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OLHOS SOBRE A TELA

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DESASSOSSEGOS

DESASSOSSEGOS

OLHOS SOBRE A TELA QUEM SOMOS NÓS?

por José Aparicio da Silva e Jeanine Geraldo Javarez

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“O caos é a ordem por decifrar.”

Livro dos contrários.

“Quem é de verdade sabe quem é de mentira”. Ao ouvir essa frase na letra da música Pontes Indestrutíveis, da banda Charlie Brown Jr, ficamos indagando: como saber isso realmente? A questão se levanta porque muitas vezes ao conversarmos conosco mesmos ou nos encararmos frente ao espelho aparecem disputas entre aquilo que queremos ser e aquilo que parecemos ser. José Saramago, em seu livro O homem duplicado, parte do pressuposto de que não pode haver dois de nós mesmos, daí advém o dilema do personagem Tertuliano Máximo Afonso ao pensar em sua cópia António Claro: “um de nós é um erro”. Por isso a dúvida: o nosso ser real onde está? Onde se encontra? Qual é o eu de verdade e o eu de mentira? O eu certo e o eu errado? O medo do diferente talvez faça com que se enxergue apenas aquilo que se quer do outro, e esse outro muitas vezes está dentro de nós. Ou ainda, como refletiu o narrador de O homem duplicado: “Diz-se que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar” e, como veremos a seguir, essa é uma questão latente no trabalho mexicano dos diretores Carlos Algara e Alejandro Martinez-Beltran, os quais se auto proclamam: Los visualistas. Verónica (2017) é uma trama psicológica que leva o espectador a questionar-se sobre sua existência, sobre sua vida ou a representação dela. No roteiro, a personagem principal, Verónica De La Serna, cria para si mesma uma outra personagem, uma renomada psicóloga, que passa por algum tempo a conviver com sua paciente, diagnosticada com transtorno dissociativo e traços de sadismo em virtude de ter sido abusada pela mãe quando criança. Qual o sentido dessa projeção? Uma maneira de se esconder de si mesma? Talvez. Mas se olharmos o enredo do filme a partir dos pontos de intertextualidade que se apresentam no próprio discurso ficcional, é possível identificar traços da Alegoria da caverna de Platão, citada, inclusive, pela personagem na cena que caracteriza o turning point da narrativa. A fotografia em preto e branco que predomina no longa-metragem denota o aspecto sombrio dos cenários, enfatizado pelas transições de cenas em fade out (tela escura), as cortinas quase

sempre fechadas e a própria deficiência que a psicóloga alega ter que a impede de olhar diretamente para a luz, motivo pelo qual a iluminação dos ambientes é feita à luz de velas ou à meia-luz. Esses detalhes revelam, assim, a matiz acinzentada do ambiente que pode ser vista como uma metáfora da própria história que se desenvolve. A psicóloga, alter ego criado por Verónica para esconder seu mundo real, seus traumas de infância e seus dilemas sexuais, estabelece com a paciente uma relação de luz e sombra. Apesar de vermos na tela duas personagens interagindo, o filme é, na verdade, uma incursão pela mente da protagonista, cujo exercício de autoconhecimento tem como objetivo revelar-se a si própria, mas para isso é necessário deixar a vida sair da condição de cosmos e tornar-se o caos. Em um dos diálogos do filme é possível observar na metáfora das vespas melíferas a ideia de que o mundo caótico é perigoso, muitas vezes menos doce do que o comum, mas ainda assim é viciante e prazeroso. As vespas por terem muitas rainhas e não serem organizadas como as abelhas, que só têm uma e são disciplinadas, produzem o mel de forma desordenada: “Mas do caos se produz um mel muito mais saboroso. Sabia que ele pode ser tóxico para os humanos? É um mel menos doce, mas acho que pode ser contraproducente. Porque você nunca enjoa. Fica sempre com mais vontade.” Mergulhada nesse caos, a psicóloga se introjeta em seus mais íntimos desejos, envolvendo-se, inclusive, numa relação homossexual intensa com a paciente que, afinal, se revelará um devaneio, provocando uma fissura na identidade aparentemente bem-resolvida da terapeuta. Sua mente flutua entre arrependimento e vontade de continuidade, entre culpa e prazer, entre punição e satisfação. Visivelmente perturbada, a psicóloga pede, por fim, que Verónica vá embora, pois alega que a terapia não estaria dando resultado. Após a saída conturbada da paciente, ela entra em crise e passa as horas seguintes questionando-se em relação à psicanálise: “Qual é o sentido da psicanálise?”, pergunta ela, “Como podemos ajudar um paciente a resolver seus problemas, quando não podemos conosco mesmos? … É fácil identificar um problema num processo ordenado. Mas como fazer o mesmo com o caos?” Quando se depara com a paciente de volta à sua casa, a psicóloga só vê uma saída: matar Verónica. Depois de enterrar o corpo perto da floresta de pinheiros, as memórias a desestabilizam e ela chora, encolhida na banheira. Ao sair do banho, se depara com Verónica novamente na cozinha. Do diálogo entre as duas, chega-se ao clímax da história, com a revelação de que psicóloga e paciente são a mesma pessoa. Nesse confronto, a paciente questiona a terapeuta perguntando-lhe o nome. “Qual é seu nome? Seu nome? Qual é seu nome?” A pergunta se repete de forma cada vez mais intensa até que Verónica escreve num quadro negro o nome do doutor que lhe recomendou - Alesander Van Rocie - decodificando o anagrama de seu próprio nome: Verónica de la Serna. O golpe final é Verónica contando para a psicóloga que o abuso que sofreu da mãe quando criança aconteceu exatamente naquela casa, acabando por alegar que a terapeuta, na realidade, era fruto de sua própria imaginação: “Não há nenhum espelho na casa. Não acha estranho? Mas não é fechando os olhos que o mundo para de existir”. E ela responde: “Já sei, você não existe!” E, para a surpresa do espectador, a palavra final é da paciente: “Não! Você não existe. É uma invenção do meu inconsciente. É como uma versão de alguém que conheci um dia”. A câmera faz no cenário movimentos circulares em volta das duas atrizes, as duas se fundem revelando-se visualmente para o espectador como uma única pessoa: a paciente. Em seguida, Verônica vai até o galpão onde a psicóloga cultivava seus cogumelos shiitake e descobre, dentro do freezer cheio de água onde ficavam os troncos de árvore para apodrecerem, o corpo da mãe, que ela havia enforcado com uma corrente. Na cena final, a fotografia do filme ganha cores e vemos Verónica num ambiente iluminado, numa alusão

