potenciais rotas a percorrer. Em segundo lugar, precisaríamos construir o caminho, a rota para o ponto B, podendo nos valer de mapas ou de experiência prévia em um determinado local. Nesse contexto, a construção do trajeto é de responsabilidade daquele que almeja chegar ao seu destino, se utilizando das ferramentas disponíveis.

Hoje, há uma vasta gama de tecnologias que tornam o desenvolvimento dessa habilidade pouco útil para as nossas atividades diárias, com a facilidade de aplicativos como o Waze, o Google Maps, ou até mesmo aplicativos de transporte. A nossa única tarefa é saber para onde queremos ir. A responsabilidade para construção do trajeto passa a ser delegada, fazendo com que nossa habilidade de identificar caminhos para deslocamento entre pontos no espaço atrofie gradativamente até se exaurir.

Revista Educação 56
Envato elements

A tecnologia que nos fortalece de um lado, ampliando as capacidades de deslocamentos no espaço de forma mais eficiente, reduzindo o número de vezes em que construímos trajetos de forma equivocada, também nos enfraquece ao tornar algumas de nossas habilidades pouco úteis, criando relações de dependência em diferentes níveis com tecnologias da informação. Nesse contexto, o debate sobre inovação na educação superior assume duas funções. A primeira, como estudo da introdução de novos produtos e serviços capazes de criar riqueza e alterar as relações em sociedade. Ao mesmo tempo, a inovação pode ser explorada como o estudo da elaboração de respostas que a sociedade é capaz de construir para a preservação de capacidades humanas, e sobre os impactos que novas tecnologias podem gerar sobre valores e princípios que nos regem e orientam.

A universidade tem, portanto, de assumir seu papel e enfrentar tais desafios. Em um período curto, nossos hábitos, a forma como vivemos e nos relacionamos com o outro, com o entorno e com o mundo se transformaram consideravelmente. E sabemos que, daqui a um tempo, haverá outras mudanças, alterando ainda mais drasticamente as relações em sociedade.

Considerando esse cenário, a universidade deve cumprir sua responsabilidade. Além de espaço para a elaboração e disseminação de conhecimento, o ensino superior também deve ser construído como um espaço de formação de profissionais capazes de compreender as mudanças impostas pela adoção de novas tecnologias, podendo avaliar quais são as perdas inerentes ao processo.

Essa última dimensão requer que os futuros profissionais estejam aptos a lidar com a realidade em constante transformação. É necessário oferecer uma formação que

Coordenadora

os prepare para compreender esses contextos e buscar soluções para a melhoria da sociedade.

A inovação almejada é consequência de escolhas pedagógicas e políticas que fazemos, tanto em sala de aula como institucionalmente. Trabalhar por meio do ensino participativo, tendo o aluno como protagonista do processo de aprendizagem, estimulando-o a se reinventar, significa desenvolver sua autonomia enquanto indivíduo e cidadão.

Esses espaços de formação devem ser inovadores, na medida em que se pretende formar profissionais aptos a atuarem num contexto em constante transformação. Transformação na forma como um setor opera, como no caso do transporte, ou nas habilidades valorizadas por determinadas sociedades, senso de localização no espaço e capacidade de construção de trajetos até um determinado destino.

Isso pode ser concretizado pelas instituições de ensino superior não somente em sala de aula, mas também por meio de projetos de extensão, principalmente com parceiros externos da universidade. Promover laboratórios, imersões e experiências reais com agentes do mercado de trabalho, atores de outras áreas, abordando problemas locais, é uma das maneiras de promover um ambiente desafiador ao aprendizado e de permanente inovação.

E, por último, pensar e contribuir para a proposição de melhorias para o coletivo, considerando as mudanças macro e seus impactos no micro. Sem perder de vista que a regionalidade e as transformações no mundo devem ser incentivadas pelas universidades. Por essas razões, achamos que é necessário seguir falando, mais e mais, de inovação no ensino superior nas instituições de ensino de todo o país.

