Revista Educação 299 novembro-dezembro 2023

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Ailton Krenak

Florestania é se opor à banalização da cidadania

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Evasão

Quase 1 milhão e meio em idade escolar fora da sala de aula

Transição de gênero Projetos que estimulam permanência de estudantes trans

EDUCACAO

ANO 28 Nº299 R$ 24,90

Episódios

escolar
Violência
extremos necessitam de cuidado, principalmente com soluções imediatistas

NOVIDADE!

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CARTA AO LEITOR

O papel da escola na educação antirracista

Oque sua escola tem feito para desconstruir o racismo estrutural no Brasil? A Lei nº 10.639, que este ano completa 20 anos, determina que as escolas públicas e particulares ensinem história e cultura afro-brasileiras.

A educação antirracista é fruto de uma luta secular dos movimentos negros, com níveis de complexidade que não se esgotam na oferta de uma disciplina ou uma discussão em sala de aula. Uma educação antirracista começa pela transformação do projeto político-pedagógico, em cada escola, de forma sistêmica, em suas múltiplas dimensões: revisão de todo o currículo, em busca das marcas de apagamento do multiculturalismo crítico, questionando a perspectiva eurocêntrica hegemônica, tida como universal; análise do acervo bibliográfico e do material didático adotado, mirando esse enfoque; olhar atento para as relações inter-raciais no cotidiano escolar, sem invisibilizar e silenciar as situações de racismo, e qualificando as ações de enfrentamento; investimento na formação contínua da equipe docente e de gestão sob a perspectiva antirracista; incentivo ao letramento racial e sensibilização da comunidade escolar; e, por fim, articulação com escolas e outros grupos sociais compromissados com o mesmo desafio.

Assumir a educação antirracista é, também, ler pensadoras/es e autoras/es negras/os ainda ignoradas/os na academia (cientistas negras/os e indígenas de excelência existem, e são muitas/os!); é refletir permanentemente, reconhecendo o lugar de privilégio branco e as consequências da herança escravocrata em nosso país; e perceber-se ingênua/o ao acreditar no mito da democracia racial brasileira, alterando condutas assistencialistas ultrapassadas, mesmo que imbuídas de boas intenções.

Educar-se para as relações étnico-raciais é saber-se racializada/o e parte integrante de uma estrutura social racista, e ter coragem para enfrentá-la. Toda instituição escolar tem responsabilidade na desconstrução do racismo, como detentora de ferramentas para a formação de cidadãs/ãos comprometidas/os com uma sociedade justa, igualitária, agentes de conhecimentos, culturas e estéticas.

Regina Scarpa

Doutora em educação e diretora pedagógica da Escola Vera Cruz e do Instituto Vera Cruz, de São Paulo. É membra do conselho editorial da revista Educação

EDUCACAO

A revista Educação, composta por edições digitais e impressas, site, redes sociais e eventos, é publicada por RFM Editores

Ano 28 - Nº 299 novembro e dezembro de 2023

ISSN 1415-5486

Conselho editoral

Eduardo Deschamps

Fernando José de Almeida

Iracema Nascimento

Mozart Neves Ramos

Regina Scarpa

Publisher: Edimilson Cardial edimilson@plataformaeducacao.com.br

Editora: Laura Rachid laura@plataformaeducacao.com.br

Diretora administrativa: Rita Martinez rita@rfmeditores.com.br

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Parcerias Institucionais

Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação)

Undime SP (União dos Dirigentes Municipais de Educação)

Sua Escola Ideal

Two Sides

Colaboraram nesta edição

Alex Bessas

Alexandre Sayad

Ana Gabriela Nascimento

Damaris Silva

João Jonas Veiga Sobral

Jon Marcus/The Hechinger Report

José Pacheco

Leticia Scudeiro

Nilma Lino Gomes

Paulo de Camargo

Simône Midori Maki (diagramação)

Maria Stella Valli (revisão)

