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EDITORIAL por Daniel José Gonçalves
Editorial
por Daniel José Gonçalves
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Pensando a relação entre a linguagem e o visível, a partir da reflexão sobre Las meninas, de Velázquez, Michel Foucault assevera: “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem.” A impossibilidade da conciliação pacífica, cômoda, entre as palavras e as coisas, leva o autor a entender que a tarefa de nomear nada mais é do que um artifício e a concluir que “se se quiser manter aberta a relação entre a linguagem e o visível, se se quiser falar não de encontro a, mas a partir de sua incompatibilidade, de maneira que se permaneça o mais próximo possível de uma e de outro, é preciso então pôr de parte os nomes próprios e meter-se no infinito da tarefa.” Nomear é uma forma de entender. O que não tem nome passa ao largo da compreensão, porque o nome, tanto quanto possível, assenta o sentido dentro de um espectro de valores dados pelo contexto em que a palavra é usada. Mas, como na obra de Velázquez, um mesmo cenário pode oferecer diferentes perspectivas. Assim, o assentamento do sentido do olhar que se dá ao cenário, a palavra que utilizamos para nomeá-lo, revela o caráter cultural e ideológico que lhe dá forma e valor. Por isso Foucault chama a atenção para “meter-se no infinito da tarefa” da compreensão da realidade, daquilo que se vê e se experiencia, de buscar seus nomes, porque a dinâmica da realidade é um fazer-se constante. No entanto, é preciso tomar cuidado: a diversidade de perspectivas, a irredutibilidade da linguagem e do visível, não é equivalente à máxima “se Deus não existe, tudo é permitido”, de Ivan Karamázov, personagem de Dostoiévski. Leonardo Boff, em A águia e a galinha, diz que todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para o escritor, nossos posicionamentos sobre o mundo são resultado da interação de um complexo de relações que desenvolvemos durante nossas vidas. Pensamos, portanto, a partir de um lugar histórico, social e político, que modela e é modelado por nossas experiências, desejos e expectativas. Seria muita pretensão, de fato, imaginar que qualquer pessoa carrega consigo algum tipo de totalidade ou essência que a coloca acima de “um ponto de vista” tecido na interação, dentre muitos fatores, dos lugares simbólicos e objetivos que ocupa. No entanto, essa pretensão é muito comum: a noção hegemônica de Humanidade (e seu sinônimo Homem, recusado recentemente) é uma construção amparada numa concepção de ser humano e num tipo de existência. Todavia, como afirma Lucien Febvre, a história é filha do seu tempo. Sob esse aspecto, ignorar a trajetória da humanidade e do pensamento humano para nomear as coisas ao bel prazer, em 140 caracteres em uma rede social qualquer, é no mínimo um procedimento ingênuo. Somos resultado de disputas entre concepções de humanidade e de existência que ocorreram ao longo da história, em batalhas muitas vezes sangrentas e, outras, não menos violentas, de silenciamento. Qualquer posição que não perceba essa dinâmica é negacionista e, por isso, ana-
crônica, e quer impor sua visão única sobre as coisas. Movimentos anti ciência e contrários ao levantamento de vozes e grupos até então silenciados ignoram as diferentes perspectivas e desafios que o cenário atual oferece, querem anular e confundir o sentido das diferentes histórias que podem ser contadas sobre a experiência de estar no mundo. “A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo”, afirma Ailton Krenak. E a história aqui pode ser entendida nas acepções de fabulação e leitura de mundo - ambas relativas uma à outra, ambas necessárias para o “infinito da tarefa” de compreender e transformar o mundo. Completou-se mais de um ano de pandemia, cerca de 430 mil brasileiros mortos e mais de 3 milhões de pessoas pelo mundo. Há muito o discurso sobre o “novo normal” perdeu força e a vacina tornou-se a esperança de “voltar ao