revista

Page 1


Professora transforma educação libertadora

revistaeducacao.com.br

Apagão docente

Bolsa estudantil, ok; mas carreira tem de ser atrativa

EDUCACAO

Daniel Munduruku

Novo colunista reflete sobre ‘O índio que mora em nós’

Restrição

Equilíbrio é importante, já que uso do smartphone tem gerado perda na aprendizagem, ansiedade e outros sintomas

ACOMPANHE O CALENDÁRIO DOS CURSOS DE FORMAÇÃO

DA EDITORA DO BRASIL!

Educadores que inspiram precisam de formação de excelência. Pensando nisso, a Editora do Brasil apresenta um calendário de palestras gratuitas, com uma programação completa para todos os professores e gestores que desejam aprimorar suas práticas e conquistar ainda mais resultados em sala de aula.

CURSOS DE FORMAÇÃO

DA EDITORA DO BRASIL

FORMAÇÃO FEITA PARA VOCÊ!

Temas inovadores, dinâmicas envolventes e conteúdos relevantes para o dia a dia da escola.

Escaneie o QR Code e fique por dentro de tudo!

BENEFÍCIO EXCLUSIVO PARA ADOTANTES

Adotou os materiais da Editora do Brasil?

Você também terá acesso aos Percursos Formativos para equipes escolares e ao Percurso de Escola das Famílias, com cursos personalizados que abordam os desafios e indicam soluções para a educação atual.

Aprender sempre: o segredo de um educador de sucesso!

Acompanhe nosso Instagram: @editoradobrasil_oficial

Bom 2025 para a educação

sta edição da revista Educação , a primeira do ano, que inaugura nossa comemoração dos 30 anos de existência, traz um debate muito proveitoso preparado pela editora Laura Rachid sobre as recentes medidas adotadas pelo MEC na tentativa de evitar o divulgado apagão de professor, por conta do desinteresse dos jovens pela profissão.

Aclamado pelos especialistas escutados nesta reportagem, o programa precisa considerar outros pontos, entre eles, orienta Mozart Ramos, referência em formação de políticas públicas e membro do conselho editorial desta publicação, “o governo tem que pensar na escola que receberá esse jovem para ele se sentir motivadoa levar adiante um plano profissional individual de vida” ( leia na pág. 26 ).

E temos colunista novo: o premiado escritor indígena Daniel Munduruku começa a escrever a partir desta edição. Fato é que quem lê seus textos sempre saí transformado(a) ( leia na pág. 17 ).

A história da entrevistada destaque desta edição, a professora Gina Vieira, é tão inspiradora que foi traduzida em filme a ser lançado este ano. Gina teve a vontade e coragem de mudar suas práticas pedagógicas e em 2013 lançou o projeto Mulheres Inspiradoras, premiado quase 20 vezes (leia na pág. 8).

Boa leitura e um excelente 2025,

EDUCACAO

A revista Educação, composta por edições digitais e impressas, site, redes sociais e eventos, é publicada por RFM Editores

Ano 30 - Nº 309

janeiro e fevereiro de 2025 ISSN 1415-5486

www.revistaeducacao.com.br

Conselho editoral

Eduardo Deschamps

Fernando José de Almeida

Iracema Nascimento

Mozart Neves Ramos Regina Scarpa

Publisher: Edimilson Cardial edimilson@editorasegmento.com.br

Editora: Laura Rachid laura@rfmeditores.com.br

Diretora administrativa: Rita Martinez rita@rfmeditores.com.br

Diretora de marketing: Carolina Martinez carolina@rfmeditores.com.br

Parcerias Institucionais Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) Undime SP (União dos Dirigentes Municipais de Educação) Sua Escola Ideal Two Sides

Colaboraram nesta edição

Alexandre Sayad

Daniel Munduruku

Fernando Leal

José Pacheco

Juliana Fontoura

Luciana Alvarez

Paulo de Camargo

Rubem Barros

Simône Midori Maki (diagramação) Maria Stella Valli (revisão)

Comercial

Gerente de negócios e relacionamento: Margarete Rios Silva margarete@rfmeditores.com.br Cel.: (11) 99995-1284

Marketing Ingrid Passos ingrid@rfmeditores.com.br

Correspondências

Rua Oscar Caravelas, 334 - Vila Madalena, SP CEP 05441-000

INTERNET

Visite a página online da Educação www.revistaeducacao.com.br Nos siga nas redes sociais @revistaeducacao

Educação é uma publicação mensal da RFM Editores destinada a mantenedores, educadores e interessados em educação. Esta publicação não se responsabiliza por ideias e conceitos emitidos em artigos ou matérias assinadas, que expressam apenas o pensamento dos autores, não representando necessariamente a opinião da revista. A publicação se reserva o direito, por motivo de espaço e clareza, de resumir artigos.

ATENDIMENTO

Para falar sobre assinaturas Karlita Silva karlita@revistaeducacao.com.br WhatsApp: 11 98878-8745

Não tem muito tempo?

Atualize seus conhecimentos com as leituras da coleção Sua Carreira em 20 Minutos, elaborada pela Harvard Business Review Press

SUA CARREIRA EM 2 MINUTOS

Celular

Restringir o uso do smartphone na escola se tornou uma questão global. Fato é que desde a sua popularização, por volta de 2010, o nível de aprendizagem tem caído em diferentes países

ENTREVISTA

Gina Vieira Ponte

MUNDURUKANDO

Com cerca de 20 prêmios, projeto Mulheres Inspiradoras, voltado à leitura, letramento e escrita, de professora da rede pública que conseguiu se desprender das amarras tradicionais, inspira docentes que buscam dialogar com os/as estudantes

Novo colunista convida à reflexão: “Fomos educados a tratar os povos originários com a palavra genérica ‘índio’”

Arquivo pessoal

ATRAIR PROFESSOR 26

MEC

Mais Professores é louvável, mas, para se concretizar, governo precisa focar também em manter o docente atuando, o que pede salário digno, plano de carreira e outros pontos. Mozart Ramos alerta ainda que a escola em que o novo docente lecionará pode não ser a de sua expectativa

EQUIDADE

Romper com o inaceitável

Alunos pretos e pardos têm uma década de atraso em relação aos alunos brancos no que se refere à conclusão do ensino fundamental

LIDERANÇA

Gestão

No primeiro quarto do novo século, as mudanças foram muitas; a gestão da escola tem tentado se preparar para acompanhar um mundo às vezes frenético, outras apenas egoísta, mas sempre demandante. Fato é que a importância desse profissional precisa ser reconhecida

Soluções extracurriculares inovadoras adaptadas para sua instituição.

Você sabia que o contraturno escolar é uma ótima oportunidade para enriquecer a formação dos alunos de sua instituição? Com o programa CNA na Escola, essa é apenas uma das possibilidades para implantar soluções como inglês, espanhol, programação e robótica de forma personalizada e adaptada à realidade da sua escola. O CNA+ oferece ensino dinâmico de idiomas e tecnologia, ampliando a aprendizagem e o acesso às nossas soluções para toda a comunidade escolar.

Escaneie

Inglês e espanhol

O CNA Idiomas é uma das maiores redes de ensino de idiomas do Brasil, especializada no aprendizado de inglês e espanhol. Com metodologia dinâmica e focada na prática comunicativa, o CNA oferece aulas interativas, materiais exclusivos e recursos digitais que tornam o aprendizado natural e envolvente.

o QR Code para agendar uma aula demonstrativa e ter acesso a um mundo de possibilidades para sua escola.

Escola de programação e robótica para todas as idades

Ensino de tecnologia para todas as idades, com cursos de programação, robótica, games e inteligência artificial. A metodologia prática desenvolve lógica, criatividade e pensamento crítico, preparando jovens para o futuro. A Ctrl+Play também promove trabalho em equipe e inovação, sendo referência em educação tecnológica no Brasil.

Entre em contato com a nossa equipe e saiba como levar o programa CNA NA ESCOLA para a sua instituição. cna.com.br (11) 3053-3923

ENTREVISTA

Educação libertadora na prática

Com cerca de 20 prêmios, projeto Mulheres Inspiradoras, voltado à leitura, letramento e escrita, de professora da rede pública que conseguiu se desprender das amarras tradicionais, inspira docentes que buscam dialogar com os/as estudantes

Aos 42 anos, Gina acessou a primeira leitura que enaltecia a beleza negra. “Fiquei arrepiada...foi o primeiro texto que me apresentou uma mulher negra num lugar de altivez, coragem, insurgência. Lugares vetados para mim”

Assim como muitos, a precária e inaceitável condição de trabalho também adoeceu, em 2003, a então professora da rede pública do Distrito Federal, Gina Vieira Ponte, que cresceu em Ceilândia e dava aula na mesma região periférica. Ainda assim, ela queria se aproximar dos/das estudantes para atualizar suas práticas pedagógicas. Tendo a força de sua mãe como base e as escritas de Paulo Freire como caminho, lança, em 2013, o projeto Mulheres Inspiradoras, que foca em leitura, letramento e escrita, além de ser também, segundo ela, um resgate de memória, por conta de os/as estudantes escreverem em um livro impresso as biografias de seus familiares, como mães, avós e bisavós.

Com isso, o projeto conseguiu atingir o falado ‘para além dos muros da escola’. De início, esses familiares carregavam a visão imposta de que, por serem da periferia — muitas negras —, não possuíam valor e, assim, não entendiam o motivo das suas histórias serem escritas. Mas, depois, passaram a também se reconhecerem como mulheres inspiradoras, relata Gina, emocionada.

Hoje, aos 53 anos, a professora Gina Vieira Ponte está aposentada. É consultora educacional e dá palestras. Com direção de Cristiano Vieira, em 2025, um filme sobre a sua história será lançado. Já o projeto Mulheres Inspiradoras foi premiado cerca de 20 vezes, está em 50 escolas públicas do DF via política pública, além de estar presente em escolas municipais de Campo Grande, MS, e em 2021, chegou à Província de Niassa, em Moçambique.

Confira, a seguir, a entrevista com Gina, que é graduada em letras, mestra em linguística, especialista em desenvolvimento humano, educação e inclusão escolar.

Um filme sobre a sua história será lançado este ano. O que podemos esperar desta obra e como avalia tal feito visando a valorização da profissão?

É um filme que fala de uma professora que adoeceu psiquicamente de maneira quase irremediável e irreparável por causa das suas condições de trabalho precarizadas e sucateadas. Temos números assustadores de professores em quadros de adoecimento psíquico em função de que aquilo que a estrutura pede para eles é além do que conseguem dar.

Tive acesso apenas ao grosso da história, o que também me gera expectativa. A gente passou por três roteiros diferentes em que fui opinando e sugerindo alterações. Um dos cuidados que pedi que o roteirista tivesse é que não fosse mais um filme que reforçasse a ideia do professor mártir e herói que tem que se arrebentar para que as coisas funcionem.

A gente está vivendo sob a égide de um capitalismo, neoliberalismo, que tornam a educação e o conhecimento mercadorias descartáveis. Então, espero que seja um filme que fale do nosso país, da importância do magistério, da valorização da carreira docente e que, sobretudo, seja um filme de esperança, que os professores sintam que a profissão é um lugar interessante, fortalecido e alimentado.

Todos devem ter a consciência de que se estamos aqui, de pé, é porque alguém que veio antes abriu o caminho. E as mulheres fazem uma revolução silenciosa, são elas que lutam pelos seus e nunca houve reconhecimento à altura do que fazem

Então, no seu momento de dor, você se mexe para mudar a sua própria atuação enquanto professora. O adoecimento veio no chão da escola, em 2003, quando deixo de trabalhar com crianças e passo a trabalhar com adolescentes e percebo uma dificuldade de me conectar com os alunos. Hoje, 20 anos depois, sei que havia muitas variáveis determinando aquela dificuldade de conexão, inclusive, o fato de eu ser uma professora negra. Parte do racismo estrutural é formar um imaginário que cristaliza a imagem de mulheres negras no lugar da subalternidade, da servidão.

Naquele momento não tinha repertório teórico que me ajudasse a entender que os meus alunos talvez tivessem dificuldade de olhar para mim e reconhecer uma professora e uma autoridade porque eu habito esse imaginário do corpo negro. Hoje faço essa leitura. Em 2003, o que me ocorria era: estou com dificuldade de me conectar com os meus alunos porque as minhas metodologias não estão adequadas. E era isso também. Porque nunca é só um fator. E percebi que reverberava esse paradigma da educação bancária sobre o qual o Paulo Freire fala lindamente no livro Pedagogia do oprimido, em que o professor é colocado como centro do processo pedagógico e narra os conteúdos que o estudante tem que aprender. Segundo Paulo Freire, esse paradigma não favorece a aprendizagem porque o aluno é reduzido a plateia e espectador do professor. Só que nós já temos estudos consistentes na área da educação, os quais apontam que aprendo na proporção em que sou acionado como sujeito, como agente no processo de aprendizagem. O projeto Mulheres Inspiradoras nasce dessa percepção de que estou dentro de uma estrutura viciada, condicionada ao paradigma da educação bancária. Uma estrutura educacional colonial, autoritária, instrucionista. Eu era parte dela. Ela me formou e eu a reproduzia. Então, o primeiro ponto foi: preciso mudar minha prática pedagógica; eu já tinha ouvido os teóricos e precisava ouvir os meus alunos.