COMERCIAL

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20 VIOLÊNCIA ESCOLAR

Convivência

Mais do que policiamento, episódios extremos no ambiente escolar exigem reflexão sobre que escolas queremos e de que ambiente escolar os jovens precisam

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ENTREVISTA

Ailton Krenak

A cidadania está banalizada; o humano precisa sair de cena para deixar outros mestres falarem, exclama uma das principais lideranças indígenas do país ao apontar equívocos da educação ocidental

OPINIÃO|ESPECIAL CONSCIÊNCIA NEGRA

18 Nilma Lino Gomes

A educação antirracista deve ser princípio orientador da prática pedagógica, do currículo e da gestão

EVASÃO 26

Nilma foi a primeira mulher negra reitora de uma universidade federal brasileira

Saídas para a garantia de direitos

Quase 1 milhão e meio de crianças e adolescentes estão fora da escola. Estratégia de busca ativa escolar do Unicef e parceiros atua de maneira intersetorial: há mães de baixa renda que batem de porta em porta a agentes de saúde que acionam a escola

TRANSIÇÃO DE GÊNERO

36 Acolhimento

Em meio a descasos, Secretaria do Ceará é referência em boas práticas, como a criação da Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional (Codin), um dos primeiros órgãos no país a propor a discussão de gênero na área da educação básica pública

e mais

16

32 Midiática

34 Futuro da escola

40 Transformação

42 Internacional

46 Diálogos

48 Entre margens

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Políticas públicas
SUMÁRIO
Jackson Romanelli

Florestania para aprender a ouvir o rio e a montanha

A cidadania está banalizada; o humano precisa sair de cena para deixar outros mestres falarem, exclama uma das principais lideranças indígenas do país ao apontar equívocos da educação ocidental

“Quem está cego, surdo e mudo é esse humano.” Ailton Krenak orienta que precisamos nos abrir para outras perspectivas, outras cosmologias

ENTREVISTA

Ailton Alves Lacerda Krenak é uma entidade mensageira da natureza que ao clamar por um mundo mais justo, para isso, pluriétnico, a fim de respeitar e incluir os diferentes seres e as diferentes formas de viver, evidencia as barbaridades de um modo de vida marcado pelo egoísmo e o consumo. Suas falas nos desconstroem, nos tiram da caixa, para então a reconstrução acontecer. Ele percorre territórios, dialoga e aprende com pessoas, rios e pássaros, sendo uma das principais lideranças indígenas do mundo, respeitado por diferentes povos.

Autor dos best-sellers Ideias para adiar o fim do mundo, O amanhã não está à venda e A vida não é útil, todos pela Companhia das Letras, este ano se tornou o primeiro indígena a ter uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). Junto a outras lideranças, foi responsável por garantir direitos indígenas na Constituição de 1988 e marcou a história ao se pintar de jenipapo, como um protesto, na Constituinte.

Aos 70 anos, ele também aprende com seus sonhos, que vira e mexe revelam algo, inclusive, conta nesta conversa que o sonho é valorizado por povos do tronco linguístico macro-jê, como os Krenak. Ailton nasceu em Minas Gerais, na região do Vale do Rio Doce, na língua dos Krenak, Waku, ser vivo morto em 2015 pela mineração.

No Ocidente, a ideia de educação começa com um erro fundamental: acreditar que ela é um assunto exclusivamente da espécie do humano. Então, o humano não se educa com um pássaro

A entrevista exclusiva aconteceu durante o lançamento da exposição gratuita Hiromi Nagakura até a Amazônia com Ailton Krenak, no Instituto Tomie Ohtake, SP, que além de palestras com outros povos, teve o lançamento de seu novo livro Um rio, um pássaro (ed. Dantes). Confira.

A sua concepção de escola é a de crianças cuspidas em uma caixa de depósito. Já a sala de aula seria o chão da fábrica. Em que tipo de educação acredita? Onde está essa educação? Ela acontece em algum local?