normal”. O jogo de vale-tudo da sociedade em rede e sua “guerra de narrativas” deixaram o cenário difícil de nomear, entender e classificar. Tudo parado e funcionando. Tudo fechado e aberto. O paradoxo é a perspectiva dominante num mundo cada dia mais austero, polarizado e intolerante. Assim, diariamente, lidamos raivosos com a pobreza crescente, confusos sobre se é momento de defender ou de atacar, egoístas, como Narciso, que acha feio tudo o que não é espelho. Parece que nem uma pandemia, um inimigo global sem sexo, cor ou espectro político, foi capaz de nos fazer entender que, a despeito do lugar que ocupamos no cenário, como em Las meninas, ou seja, se estamos nos limites do visível ou não, o fato é que estamos todos na mesma sala. A lição de perspectiva que Velázquez nos dá mostra que ele é mais contemporâneo do que muitos de nós, especialmente do que aqueles que querem mudar para que nada mude. Neste sexto volume, no aniversário de três anos de Desassossegos, o tema que permeia todos os artigos é a mudança de perspectiva como encontro e resistência. E, por que não, o retomar da reflexão sobre um “novo normal”, a partir de bases sólidas de pensamento, que são as ferramentas para ajudar a organizar o complexo cenário em que vivemos. Regina Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília, defende a escuta das vozes provenientes de diferentes espaços sociais como meio de questionamento das fronteiras do literário e alargamento de suas possibilidades estéticas. Vima Lia de Rossi Martin, professora da Universidade de São Paulo, trata sobre o diálogo como ferramenta para a formação de leitores. Professores do Instituto Federal do Paraná, Peterson Nogueira, do Campus Irati, aborda o premiado romance Torto arado e sua estratégia de dar voz aos subalternos; do Campus Pinhais, Felipe Comitre faz uma reflexão sobre datas comemorativas, denunciando o racismo estrutural que elas escondem, e José Aparicio da Silva e Jeanine Geraldo Javarez abordam o eu e suas representações, a partir do filme mexicano Verónica. Pedagoga das Redes Públicas do Estado do Paraná e Municipal de Curitiba, Raquel Zanini defende a necessidade de se ouvir as crianças para se pensar o futuro. Em entrevista, Zoia Prestes, professora da Universidade Federal Fluminense, fala sobre seu percurso intelectual e de vida e oferece análises e caminhos sobre o atual estado da educação brasileira. Vencedora do prêmio Jabuti de Literatura em 2018, Natalia Borges Polesso nos desafia num conto que dialoga com a obra do também gaúcho Caio Fernando Abreu. Estudantes egressas do Instituto Federal do Paraná, Ana Karoline Martins, atualmente estudante de Letras da Universidade Federal do Paraná, discute a situação dos artistas independentes na pandemia e Naara Oliveira da Silva, estudante de Engenharia Automotiva da Universidade Federal de Santa Catarina, contribuiu com ilustração. Ana Pérola Oliveira da Silva, estudante do Ensino Médio em Bombinhas-SC, e Matheus Fagundes Xistiuk, estudante do Ensino Médio Integrado do Instituto Federal do Paraná, Campus Telêmaco Borba, também contribuíram com ilustrações. Este volume ainda traz um trabalho especial de Benett, um dos maiores cartunistas em atividade no Brasil. Em A queda do céu, o xamã Davi Kopenawa diz o seguinte: “só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami.” A recusa em se tornar branco e a condição para isso de os brancos se tornarem Yanomami é apenas uma aparente intolerância. Consiste, na verdade, em uma metáfora de resistência ao sufocamento e, ao mesmo tempo, em um alerta e pedido para que o hegemônico dispa-se de seu quadro unívoco e aprenda a ouvir, ver e respeitar o diverso, mudando sua perspectiva e enxergando novas e inclusivas possibilidades de leitura do real, de concepção de ser humano e tipos de existência. Dessa forma, poderemos pensar um “novo normal” em que caiba a esperança e o encontro, ao invés de sonhar em “voltar ao normal” da exclusão com que aprendemos a conviver. Bons Desassossegos.