Nisso, cria um perfil no Facebook para se aproximar dos/das estudantes e, em 2013, lança o projeto.

Isso. Comecei a usar a rede social como ferramenta de aproximação para os meus alunos (já tinha feito o mesmo com o Orkut) e fui percebendo como era um espaço em que eles podiam falar o que era vetado na escola. Ali me deparei com o vídeo de uma aluna de 13 anos dançando e que me

ENTREVISTA

Gina Vieira Ponte

impactou profundamente porque era uma música absurdamente depreciativa às mulheres, de apelo sexual violento. Ela não percebia o quanto havia de sexismo e machismo e até misoginia nos comentários. Não adiantaria eu tentar conversar com ela ali porque naquele canal ela se sentiria censurada. Percebi também que eu não tinha que conversar só com ela, mas com todas as meninas e meninos da turma. Até aquele momento, não tinha tanto repertório sobre as desigualdades e violação de direitos das mulheres. O que tinha era um corpo e uma mente de uma mulher que foram forjados no chão da escola, onde vi dezenas de vezes meninas da periferia abandonarem a escola porque engravidavam. O caso da menina de 11 anos foi o que mais me marcou porque ela chegou grávida. E, ao conversar, ela só imagina a alternativa de sair da mão de um pai abusador para cair na mão de um namorado abusador — um adulto que se relaciona com uma criança de 11 anos só pode ser chamado de abusador. Então, eu tinha esse incômodo há anos e o vídeo foi a gota que transbordou. O projeto nasce desse desejo de provocar as meninas a sonharem com outros espaços que não sejam de subalternidade, indignos da auto­objetificação sexual, e provocar os meninos a pensarem o quanto essa representação da mulher reduzida a objeto sexual é ofensiva, indigna, desrespeitosa e colabora para a violência contra mulher.

Com sua professora do ensino fundamental, Creusa. No livro que compõe o projeto, Gina escreveu a biografia de sua mãe, avó e também a de sua professora

Ele é centralizado na leitura de biografias de mulheres e escritas por mulheres, letramento e escrita autoral. Escolhi mulheres de diferentes âmbitos sociais, culturais e históricos. Desde mulheres brancas como Zilda Arns, passando por mulheres negras como Rosa Parks, grandes cientistas como Nise da Silveira, passando por mulheres a quem foi negado o direito à escolarização, como Carolina Maria de Jesus. Mulheres jovens como Anne Frank e Malala a idosas como Cora Coralina. Reforço que nessa época pouco se falava sobre livros escritos por mulheres. Eu tive que pesquisar muito. Fiz questão de escolher mulheres que tiveram que subverter o machismo. E também brasileiras do nosso território em Ceilândia, porque queria dizer para as meninas: a qualquer tempo, seja você quem for, você pode ser a dona da sua história, deixar um grande legado, ser protagonista do seu destino. Parte do projeto foi também provocar os alunos a pensar nas histórias das mulheres inspiradoras das suas vidas. Porque para mim o projeto é também um projeto de resgate de memória.

O Mulheres Inspiradoras tem ligação também, claro, com a sua mãe. Quando o projeto aconteceu havia pouco mais de 10 anos que a minha mãe tinha falecido. Ela faleceu no mesmo ano em que tive essa depressão que quase me levou. A depressão começou em fevereiro de 2003, e ela faleceu de repente de um câncer muito agressivo que já estava em estado de metástase. Descobri a doença em outubro e em novembro foi sepultada. Quando minha mãe foi embora, pensei: minha história foi embora. Porque as nossas mães detêm conhecimento profundo de nós. Mas eu tinha dimensão da mulher grandiosa que minha mãe era, sabia o tamanho do sacrifício que ela tinha feito para que eu pudesse estudar. Lembro das pessoas batendo na porta de casa e dizerem a ela: a senhora já tem quatro filhas que estão boas para serem empregadas domésticas. E minha mãe, corajosa, mesmo com dificuldade financeira, dizia: ‘ainda que nos custe passar fome, as minhas filhas vão estudar’.

Nisso, me perguntei: será que os meus alunos têm ideia da grandiosidade de suas mães, avós e bisavós? Porque todos devem ter a consciência de que se estamos aqui, de pé, é porque alguém que veio antes abriu o caminho. E as mulheres fazem uma revolução silenciosa, são elas que lutam pelos seus e nunca houve reconhecimento à altura do que fazem.

Foi só aos 42 anos que leu o primeiro texto que enaltece a beleza negra, de Cristiane Sobral. De que forma isso mexeu com você e qual o nome da poesia?

Eu já tinha uma profunda consciência da minha negritude, porque não foi dada a mim a possibilidade de dúvida sobre a minha negritude. Acho muito curioso quando as pessoas me perguntam: ‘quando se percebeu negra?’

Porque não me deram a chance de não me perceber negra, uma vez que o tratamento que me foi dispensado era para, a todo momento, lembrar de que eu era negra, inferior. Então, eu forjei a identidade negra a partir desse lugar em que o racismo nos coloca.

Cursei letras na Universidade Católica de Brasília e nenhum autor negro foi apresentado pra mim como negro, embora Machado de Assis tenha sido. O meu letramento racial, crítico, começa a ganhar consistência no projeto Mulheres Inspiradoras. Quem me apresentou a obra de Maria Carolina de Jesus, Quarto de despejo, não foi a universidade, foi a educação básica, quando trabalhava no CED 15 de Ceilândia, uma escola maravilhosa com um bom projeto de leitura.

Um belo dia, usando as redes sociais, me deparo com Cristiane Sobral e vejo uma escrita que mexe profundamente comigo, porque fala da estética negra de um lugar que até então estava interditado para mim. Não só da estética, mas de uma subjetividade negra altiva, insurgente, afrontosa que nos é completamente vetada. Li o poema Retina negra, que diz assim: ‘Sou preta fujona, recuso diariamente o espelho, que tenta me massacrar por dentro, que tenta me iludir com mentiras brancas, que tenta me descolorir com os seus feixes de luz. Sou preta fujona, preparada para enfrentar o sistema. Empino o meu black e invado a cena. Sou...’.

Fiquei arrepiada com esse poema porque foi o primeiro texto que me apresentou uma mulher negra num lugar de altivez, coragem, insurgência. Lugares vetados para mim. Falei: gente, que mulher negra é essa? Fujo dos estereótipos racistas, do lugar da subalternidade. O primeiro efeito que teve sobre mim foi o de afirmar ainda mais a minha

Estudantes de Gina no lançamento do livro com as histórias das mulheres que seus estudantes admiram

negritude. Ouvi a vida inteira que meu cabelo era duro, de Bombril, pixaim. Depois li outros poemas de Cristiane Sobral. Me deparei com uma metáfora que diz que o cabelo crespo de uma mulher negra é como árvores frondosas, coroa a coroa de uma rainha, que já nasce coroada.

Também quis repassar o que estava vivendo para as minhas alunas. Porque elas não podiam esperar chegar aos 42 anos para viver essa experiência incrível de sentir orgulho de quem se é e de afirmar isso. Levei o livro para a sala de aula e foi uma revolução. Algumas meninas abandonaram o cabelo alisado. Assim como eu também o abandonei. Foi um processo profundo.

O encontro com a obra de Cristiane Sobral foi o primeiro de muitos com escritoras negras como Lélia González, Sueli Carneiro, Patrícia Hill Collins e Maya Angelou, por exemplo. A obra de Cristiane Sobral tem a riqueza de falar da identidade negra e também periférica. Ao longo da leitura em sala de aula, havia um aluno branco a quem eu tinha dificuldade de acessar, sentia que ele estava no limiar para cair na criminalidade. E eu tentava resgatá-lo. Em uma dessas leituras em voz alta, por conta de a turma estar com burburinho, esse menino gritou do fundo: ‘silêncio. Eu quero escutar o bagulho’. Fiquei tocada. O poema mexeu com o aluno porque falava desse menino da periferia assediado pelo tráfico, que sofre violência e vive em situação de vulnerabilidade. Falava da vida dele de um lugar que o livro didático não fala, de um lugar que a literatura canônica não fala. Então, eu sou absolutamente apaixonada pela literatura e pela arte de forma geral, porque a arte comunica de um lugar que mexe no nosso mais profundo sentimento; mexe naquilo que o discurso pedagógico não dá conta de mexer sozinho. O que o discurso teórico não dá conta de mexer sozinho a arte vem e mobiliza; inclusive, vou dar só um ‘spoiler’. Cristiane Sobral vai aparecer no filme.

Dados do Saeb 2021 revelam que metade das escolas públicas do país não trabalham a questão étnico-racial.

Aline

ENTREVISTA

De quem é esse papel e como mudar essa realidade inaceitável?

Para entendermos por que as escolas não trabalham o tema, devemos beber em uma das fontes mais preciosas para mim do pensamento negro brasileiro, Lelia González, a qual diz que o Brasil é um país que exerce o racismo por denegação, que não se reconhece como negro. Um país que jura que é europeu, branco. Há mais de 500 anos, o Brasil era 100% território indígena, foi invadido por europeus, colonizado de forma violenta, com práticas genocidas de extermínio. É absurdo o que nós vivemos. E até hoje o país não tem consciência dessa história. Até hoje o Brasil reverbera o mito da democracia racial. A ideia de que somos todos iguais. Nunca fomos tratados de maneira igual. Neste país, o povo negro foi trazido forçosamente para produzir riqueza aos europeus às custas de exploração, estupro, tortura e morte.

A gente precisa se reconhecer como um país de base histórica negra e indígena. O segundo ponto é que racismo é sobre disputa por poder, por distribuição de poder, sobre dizer quem tem o direito de acumular riqueza, de deter poder material e simbólico e quem não tem. E nesse país, todas as nossas estruturas são regidas por uma hegemonia branca. O Senado é branco. A Câmara é branca, as Secretarias de Educação são ocupadas por pessoas brancas que não estão suficientemente sensíveis a essa temática. Elas gozam dos privilégios que o racismo concede a elas. Por que elas vão trabalhar em favor de uma educação que promova a equidade se elas ganham com a falta de equidade?

Sou preta fujona, recuso diariamente o espelho, que tenta me massacrar por dentro, que tenta me iludir com mentiras brancas... ” , trecho da poesia de Cristiane Sobral

E a gente precisa lembrar que falar de uma educação antirracista significa falar de justiça social, significa falar de mudança no nosso paradigma educacional, mudança no nosso material didático, mudança no nosso currículo, mudança na mentalidade dos nossos professores. Infelizmente, professores e professoras passam pela graduação, pela pós-graduação, às vezes mestrado e doutorado, sem ler absolutamente nada que diga respeito ao pensamento negro. Eu passei por quatro pós-graduações pela Universidade de Brasília (UnB). Fiz uma graduação pela Universidade Católica. Fiz um mestrado pela UnB e não conhecia Walter Rodney, o intelectual pan-africanista da maior importância. Nunca tinha lido o Contrato racial, de Charles Mills. Fui conhecer quando li a tese da Sueli Carneiro. E não basta falar de equidade étnico-racial colocando pessoas negras em posição de poder ou pessoas indígenas. A gente precisa de pessoas negras e indígenas qualificadas. E genuinamente aliadas da luta antirracista. Porque a gente tem que lembrar que nascer negro, indígena e mulher não nos dá consciência de gênero e raça. Se pessoas negras, se a classe operária não acessa as estruturas de poder, a gente não consegue mudar a realidade.

Se hoje a gente tem a Lei 10.639 e a 11.645, que tornam obrigatórios o ensino da cultura africana, afro-brasileira e indígena na escola, isso não se deve à bondade das elites econômicas brasileiras hegemonicamente brancas. Se deve à luta do movimento negro e indígena organizado, à luta das mulheres. Mas, veja, essas leis têm pouco mais de 20 anos, e o país existe há 525 anos. O que dá a medida do quanto isso não é uma prioridade para o país.

Todas as vezes que falamos sobre educação para as relações étnico-raciais, as pessoas se ofendem, levam para o seguinte lugar: vocês estão querendo privilegiar uma determinada cultura. Como educadora, digo que é triste a escola ensinar uma única forma de pensar. Ao ensinar só o pensamento europeu, a lógica cartesiana ocidental, a gente empobrece a formação dessas crianças. Imagina a riqueza que é uma criança desde a educação infantil aprender sobre qual é a relação que os indígenas têm com a natureza, que é outra cosmopercepção. Imagine o que representa uma criança ter a consciência de que muito do que ela vive vem dos valores civilizatórios africanos.

Então, uma educação para as relações étnico-raciais é uma educação que amplia a nossa forma de pensar. que nos ajuda a acessar outros saberes que, inclusive, vão permitir pensar futuros diferentes.

Na Faculdade Cultura Inglesa, seu sucesso na carreira está garantido.