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Alexandre Pacheco da Silva2 Coordenador do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da FGV Direito SP e professor dos programas de graduação e pós-graduação da mesma instituição. do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) e da área de metodologia de ensino da FGV Direito SP, onde também é professora dos programas de graduação e pós-graduação.
Há uma mudança no conjunto de habilidades que passam a se tornar úteis ou não em um mundo mediado por tecnologias da informação

APRESENTADO POR

Edify Education oferece formação continuada para que professores possam enfrentar os desafios do ensino bilíngue

A trilha de desenvolvimento da edtech possibilita que professores ganhem autonomia, adotem novas tendências educacionais e aumentem o engajamento em sala de aula

Uma pesquisa realizada, em 2019, pelo British Council, apontou que apenas 5% da população brasileira fala inglês – sendo que apenas 1% é fluente. No entanto, dominar o idioma é importante profissionalmente - segundo a Catho, pode aumentar em até 83% o valor do salário. Esses dados impactam diretamente no ensino bilíngue no Brasil, que, não à toa, cresceu entre 6% e 10% nos últimos cinco anos no país. Nesse cenário, o desenvolvimento dos docentes e a formação continuada tem se tornado uma necessidade para qualquer escola.

Apesar de essencial, a formação de professores ainda é um desafio no contexto da educação bilíngue. Há grande defasagem – o mesmo estudo do British Council aponta que dos 172 mil docentes da língua inglesa no Brasil, mais 16% não possuem superior completo. Levantamento publicado pelo Observatório para o Ensino da Língua Inglesa também mostra dados preocupantes: do total de turmas de língua inglesa em todas as redes (municipais, estaduais e federal, além da rede privada), apenas 29,42% possuem docentes com titulação adequada.

Para além da formação inicial insuficiente, há outros complicadores como a sobrecarga de trabalho, as longas jornadas e o excesso de conteúdo, que professores precisam lidar quando trabalham em mais de uma escola, e com turmas de níveis diferentes. Este cenário faz com que os professores tenham pouca disponibilidade para se dedicar a cursos e atualizações profissionais. Por isso, é tão importante que as escolas tenham parceiros que ofereçam soluções de formação continuada e personalizada, que entreguem conteúdos relevantes para a rotina do professor, sejam flexíveis e possam ajudar o professor a ter mais confiança no seu desempenho em sala de aula no dia a dia.

No Edify Education, edtech que oferece soluções bilíngues em inglês para escolas, a formação continuada e acompanhamento de professores é um dos principais pilares dos seus programas. A empresa conta com três trilhas de aprendizagem adaptáveis, dando às escolas a possibilidade de fazer suas escolhas e aos professores a oportunidade de construir autonomia e aumentar o engajamento em sala de aula. As trilhas foram criadas por um time pedagógico e acadêmico que tem mais de 20 anos de experiência no mercado bilíngue e que já capacitou mais de 900 professores na aplicação das abordagens desenvolvidas pelo Edify.

A importância da formação continuada é também reflexo do protagonismo que o professor de inglês ganha com a adoção do programa bilíngue pela escola. “Com um currículo de inglês reforçado, carga horária maior e o formato de aula que sai do tradicional, o professor passa a ter um papel de mais relevância dentro da escola. A formação traz ferramentas e dá mais segurança para que teste novos formatos e aprimore a prática, o que se reflete no processo de aprendizagem e na experiência dos alunos”, conta Valéria França, Head of Learning & Development do Edify.

Escolas que adotam um programa bilíngue passam a contar com o ensino de inglês mais integrado a diferentes áreas do conhecimento. Por isso, além de dominar o idioma, o docente da escola bilíngue precisa ir além do ensino da língua per se. De acordo com Andreia Fernandes, Coordenadora Acadêmica de Learning and Development do Edify Education, o desafio de ministrar aulas significativas, que dialoguem com a realidade dos estudantes, existe para docentes de todas as disciplinas e etapas de ensino, mas esse processo é ainda mais intenso para os professores de inglês: “Por sua própria natureza, a educação bilíngue é um terreno transdisciplinar, uma vez que o aprendizado de uma

outra língua envolve uma pluralidade de perspectivas e culturas. Todo o processo traz maiores esclarecimentos sobre diferentes valores e visões de mundo”, afirma.