Em uma sociedade complexa — metrópole, cidades, população grande —, a ideia que tenho relacionada com isso que se chama educação quase não se aplica, porque me refiro a experiências que são de transmissão geracional. Uma geração transmitindo à outra as suas experiências. O meu amigo Tika, do povo Yawanawa, que esteve no encontro com o Nagakura [no Instituto Tomie Ohtake para o lançamento da exposição], fez uma fala tão bonita sobre o povo dele, o seu território e sobre a ideia, por exemplo, da oralidade como veículo de transmissão de saberes. Sobre sua experiência dentro da floresta, disse de uma maneira muito clara que tudo tem a capacidade educativa ou educadora da pessoa e que dentro da floresta não existe alguém que é o professor, porque são tantos, eles estão em tantas representações que a experiência não fica exclusiva entre um ser humano e outro ser humano, ou entre um Yawanawa e outro Yawanawa, mas é uma experiência tão aberta que você aprende com a árvore, com o sonho, com o vento, com a chuva, com os outros animais. Tudo nesse território tem pessoalidade, tudo ali é uma pessoa. Quer dizer, tudo é gente. No Ocidente, a ideia de educação começa com um erro fundamental: acreditar que ela é um assunto exclusivamente da espécie do humano. Então, o humano não se educa com um cavalo, com um peixe, ele não se educa com um pássaro cantando ou com um evento qualquer daquilo que a gente chama de natural. Esses eventos estão todos surdos, cegos e mudos. Não têm nada a dizer para o humano. Isso sugere que, na verdade, quem está cego, surdo e mudo é esse humano que perdeu a noção de tudo e que criou uma ideia de si atomizada, um átomo. Então eles se batem por aí, se movem por aí, mas não são capazes de se permitir atravessar-se por outras antologias, por outras perspectivas, por outras poéticas.

E faz muito tempo que nesse campo da educação, da pedagogia, dos grandes instrutores do tema, eles nos lembram que comunidades educadoras ou comunidades

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ENTREVISTA

Ailton Krenak

Sabemos que, no século 21, cidadão é a coisa mais ínvia socialmente. Ninguém quer um cidadão. Pepe Mujica diz que esse mundo não quer formar cidadão. Quer formar cliente, quer ter cliente, quer ter consumidor

“Os rios são entidades. Eles não são recursos para nos apropriarmos deles”, alerta. Imagem tirada na Amazônia, entre 1993 e 1997, pelo fotojornalista japonês Hiromi Nagakura

se autorreferindo para a educação incluem outros seres que não são os humanos. Quer dizer, ela não acontece dentro de uma sala e não acontece entre quatro paredes, acontece numa experiência ampla de exercício de ser, de liberdade. Ela tem de ser livre; se não for um exercício de liberdade ela é domesticação, ela é formatação.

Já ouvi alguém fazendo uma crítica: ‘por que dizem — Fulano formou-se, alguém formou-se no ensino fundamental, alguém formou-se na faculdade, agora tem formação superior?’ Na verdade, o etimológico é: ele está formatado, você formata um chip, você formata um arquivo de imagens, um arquivo de som. Mas você não formata seres humanos. Quando você subordina a experiência do conhecimento a um formato você já matou a experiência no caminho. A gente até podia pensar um poema: quando for formar, evite formatar, não mate.

Para alguns, formar para a liberdade e os sentidos é ‘perigoso’.