Conheça nossos cursos:

Graduação:

Bacharelado em Inglês - Tradução (presencial)

Licenciatura em Letras - Inglês (presencial e EAD)

Pós-Graduação:

Língua Inglesa e Ensino - Aprendizagem (remoto síncrono)

Educação Bilíngue (remoto síncrono)

Tradução - Inglês (remoto síncrono)

Extensão:

Educação Bilíngue na prática (remoto síncrono)

Liderança e Gestão Escolar (remoto síncrono)

Condições diferenciadas para profissionais de Educação.

Inscrições abertas.

Acesse:

Os seis direitos para garantir o futuro, segundo António Nóvoa DEMOCRACIA

Ao se ‘aposentar’ da universidade, o professor defendeu a liberdade e os direitos humanos; presidente de Portugal esteve presente com atos de honrarias

| Por Luciana Alvarez

No dia em que completou 70 anos, em 12 de dezembro, o professor António Sampaio da Nóvoa deu a sua ‘aula final’ como servidor público da Universidade de Lisboa, em Portugal, e escolheu ‘Liberdade’ como título da cerimônia — ao chegarem aos 70, os professores têm de se aposentar compulsoriamente. Mas, em suas próprias palavras, não foi exatamente ‘uma lição’, muito menos ‘a última’. “Isto foi e é uma continuação”, afirmou na jubilação oficial.

Doutor em ciências da educação e história moderna e contemporânea, a trajetória de Nóvoa é grande e reconhecida; entre os feitos, presidiu na Unesco global um comitê de pesquisa que gerou o relatório Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação, publicado em 2021.

Com uma boa dose de emoção, Nóvoa e alguns convidados apresentaram na jubilação uma espécie de resumo da carreira do acadêmico português. Contudo, não houve tom de despedida, pois todos sabem que novos capítulos estão por vir. Afinal, estudar e aprender são intrínsecos

Cerimônia aconteceu na Universidade de Lisboa e destacou a grandeza de Nóvoa
Luciana Alvarez

a quem ele é. “Não se estuda para alguma coisa. Mas por sermos humanos”, disse o professor agora jubilado.

Em seu discurso, Nóvoa afirmou que, “se fosse sensato”, teria se limitado a agradecer as homenagens do dia e os apoios que recebeu durante sua trajetória. Preferiu, em vez disso, continuar a fazer provocações e defender ideais. Afinal, ser uma pessoa livre não o isenta de responsabilidades. “Liberdade significa para mim participação, entrega, compromisso e justiça social”, explicou.

Ao partir para a aposentadoria da universidade, decidiu assumir duas ocupações, que vê na verdade como “duas obrigações”: lutar pelo futuro e pelos direitos humanos. Claro que o futuro virá mesmo que à revelia das pessoas, mas António Nóvoa se preocupa com a forma que ele desapareceu no horizonte. “Tudo se esvai num presentismo sem fim. A sociedade vive num frenesi de gestos, que se esgota no mesmo instante (...) É o entretenimento contra o pensamento”, resumiu.

CULTIVAR A ESPERANÇA

A crítica ao fim de projetos coletivos de futuro cabe a vários setores, dos políticos aos professores, afinal, até a universidade que deveria ser uma instituição dos ‘tempos longos’ se rendeu a um ‘produtivismo de vistas curtas’. “Como explicar a ausência de futuro? Será que face a tantas incertezas e tragédias só conseguimos nos refugiar no presente e renunciar ao futuro?”, questionou. Imaginar um futuro melhor pode ter até certa dose de ingenuidade, mas o acadêmico defende que a esperança deve sim ser cultivada. “As máquinas podem fazer tudo e mais alguma coisa, mas jamais poderão cultivar a esperança. Porque a esperança implica uma consciência do futuro, e essa é uma característica intrinsecamente humana”, disse.

Para Nóvoa, a grande fronteira da liberdade e do futuro são os direitos humanos. E embora nem os direitos consagrados pela Declaração da ONU de 1948 tenham sido plenamente alcançados mundo afora, é hora de as sociedades passarem a se preocupar com alguns novos pontos.

SEIS DIREITOS ESSENCIAIS PARA GARANTIR O FUTURO, SEGUNDO ANTÓNIO NÓVOA

DIREITOS DA TERRA

Hoje precisamos de um humanismo mais do que o humano. Precisamos olhar para a natureza como

“Não se estuda para alguma coisa. Mas por sermos humanos”

parte da humanidade. Assistimos a uma irresponsabilidade coletiva de governos e cidadãos, uma inércia inexplicável, talvez na crença de que um milagre tecnológico irá nos salvar. Mas ou nos responsabilizamos pela proteção do nosso espaço comum, ou o lixo do presente condicionará tragicamente o futuro.

2

DIREITOS DO DIGITAL COMUM

Um dos fatos mais estranhos é a forma como colocamos nossos dados, privacidade e até liberdade nas mãos de oligopólios digitais. O 5º poder está dominando todos os outros. Precisamos de infraestruturas comuns. É urgentíssimo mobilizar as universidades e as ciências para combater o negacionismo, valorizar a ciência pública e cidadã. Junto com a música, a ciência é a única linguagem comum que nos resta. Sem ciência, não há liberdade.

DIREITOS DA MOBILIDADE

3

Dizer que pertencemos todos à humanidade sem consequências é hipócrita. Respeitamos a liberdade de circulação de capitais e mercadorias, mas ignoramos a liberdade de circulação de pessoas. Tragédias no mar e muros da infâmia persistem. Muitos dos problemas dos países mais pobres têm origem em séculos de exploração colonial e décadas de injustiças climáticas. Os direitos humanos não podem ser divididos em fatias. 1

DIREITOS DAS DIVERSIDADES

Como é possível recusar ou negar o direito de sermos quem queremos, de vivermos como quisermos? Atacar alguém por ser diferente, esmagar línguas, culturas, povos... O mais básico dos direitos — vivermos e morrermos segundo nossa escolha — tornou-se um tema fraturante. A intolerância é sempre fruto do desconhecimento. Precisamos de uma sociedade convivial, com uma liberdade que seja também libertadora, porque ela não se esgota em mim.

DIREITOS DO TRABALHO E DO ÓCIO

Um dos sonhos mais antigos da humanidade é a emancipação do trabalho. Os impressionantes avanços tecnológicos nos levam a pensar numa sociedade do ócio. No entanto, isso pode levar a novas fraturas sociais, com largas fatias da população condenadas à exclusão e à pobreza. É um debate que precisa ser aberto já, para antecipar as transformações que já vêm.

4 5 6

DIREITOS DA VIDA LONGA

A esperança de vida é o acontecimento mais extraordinário do nosso tempo. Em um século, em Portugal, ela mais que duplicou. Isso tem consequências em tudo, mas não estamos sendo capazes de pensar e nos adiantar ao futuro. Como construir uma vida com a presença simultânea de várias gerações? Como sentar à mesma mesa com seis gerações diferentes? Com tanto brilhantismo e conquistas no passado, Nóvoa encerrou oficialmente sua contribuição como servidor público olhando para os dias que virão. “O presente é uma passagem, o futuro é um caminho”, disse.

CONVIDADOS DE PESO

A cerimônia foi presidida pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e teve um lado de pompa e honrarias. Nóvoa recebeu a Grande Cruz da Ordem de Camões e foi aplaudido de pé mais de uma vez. Mas, como um professor querido, próximo aos alunos, poucos minutos antes de começar o rito, o homenageado passeava pelos corredores distribuindo apertos de mão, abraços e sorrindo para fotos dos que esperavam pela aula, entre antigos companheiros de academia e jovens universitários.

No seu discurso, o presidente português destacou que Nóvoa é “emérito desde sempre” na excelência pe-

A crítica ao fim de projetos coletivos de futuro cabe a vários setores, dos políticos aos professores, afinal, até a universidade que deveria ser uma instituição dos ‘tempos longos’ se rendeu a um ‘produtivismo de vistas curtas’

dagógica, na afirmação das pessoas e das comunidades. Também classificou como irrequieto e visionário: “Um cidadão do universo”, afirmou.

BRASIL REPRESENTADO

O ex-ministro da Educação brasileiro Cristovam Buarque enviou uma carta lida pelo embaixador do Brasil em Portugal, Raimundo Carreiro, na qual chamou António Nóvoa de “humanista navegador da contemporaneidade”. “Nestes tempos de tormentos tecnológicos, Nóvoa tem sido como um ponteiro da bússola, com conteúdo e oratória cativantes, falas que deslumbram e despertam”, dizia a missiva. Ao agradecer a carta, o pesquisador português brincou que “ser brasileiro é só questão de começar”. “No Brasil encontrei a minha outra pátria. Sou brasileiro”, falou Nóvoa.

Em um vídeo gravado, além de agradecer por todo o trabalho de Nóvoa, a diretora-geral da Unesco, Audrey Azoulay, disse esperar do antigo colega ainda mais frutos em breve: “A aposentadoria vai permitir que faça um trabalho intelectual ainda mais livre, além de passar mais tempo com a família”.

Para além dos que falaram ao microfone, o homenageado fez questão de lembrar de seus estudantes, muitos dos quais presentes na plateia. “Tive sorte, desde o primeiro dia como professor; os meus alunos foram sempre a minha respiração. Foi sempre a partir deles e com eles que fiz perguntas, procurei respostas. Que todos se sintam reconhecidos.”

MUNDURUKANDO

O índio que mora em nós

A visão estereotipada oriunda do colonizador precisa perder espaço, afinal, nenhuma sociedade é estática

Fomos educados a tratar os povos originários com a palavra genérica índio . Por muito tempo a repetimos vezes sem conta para nos referirmos a um desconhecido que sempre morou dentro de nós, o qual só conseguíamos verbalizar seguindo a régua do colonizador, responsável por tatuar em nossas mentes o estereótipo que tantas vezes repetimos de forma natural e sem nenhuma crítica real.

Eram basicamente dois modelos de índio que nos impuseram: um romântico e outro, ideológico. O primeiro nos foi incutido pela constante repetição de um paradigma firmado nos livros de história, nos livros do Romantismo, nas telas da televisão e cinema e no dia 19 de abril. Isso nos fazia crer que os índios eram nossos ancestrais com os quais não temos mais contato e que ficaram no passado. Sua lembrança nos dava algum alívio. Apenas isso. Era o índio heroico, bravo, guerreiro, destemido e defensor da natureza.

A palavra indígena é uma afirmação. Ela nos coloca como filhos primeiros dessa grande aldeia chamada Brasil. Ela exige que saiamos de nossa bolha e nos esforcemos a nos reencontrar com as origens de nossa história

tos minérios nobres. Sem dizer palavras duras, o sistema impôs um pensamento negativo sobre a gente indígena. Para nós, que somos habitantes do século 21, resta uma pergunta que precisa ser respondida caso queiramos construir uma realidade diferente do que nos foi apresentada até recentemente: qual o INDÍGENA que mora dentro de nós? O romantizado, o ideologizado ou o CONTEMPORÂNEO?

O modelo ideológico nos apresenta uma contradição ao primeiro. Quem de nós nunca ouviu dizer que índio é preguiçoso, selvagem, atrasado, desocupado, desonesto, traiçoeiro e vingativo? Quantas vezes nos disseram que os índios têm terra demais e nada produzem sobre ela e que índio bom é índio morto? Talvez até nem tenhamos ouvido dessa maneira considerada desumana, mas sempre os noticiários os apresentaram como inimigos do desenvolvimento nacional e, portanto, empecilhos para o crescimento do país por habitarem terras ricas em mui-

Irei desenvolver esse novo modelo nos próximos artigos, mas deixo aqui um piolho em forma de provocação. A palavra índio não é mais usada para nos referirmos aos indígenas. Primeiro porque ela é uma negação e segundo porque ela não nos remete ao que de fato somos. Ela generaliza negando a diversidade cultural e linguística que existe em nosso país. Já a palavra indígena é uma afirmação. Ela nos coloca como filhos primeiros dessa grande aldeia chamada Brasil. Ela exige que saiamos de nossa bolha e nos esforcemos a nos reencontrar com as origens de nossa história. Ela nos lembra que no Brasil só não é indígena quem não é.

Daniel Munduruku

Professor e escritor indígena com 65 obras publicadas — recebeu duas vezes o prêmio Jabuti. É doutor em educação e pós-doutor em literatura.

Caroline

secA s e e saiba mais

dtf mocrb.

Nossa jornada sempre foi marcada pelo movimento em busca de novas perspectivas para transformar a Educação, é por isso que continuamos avançando para oferecer soluções educacionais que acompanham e impulsionam as mudanças no mundo.

E é assim, com passos certos, que seguimos inovando na Educação há mais de 122 anos.

Conectamos histórias. Construímos futuros.