Junto a isso, há a exigência no mercado de trabalho de atualização e reinvenção da prática pedagógica do professor, seja na metodologia e no uso de novas ferramentas e tecnologia. No Edify, o momento da formação é uma oportunidade para a experimentação de novas possibilidades pedagógicas, adoção de tendências e compreensão de estratégias de ensino mais eficazes. A jornada oferecida pelo Edify vai além da formação inicial e pontual, pois é a continuidade que permite o aprofundamento e o suporte pedagógico para que os professores possam enfrentar os desafios em sala de aula.

A formação de professores do Edify é dividida em três trilhas: To Hack, To Go e To Create. Com uma estrutura semelhante, formada por Essential (conteúdo básico para o professor parceiro do Edify), Personalized Development (conteúdo direcionado de acordo com os interesses e necessidades do professor) e Lesson Coaching (acompanhamento prático com os mentores Edify), as trilhas se adaptam aos objetivos individuais de aprendizado.

A troca com outros professores é parte fundamental do processo. Durante o Lesson Coaching, uma equipe de mentores Edify acompanha as aulas e oferece feedback constante. A prática de observação, repetida por três vezes durante um ano, resulta na elaboração de um plano de desenvolvimento individual. “Entramos na sala com o professor. Com isso, conseguimos observar os pontos de que cada um precisa, desenvolver conteúdos adicionais e, com cada um deles, criar um itinerário próprio de formação”, explica Valéria França.

Como estímulo e para oferecer maior visibilidade ao profissional, após a conclusão de cada treinamento, o professor ganha um badge, que funciona como micro certificações que indicam a realização de uma conquista e pode ser compartilhado nas redes sociais. Ao completar todos os badges de uma capacitação, o professor tem direito a um certificado. “Nosso objetivo é garantir que nossos professores parceiros ampliem seus conhecimentos para proporcionar aos alunos um processo de aprendizagem qualificado. Queremos fazer dessa geração uma geração bilíngue, e para isso precisamos formar professores capacitados e aptos”, finaliza.

Desempenho dos alunos está aquém do esperado

Após o surgimento da pandemia, nos Estados Unidos o ritmo de aprendizado volta ao normal, mas perdas de aprendizado em matemática para alunos que concluíram a 8ª série na primavera deste ano podem ter aumentado de 19 semanas para 23 semanas –quase seis meses atrás

Oque sabemos sobre como as crianças estão se atualizando na escola à medida que a pandemia se arrasta? A boa notícia é que, de acordo com os últimos dados, o aprendizado foi retomado em um ritmo mais típico durante o ano letivo de 2021-22 que acabou de terminar. Apesar das ondas Delta e Ômicron que colocaram muitos alunos e professores em quarentena e interromperam a escola, as habilidades de matemática e leitura das crianças melhoraram tanto quanto nos anos anteriores à pandemia.

“A grande conclusão é que o aprendizado reflete as tendências pré-pandemia”, disse Karyn Lewis, pesquisadora da NWEA (Northwest Evaluation Association, traduzida como Associação de Avaliação do Noroeste), que vende avaliações para escolas acompanharem o progresso dos alunos. Lewis analisou como o desempenho dos alunos melhorou entre as avaliações do outono e da primavera, chamadas Measures of Academic Progress (medidas de processo acadêmico) ou MAP, feitas por oito milhões de crianças do ensino fundamental e médio em todo o país. “Em alguns casos, o crescimento é um pouco mais do que um ano típico, talvez um aumento de 6%. É muito pequeno.”

Revista Educação 60 INTERNACIONAL Envato Elements
| Por Jill Barshay do The Hechinger Report* nos EUA

Por causa desses pequenos aumentos na taxa de aprendizado, alguns alunos conseguiram compensar até um quarto ou um terço da chamada perda de aprendizado, que sofreram durante o fechamento das escolas e com o ensino remoto de 2020 e 2021. Mas mesmo com esses ganhos, o desempenho dos alunos ainda fica muito atrás do que as crianças de cada série costumavam demonstrar antes da pandemia.