Educação no século 21 perdeu totalmente o vínculo com a ideia romântica dos séculos 18 e 19 de que nós podíamos nos constituir numa unanimidade ampla em que todo mundo lê e escreve. Em alguns países, em algumas culturas, virou um projeto nacional. No caso do Brasil, desde a década de 50, 60, há um projeto nacional que é o letramento amplo, é alfabetizar todo mundo. Quer dizer, o discurso da esquerda brasileira é que todo mundo tem de ser alfabetizado, letrado, porque esse letramento vai tornar a pessoa um cidadão. Mas sabemos que, no século 21, cidadão é a coisa mais ínvia socialmente. Ninguém quer um cidadão. Pepe Mujica diz que esse mundo não quer formar cidadão. Quer formar cliente, quer ter cliente, quer ter consumidor. Ele quer se constituir de consumidores, clientes consumidores. Se você insistir numa atitude cidadã passa a ser discriminado, desprezado. Se você passar na porta de um shopping de uma loja com o signo cidadão, você não interessa, se passar na frente de uma loja com a cara de consumidor, vai ser abraçado imensamente e levado para dentro da loja para escolher qual a dívida que quer contrair.

A gente vive no mundo do século 21 totalmente plasmado pela ideia da mercadoria; o Davi Kopenawa Yanomami consegue identificar o que chama de civilização da mercadoria, que são os brancos em geral. Existe uma crítica de um sábio da floresta que diz que essa civilização deu errado. Como que a gente vai considerar que a prática educativa que forma essas pessoas é boa? Se ela

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Florestania seria o devir-floresta desse lugar-cidade onde as pessoas se cansaram de correr atrás desse status de cidadania, onde sempre foram repelidas. Bilhões de pessoas nunca vão alcançar esse lugar cidadão, então, ele é uma mentira

é boa, por que está formando gente tão ruim? Por que a qualidade de gente que essa educação forma chega a ser tão péssima? É porque essa educação não existe, mas tem muitas instituições e pessoas que preferem manter a mística da educação, porque ela é também um poder. Quem domina esse aparato, quem controla a máquina da educação, tem o poder político e econômico e tem gente que diz que isso é uma falcatrua.

Diante do antropoceno que nos trouxe à crise climática, guerras e desconexões com a natureza, qual

a importância da florestania e como os educadores podem abraçá-la, pensando que eles é que dialogam com os adultos do futuro?

Se pensarmos que podemos transformar o mundo, ao invés de habitarmos a mesma racionalidade educadora, a gente deveria começar a buscar saberes em outros corpos, no corpo da terra. A Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília, há quatro anos, puxou o lema Território: nosso corpo, nosso espírito . Se o nosso corpo é nosso território, então a língua do território, a linguagem do território, a fala do território, deveria nos guiar para uma transformação. Quando falo de instituir essa experiência da florestania, estou opondo isso à banalização da cidadania pelo mercado. Se o mercado banalizou a experiência da cidadania, nós estamos com gesto, com ação ativa e esperançosa de criar a possibilidade da florestania, em que o humano sai um pouquinho de cena e deixa outros mestres falarem. Que a gente aprenda a ouvir a montanha, o rio. Os rios estão secando, será que eles não estão dizendo nada pra gente? Eles estão saindo de cena, será que não estão dizendo nada pra gente? As abelhas, a floresta, a lista de espécies em extinção não dizem nada para esse humano que deu metástase?

Florestania seria o devir-floresta desse lugar-cidade onde as pessoas se cansaram de correr atrás desse status de cidadania, onde sempre foram repelidas. Bilhões de pessoas nunca vão alcançar esse lugar cidadão, então, ele é uma mentira. A gente deveria questionar isso com honestidade e parar de papo-furado com essa história de educação cidadã, porque ela é para meia dúzia, ela não é para todo mundo.

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“Lá é uma Academia Brasileira de Letras, mas a língua é portuguesa. Aqui não é Portugal, aqui é o Brasil. Vamos levar as línguas nativas para dentro” Feira do Livro de Joinville

ENTREVISTA

No lançamento da exposição, Tika Matxuru Yawanawa relatou que ficou perturbado com o modo de vida da cidade, a adrenalina de São Paulo. Na floresta ele vê os caminhos, vê os rios. Tudo é mais claro. Na cidade, não. O que acha dessa percepção que dialoga com o seu livro Futuro ancestral ?

