Revista C Setembro

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VIAJARinstantâneo

AS SOMBRAS DO PREDADOR NEGRO PEDRO CALDEIRA FOTÓGRAFO SOLITÁRIO Não podia deixar de fazer referência a um país de amáveis pessoas e algo especial que é a Gâmbia. Na bagagem trouxe muito que poderia mostar deste sedutor recanto, mas resolvi apresentar uma faceta que destaca largamente a Gâmbia de outros países, africanos ou não, que é a imensa variedade de espécies de aves que possui, algumas bem interessantes como esta, e que atraem inúmeros visitantes ano após ano, estação após estação. O seu nome é dado pelo rio que o atravessa, o rio Gâmbia. O país pouco mais é do que as suas margens, formando um pequeno enclave anglófono num território enorme de língua oficial francesa, o Senegal. Foi disputado por ingleses e franceses tendo 96

os primeiros conseguido manter a sua jurisdição com o objetivo de que esta fosse uma plataforma de recolha e envio de escravos para uma terrível viagem de três meses em navios negreiros para a América. As instalações onde tudo isto se passava ainda existem numa ilha do estuário do rio, contudo foi Portugal o precursor desta terrível saga, pois foi a primeira potência ocupante e que estabeleceu aqui as fundações para o que a seguir se passou. Não podemos deixar de sentir ainda o peso das histórias que por aqui ocorreram. Uma delas, para quem se recorda das séries que no fim da década de oitenta do século passado eram apresentadas na nossa televisão, foi a de Kunta Kinte, um príncipe Mandinga, que aqui foi capturado em 1750 e depois enviado para uma plantação de algodão na América e cuja odisseia inspirou a saga "Raízes". Ainda hoje na aldeia de Jufureh se encontram alguns dos seus familiares. São muitos os pensamentos que por aqui temos e não posso deixar de refletir em quão errados estão os que acham que a natureza intocada é um paraíso bucólico e pacífico, onde tudo é belo e todos vivem como que numa felicidade idílica. Esta ave,

a Garça Negra, é um dos muitos exemplos da luta de vida e de morte que decorre dia após dia em todos os recantos do planeta e que por vezes assume estratégias de caça requintadas e até alguma perversidade. Não posso deixar de ficar impressionado pelo processo evolutivo que fez uma espécie que normalmente tem cores claras ter desenvolvido uma cor escura, alterar a estrutura das suas asas de modo a conseguir formar uma cúpula com o próprio corpo e aperceber-se de que se conseguisse projetar uma sombra no prolongamento dos abrigos utilizados pelos peixes, os conseguiria ludibriar e transformá-los em presas fáceis. Não constitui isto a utilização de uma ferramenta e uma prova de inteligência, características que nós, humanos, tão orgulhosamente consideramos ser exclusividade nossa? Não posso também deixar de encontrar semelhanças com o dia-a-dia das nossas selvas urbanas, em que alguns predadores negros, com estratégias baixas e ambições desmesuradas, tentam projetar sombras para fazer baixar a guarda aos mais desprevenidos e assim, de uma maneira ou de outra, os transformarem nas suas vítimas. SETEMBRO 2013


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