“Se as melhorias continuarem na taxa que vimos este ano, o cronograma para uma recuperação completa está a anos de distância e provavelmente se estenderá além da disponibilidade de fundos federais de recuperação”, escreveu a NWEA em um comunicado à imprensa que acompanha um relatório de perda de aprendizado divulgado em 19 de julho de 2022. Dependendo da nota e da disciplina do aluno, a NWEA estimou a recuperação em um ou dois anos, mas ultrapassando cinco anos em alguns casos.

Uma boa analogia é uma viagem pelo país. Imagine que os alunos estivessem viajando a 55 milhas por hora, ficassem sem gasolina e começassem a andar. Agora eles estão de volta em seus carros e cantarolando a 55 milhas por hora novamente. Alguns estão viajando a 100 quilômetros por hora, mas ainda estão longe do destino ao qual teriam chegado se não tivessem ficado sem gasolina. É essa distância do destino

que os educadores estão descrevendo quando falam sobre a perda de aprendizagem.

Um grupo de economistas estudou os dados de desempenho da NWEA no pico da perda de aprendizado na primavera de 2021 e estimou que os alunos da 4ª e 5ª séries ficaram de oito a 10 semanas atrasados em leitura e matemática, respectivamente. Com base na recuperação subsequente que a NWEA documentou na primavera de 2022, os alunos do ensino fundamental podem estar de seis a sete semanas atrasados.

No entanto, alguns grupos de alunos, especialmente os do ensino médio, não tiveram um progresso tão bom. Os alunos que concluíram a 8ª série na primavera de 2022 ficaram 18% mais atrasados em matemática em comparação com 2021. Isso sugere que suas perdas de aprendizado de matemática podem ter aumentado de 19 semanas para 23 semanas – quase seis meses atrás – quando iniciam o ensino médio no outono. Os alunos da 7ª série também não fizeram nenhum progresso em matemática.

“Os alunos do ensino médio estão onde vemos mais estagnação”, disse Lewis. “É certamente preocupante. Essas são as crianças com o roteiro mais longo para acompanhar.”

Colocar as crianças de volta nos trilhos academicamente é sem dúvida um dos desafios mais importantes que a nossa nação enfrenta agora. Os custos econômi-

Recuperação lenta: as pontuações de leitura e matemática se estabilizam e começam a se recuperar para muitos alunos. As notas de matemática continuam caindo para os alunos do ensino médio

Fonte: NWEA/traduzido

Comparação das pontuações dos alunos na primavera estadunidense antes e depois da pandemia nos testes MAP da NWEA. A recuperação varia de acordo com a série e o assunto

Revista Educação 61
Média percentual acadêmica Média percentual acadêmica

INTERNACIONAL

Com base na taxa de recuperação atual, a recuperação total para os níveis de conquista pré-pandemia variam de acordo com a série e as disciplinas

cos e sociais de longo prazo são enormes se falharmos. Um grupo estimou que a economia dos EUA poderia perder mais de US$ 128 bilhões por ano, outro temia que a geração atual de estudantes corresse o risco de perder US$ 2 trilhões em ganhos ao longo da vida.

Esse relatório não aborda o porquê ou como alguns alunos se recuperaram enquanto outros caíram ainda mais. Os alunos da 8ª série estavam na 6ª série quando a pandemia atingiu pela primeira vez a primavera de 2020 e sua saúde mental pode ter sido mais afetada pelo isolamento pandêmico. Ao mesmo tempo, o material que os alunos precisam aprender no ensino médio é mais complexo e a taxa de aprendizado diminui.