É tão maravilhoso o que o Tika fala porque ao mesmo tempo ele é um enunciado sobre possibilidades fora desse contexto urbano que seria a florestania, mas é também uma denúncia sobre o fato de andar num lugar em que os rios estão tapados por lajes de cimento, modificados em esgoto, anulados como entidades. Os rios são entidades. Eles não são recursos para nos apropriarmos deles. A fala do Tika poderia ser desenvolvida por ele mesmo, inclusive, em muitos textos cheios de sabedoria de alguém que entende que quando ele vê o caminho, é visto pelo caminho. Quando ele vê o rio, é visto pelo rio. O rio está dando sentido para a existência daquele corpo que está andando ali, é um corpo território, é um corpo vivo.

Durante a pandemia, sobre o papel do professor, você disse em um evento online da revista Educação que nem Paulo Freire conseguiria pensar algo coerente nesse inferno na Torre de Babel. Por quê?

[O sonho] seria a maneira de estarmos o tempo todo nos atualizando sobre o mundo ao nosso redor e escapar da centralidade do sujeito, do ego, do humano. Porque quando fico encapsulado em mim mesmo não escuto as outras vozes

Quis dar um exemplo de um grande educador, porque o momento que estamos vivendo traz problemas que não são do século 20, quando Paulo Freire pensou as possíveis pedagogias, inclusive, aquela ideia de que o oprimido pode sair desse lugar e se autoconstruir, se constituir como pessoa e criar espaços de autonomia, independência, liberdade. E que essa experiência é alimentada pela solidariedade. Ele reivindica um certo sentido de igualdade entre as pessoas. Solidariedade e igualdade não são coisas que estão disponíveis para as pessoas trocarem entre si.

Nos anos 80, a União das Nações Indígenas e a Aliança dos Povos da Floresta, com as quais você atuou, obtiveram vitórias gigantescas. No Acre, indígenas deixaram de ser escravos da borracha e da madeira. Sem contar os direitos inseridos na Constituição de 88. Por que vitórias do passado parecem hoje mais difíceis de serem alcançadas?   Esse movimento [indígena] é crescente, multifacetado, tem diferentes rostos. Mas foi percebido também como uma potência subversiva pelo sistema, que decidiu cooptá-lo, levar gente pra dentro. No Brasil, na década de 80, havia um movimento sindical potente, semelhante ao que aconteceu no Leste Europeu com o Solidariedade, do Lech Walesa, o qual tinha um movimento sindical capaz de mudar um país, como mudou a Polônia. No Brasil, ele, inclusive, produziu uma das pessoas mais interessantes da sociedade brasileira, o presidente Lula, que saiu por um sindicato. Mas, nos últimos 30 anos, de maneira visível, o Estado cooptou o mundo do trabalho. Todo mundo virou empregado do Estado e assim como todo mundo virou empregado do Estado, acho que agora tem um dispositivo do sistema, de política de governo, que é cooptar o movimento indígena, assim como cooptou o sindicalismo todo. Não sei como o Estado vai continuar existindo sem ter interlocução na sociedade, cooptando todo mundo.

Recentemente, você se tornou o primeiro indígena a ganhar uma cadeira na ABL. Sua defesa de florestania, de cosmologias, tende a ganhar mais força na sociedade com essa abertura de espaço? O que muda? Com certeza. Muda a composição toda: a maioria era homem; outro dia entraram algumas mulheres. Agora entrou um indígena. Vai mudar. Claro que há limitações, tem tanta instituição, a ABL é uma. Superestimá-la como

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ENTREVISTA

Ailton Krenak

um lugar que cria mudanças na sociedade é um exagero. Então vamos deixar as coisas com seus tamanhos. No contexto da sociedade brasileira tenho dúvidas. No contexto indígena faz muita diferença porque vou levar para dentro dela mais de 200 línguas indígenas. Lá é uma Academia Brasileira de Letras, mas a língua é portuguesa. Aqui não é Portugal, aqui é o Brasil. Vamos levar as línguas nativas para dentro. É isso que vou fazer.

