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GAZETAS
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O SHOW TEM QUE CONTINUAR
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por Ana Karoline Martins
Aqueles que vivem da produção artística e cultural têm sido duramente afetados desde o início da pandemia. Certamente, nenhum artista, no papel de trabalhador informal ou formal, escapou de ouvir frases como “a arte deve se reinventar”, “agora os artistas vão passar fome” ou “temos que nos adaptar ao ‘novo normal’’’. Desde a suspensão das atividades presenciais e proibição de aglomerações a fim de evitar a disseminação do COVID-19, músicos e escritores independentes, coletivos circenses, pessoas que trabalham na organização e bastidores de eventos e professores particulares de diversas áreas da Arte vivenciam todos os dias diferentes desafios e dificuldades de se reinventar em suas profissões.
Ainda que toda a sociedade tenha sofrido as consequências do isolamento social, alguns setores conseguiram rapidamente se organizar, com a utilização de diferentes meios de comunicação, e puderam manter contato com seu público. Escritórios, operadoras de telemarketing ou setores administrativos, por exemplo, migraram para o home office com uma facilidade e rapidez admirável. Mas e aquelas profissões que não tiveram a mesma agilidade ou condições para adaptação? Pensando em quem trabalha no meio cultural e artístico, o que fizeram os dançarinos e dançarinas, os artistas independentes, técnicos de som e de iluminação e montadores de palco? Partindo desses poucos exemplos, podemos explorar o abismo que constitui as realidades dos brasileiros que trabalham com atividades ligadas à arte em meio a pandemia. Obviamente, nas profissões ligadas ao setor artístico e cultural existem diferenças, sejam elas de popularidade e sucesso ou de incentivo financeiro e oportunidades. Quando o começo da mobilização pelo isolamento domiciliar e o distanciamento social estava pipocando em todas as pautas, cantores globais e apresentadores da televisão aberta inovaram em lives shows de grande alcance ao público. Essas lives, transmissões em tempo real para os usuários do Youtube ou do Instagram, eram engajadas por indexações de hashtags, como a #FiqueEmCasa, parte das campanhas apoiadas pelos órgãos municipais. Durante esses momentos, a monetização das plataformas funcionou muito bem. A cantora Marília Mendonça, por exemplo, captou mais de 3 milhões de visualizações simultâneas em sua live (inclusive, é a mais vista no mundo!) e, com esse alcance, agregou muito valor financeiro ao seu trabalho. Observando esse único exemplo, podemos concluir que sim, é possível ganhar dinheiro rapidamente com a arte por meios remotos, via internet e à distância. Entretanto, esse caso e de outros músicos e artistas, como atores e atrizes globais, vêm de um segmento no setor cultural há muito consolidado. A TV brasileira alcança limites que o Youtube ainda não chega. As grandes emissoras que consagram artistas como a Marília Mendonça entram na casa de milhares de brasileiros e brasileiras, no interior e nas capitais de Norte a Sul do país, que prezam muito pelo programa do Faustão no domingo à tarde. O fato é que é mais fácil encontrar maneiras alternativas de reinventar a forma de fazer arte e trabalhar com ela quando seu
próprio nome já é conhecido país afora e a fonte de renda é proveniente de patrocínios que não cessaram durante a pandemia. No entanto, quando trazemos a discussão para a realidade artística e cultural do Brasil, vemos cenários muito diferentes e pouco consolidados para os artistas independentes das mais diversas expressões. Mesmo antes da pandemia, poucos brasileiros tinham em sua rotina a cultura de frequentar pequenas peças teatrais, ir ao circo ou, ainda, comprar e apoiar zines e livros de autores locais, mas artistas e público, ainda que seleto, podiam se encontrar e trocar experiências e apoio. Músicos independentes trabalhavam cantando em bares e restaurantes, por exemplo, e obtinham sua renda em apresentações ocorridas nos finais de semanas e happy hours. Mas agora isso mudou. Dessa forma, aqueles que trabalhavam nas ruas, nos circos, nos pequenos auditórios e nas escolas passaram a enfrentar novos desafios para ofertar seu serviço, principalmente, quando o que era para muitos inacessível, se tornou gratuito e a “um click” de distância, como as lives dos grandes nomes da música. Indo além, podemos pensar em Antonio Candido, em “O direito à literatura”, quando traça um paralelo entre seu tempo de menino e o tempo em que escrevia esse conhecido ensaio: “hoje não se afirma com a mesma tranquilidade do meu tempo de menino que haver pobres é a vontade de Deus, que eles não têm a mesma necessidade dos abastados”. Hoje, a pandemia trouxe novamente à tona essa perspectiva cruel de que os pobres são pobres apenas porque são. O individualismo tomou conta quando o medo bateu nas portas das casas e todos se trancaram, estocaram o essencial e fugiram do vírus. Aqueles que viviam do teatro, da música e das palavras, ou aqueles que davam o suporte e o apoio necessários para que os espetáculos acontecessem, como produtores de som, camareiras e assistentes de palco, se viram em situações bem diferentes daqueles que puderam estocar e se fechar em suas seguras casas. Os artistas que passam manhãs e tardes nos sinais fazendo malabares em troca de moedas ou os que tocam seus violões nas praças das grandes cidades ainda têm que sair porta fora e enfrentar a pobreza e as dificuldades exacerbadas com o perigo do vírus por aí. Essa realidade demonstra a falta de políticas públicas e assistência para os pequenos e médios artistas independentes. Recentemente, um projeto de lei para auxílio aos trabalhadores informais do setor cultural e manutenção dos espaços artísticos que se mantêm fechados devido à pandemia foi encaminhado para sanção do presidente. O projeto prevê que a batizada Lei Aldir Blanc disponibilize um fundo de R$700 milhões através do Ministério do Turismo, visto que a Cultura teve o seu ministério extinto no princípio do atual governo. Ainda que esse suporte ocorra e os indivíduos ligados de maneira informal com o setor possam ser beneficiados, atualmente não é uma realidade para os cidadãos e muito menos uma urgência para os governantes, mesmo com mais de um ano de pandemia. Nem o Auxílio Emergencial, necessário para apoiar os trabalhadores com renda afetada durante a pandemia, mães chefes de família, desempregados, entre outros, e que deveria ser prioridade para o socorro às famílias brasileiras, é uma urgência para o governo. Nossa sociedade que tem se apoiado em mega produções culturais via streamings para passar pela enorme dificuldade das quarentenas pelo mundo, se esquece voluntariamente dos artistas independentes e de todo o ecossistema em que os trabalhadores do setor cultural estão envolvidos. Correndo o risco de romantizar o trabalho de artistas pelo país, digo que sempre foi difícil seguir o sonho da Arte, em qualquer que fosse sua expressão. Mas, hoje, com a indústria cultural com os pés firmes na internet e amplamente globalizada, o sonho de produzir e obter reconhecimento tornou-se ainda mais complexo, e a batalha mais injusta e desigual. Não há competição entre o cantor do bar que pode transmitir pelo Facebook alguns vídeos seus e as grandes bandas que contam com uma produção espetacular. No entanto, mesmo com as incertezas, os desamparos e a falta de suporte vinda do Estado, podemos olhar para o lado e observar pessoas que não desistiram, e dão um jeito de fazer o show prosseguir. Por isso, ainda há esperança que no “novo normal” caibam os sonhos que ficaram suspensos em março de 2020.