Reduzir sem alienar, cortar sem impor

Restringir o uso do smartphone na escola se tornou uma questão global. Fato é que desde a sua popularização, por volta de 2010, o nível de aprendizagem tem caído em diferentes países

Aantiga promessa de que a tecnologia digital revolucionaria a educação foi virada do avesso. Hoje, gestores e gestoras educacionais e até governantes de diferentes países prometem às famílias reverter o uso excessivo das telas pelas crianças e adolescentes. Em especial, é claro, fala-se do grande vilão: o celular, acoplado, claro, à internet. Mas o refluxo digital tem se mostrado um processo complexo, pois a tecnologia está entremeada nas rotinas de todos. É preciso reduzir sem alienar, cortar sem impor. Ainda estão em construção os caminhos para equilibrar o acesso ao di-

O cerne do problema é que, na maioria dos casos, os celulares não são usados com objetivos educacionais

gital na mesma medida em que se preparam as próximas gerações para um futuro inevitavelmente mais tecnológico que os dias atuais.

Um bom ponto de partida é que estamos praticamente todos na mesma página. Uma pesquisa de opinião da Nexus de novembro do ano passado mostrou que 86% dos brasileiros são a favor de algum tipo de restrição ao uso de celular dentro das escolas. Segundo o levantamento, 54% são favoráveis à proibição total dos aparelhos e 32% acreditam que o uso do celular deva ser permitido em atividades didáticas e pedagógicas, mediante autorização prévia dos professores. Mais do que um certo consenso nacional, o tema vem criando um movimento aparentemente global, pois a regulação de usos de dispositivos é uma questão discutida atualmente também em vários outros países, como Austrália e Finlândia.

Não se trata apenas de opinião; há evidências de que o uso excessivo do celular prejudica a saúde e o desempenho acadêmico dos estudantes. Globalmente, as aprendizagens dos estudantes medidas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), vêm caindo desde 2012, uma época que precede a pandemia de Covid-19 e coincide com a popularização dos dispositivos portáteis. No intervalo de 10 anos, de 2012 a 2022, a porcentagem de alunos que alcançaram o nível mínimo de proficiência em leitura caiu 12 pontos percentuais.

Rodrigo Bressan, médico e presidente da ONG Ame sua Mente, instituição que atua com formações para educadores sobre essa temática, não tem dúvidas de que os dispositivos digitais são prejudiciais. Ele conta que, ao fazer check-up de saúde mental, tem visto uma situação repetidamente: as famílias dizem que o filho usa o celular três horas por dia, o filho diz que são quatro, mas na contagem dá seis — e dessas seis horas,

a maior parte é em redes sociais. “Muitas vezes, o filho usa de madrugada e o pai nem sabe. Esse uso noturno está diretamente relacionado ao atencional, ou seja, cai a atenção no dia seguinte”, conta o psiquiatra.

O celular prejudica o sono, e a falta de sono prejudica o aprendizado. Mas não é só pela falta de horas de sono: na disputa pela atenção, os conteúdos da escola acabam perdendo numa disputa ‘desleal’, segundo o médico. “A gente não foi codificado geneticamente para ficar 50 minutos parados numa aula, ou sentar e ler, mas isso é um aprendizado cultural. Se há uma alternativa à mão, como ficar vendo piada, ou sucesso do seu post ou o que quer comprar, não dá para a escola competir com esse tipo de estímulo”, explica ele.

O presidente da Ame sua Mente lembra que não se trata de um problema das elites ou de certos grupos. A grande epidemia de distração é democrática, sem fazer distinção entre lado político ou classe social. “A quantidade de moleque com acesso a celular é maior do que água potável no país. Acredito que em conjunto, como sociedade, conseguiremos tirar as telas das crianças — o que será muito saudável”, garante.

Em meio a tantos déficits e desigualdades, incluindo as desigualdades de acesso a tecnologias, o importante é não demonizar os aparelhos que, para muitos, podem ser a única porta de entrada no mundo digital. “O celular não foi feito para fins pedagógicos. No entanto, se eles forem utilizados para fins pedagógicos, podem ser uma ferramenta bastante importante. Neste sentido, precisamos fazer com que o setor de educação e os professores se apropriem das tecnologias para po-

“O programa piloto [de retirar o celular] mostrou que discussões educativas funcionam melhor do que proibições”, analisa Marjo Kyllonen, secretária municipal de Educação da capital finlandesa

Arquivo pessoal

der utilizá­las nas salas de aula para fins pedagógicos. O que define se teremos mais vantagens ou desvantagens no uso de celulares por estudante é como ele é utilizado”, afirma Rebeca Otero, coordenadora do setor de educação da Unesco no Brasil.

O relatório de 2023 da Unesco, Monitoramento global da educação, tem como tema A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?, que aponta, por exemplo, que estudantes com deficiência foram grandes beneficiados por aplicações inclusivas em aparelhos portáteis, assim como professores que hoje possuem materiais didáticos de qualidade graças ao acesso à internet. Como muitas escolas não estão devidamente conectadas, celulares e chips próprios acabam sendo sim ferramentas educacionais.

O cerne do problema é que, na maioria dos casos, os celulares não são usados

com objetivos educacionais. Mesmo em países desenvolvidos, o estudo da Unesco aponta que só 10% dos adolescentes de 15 anos usam o celular para estudar ciências ou matemática por mais de uma hora por semana. Mais uma vez, ganha força a ideia de que é preciso afastar os aparelhos da escola, a menos que ele seja para situações bem específicas e determinadas pelos professores.

Na cidade do Rio, em só meio ano letivo, as chances de alunos do 9º ano alcançarem o nível adequado em matemática aumentaram 53% nas escolas que conseguiram
proibir o celular

No país, a cidade do Rio de Janeiro assumiu a dianteira ao criar a lei que proíbe o uso de celular dentro das escolas da rede desde março do ano passado. No primeiro semestre de experiência, 38% das escolas informaram ao governo local estar com dificuldades de implementar a medida. Porém, dados divulgados pela secretaria em outubro indicaram que os resultados positivos da medida são quase imediatos; em só meio ano letivo, as chances de alunos do 9º ano alcançarem o nível adequado de aprendizado em matemática

aumentaram 53% nas escolas que conseguiram de fato proibir os aparelhos.

Na sequência, o estado de São Paulo promulgou uma lei semelhante, que passa a valer no início do ano letivo de 2025. Em nível nacional, a lei proposta pelo Ministério da Educação (MEC) foi sancionada em 13 de janeiro deste ano pelo presidente Lula, e inclui a proibição do dispositivo até nos intervalos, com algumas exceções, por exemplo, fins pedagógicos e o uso a estudantes que necessitam de acessibilidade. Com as decisões tomadas às vésperas do início do ano letivo, é difícil prever quando se tornará realidade nas salas Brasil afora.

De qualquer maneira, as leis trazem respaldo a uma tendência crescente nas escolas. O levantamento TIC Educação apontou que, entre 2020 e 2023, a proporção de escolas dos anos finais do ensino fundamental com proibições ao uso de celulares subiu de 10% para 21%. Contudo, no ensino médio, com alunos adolescentes e com mais autonomia, a porcentagem se manteve na casa dos 8%.

A etapa pode até ser mais desafiadora, mas há exemplos de que é possível tirar o celular do ambiente escolar com sucesso. No Colégio Marista João Paulo II, em Brasília, os esforços anticelular começaram com os 6º e 7º anos, mas no ano passado a proibição já foi ampliada até o final do ensino médio. “A gente não queria

“Há anos temos dito que primeiro é necessário ter um objetivo pedagógico [para usar a tecnologia] mas, hoje em dia, eu enfatizaria o aspecto social do aprendizado”, diz Marjo Kyllonen, secretária municipal de Educação da capital da Finlândia

Rebeca Otero, da Unesco Brasil: Como o celular é utilizado pelo estudante é o que define as vantagens e desvantagens

proibir, mas entendemos que a exposição prolongada prejudica o desenvolvimento e, nessas idades, mesmo que você combine uma regra, é difícil para eles cumprirem. Alguns até conseguem, mas não todos”, explica a vice-diretora, Luciana Winck.

Depois de muita conversa e conscientização, os celulares nesse colégio estão proibidos quase o tempo todo, com exceção de um intervalo de 15 minutos no qual é liberado. A solução prática foi criar armários com nichos com os nomes dos alunos e, na chamada da primeira aula, cada um deposita seu aparelho no local. A regra é a mesma até para os professores. Os docentes também foram preparados para a mudança. “Tivemos de nos preparar porque alguns poderiam manifestar ansiedade, frustração, tínhamos de saber como acolhê-los, mas isso aconteceu num número bem menor do que imaginamos”, relata a educadora.

Outra surpresa, segundo Luciana, foi que grande parte dos estudantes não pega o celular mesmo durante o intervalo em que têm permissão. Ela reconhece que, fora da escola, muitos dos seus estudantes vão voltar a se grudar às telas, mas vê como positivo o período que passam sem elas. “Ainda estamos monitorando se houve evolução acadêmica. Porém, está claro que há um ganho de convivência muito importante. Um afastamento ainda que momentâneo das telas traz um maior equilíbrio”, afirma.

Mas, para que haja algum equilíbrio verdadeiro, as famílias e a sociedade de forma geral devem contribuir nesse esforço. Crianças e adolescentes precisam ler, estudar e conviver no mundo real também quando

Edson Fogaça

estão fora da escola. Contudo, em um país desigual e injusto como o Brasil, em que muitas famílias tentam a sobrevivência, essa consciência ainda é negada.

Por sentir a necessidade de afastamento dos dispositivos também nos tempos livres, Adriana Reischtul, mãe de duas meninas de cinco e oito anos, entrou para o Movimento Desconecta, que propõe às famílias um compromisso de não dar smartphones antes dos 14 anos e não deixar os filhos terem redes sociais antes dos 16 anos. Só que os excessos digitais vão além disso. “Nas idades das minhas filhas, o celular ainda não é tanto o problema, mas muitas crianças já usam o tablet direto”, conta ela.

Por mais que seja capaz de controlar os usos dentro da sua casa, Adriana acredita que um pacto coletivo traz mais resultado. “Se cada um fizer sua parte, a pressão social para usar, para não ficar de fora, que hoje é um grande problema, diminuirá”, defende. Ela apresentou a ideia do Desconecta na escola das filhas e logo recebeu muito apoio, mas, ainda assim, sente que os desafios são imensos. “A gente promove eventos de conscientização na escola, mas são sempre as mesmas famílias que aparecem. Sinto que estamos pregando para os já convertidos”, relata.

professor peça para usá-los como parte de uma atividade pedagógica”, explica Marjo Kyllonen, secretária municipal de Educação e Serviços Públicos de Helsinque. “Na sala de aula, os alunos interagem muito bem presencialmente. Mas, nos intervalos, muitos passam a se comunicar apenas por mensagens nos celulares, mesmo estando fisicamente próximos”, relata.

Estão em construção os caminhos para equilibrar o acesso ao digital na mesma medida em que se preparam as próximas gerações para um futuro inevitavelmente mais tecnológico

Sem esperar por um compromisso das famílias, em novembro de 2024, a Austrália proibiu que crianças e adolescentes com menos de 16 anos tenham contas em redes sociais. Para muitos especialistas, a proibição não tem viabilidade técnica; apenas simbólica. De qualquer forma, a medida repercutiu no mundo inteiro, que agora olha atento à espera de ver qual será o nível de sucesso alcançado.

Mesmo na Finlândia, um país tido como farol global quando se trata de educação de qualidade, a questão não se encontra pacificada. Neste momento, discute­se no país se os estudantes devem ou não ter acesso aos celulares nos intervalos. “Em Helsinque, as escolas têm um ‘código de conduta’, o qual estabelece que os alunos não podem usar celulares durante as aulas, a menos que o

Para tentar mudar esse panorama, foi feito um programa piloto em algumas escolas de tirar os celulares também nos recreios. Não houve exatamente uma proibição, mas um trabalho de conscientização e recomendação, com workshops para famílias, estudantes e professores. “Eles discutiram os impactos negativos do uso excessivo de redes sociais e também como passar o tempo sem depender do celular. Descobrimos que 20% dos nossos estudantes de 15 anos ou mais diziam que passam mais tempo online do que gostariam. O programa piloto mostrou que discussões educativas funcionam melhor do que proibições”, afirma Marjo. Outro ponto importante foi que as escolas organizaram recreios mais ativos, com jogos e atividades conduzidos por adultos, para ajudar os alunos a se desconectar dos celulares. Mas tudo isso, claro, num contexto que não alijou as crianças e jovens do contato com tecnologias digitais. “As escolas estão bem equipadas com tablets e laptops, então não há necessidade de usar celulares pessoais”, diz a diretora de desenvolvimento. Marjo defende que a aprendizagem deve promover o bem-estar dos estudantes, algo que o contato cara a cara faz muito melhor do que via tecnologias. E, quando usada, o foco da tecnologia seja para melhorar os relacionamentos reais. “Há anos temos dito que primeiro é necessário ter um objetivo pedagógico [para usar a tecnologia] mas, hoje em dia, eu enfatizaria o aspecto social do aprendizado. Vivemos em um mundo cheio de tensões e dilemas, e precisamos ensinar os jovens a dialogar com pessoas de diferentes opiniões e encontrar soluções em conjunto”, conclui a finlandesa.

