Revista Desassossegos vol 6 (ISSN 2595-6566)

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por Daniel José Gonçalves

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ensando a relação entre a linguagem e o visível, a partir da reflexão sobre Las meninas, de Velázquez, Michel Foucault assevera: “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” A impossibilidade da conciliação pacífica, cômoda, entre as palavras e as coisas, leva o autor a entender que a tarefa de nomear nada mais é do que um artifício e a concluir que “se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa.” Nomear é uma forma de entender. O que não tem nome passa ao largo da compreensão, porque o nome, tanto quanto possível, assenta o sentido dentro de um espectro de valores dados pelo contexto em que a palavra é usada. Mas, como na obra de Velázquez, um mesmo cenário pode oferecer diferentes perspectivas. Assim, o assentamento do

sentido do olhar que se dá ao cenário, a palavra que utilizamos para nomeá-lo, revela o caráter cultural e ideológico que lhe dá forma e valor. Por isso Foucault chama a atenção para “meter-se no infinito da tarefa” da compreensão da realidade, daquilo que se vê e se experiencia, de buscar seus nomes, porque a dinâmica da realidade é um fazer-se constante. No entanto, é preciso tomar cuidado: a diversidade de perspectivas, a irredutibilidade da linguagem e do visível, não é equivalente à máxima “se Deus não existe, tudo é permitido”, de Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski. Leonardo Boff, em A águia e a galinha, diz que todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para o escritor, nossos posicionamen-

Charge cedida por Alberto Benett

tos sobre o mundo são resultado da interação de um complexo de relações que desenvolvemos durante nossas vidas. Pensamos, portanto, a partir de um lugar histórico, social e político, que modela e é modelado por nossas experiências, desejos e expectativas. Seria muita pretensão, de fato, imaginar que qualquer pessoa carrega consigo algum tipo de totalidade ou essência que a coloca acima de “um ponto de vista” tecido na interação, dentre muitos fatores, dos lugares simbólicos e objetivos que ocupa. No entanto, essa pretensão é muito comum: a noção hegemônica de Humanidade (e seu sinônimo Homem, recusado recentemente) é uma construção amparada numa concepção de ser humano e num tipo de existência. Todavia, como afirma Lucien Febvre, a história é filha do seu tempo. Sob esse aspecto, ignorar a trajetória da humanidade e do pensamento humano para nomear as coisas ao bel prazer, em 140 caracteres em uma rede social qualquer, é no mínimo um procedimento ingênuo. Somos resultado de disputas entre concepções de humanidade e de existência que ocorreram ao longo da história, em batalhas muitas vezes sangrentas e, outras, não menos violentas, de silenciamento. Qualquer posição que não perceba essa dinâmica é negacionista e, por isso, ana-

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