Os alunos da 3ª série apresentaram um progresso mais lento na leitura do que os alunos da 4ª e 5ª séries. Esses alunos da 3ª série estavam na 1ª série quando a pandemia surgiu em 2020 e estavam apenas aprendendo a ler. Com

base em sua taxa de progresso, a NWEA estima que levará mais de cinco anos para recuperar o atraso. Os alunos da 3ª série foram os mais jovens analisados nesse relatório, que rastreou apenas crianças que já estavam matriculadas na escola antes da pandemia para medir as perdas de aprendizado. Não sabemos a partir do relatório se crianças ainda mais novas estão sofrendo mais.

Estudantes de baixa renda pareciam fazer tanto progresso no desempenho quanto estudantes de renda mais alta. Por exemplo, alunos da 5ª série em escolas de alta pobreza e escolas de baixa pobreza melhoraram em nove pontos nos testes de matemática. Mas as crianças de baixa renda, que já estavam atrasadas antes da pandemia, perderam mais terreno e suas diferenças de desempenho com crianças de renda mais alta ainda são gigantescas.

Também não se pode dizer a partir desse relatório quais intervenções de recuperação, como tutoria e escola de verão, levaram a um melhor progresso de aprendizagem. A NWEA está trabalhando com pesquisadores externos e deve publicar seu primeiro relatório ainda este ano. Talvez esses relatórios possam ajudar a esclarecer as melhores maneiras de ajudar as crianças que estão atrasadas a recuperar o atraso – haja uma pandemia ou não.

*Esta história sobre perda de aprendizado foi escrita por Jill Barshay e produzida pelo The Hechinger Report, uma organização de notícias independente e sem fins lucrativos focada em desigualdade e inovação na educação nos Estados Unidos

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Reprodução
Matemática Grade escolar Anos para alcançar 3 3-5 4 3-5 5 3-5 6 1-2 7 5+ 8 5+ Leitura Grade escolar Anos para alcançar 3 5+ 4 1-2 5 3-5 6 3-5 7 5+ 8 5+
Fonte: NWEA/traduzido
Crescimento na aprendizagem muito pequeno, pontua Karyn Lewis, pesquisadora da NWEA

Vamos juntos no Brasil? mudar a educação

Juntamente com o Semesp, renomados especialistas e acadêmicos repensaram e propuseram diretrizes que garantam ao ensino superior brasileiro maior eficácia e eficiência.

A proposta contempla sete áreas fundamentais:

Governança; Regulação; Avaliação; Financiamento; Educação pro ssional; Formação de professores e ciência; Internacionalização.

Confira o documento e nos ajude a levá-lo ao conhecimento do setor e de autoridades educacionais.

O Ensino Superior precisa mudar!

Faça o download do novo documento em nosso site

semesp.org.br/publicacoes

Revista Educação 63
2022

O fio de aço na poesia

A ironia de navalha de Ferreira Gullar consiste em revelar que a poesia da beleza, da futilidade, do encanto se ocupa pouco com a vivência humana profunda

Ferreira Gullar, em 1963, compreendendo os rumos sombrios a que se destinava o país –e tinha razão o poeta –, escreveu indignado um poema duro, doído, terno, cúmplice e solidário sobre a fome, a miséria e a degradação humana.

Nele, o bardo entende que não há espaço para futilidade na poesia quando a vida básica dos seres humanos se torna lacunar. Sim, porque qualquer um com algum tino para o pensamento e para a reflexão sabe que a existência, com suas inquietações, é absurdamente lacunar; somos vazios e órfãos por conta do sem-sentido de ser e de estar no mundo, embora a fé e a convicção nos ludibriem para possibilidades de alguns sentidos. No entanto, cabe e sempre caberá ao escritor e ao artista – aqueles que

O maranhense Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira (1930-2016), foi indicado ao Nobel da Literatura em 2002

como cegos sabem ver na escuridão – denunciar as lacunas essenciais que fazem a travessia humana na terra dolorida, inexata e sub-humana.

NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão

O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos.

Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras – porque o poema, senhores, está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço

O poema, senhores, não fede nem cheira

Revista Educação 64
DIÁLOGOS
Greg Salibian

A ironia de navalha de Gullar consiste em revelar que a poesia da beleza, da futilidade, do encanto se ocupa pouco com a vivência humana profunda em tempos bicudos, sobretudo quando ela deixa de buscar – na denúncia e na crueza – a reflexão, o espanto e também (por que não?) a beleza estética de quem chora e se comove com a palavra e com a dor do outro. Em seu poema pungente e cortante, o sarcasmo passa seu fio de aço na poesia que não fede nem cheira, porque insípida e avoada.

Vivemos tempos sombrios que flertam com um passado que intuíamos estar lá no lugar dele, na memória, na lembrança, nos livros, nos jornais, nos museus, no remorso ou no trauma. Um passado longínquo no tempo que vez ou outra, infelizmente, ainda nos assombra como se a voz de Fausto ressoasse intermitente: “Aí vinde outra vez, inquietas sombras”.

A poesia de Ferreira Gullar, afiada, corta a nossa cara com seus versos rasgados e dilacerantes. Salta no tempo e invade nossos dias para, mais uma vez, inconformada, afirmar que a sonegação da carne não cabe no poema, em tempos que famílias, feito bichos, disputam ossos e peles de frangos, como se fossem uma lacuna assombrada a vagar nas gôndolas, atrás de sobras, de produtos perto do vencimento ou famintas na porta dos supermercados, com as mãos estendidas a outros desesperados e a alguns afortunados. Esses seres todos buscam cada um a seu modo, nestes tempos duros de falta e de ausência, algo que aplaque a fome, a subsistência ou, com sorte, algum ralo luxo que faz da comida qualquer coisa que seja prazer ou que não seja apenas pasto e desespero.

Cazuza, cantor, compositor e poeta carioca, em Um trem para estrelas, faz remissão ao poeta maranhense: “E o povo lá embaixo espera/Nas filas dos pontos de ônibus/Procurando aonde ir/São todos seus cicerones/Correm pra não desistir/Dos seus salários de fome/É a esperança que eles têm/Neste filme como extras” e denuncia os figurantes famintos da existência, gente vivendo sua vida fechada, sonegada, esmerilhada nos escritórios, no subemprego, nos pontos de ônibus, dentro de casa,  na rua e na sarjeta. Gente que não cabe no filme, no poema, nas boutiques de carne, nos programas de governo e na vida digna. Gente que não cabe nem mesmo na indignação das pessoas distraídas, porque se torna gente invisível com suas dores que nem fedem e nem cheiram.

Na toada incisiva e talhante do poema de Gullar, vemos os homens sem estômago a passear de cabeça erguida, alheios aos desconsolos e amarguras dos miseráveis que os cercam. Talvez “sem estômago” para encarar a verdade de um país desgovernado, fingem ver tudo bem, como nefelibatas de rede sociais fúteis ou de fake news alopradas. E observamos também a ambiguidade alegórica que nos empurra goela abaixo a compreensão de que a figuração alude aos pacientes que tiveram seu estômago removido e que só podem ingerir pequenas quantidades de alimento de cada vez, várias vezes por dia. Como – perguntaria o agudo poeta – comer um pouco várias vezes por dia quando só há o pouco para o dia, na vida desse homem alegórico e sem estômago, para esse ser lacunar?

O poema é um soco duro no estômago, um upper no fígado do leitor. Não há vaga, depois da leitura, para a negação do espanto. Não há vagas para insensibilidade diante de alguém que fareja restos de comida, diante do estômago que bate nos ossos, diante da fraqueza que entorpece os músculos e diante do cérebro inerte que, sem oxigênio, abandona seu ponto de comando, diante da morte certa por inanição, por descaso e por projeto social mesmo de aniquilação dos miseráveis.

Décadas antes do poema de Gullar, Bandeira – poeta brilhante – já nos convoca à indignação quando avista um bicho: “Na imundície do pátio/Catando comida entre os detritos/Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade.” E nos exorta à indignação: “O bicho não era um cão,/Não era um gato,/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem”.