ATRAIR PROFESSOR

Os desafios do MEC para o programa que pretende gerar novos docentes

Mais Professores é louvável, mas, para se concretizar, governo precisa focar também em manter o docente atuando, o que pede salário digno, plano de carreira e outros pontos. Mozart Ramos alerta ainda que a escola em que o novo docente lecionará pode não ser a de sua expectativa

Um futuro apagão docente tem sido motivo de alerta no Brasil e em outros países devido ao não interesse dos jovens pela profissão. Diante dessa perspectiva que reforça a necessidade de se investir em formação de professor na educação básica e do já atual déficit docente em áreas específicas, o governo Lula deu um passo importante ao anunciar em janeiro deste ano o Programa Mais Professores para o Brasil. São cinco eixos, entre eles, bolsa financeira mensal de 1.050 reais, chamada de Pé-de-meia licenciaturas; Prova Nacional Docente; e Alocação de professores em áreas carentes de profissionais.

A análise positiva sobre o novo programa é unânime entre os especialistas ouvidos nesta reportagem: Fernando José de Almeida, Iraneide Soares da Silva e Mozart Neves Ramos, e também para a estudante Bruna Rodrigues. Contudo, além de focar na formação inicial, aguarda-se, há décadas, o anúncio de dois pontos fundamentais para um avanço significativo: salário docente digno e carreira profissional atrativa para, aí sim, termos professores e professoras estimulados(as).

Programa tem cinco eixos, entre eles, bolsa de 1.050 reais para estudantes; Prova Nacional Docente; e Alocação de professores em áreas carentes de profissionais com bolsa de 2.100 reais

Mozart Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, da USP Ribeirão Preto, em SP, destaca mais um ponto: as escolas que esses futuros profissionais lecionarão precisam estar preparadas para recebê-los — entenda no decorrer desta reportagem. Já a professora universitária Iraneide Soares levanta a importância de uma aposentadoria digna.

CARREIRA ATRATIVA E ESCOLA QUE ACOLHA

No país em que a primeira colocada da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) poderia ingressar em qualquer curso, como medicina, e escolheu licenciatura em química, mas, pouco tempo depois, trocou devido à desvalorização da carreira de professor e entrou em direito — um dos mais concorridos da instituição —, torna-se evidente a necessidade de medidas para reter essas pessoas no curso e também na profissão.

“Por volta de um ano depois, perguntei sobre a ausência dessa aluna e os colegas me disseram que ela desistiu porque a família disse que ser professor não tem futuro”, recorda-se Mozart Neves Ramos sobre um dos anos em que lecionava na UFPE.

Para Mozart, que tem 42 anos de experiência como professor, além de ter sido membro do Conselho Nacional de Educação (CNE), secretário de Educação de Pernambuco (2003-2007) e reitor da UFPE, o Programa Mais Professores é bom ao focar em atrair pessoas à profissão e incentivar a conclusão do curso. “Mas é insuficiente para a fixação. O governo precisará pensar no ‘day after’ para que todo esse esforço na formação inicial se concretize. Porque não basta atrair e formar.”

O que ele questiona é o depois do diploma a saída do ensino superior para o chão da escola, visando a permanência do dia a dia profissional. Seu argumento ganha força diante da pesquisa do Instituto Semesp, a qual mostrou ano passado que oito em cada 10 professores já pensaram em desistir da carreira.

MAIS PROFESSORES PRECISA

DE UM SEGUNDO PASSO

“Já até conversei com Rodrigo Pacheco [presidente do Congresso] e outros parlamentares; falei da escassez docente e dei duas sugestões que, agora, podemos pensar como etapa dois desse programa do governo, ligada ao ‘day after’: mesmo com pessoas formadas e salário atraente, as escolas responderão às expectativas desses futuros professores, elas estarão preparadas? Repito, todo esse esforço pode vir por água abaixo se o governo não pensar no ‘day after’”, enfatiza Mozart Ramos.

Dados do Ministério da Educação (MEC) revelam que apenas um terço dos que se formam em licenciatura ingressam na carreira docente. Além disso, por volta de 33% dos professores da educação básica lecionam em áreas sem formação adequada. Essa realidade é mais crítica no Norte e Nordeste do país, em que mais da metade dos professores dos anos finais do ensino fundamental trabalham nessa situação.

“Minha sugestão é um ‘Fundeb Carreira Nacional’, estimulando uma maior equidade no plano de carreira”, orienta Mozart Neves Ramos

Mozart Neves Ramos: “O governo precisará pensar no ‘day after’ para que todo esse esforço na formação inicial se concretize”

O professor que já está em sala, cansado e pensando em mudar de profissão também tem que ser olhado, avalia a professora Iraneide Soares da Silva

Intitulado Alocação de professores e inspirado no Mais Médicos, o eixo três do Programa Mais Professores dará bolsa mensal de 2.100 reais por dois anos a docentes da rede pública que atuarem em regiões carentes de profissionais, buscando, justamente, reverter os dados citados acima. Iniciativa valiosa e que mostra o compromisso do governo com a educação. Mas, sem um plano completo, Mozart continua destacando que tais eixos poderão não surtir efeito.

Quando secretário de Educação do estado de Pernambuco, notou que professores com mais tempo de carreira, por já conhecerem as ‘entranhas’ da profissão, pediam transferência de escola visando aquela com um melhor nível socioeconômico. Sendo assim, são os jovens professores que costumam lecionar em instituições mais desafiadoras, geralmente, as de regiões periféricas com alto índice de violência na comunidade.

Marcos Oliveira/Agência Senado
Arquivo
pessoal

ATRAIR PROFESSOR

“Maria Helena Guimarães de Castro, quando secretária de Educação do Distrito Federal [2007], também viu que jovens professores eram enviados para áreas com violência, drogas, e por não estarem preparados, acabavam desistindo da profissão. É por isso que digo: o governo tem que pensar na escola que receberá esse jovem para ele se sentir motivado enquanto plano profissional individual de vida”, defende Mozart Ramos. (*Leia mais orientações no final da matéria.)

QUEBRAR O ‘CASTIGO’ DE SER PROFESSOR(A)

O novo conjunto de atuação do governo chega no momento ‘SOS educação’, avalia Iraneide Soares da Silva, professora de história na Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e presidenta da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (2022-2024).

Como professora de história, diz que seus estudantes concluem a formação, mas na sequência ingressam em outros cursos visando novas carreiras.

“Temos de pensar a natureza dessa profissão, como esse sujeito está chegando e o motivo de não querer chegar.” Iraneide completa: “O programa é louvável. O MEC tem pensado e investido na educação básica junto à classe trabalhadora, ao Fórum Nacional de Educação. Mas também temos que olhar o professor que já está em sala de aula, cansado e pensando em mudar de profissão”.

A previdência em vigor precariza o professor, por exemplo, quando ele se aposenta com um valor que costuma chegar a três vezes menos — e olhe lá — do que o seu salário. “No momento em que mais precisamos

“A primeira coisa para se construir política de formação é criar um centro de formação. O anúncio desses institutos mostra a largueza de visão [do MEC]”, reconhece Fernando José de Almeida, que já foi secretário de Educação de SP

“O momento atual é de o governo já avaliar esse currículo — professores precisam de faculdades melhores e cursos presenciais. A educação a distância com currículo de qualidade é exceção”, frisa Fernando José de Almeida

[não tivemos apoio]; isso não aconteceu com o Judiciário e militares. O que mostra o quanto os professores ainda são desvalorizados. Para muitos, ser professor é um castigo de quem não conseguiu avançar. Esse programa do MEC vem ao encontro de um cenário desafiador e eu olho com a esperança de que essas medidas darão um ‘up’ aos jovens para terem vontade de se formar”, pontua Iraneide.

CURRÍCULO DOCENTE

CLARO E PRESENCIAL

Para Fernando José de Almeida, professor de pós-graduação em educação: currículo na PUC-SP e secretário municipal de Educação da cidade de São Paulo (20012002), o Mais Professores é ótimo. “Porém, falta melhorar os recursos das bolsas, dar mais dinheiro.” Questionado sobre os docentes já em atuação, ele destaca que essa carreira, uma vez iniciada, está mais como tarefa de estados e municípios do que federal. “Claro que o federal pode interferir, mas é mais originante [ele priorizar a] formação inicial do professor e os estados e municípios complementarem”, destaca Fernando.

No mesmo dia em que anunciou o programa, o presidente Lula também afirmou que seu governo construirá mais de 100 institutos federais. “A primeira coisa para se construir política de formação é criar um centro de formação. O anúncio desses institutos mostra a largueza de visão [do MEC]”. Porém, além de incentivar pessoas a ingressarem em um curso, o currículo de formação docente precisa estar claro no país, e não está, segundo Fernando José de Almeida. “Precisamos

aperfeiçoar o modelo de conteúdo formativo, incluindo os cursos desses 100 institutos federais. Já tivemos em SP os Cefams (Centros de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério), foi um sucesso, mas o governo militar acabou. O momento atual é de o governo já avaliar esse currículo — professores precisam de faculdades melhores e cursos presenciais. A educação a distância com currículo de qualidade é exceção. E não podemos justificar essa exceção EAD equipada por um determinado apoio como exemplo a ser aplicado a milhões de pessoas”, frisa Fernando José de Almeida.

MAIS TEMPO PARA ESTUDAR PODE GERAR DOCENTES MAIS QUALIFICADOS

Aos 30 anos, Bruna Rodrigues é estudante de linguagens na Faculdade de Educação do Sesi, na capital paulista. O anúncio do governo a motiva. “Sinto um reconhecimento do papel do educador no país e também vontade de fortalecer o sistema de ensino.”

Se ganhasse a bolsa mensal, o Pé-de-meia licenciaturas, isso lhe daria segurança financeira para concluir o curso, mas também emocional. “Ao não ter que priorizar pagar as minhas contas, eu poderia ter mais qualidade e tempo nos estudos, já que não me dividiria tanto. Creio que evitaria estudar correndo para dar tempo de ir trabalhar. Com isso, posso ser uma profissional melhor devido aos estudos”, avalia a estudante que tem técnico em paisagismo e tecnólogo em design de interiores.

*MOZART SUGERE O ‘FUNDEB CARREIRA NACIONAL’

O titular da Cátedra da USP, Mozart Neves Ramos, analisa que o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) tem sido um bom instrumento para equilibrar o nível salarial dos docentes, uma vez que há prefeitos que usam quase 100% do Fundeb para pagamento de salário — o que é importante para municípios mais pobres.

A partir disso, ele destaca outro ponto: “Minha sugestão é um ‘Fundeb Carreira Nacional’, estimulando uma maior equidade no plano de carreira. Porque precisamos que esse professor entre e se mantenha na profissão. Pesquisas mostram que quando o professor começa, a diferença salarial inicial é apenas 10% menor que a média das outras profissões. À medida que isso passa, cresce de 30% a 40%, porque o plano de carreira não acompanha”.

Bruna Rodrigues, estudante: “Sinto um reconhecimento do papel do educador no país [com o programa] e também vontade de fortalecer o sistema de ensino”

O Pibid (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) vinculado à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) deveria estar integrado ao novo programa do MEC, também aconselha Mozart — vale lembrar que tal medida pode já estar prevista pelo governo, uma vez que o anúncio da iniciativa é recente.

Em anúncio oficial, o ministro Camilo Santana reconheceu que para o Mais Professores ter efeito, o MEC precisará monitorar por unidade da federação a implementação da iniciativa. “Esse é um ponto fundamental, porque o governo pode repassar dinheiro e não saber o que acontece na ponta. A falta de monitoramento de resultados termina comprometendo a própria iniciativa”, conclui Mozart sobre a importância de uma gestão colaborativa forte e sendo essa a meta do presente e as outras apontadas por ele, as de um futuro próximo.

Sobre o Pé-de-meia licenciatura: “Creio que evitaria estudar correndo para dar tempo de ir trabalhar. Com isso, posso ser uma profissional melhor devido aos estudos”, considera a estudante Bruna Rodrigues

Arquivo pessoal

Há mais de 15 anos, somos a escolha das melhores instituições de ensino do Brasil o ano para transformar sua escola com a educação bilíngue da IS

+430 escolas confiam na nossa metodologia 200 cidades brasileiras

+170 mil estudantes impactados em todo o país

Presença em mais de 95% de aprovação + em certificações internacionais

8x eleita a melhor solução bilíngue do Brasil

Escolha a solução bilíngue mais completa

Com o Essential, seus alunos têm acesso ao melhor da educação bilíngue oferecida no Brasil, por meio de metodologias inovadoras, materiais e recursos tecnológicos exclusivos, vivências internacionais e muito mais.

+

A Jornada IS Max é uma solução pioneira que combina educação e entretenimento (Edutainment), com foco em educação socioemocional, educação financeira, cultura maker, empreendedorismo e STEAM.