>>> Ficha Técnica

Verónica País de origem: México Direção: Los visualistas - Carlos Algara e Alejandro Martinez-Beltran Ano de produção: 2017 Duração: 81’ Classificação: 14 anos

à Alegoria de Platão: é como se ela tivesse saído da caverna, deixando as sombras para, finalmente, encarar a realidade. Apesar de a própria personagem afirmar em um de seus devaneios que “não se pode enterrar a verdade”, Verónica volta a reprimir suas memórias, retornando ao ponto inicial da jornada, ao atender um telefonema sobre uma possível paciente do doutor Alesander Van Rocie num aparelho cujo fio está rompido. Isto é, Verónica continua, mesmo após encerrada a saga, sem saber quem é de fato: está de volta à caverna encarando as sombras projetadas. Ou seja, o filme paradoxalmente termina onde começou, como se a jornada tivesse sido em vão. Assim, para também voltar ao ponto inicial, continuamos a disputa entre aquilo que queremos ser e aquilo que parecemos ser. Mais ou menos como na cabeça de Tertuliano Máximo Afonso, em O homem duplicado: “quando pela primeira vez olhou a sua nova fisionomia sentiu um fortíssimo impacto interior, (...) uma consciência também distinta de si mesmo, como se, finalmente, tivesse acabado de encontrar-se com a sua própria e autêntica identidade. Era como se, por aparecer diferente, se tivesse tornado mais ele mesmo”. Ou como poetizou Fernando Pessoa: “Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)...” Então, fica a questão: como saber quem é de verdade e quem é de mentira? Afinal, quem somos nós?

José Aparicio da Silva e Jeanine Geraldo Javarez são professores do Instituto Federal do Paraná - Campus Pinhais.

>>> Indicações de Leitura

O Homem duplicado,

de José Saramago.

Tertuliano Máximo Afonso é um professor de história que um dia descobre, ao assistir a um vídeo, que é um homem duplicado. Ele se reconhece em outro corpo, idêntico ao dele próprio: um dos atores do filme é sua cópia.

A Alegoria da caverna: A República de Platão - tradução de Enrico Corvisieri. Editora nova cultural, páginas 225 a 228.

A alegoria da caverna é uma metáfora para Platão explicar a diferença entre o mundo das ideias e o mundo dos sentidos.

Fernando Pessoa é conhecido pelos desdobramentos do seu eu-poético em diferentes heterônimos, dotados de biografia, estilo e visão ideológica próprias. São eles: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Além disso, Bernardo Soares, do Livro dos Desassossegos, é considerado por Pessoa como um semi-heterônimo, por tratar-se de uma espécie de “mutilação” de sua própria personalidade. Dessa forma, o leitor encontra obras de quatro autores associados a Fernando Pessoa, além das dele mesmo.

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