Se, na década passada, 32 milhões de brasileiros saíram da miséria, e nesta, quase 20 milhões foram lançados à pobreza e 2 milhões à extrema miséria, há muita vaga na poesia, nos cinemas, na pintura, nos palcos, nos muros, nos cartazes, nas redes sociais, nas bocas e nos becos para que a perplexidade grite feito cuíca que ronca de raiva e de fome.

Revista Educação 65
João Jonas Veiga Sobral Escritor, professor de língua portuguesa e orientador educacional

ENTRE MARGENS

Sistema perverso e pervertido

Maricá, 1 de agosto de 2042

Nos anos oitenta, quando acolhíamos crianças rejeitadas, não sabíamos que, na outra margem do Atlântico, Darcy Ribeiro tentava “tirar crianças carentes das ruas, oferecendo-lhes ‘pais sociais’”

Quando atravessei o mar, compreendi que essa sincronicidade resultara de, também, termos adotado um princípio assumido por Darcy:

“ Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”.

Europeu etnocêntrico, que eu era até à travessia, não conhecia essa figura ímpar, o Darcy dos CIEPs, que os considerava “uma revolução na educação pública do País”. Sê-lo-ia, se sucessivos desgovernos não tivessem desvirtuado o projeto. A maioria dos CIEPs tornou-se escola comum. E a clarividência do Darcy conduziu-o à conclusão de que a crise da escola era um projeto engendrado por pessoas, cujas ações iam na contramão da história.

Há 20, o Brasil começava a sair de um longo pesadelo. As sequelas da crise política, econômica, educacional e sanitária estavam à vista. A saúde pública passara de precária para trágica. A fome assolava milhares de famílias e as mais vulneráveis sobreviviam garimpando restos de comida em caminhões de lixo.

Darcy afirmara que o Brasil era uma sociedade com o seu nervo ético rompido. Mas, conscientes da gravidade da situação, educadores éticos delineavam novos rumos para a educação, adotando a proposta de Darcy. Uma nova geração de educadores surgia, uma rutura paradigmática se anunciava.

Fui ao lugar onde Darcy lançara o seu projeto de educação básica, ajudar a Maria Paula e os professores de Mendes a retomar o legado de um Mestre, que afirmava haver nos trópicos uma outra forma de se viver e de sentir a vida.

Esse modo de viver e de sentir a vida eram os contornos de uma nova educação sendo gestada no sul, para o mundo. Nas duas margens do Atlântico, uma incontível caminhada nos conduziria à humanização do ato de aprender e ensinar.

Depois, no Rio, subi o morro de Santa Teresa. Na sede da fundação, que levava o seu nome, reli mensagens do Mestre: “O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”.

A Adriana justificava a iniciativa da secretária de educação: “Seis escolas foram selecionadas para um projeto-piloto, para melhorar a aprendizagem, com mais diálogo e envolvimento de estudantes, pais e escola” .

Darcy Ribeiro, dissera:

“A coisa mais importante para os brasileiros é inventar o Brasil que nós queremos”.

A maricaense Natália, mais do que dizer o que queria, dizia o que já se fazia:

“Em Maricá, estamos abrindo caminhos para a construção de ‘comunidades de aprendizagem’”, já com a perceção e a sensibilidade da compreensão do território, na cidade, como espaço formativo dos seres. Precisamos aprender a ler o mundo e percebermos o quanto nos constituímos, dialogicamente.

Na obra “O Brasil Como Problema”, o Mestre questionava: “Qual é a causa real de nosso atraso e pobreza? Quem implantou esse sistema perverso e pervertido?”

Na casa que Niemeyer concebera para Darcy, começaria o desmonte desse perverso projeto. Secretarias de educação, como a de Maricá, tomavam em suas mãos o projeto de um egrégio Mestre, que dissera ter falhado em tudo. Mas, celebrar Darcy deveria ser muito mais do que teorizar a sua obra, debatê-la, divulgá-la em teses, ou palestrar em congressos. Seria cumprir Darcy no chão das escolas.

Nos idos de 20, entre Maricá, Mendes e Brasília (passando por Mogi), a memória de Darcy foi celebrada… praticando Darcy.

Revista Educação 66
José e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
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Educação

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