Em 2025, dê aos seus alunos a educação do futuro

Seja parceiro da maior empresa de educação bilíngue do Brasil

O poder civilizatório da informação

A maior temeridade da nova onda de desmanche dos mecanismos de verificação de informação nas redes sociais é perdermos a noção do caráter civilizatório da informação e que ela representa a infraestrutura sobre a qual as democracias são construídas

Um sinal amarelo foi aceso em relação ao uso das redes sociais pelos estudantes do mundo. A Meta (empresa controladora do Facebook, Instagram e WhatsApp) surpreendeu o mundo ao anunciar medidas que fragilizam a integridade e qualidade da informação compartilhada pelos usuários em suas plataformas. A tendência é que esses ambientes digitais se tornem com o tempo ainda menos seguros e transparentes.

Esse assunto tem obrigação de passar pela escola, seja nas práticas educativas, nos debates, mas não sem antes fazer-se presente na formação dos professores. Afinal, segundo a pesquisa TIC Educação Kids, realizada pelo Comitê Gestor da Internet, a porcentagem de crianças e jovens que acessam redes sociais no Brasil é superior a 80%.

Entre as medidas anunciadas estão a descontinuidade de serviços de checagem de informações (‘fact-checking’) e a não retirada de conteúdos falsos, imprecisos, ofensivos ou extremistas — políticas que a Meta vinha conduzindo nos últimos anos, mesmo com falhas. Na prática, Mark Zuckerberg, fundador, se rendeu às práticas não regulatórias da rede X (ex-Twitter), de Elon Musk, também estimuladas pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump. No caso do X, as chamadas ‘notas da comunidade’ , em que outros usuários comentam se a informação é verídica, imprecisa ou violenta, por

exemplo, são o único mecanismo de mediação em funcionamento no momento.

A medida vai contra o esforço de algumas nações que tentam regulamentar as redes sociais no sentido de acreditar que a qualidade da informação é um bem público — assim como a radiodifusão e o jornalismo profissionais devem seguir regras públicas. Na prática, mensagens no Facebook que associem a orientação sexual a doenças, por exemplo, estão agora permitidas, como indicado em uma diretriz da empresa. A negação da existência do Holocausto, a difamação pública sem provas de fato, e outros casos já presenciados anteriormente, estão iberados para serem postados pelos usuários.

A escola e seus educadores, que devem estar atentos e preparados para esses cenários, têm um papel central em auxiliar os estudantes a valorizar o caráter civilizatório da informação íntegra e de qualidade

Numa análise inicial, e legítima, o que a Meta fez foi desvelar ao público, com certo grau de sinceridade, a finalidade de sua existência: o lucro. Seu modelo de negócio é baseado em tráfego de usuários; vale o quanto pesa, ou seja, quanto mais, melhor. Moderar conteúdo significa por um lado reduzir o tráfego, e por outro, mais político, envolver-se em polêmicas públicas, debate, fuga de patrocinadores, entre outros. Trata-se de um exemplo prático da economia de mercado, que se aplica da venda de laranjas ao compartilhamento de informações. Num contexto mais amplo, entretanto, não se pode ignorar que regular conteúdo em redes sociais é por si só um tema espinhoso. Estaríamos restringindo a liberdade de expressão, uma das maiores conquistas democráticas do século passado?

O direito à liberdade de expressão e de comunicação seguiu caminhos de leituras e aprimoramentos após a aparição inicial na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O fato é que ela nunca foi um valor que não se relacionasse com a garantia de outros. Não se pode garantir um direito à ofensa e ao racismo, por exemplo. Eis aqui o local em que o discurso de ódio não tem vez.

A ideia de uma liberdade absoluta (ou uma tolerância social absoluta) já foi refutada por inúmeros pesquisadores, começando pelo austríaco Karl Popper, que criou a ideia de um paradoxo nesse campo. Como poderíamos tolerar a opinião antidemocrática que justamente prega o banimento de um espaço de livre opinião? Não seria possível tolerar a liberdade daqueles que pregam justamente o fim dela mesma.

O debate sobre a liberdade de informação, no final das contas, é um debate sobre como viver em sociedade, e não à toa ganhou força depois de duas guerras mundiais.

A informação nunca é neutra — vem carregada de vieses, além de perder e ganhar outros significados pelos diversos meios em que circula. Em muitas situações, a informação de qualidade pode ter um caráter civilizatório, se considerada como um bem público pelo qual temos de zelar. Ela auxilia a fortalecer indivíduos e instituições no convívio social — qual o poder da informação sobre o uso de preservativos na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, por exemplo?

A maior temeridade da nova onda de desmanche dos mecanismos de verificação de informação nas redes sociais é perdermos a noção do caráter civilizatório da informação e que ela representa a infraestrutura sobre a qual as democracias são construídas.

Tudo está perdido? Há quem tenha argumentos de que o movimento da Meta pode ser positivo no médio prazo. A aclamada ‘autorregulamentação’ com o tempo daria conta de afastar usuários, posts e contas que não contribuem para um debate consistente. Assim evitaria o papel do Judiciário, ou das empresas de tecnologia de forma unilateral, ao banir usuários e conteúdos conforme parâmetros internos. Isso geraria mais confiança nas redes, segundo eles.

Mas, e os algoritmos? Como sabemos se conteúdos são privilegiados em detrimento de outros? A questão da transparência de funcionamento continua sendo um ponto crítico das práticas das empresas de tecnologia, que hoje se tornaram empresas de comunicação. A decisão da Meta contribui ainda mais para a opacidade de seus valores e funcionamento.

Tal qual a internet, que em seus primeiros anos se apresentava como uma biblioteca mundial que prometia democratizar o acesso à informação, e que depois se viu dominada por grupos monopolistas, as redes sociais passaram rapidamente da promessa de uma ‘ágora’ de debate qualificado a um coliseu de gladiadores irascíveis. A escola e seus educadores, que devem estar atentos e preparados para esses cenários, têm um papel central em auxiliar os estudantes a valorizar o caráter civilizatório da informação íntegra e de qualidade.

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, escritor e educador. Mestre em inteligência artificial e ética, é consultor da Unesco e apresentador do programa Idade Mídia, no Canal Futura.

EQUIDADE

Desigualdade que se mede em anos

Alunos pretos e pardos têm uma década de atraso em relação aos alunos brancos no que se refere à conclusão do ensino fundamental — e esse é apenas um dos muitos indicadores da desigualdade étnico-racial. Especialistas indicam como a escola pode ser mais atraente e promover a equidade

Por Fernando Leal e Paulo de Camargo

Na complexa, diversa e desigual educação brasileira, os números mostram um país com desafios de acesso e aprendizagem. Mas há um cenário ainda pior — a dos estudantes pretos e pardos. Segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica, publicado em novembro, de cada 100 estudantes pretos e pardos que ingressam na escola, apenas 82 conseguem concluir o ensino fundamental aos 16 anos — patamar alcançado pelos alunos brancos há uma década.

Esse é o Brasil segmentado por cor/raça, bem distante daquele composto por alunos brancos. No ensino médio, a desigualdade segue expressiva: os dados de conclusão atingidos hoje por estudantes pretos e pardos foram alcançados há oito anos pela população branca.

Pela primeira vez, o Anuário Brasileiro da Educação Básica, fruto da parceria entre o movimento Todos Pela Educação, a Fundação Santillana e a Editora Moderna, conta com um capítulo dedicado à equidade étnico-racial.

As inequidades raciais entre essas duas realidades educacionais se tornam ainda mais relevantes quando se analisam os indicadores de aprendizagem. Os dados mais recentes disponíveis mostram diferenças da ordem de 25 pontos percentuais entre o percentual de alunos brancos e pretos com aprendizagem adequada tanto no ensino fundamental como no ensino médio. E isso se reflete, por exemplo, na presença da população de 18 a 24 anos no ensino superior: cerca de 33% das pessoas são brancas e 17% pretas, nessa faixa etária.

FATORES DIVERSOS

O percentual de jovens que concluem cada etapa da idade esperada é especialmente significativo por

Arquivo pessoal
Péricles Pinheiro estuda medicina em Salvador. Na foto, sua mãe e pai, Nadiene Sousa Pinheiro e Elenilton Bonfim Ailva

se relacionar com outros indicadores, como explica Jackson Almeida, analista de políticas educacionais do Todos Pela Educação. “Ao buscar os fatores pelos quais estes alunos e alunas não conseguiram concluir, encontramos maiores taxas de reprovação, evasão e abandono, e, consequentemente, maior distorção idade-série”, explica.

Ao mesmo tempo, é essencial explorar os motivos que levam os estudantes a deixarem a escola, tendo em mente que não há um único fator que possa ser isolado. A vulnerabilidade socioeconômica, muito associada também ao critério racial, leva à evasão dos jovens que tentam assumir o papel de provedores financeiros de suas famílias. Mas há razões menos tangíveis. “Muitas vezes, no ambiente escolar, pouco se fala sobre este aluno preto, seus ancestrais e sobre perspectivas para seu povo. Isso torna a escola pouco atrativa para este estudante que, apenas em raros momentos, consegue perceber de que forma aquela instituição é capaz de fazer diferença para mudar o contexto em que está inserido”, conta Jackson.

Daí o imperativo da implementação efetiva de projetos sobre relações étnico-raciais e racismo nas escolas, incluindo a lei 10.639/2003 (mais tarde alterada pela lei 11.645/2008), que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas. Os estudantes precisam se sentir pertencentes a uma escola — que, para isso, não pode estar orientada apenas pela cultura e história construída pelos brancos. É preciso que autores, escritores, artistas, políticos, enfim, personagens que foram importantes para a história dos povos afrodescendentes façam parte de estudos na escola. O mesmo vale para os po -

Os estudantes precisam se sentir pertencentes a uma escola — que, para isso, não pode estar orientada apenas pela cultura e história

construída pelos

brancos

“Pouco se fala sobre este aluno preto, seus ancestrais e sobre perspectivas para seu povo. Isso torna a escola pouco atrativa”, diz Jackson Almeida, do Todos Pela Educação

vos indígenas e outros grupos tradicionais.

Nessa frente de ação, o Anuário também evidencia que há um longo caminho a percorrer: a abordagem do tema étnico-racial e projetos pedagógicos para combater o racismo estão presentes em apenas 50,1% das escolas públicas brasileiras, segundo dados colhidos no Saeb de 2021. Trata-se da menor taxa da série histórica, desde 2011.

Além disso, um levantamento inédito do Ministério da Educação (MEC) avaliou os avanços da Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (Pneerq) nos estados e municípios. A ferramenta foi desenvolvida a partir dos dados compilados pelo Diagnóstico Equidade, questionário respondido por prefeitos ou secretários de Educação dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. As respostas do Diagnóstico Equidade permitiram a construção de seis índices de educação para as relações étnico-raciais (Erer): institucionalização; formação; gestão escolar; material didático e paradidático; financiamento; e avaliação e monitoramento. A média ponderada de todos os índices levou à criação do Índice Geral de Erer, que ficou em 47,7 na esfera estadual e 27,1 na municipal, numa escala que vai até 100. Os menores resultados foram aferidos em financiamento e gestão escolar, ambos abaixo de 45.

Divulgação

EQUIDADE

De cada 100 estudantes pretos e pardos que ingressam na escola, apenas 82 conseguem concluir o ensino

fundamental aos 16 anos — patamar alcançado pelos alunos brancos há uma década

FORMAÇÃO DOCENTE E PRÁTICA COTIDIANA

O cenário de lacuna prática na aplicação da legislação, demonstrado por esses estudos, é resultado de desafios significativos, que demandam um esforço coordenado entre governos, instituições educacionais e a sociedade civil. Na avaliação da professora Eliane Cavalleiro, diretora pedagógica do Instituto Cultural Steve Biko, de Salvador, BA, um aspecto relevante é a falta de capacitação e formação continuada — que pode resultar em insegurança ou desconhecimento por parte dos professores para tratar do tema em sala de aula —, aliada à falta de recursos e materiais didáticos que contribuam para a incorporação efetiva aos currículos.

Também neste caso os números confirmam a per-

“Nunca tinha vivido isso na escola”, conta Laiane de Jesus sobre a motivação recebida no Instituto Cultural Steve Biko

cepção de quem está na linha de frente. De acordo com a pesquisa Percepções e desafios dos anos finais do ensino fundamental nas redes municipais de ensino, realizada pelo Itaú Social e pela Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação), apenas 7,9% das secretarias de Educação abordam a temática étnico-racial regularmente nas formações com professores.

Apoio e incentivo que fazem a diferença

Em Salvador, dos 40 estudantes que integravam a classe de educação profissional de Péricles Pinheiro, apenas três estão hoje cursando uma faculdade. Um deles é o próprio Péricles, que ingressou em 2023 no curso de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e que, para isso, contou com o apoio e o incentivo do Instituto Cultural Steve Biko, inclusive na preparação para o vestibular. “Os professores nos mostram que, apesar das dificuldades, somos capazes de nos superar e ocupar espaços importantes da sociedade”, conta.

Laiane de Jesus, que também fez parte de um dos programas do instituto e atualmente cursa engenharia elétrica, tem uma visão semelhante. “É muito motivador estar entre pessoas pretas que têm o mesmo objetivo e confiança de que podem vencer os desafios”, lembra. “Nunca tinha vivido isso na escola”, acrescenta.

