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Violência contra a mulher
Em pleno ano de 2023, um triste assunto tomou, há pouco tempo, as manchetes da mídia: relacionamento abusivo e violência doméstica contra as mulheres. Relatórios recentes mostram evidente crescimento desse tipo de crime em nossa sociedade. Só no primeiro trimestre deste ano, dois casos foram destaques: a TV Globo precisou coibir comportamentos abusivos de um participante de um realityshow e o jogador de futebol Daniel Alves foi condenado por estupro nos tribunais espanhóis. Em março, logo após as comemorações do dia das mulheres, o STJ lançou uma campanha pelo fim da violência contra a mulher. Considerando a necessidade de reflexão sobre esse fenômeno social, Luciana Campos convidou a advogada e professora de Direito Constitucional Nara Ayres Britto para a entrevista desta edição de Plano B. Nara Ayres Britto também é Mestre em Direito, doutoranda em Políticas Públicas, advogada do Brasil em Portugal e sócia do Escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.
LC: Dra. Nara, a percepção de violência contra a mulher mudou ao longo do tempo? O Direito tem conseguido acompanhar as mudanças da sociedade nessa questão?
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NAB: Entendo que a percepção de violência contra mulher mudou sim, com o tempo. Hoje o tema é muito mais debatido e difundido. Matérias que a sociedade entendia culturalmente como não violência passaram a ser como tal consideradas, principalmente questões cotidianas dentro do ambiente doméstico, familiar e até mesmo digital. No Brasil, temos uma Constituição Federal que é conhecida como “Constituição Cidadã”. Ela traz proteção especial à mulher e visa garantir relações isonômicas entre os sexos. Além disso, as leis infraconstitucionais têm, de certo modo, acompanhado a vontade da Constituição nesse sentido. É o caso da Lei Maria da Penha, Lei n. 11.340/2006, legislação que veio a partir de um ativismo de diversas organizações da sociedade civil, cuja constitucionalidade foi declarada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No campo da esfera digital, podemos citar a Lei Carolina Dieckmann (Lei n. 12.737/2012), que prevê proteção à privacidade dos brasileiros no ambiente virtual. Mais recentemente, a Lei n.13.718/2018 acrescentou o dispo- sitivo 218-C ao Código Penal para condenar crimes conhecidos popularmente como revange porn, ou pornografia de vingança. Outro avanço na mudança de percepção de violência contra a mulher pode ser verificado na Lei n. 14.132/2021, que inseriu ao Código Penal Brasileiro tipificação criminalizando o crime de perseguição, conhecido como stalking , no artigo 147-A, saindo do campo da violência meramente física e garantindo proteções contra a violência psicológica. Entre tantas outras leis que avançaram para trazer proteção à mulher, tem-se a promulgação da Lei n. 14.164/2021 que instituiu a Semana Escolar de Violência Contra Mulher e trouxe, em sua redação, matéria de prevenção de violência contra mulher nos currículos de educação básica. Entendo que o Direito tem, de certa forma, acompanhado essas mudanças. Todavia, as proteções legais ainda se mostram insuficientes, sendo necessário haver um maior controle de fiscalização por parte do Poder Público quanto à matéria.
LC: Como a Constituição brasileira protege a mulher? Podemos considerar que as leis que temos são suficientes e satisfatórias?