“Uma formação consistente deve considerar a carga horária e o aprofundamento sobre o tema de forma ampla e sistemática, alcançando todas as pessoas envolvidas no processo educacional, para que a escola como um todo possa refletir sobre seu papel na construção da equidade racial”, explica a especialista.

Esse trabalho começa cedo, ainda na educação infantil, como destaca Jussara Santos, pesquisadora sobre infâncias e antirracismo nesta etapa da trajetória escolar. “O antirracismo não é um tema a ser abordado. É uma concepção que organiza todo o trabalho do ano”, afirma. Na prática, isso significa que a história e a cultura afro-brasileira devem estar presentes nas músicas e ritmo tocados no parquinho, nas histórias contadas, nas bonecas e nos bonecos usados nas brincadeiras. “E as crianças negras devem ser protagonistas nas vivências realizadas, reforçando a autoestima e confiança delas”, acrescenta.

AVANÇOS LENTOS

Se, por um lado, evidencia desigualdades, o Anuário também traz boas notícias: entre 2013 e 2023, a distância entre os índices de conclusão de estudantes pretos e brancos teve uma redução de 14 pontos percentuais no ensino fundamental e de oito pontos percentuais no ensino médio.

Na avaliação de Nilma Lino Gomes, ex-ministra das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, os avanços são resultados de um processo que caminha ainda muito lentamente a partir de respostas do Estado brasileiro (principalmente no período de 2003 a 2016), por meio de políticas públicas, à situa-

Isso se reflete, por exemplo, na presença da população de 18 a 24 anos no ensino superior: cerca de 33% das pessoas são brancas e 17% pretas, nessa faixa etária

Primeira mulher negra reitora de uma universidade pública federal, Nilma Lino Gomes acredita faltar à sociedade uma tomada de consciência em relação à urgência da mudança

O antirracismo não pode ser um tema, mas deve estar presente durante o ano inteiro — iniciando na educação infantil, defende a pesquisadora Jussara Santos

ção de racismo na educação e na sociedade denunciada pelo movimento negro. “Precisamos garantir a cooperação federativa para a superação do racismo nas escolas e a implementação real da lei 10.639/2003”, afirma. Ao mesmo tempo, porém, Nilma, que é a primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal, em 2013, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), acredita faltar à sociedade uma tomada de consciência em relação à urgência da mudança. “A luta contra o racismo não pode ficar confinada às pessoas negras ou àquelas interessadas no tema. É fundamental que seja parte do projeto político-pedagógico da escola, da orientação dos gestores e das gestoras e das ações e práticas dos professores e das professoras no dia a dia da sala de aula.”

Arquivo pessoal

Arcevo pessoal

Colégio da Imaculada Conceição, Pernambuco

Socioemocional e finanças no currículo

Coordenadores pedagógicos falam da experiência ao inserirem essas temáticas como disciplinas

Apreocupação em trabalhar as competências socioemocionais dos estudantes tem ganhado força na educação nos últimos anos — e o tema está presente, inclusive, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Visando ir além do conteúdo tradicional e em diálogo com as necessidades atuais, as escolas têm buscado alternativas para oferecer aos estudantes o desenvolvimento dessas habilidades. No Colégio da Imaculada Conceição, em Recife, PE, que conta com 900 estudantes, em 2024 foi iniciada uma disciplina de socioemocional, presente da educação infantil ao ensino médio. Segundo Solange Santos, coordenadora pedagógica do 6º ao 8º ano da instituição, o saldo da experiência tem sido positivo. Os estudantes contam com uma aula de socioemocional por semana, com duração de 50 minutos. A psicóloga do colégio trabalha conjuntamente com a professora responsável pela disciplina, sendo acionada quando necessário.

Dinâmicas na aula de socioemocional

“Há alguns momentos em que a psicóloga escolar entra com a professora na sala e trabalha algumas dinâmicas com os alunos. É um momento em que, inclusive, alguns estudantes até se sentem bem à vontade para trazer questões inerentes à faixa etária, inerentes à questão familiar. Muitas vezes, eles até se emocionam em sala de aula e acabam vindo ou na coordenação ou no setor de psicologia”, conta a coordenadora.

A aceitação das famílias foi boa, segundo Solange. E os alunos, apesar de certa resistência inicial — tanto para encarar o novo quanto para compreender que a disciplina não tem nota —, agora lidam bem com a nova matéria.

IMPORTÂNCIA E FRUTOS

A percepção de Solange dialoga com pesquisadores da área que destacam a importância de trabalhar as competências emocionais na escola. Entre as causas, para saber lidar com emoções como medo e ansiedade. “Com esse emocional estando validado, o acadêmico flui com mais positividade”, avalia.

Já no ensino médio, ainda que se use a mesma metodologia, o socioemocional é trabalhado no chamado Projeto de Vida — que se tornou obrigatório com o Novo Ensino Médio —, segundo Luiz Souza, coordenador desta etapa.

Luiz conta que o Projeto de Vida, como é aplicado no ensino médio, tem também a característica de permitir o autoconhecimento e uma preocupação com a orientação profissional, tendo em vista a difícil escolha do vestibular.

Sobre o saldo da experiência com a disciplina de socioemocional, Luiz pondera que não significa que os problemas da escola deixaram de existir, mas destaca resultados positivos para os alunos, como uma maior capacidade de entender o outro. “A gente percebeu um aumento no processo da empatia. Então, você consegue identificar quando o outro está bem ou quando o outro não está bem”, afirma. “Eles [alunos] nos procuram, no setor da psicologia, e falam ‘professor, eu acho que aquela menina ali precisaria ser ouvida’. Eles percebem quando o outro está meio fora de sintonia, porque as discussões que eles têm dentro de sala incentivam a percepção do outro.”

OFICINA DE FINANÇAS

Outra aposta do colégio tem sido inserir as finanças no currículo. Segundo o coordenador Luiz Souza, o trabalho com essa temática vem desde 2020, mas, com a nomenclatura Oficina de finanças, o início se deu ano passado. Atualmente, participam os estudantes do 1º ao 9º ano — mas, para o ano que vem, há a previsão da oferta de um itinerário formativo de matemática financeira para o ensino médio.

No fundamental 2, a disciplina é ministrada pelos professores de matemática, com uma aula por semana. Esdras Henrique de Souza e Silva, responsável pela oficina para as turmas de 8º e 9º anos, avalia que a disciplina se faz “muito necessária”. “Os alunos criam uma intimidade

Aula não vale nota; estudantes trabalham emoções como medo e ansiedade, além da capacidade de entender o outro

Há momentos que psicóloga e professora ficam juntas na sala, diz a coordenadora do 6º ao 8º ano, Solange Santos

Aulas têm feito estudantes perceberem os colegas e relatarem aos educadores quando um deles precisa de escuta, conta o coordenador do ensino médio, Luiz Souza

com alguns termos, com alguns conteúdos que são específicos dessa área, que são presentes no dia a dia, presentes nas provas dos concursos”, analisa. Esdras conta que há grande interesse por parte dos alunos e que alguns até foram inscritos em olimpíadas de finanças.

Já Alexsandro Oliveira da Fonseca, professor de matemática do 6º, 7º e 8º anos e responsável pela oficina de finanças para essas turmas, afirma que o novo modelo “moderniza o que chamávamos, antes, de educação financeira”. Ele pontua que o material utilizado não divide o tema do ano em capítulos, mas em missões.  No 6º ano, por exemplo, os estudantes são convidados a observar, no seu dia a dia, quais atividades envolvem dinheiro. Já o 8º ano conta com o projeto ‘quanto custa ter um pet’ — que, de acordo com Alexsandro, é interessante tanto para quem tem quanto para quem não tem um bichinho de estimação.

LEVAR O CONHECIMENTO ADIANTE

Luiz Souza, coordenador do ensino médio, afirma que, hoje em dia, é muito comum que famílias percam não apenas a capacidade de investimento como também a de serem felizes devido à falta de organização financeira. Desta forma, o objetivo ao se trabalhar a disciplina na escola, ele afirma, é também chegar às famílias. “A gente tenta fazer com que os nossos estudantes acabem sendo multiplicadores de conhecimento para os próprios pais. Muitas vezes, são eles que precisam de orientações no que se refere ao uso do dinheiro”, explica.

Fotos: Arquivo pessoal

LIDERANÇA

Direção escolar: um turbilhão também passou por aqui

No primeiro quarto do novo século, as mudanças foram muitas; a gestão da escola tem tentado se preparar para acompanhar um mundo às vezes frenético, outras apenas egoísta, mas sempre demandante. Fato é que a importância desse profissional precisa ser reconhecida

Por mais que muita gente aponte as escolas como instituições pouco maleáveis às mudanças sociais em curso no país e no mundo, compará-las hoje a suas antecessoras de fins do século 20 revela muitas transformações. Ainda que lentos, esses câmbios começaram na passagem para o novo milênio, quando nossas escolas foram se tornando mais inclusivas, processo mais e mais acentuado desde o final da primeira década do século 21. Novas legislações deram um empurrão para as mudanças se efetivarem, às vezes com o acréscimo de decisões judiciais. No entanto, a partir de meados da década passada houve dois furacões que muito impac-

Relações interpessoais são questão central para diretores de escolas públicas, pontua Roberta Panico, diretora-executiva da Roda Educativa

taram o mundo da educação. Primeiro, a fissura político-ideológica que levou muitas famílias a questionar a atuação dos educadores e educadoras; depois, a pandemia de Covid-19, que esvaziou os colégios por dois anos ou mais, aumentando problemas comportamentais e de aprendizagem.

Com isso, a figura da direção escolar ganhou mais relevância, exigindo da categoria maior capacidade de intervenção e de coordenação no cotidiano de comunidades escolares e, sobretudo, para fazer crianças e jovens retomarem o rumo de sua formação pessoal e intelectual.

“O que mais discutimos com os diretores são as relações interpessoais. É muito complexo o que tem acontecido nas escolas, com questões como diversidade e pós-pandemia, por exemplo. Sozinho, ninguém faz uma escola funcionar, principalmente aquelas grandes e diversas”, diz Roberta Panico, diretora-executiva da Roda Educativa (a antiga Comunidade Educativa Cedac), instituição que provê formação continuada a gestores públicos.

Apesar de o trabalho da Roda voltar-se a escolas públicas, a complexidade está igualmente presente nas escolas privadas, ainda que os pontos de tensão possam mostrar algumas variações. O primeiro deles é que as públicas estão sob o guarda-chuva das secretarias. Já as privadas são autorreferenciadas, respondendo ao que delas espera a comunidade que as escolheu.

Isso torna mais difícil pensar em consensos sobre como uma boa gestão escolar deve atuar, ainda que as metas de chegada devam ser parecidas: boa aprendizagem dos estudantes; formação de sujeitos conscientes de aspectos sociais e que respeitem a diversidade; que tenham co-

LIDERANÇA

nhecimento sobre os processos que impactam o planeta e façam uso ético de ferramentas digitais e científicas. Talvez esse pudesse ser um resumo dos pontos vitais aos quais os diretores e diretoras devam mirar na formação de seus alunos e nos processos que conduzem a ela, aos quais devem ser acrescidas a boa gestão financeira, dos recursos humanos e um filtro que depure o que é inovação significativa e o que é modismo descartável.

Na rede pública, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, em 2021, a Matriz Nacional Comum de Competências do Diretor Escolar*, uma tentativa de listar os principais parâmetros necessários para o exercício de uma boa gestão escolar. Por razões diversas, algumas de ordem política, outras desconhecidas, o documento até hoje não foi homologado pelo Ministério da Educação (MEC).

A matriz traz 10 competências gerais e outras 17 específicas, divididas em quatro dimensões: político­institucional, pedagógica, administrativo­financeira e pessoal-relacional, cobrindo a atuação interna e externa com todos os interlocutores do(a) diretor(a). O documento baseia-se em similares internacionais, tendo maior proximidade com aquele formulado pela Universidade Diego Portales, do Chile.

Sua formulação foi uma tentativa não só de criar parâmetros para a atuação dos gestores e gestoras atuais, como também de servir de guia para formações destinadas aos aspirantes ao cargo. A realidade de muitas escolas públicas, no entanto, por sua instabilidade, funciona como um bloqueio adicional para a construção da figura do(a) diretor(a). “Em muitos casos, o diretor fica pouco tempo na escola, a equipe pedagógica também. E sabemos que mais tempo na escola é melhor para consolidar o trabalho, cuja construção é demorada”, diz Roberta Panico.

Quando esse tempo não existe, a tendência é de o trabalho se tornar protocolar, burocrático, quando o grande desafio é fazer que a escola seja inclusiva e que o seu currículo funcione. A diversidade de realidades também é enorme, principalmente quando saímos dos centros urbanos.

Caso ilustrativo dessa instabilidade é o da EMEF Salum de Almeida, em Maués, Amazonas, a 356 km e 25 horas de barco de Manaus, segundo a diretora Rosemary Cardoso. Professora de geografia, na escola desde 2016, ela é diretora há apenas um ano. Ao assumir, encarou uma nova realidade: a escola, na periferia de Maués, passou a ser de tempo integral. Além de uma

nova rotina de estudos e de administração da merenda escolar, a diretora ficou sobrecarregada no período eleitoral, pois uma das coordenadoras ausentou-se.

A escola conta com duas coordenadoras pedagógicas e mais de 40 professores. Em meio aos 420 alunos do 6º ao 9º ano, 30 deles são indígenas. Recebeu, via Dinheiro Direto na Escola, programa do MEC, R$ 12 mil durante o ano para cuidar de 13 salas de aula, biblioteca, sala dos professores e sala de descanso.

O grande reforço de 2024 foi a escolha da unidade como uma de 10 escolas em todo o Brasil para receber o projeto Alavancas, do Instituto Rodrigo Mendes, que trabalha com formação para educação inclusiva e valorização das diversidades. “Antes do projeto, havia professores que tinham medo de trabalhar com os nossos 12 estudantes com deficiência. Com o Alavancas, passamos a oferecer outras atividades, para desenvolver a coordenação motora por meio de pinturas, ou pequenos textos para o exercício da linguagem”, relata Rosemary Cardoso.

Na semana anterior ao Natal de 2024, a diretora e uma das coordenadoras já haviam desenvolvido o plano de gestão para 2025, contemplando capacitação de docentes, materiais pedagógicos, trabalhos com projetos. No entanto, restava uma incerteza: ela temia não permanecer na direção da escola, por opção da secretaria.

PARTICULARES: PRESERVAR A IDENTIDADE

Se é difícil padronizar a atuação dos diretores e diretoras por causa das diferentes realidades a que estão sujeitos em função de seus públicos, alguns princípios

“Há uma certa perda da dimensão do público, do coletivo, na vida contemporânea”, diz Luciana Fevorini. Isso faz com que muitas famílias queiram flexibilizar regras para atender interesses individuais

EMEF Salum de Almeida, em Maués, Amazonas, a 356 km e 25 horas de barco de Manaus. Formação para educação inclusiva mudou o perfil dos professores

comuns são necessários, mesmo na rede privada. Principalmente quando se trata de unidades de um mesmo grupo, como é o caso do Bioma Educação, que até novembro de 2024 se chamava Educação Bahema. O grupo, que aportou na área educacional em 2017 com a compra da Escola da Vila, SP, da Escola Parque, RJ, e Balão Vermelho, BH, hoje tem 12 escolas e 26 unidades.

Sônia Barreira, fundadora da Escola da Vila e agora diretora pedagógica da Bioma Educação e gestora da Vila das Infâncias, uma das unidades do grupo, conta que, inicialmente, pensou-se na ideia de padronizar o perfil dos(as) diretores(as), mas uma avaliação mais criteriosa os fez desistir desse propósito. Afinal, cada escola era uma, trazia uma cultura já compartilhada por suas comunidades e a proposta era de manter esse aspecto.

Das 12 escolas que hoje compõem o grupo, apenas duas têm diretores vindos de fora. Em algumas delas, antes da venda o proprietário já havia organizado sua sucessão. De resto, na grande maioria dos casos, a opção foi promover coordenadores, profissionais já habituados à cultura de cada marca. A própria Sônia a princípio permaneceu à frente da Vila, depois passou para a direção pedagógica do grupo todo. Para ela, a liderança precisa ter legitimidade ante seus pares, “algo construído passo a passo ao longo da carreira e que não é inato”. “A coisa mais fácil é destruir a confiança do seu time em pouco tempo”, diz ela, pensando naqueles mais novatos afoitos, que ou querem mudar tudo ou são demasiado ácidos nas críticas. “Por isso, no início da carreira nunca se está pronto”, alerta.

SÔNIA BARREIRA APONTA TRÊS CARACTERÍSTICAS QUE CONSIDERA PRIMORDIAIS PARA LIDERAR A GESTÃO ESCOLAR:

• Ter visão estratégica para envolver a equipe e fazer todos remarem na mesma direção. “Para isso, é preciso capacidade de influenciar, convencer tecnicamente, mostrar pesquisas que atestem a relevância do que se propõe. É tanto uma competência como uma prática”;

• Capacidade de desenhar e gerenciar processos. É preciso dimensionar tudo que está envolvido (pessoas, mudanças, impactos), desenhar um fluxo e comunicá­lo bem para que a implementação seja entendida por todos;

• Capacidade de relacionamento. Aqui, Sônia destaca duas coisas: segurança e assertividade nas relações interpessoais.

Outros dois pontos a que se deve prestar atenção são a gestão do tempo, pois, caso não seja bem feita, pode inviabilizar todo o resto; e a escuta e confiança na equipe. “O diretor deve garantir que a gestão seja coletiva, dar boas condições de trabalho e propor processos factíveis”, conclui.

A abertura para a escuta é destacada também por Luciana Fevorini, desde 2010 diretora do Colégio Equipe, também de São Paulo. Sua longa experiência como orientadora educacional e pedagógica ajudou-a a desenvolver essa capacidade e a sensibilidade para aquilo que julga ser uma das coisas imprescindíveis no cotidiano escolar: mediar conflitos.

“Além da boa escuta é preciso criar mecanismos de contato direto com todos os agentes do mundo esco-

“Pode-se destruir a confiança de um time em pouco tempo, é preciso cuidado”, diz Sônia Barreira, fundadora da Escola da Vila, em SP, sobre a necessidade de experiência para ser diretor(a)

Instituto Rodrigo Mendes/Renato Ramalho
Divulgação

LIDERANÇA

lar. Fazemos reuniões semanais com professores e colaboradores”, diz ela, que ainda é responsável pela orientação educacional do 3º ano do ensino médio. “É um jeito de conhecer a visão dos alunos que estiveram por muitos anos na escola.” Fevorini enfatiza duas questões das quais acha importante um diretor não descuidar. A primeira é não deixar que outras coisas obscureçam aquilo que é a função primordial da escola, ou seja, cuidar do aluno e de sua educação, sempre tendo em conta a proposta político-pedagógica (PPP) da instituição. A segunda, mais delicada, é não esquecer que o que se vive no colégio é um processo institucional. “Há uma certa perda da dimensão do público, do coletivo, na vida contemporânea”, diz. Isso faz com que muitas famílias queiram flexibilizar regras para atender interesses individuais.

Há exemplos mais banais acerca disso, como a tentativa de mudar datas de provas em função de viagens familiares, mas há demandas mais complicadas, como a medicalização da saúde mental, que chega às escolas por meio de laudos para tratar, por exemplo, o Transtorno do Espectro Autista. Nesse caso, a lei dá direito a que os estudantes com esse diagnóstico sejam acompanhados por um profissional, inclusive em sala de aula. Na maioria das vezes, esse direito é requisitado antes de uma consulta à escola para saber o que ela propõe para o trabalho com aquele aluno. “É a visão de que tudo que é coletivo é ruim”, diz a diretora.

Assim como o autismo e outras temáticas inclusivas, os temas mais controversos e demandantes no cotidiano escolar têm sido o racismo, as questões de gênero e a saúde mental. Foi justamente em função da incidência de quadros de depressão, síndrome do pânico e automutilação, entre outras ocorrências, que Irma Akamide Hiray, diretora-geral do Centro Educacional Pioneiro, procurou, em 2019, uma especialização até hoje pouco conhecida. Ela fez uma pós-graduação lato sensu em suicidologia, coordenada pela psicóloga e psicopedagoga Karina Fukumitsu, mestre e doutora em psicologia pela USP.

“Eu precisava compreender o fenômeno”, diz Hiray, que participa do Interescolas, um grupo que reúne mensalmente 18 instituições para trocas de práticas e conhecimentos entre mantenedores. Diretora desde 2010, depois de 20 anos como professora do Centro Pioneiro, ela não tinha experiência em gestão quando assumiu a escola. “Não teve um período de passagem, mas a comunidade foi muito acolhedora. O filho da antiga diretora já

Precisamos entender o que está acontecendo, diz Irma Akamide Hiray, diretora do Colégio Pioneiro, em SP

havia assumido a parte administrativa”, conta Hiray, que montou uma equipe de apoio em que cada área tem um coordenador pedagógico. Há reuniões periódicas com a mantenedora para integração com a equipe gestora, algo que faz parte do planejamento estratégico.

Desde que assumiu, a diretora sentiu necessidade de ampliar sua visão sobre a função. Por sua iniciativa, mas com o aceite do mantenedor, fez cursos sobre mentoria, assessorias, o que leva a uma boa administração, além de grupos de estudos diversos, dentro e fora da área educacional. No momento, está fazendo um curso sobre inteligência artificial, para entender o que é e quais as implicações em sua área.

Para o bom exercício da direção, ela aponta algumas características vitais: proatividade; escuta ativa de toda a comunidade escolar; flexibilidade cognitiva, que traduz como capacidade de compreender o outro; cuidado com os aspectos socioemocionais; coragem para manter os valores e princípios institucionais e perspectiva temporal. Por essa última capacidade entenda-se a aceitação de que os comportamentos mudam de época para época, e a escola precisa, de alguma maneira, absorver as mudanças. Ou, melhor do que isso, antevê-las, para não ser pega desprevenida.

MATRIZ DE COMPETÊNCIAS

PARA O DIRETOR ESCOLAR

http://portal.mec.gov.br/docman/marco-2021-pdf/172851-parecer-resolucao-cne-matriz-competencias­diretor­escolar­2/file

Divulgação

ENTRE MARGENS

Darcy Ribeiro: muito se teorizava e quase nada se praticava

Políticos o celebravam em comícios e festanças, enquanto a memória de Darcy agonizava nas salas de aula instrucionistas

Por José Pacheco

Fidelândia, 22 de novembro de 2044

A vida de Darcy Ribeiro foi um contínuo ato de amor...e de coragem. Enfrentou uma ‘crise’, denunciou um ‘projeto’. Não se conformou — se indignou.

Quase três décadas decorridas sobre o seu desaparecimento, o seu legado era objeto de apropriação e deturpação — muito se teorizava e quase nada se praticava.

Em tempo de eleições, políticos oportunistas e de baixo estofo moral evocavam o seu nome e obra. Eleitos, não praticavam Darcy. Nas universidades, em congressos, formações, não faltava quem usasse e abusasse da memória do mestre. Eram darcyniano não praticantes, áulicos operando a segunda morte de Darcy — a morte da memória. Na política, na universidade, no chão das escolas, era escasso o número daqueles que o celebravam condignamente, honrando a memória, praticando Darcy.

Ao longo do século 20, o Brasil foi pródigo em fazedores de boa educação. E um português ilustre se juntou a uma plêiade de sábios, ignorada pelos brasileiros. Entre eles, o mestre Agostinho, para quem mais importante do que educar, seria evitar que os seres humanos se deseducassem, pois “cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta”. Esta asserção aplicava-se plenamente aos tenebrosos tempos vividos por volta de 2024. Políticos celebravam a memória de Darcy em comícios e festanças, enquanto a memória de Darcy agonizava nas salas de aula instrucionistas. Palestrantes enriqueciam debitando frases de Darcy em palestras de Power Point e saliva, traindo Darcy nas salas de aula da universidade.

Agostinho acreditava sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário para transformar o mundo. E agiu em coerência com as suas convicções. Ajudou a criar universidades, tertúlias, institutos. Traduziu para a língua brasileira a obra de Montessori e de outros escolanovistas, ousou a ruptura com o instrucionismo, gesto poético de

quem aprendeu a arte de colocar o sonho em ato.

Debaixo de uma mangueira próxima da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, escrevia poemas, que distribuía por alunos, professores e candangos. E, quando propôs que se trocasse o lema “ordem e progresso” por “liberdade e desenvolvimento”, sofreu as consequências da sua civil desobediência e coerência.

Agostinho amou e celebrou, viveu como um franciscano, porque sabia que nascemos para criar e que a vida deve ser gratuita. Quando puderdes, lede o Manifesto lançado por educadores para quem Agostinho continuava a ser inspiração, educadores que não deixaram morrer a criança grande que os habitava, que perceberam o significado da entronização da criança na Festa do Divino, objeto de muitas de agostinianas reflexões.

Etimologicamente, a palavra crise — do grego Krisis — designa um momento crítico. Após 40 anos da despedida brasileira de Agostinho, a educação daquela que foi a sua segunda pátria continuava imersa numa crise de séculos, com a educação à deriva, pois quem a poderia transformar não tinha poder e quem tinha poder não a transformava.

Agostinho partiu de Brasília para Portugal, quando a ditadura destruiu o projeto da faculdade sonhada para Brasília, quando a “pátria mãe andava distraída em tenebrosas transações” e a ditadura levava Darcy ao exílio. Com Darcy, na Brasília do início dos anos 60, fundou um Instituto de Letras e concebeu um projeto de universidade.

Agostinho lançou sementes de mudança na educação, no reconhecimento de que não existe alternativa à concretização de utopias. E novas utopias se anunciaram, no dealbar de 25.

José Pacheco
Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal) josepacheco@editorasegmento.com.br

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.