NAB: A Constituição Federal de 1988 traz proteção especial à mulher em diversas passagens. O inciso III, do art. 1 o tem como fundamento da República a dignidade da pessoa humana; já o inciso IV do art. 3 o tem como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Avançando para o art. 5 o , seu caput prevê o princípio da igualdade ou da isonomia como um direito e garantia fundamental e o seu primeiro inciso reza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos da Constituição. O art. 6 o prevê a proteção da maternidade; o inciso XX, do art. 7o traz proteção da mulher no mercado de trabalho, mediante incentivos específicos nos termos da Lei. O art. 17 da Magna Carta trata de recursos do fundo partidário para garantir participação política das mulheres. O art. 40 trata da diferenciação do tempo de aposentadoria mais curto para as mulheres do que para os homens no âmbito da União. No âmbito da Previdência Social, o inciso I do art. 201 vai no mesmo sentido. O art. 226 da Constituição Cidadã trata da proteção da família pelo Estado, incluindo as mulheres. Enfim, instituem-se garantias fundamentais, trabalhistas, previdenciárias, familiares, entre outras. Como citado na pergunta anterior, ainda há que se falar em uma necessidade de avanços, mas de certo modo, a legislação infraconstitucional tem avançado aos poucos em cumprir a vontade da Constituição de efetivar os direitos das mulheres brasileiras.
LC: Na sua opinião, a que você atribui o aumento dos casos de feminicídio e de violência contra a mulher nos últimos anos?
NAB: São diversos os fatores que causam o aumento de violência contra a mulher. Um que se destaca, creio que ainda seja o cultural. Ainda vivemos em uma sociedade marcada pelos pilares do patriarcado e por dogmas religiosos que colocam a mulher em posição de submissão ou em segundo plano. Dados do Anuário de Segurança Pública de 2022 apontam que houve uma queda de feminicídios no Brasil em 2021, porém houve um aumento de outras formas de violência contra meninas e mulheres. A maior parte das vítimas convive com seu agressor dentro do ambiente familiar, com pessoas que fazem parte de seus vínculos afetivos, como seus cônjuges ou ascendentes. Segundo dados do Anuário, a Pandemia da Covid-19 agravou o cenário de vulnerabilidade de mulheres que vi- viam em situação de violência. Apesar de a letalidade contra a mulher ter diminuído, houve crescimento dos casos de denúncia por lesão corporal dolosa e aumento das notificações de ameaças ao grupo. Também houve aumento no pedido de medidas protetivas junto à Justiça. Os dados são alarmantes. Além dos citados acima, também é válido destacar o aumento de movimentos tidos como “conservadores ou tradicionalistas”, que pregam correntes que visam a manutenção da desigualdade de gênero, ressaltam a submissão da mulher e pregam a superioridade masculina em geral, criando extensas comunidades de masculinidades, como as conhecidas como Incels,redpills , entre outros, que cultivam um ambiente sólido para o amparo de homens que desejam impor suas vontades às mulheres, criando um ambiente propício à cultura da desigualdade de gênero.
LC: Embora criar e aplicar leis seja essencial, sabemos que apenas os desfechos da violência chegam ao tribunal. Até lá, a mulher já passou por um longo caminho de abusos e sofrimento. Como podemos trabalhar para mudar esse cenário?
NAB: Esse é um problema que perpassa vários âmbitos da vida da mulher vítima de violência. Informação e rede de apoio são caminhos importantes para alterar esse cenário. É fundamental que a mulher tenha mecanismos e meios que viabilizem a sua autonomia, seja ela doméstica, familiar e no mercado de trabalho. No âmbito das políticas públicas, é necessário que haja acolhimento desde a procura nos canais de atendimento à queixa-crime, prestada nas delegacias, à condução da investigação pela polícia e pelo Ministério Público e o devido processo legal junto aos tribunais.
LC: Que ações seriam importantes para ampliar o acesso das mulheres brasileiras à proteção judicial conferida por nossa Constituição?
NAB: Entendo que é importante que haja uma maior representatividade de mulheres nos ambientes políticos e jurídicos, haja vista que as políticas públicas são elaboradas e implementadas por esses agentes, sendo necessária a participação feminina nesses espaços. No mais, entendo que devemos sobrepassar o aspecto da repressão. Ela é necessária, mas não suficiente. É importante que haja um trabalho holístico no âmbito social, com a conscientização e reeducação dos homens, de modo a viabilizar uma mudança da sociedade patriarcal em que estamos inseridos.