Por conta de uma atividade da revista Educação, recentemente sonhei com você duas vezes e entendi como um recado de que era o momento de nos falarmos.

Acho maravilhoso que eu tenha pessoas ao redor sempre me revelando alguma outra subjetividade. Por exemplo, alguém que diz: ‘sonhei com você semana passada, quando estava indo ao Acre; Ailton, por que a gente tem esse tipo de aviso, esse tipo de coisa visionária?’ Respondo: a nossa capacidade de nos relacionar com tudo o que está ao nosso redor, com rios, florestas, montanhas, deveria ser a experiência mais cultivada em qualquer lugar do mundo, por qualquer pessoa. Porque seria a maneira de estarmos o tempo todo nos atualizando sobre o mundo ao nosso redor e escapar da centralidade do sujeito, do ego, do humano. Porque quando fico encapsulado em mim mesmo não escuto as outras vozes, não escuto mais nada, o meu alcance no sentido do mundo sensível será sempre

Se pensarmos que podemos transformar o mundo, a gente deveria começar a buscar saberes em outros corpos, no corpo da terra. A Marcha das Mulheres Indígenas puxou o lema ‘Território: nosso corpo, nosso espírito’

Ailton Krenak: a educação tem de ser livre, se não for um exercício de liberdade é domesticação, é formatação

limitado. Assim, teremos um mundo de pessoas sozinhas andando por aí. A minha experiência de sujeito coletivo se confirma quando as pessoas sonham comigo. A gente poderia viver essa experiência de sonhar com mais frequência e ter essa experiência presente na nossa vida como exercício de subjetividade e de pôr poesia na vida. Precisamos pôr poesia na vida, senão a vida fica muito seca.

Uma amiga acabou de ler o livro Original wisdom (sem tradução para o português), de Robert Wolff, que conta a importância dos sonhos para o povo Sng’oi, na Malásia. Ao acordar, se reuniam no centro da aldeia para compartilhar os sonhos e captarem os sinais.

Na exposição [no Instituto Tomie Ohtake] tem a imagem de um grupo de homens deitados em esteira no chão de uma aldeia Xavante. Eles estão fazendo um ritual que se chama warã, de contar os sonhos para todos. Isso não é uma experiência que existiu na Ásia, é uma prática que existe aqui e em vários territórios de povos indígenas. Os Xavante têm e acho que é uma tradição compartilhada por vários povos da tradição macro-jê. Os Krenak também são macro-jê e contam os sonhos de manhã. Nossa família continua com essa prática de contar o sonho de manhã para instruir o que vamos fazer depois.

Aquilo que é forte [alguns sonhos] não deveria nos assustar, deveria nos animar a uma experiência de despertar um poder interior, interno, para que a gente não ficasse tão vulnerável e adoecesse tão facilmente no mundo. Quando a gente fica com medo das coisas fortes, estamos acenando para a fraqueza.

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Jackson Romanelli

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POLÍTICAS PÚBLICAS

“Enem precisa ser renovado”

Uma das criadoras do exame, Maria Helena Guimarães de Castro fala sobre o futuro das avaliações: especialistas concordam em inovar o Saeb, mas divergem sobre o Enem

Ofuturo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) — porta de entrada para o ensino superior — provoca divergência entre especialistas, conta à revista Educação Maria Helena Guimarães de Castro, socióloga e uma das criadoras do exame (presidiu o Inep entre 1995 e 2002). “Mas o Enem precisa ser renovado. Está parado no tempo. Além disso, precisamos estimular os estudantes da rede pública: ano passado, só 40% dos que prestaram eram egressos da rede pública.”

Quando o assunto é avaliação em larga escala, Maria Helena está entre as mais aclamadas. Sua presidência na Abave termina no início do ano que vem

Maria Helena é presidente da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (Abave), e liderou o XII encontro da entidade, realizado no segundo semestre deste ano na Unicamp com grandes referências em avaliação para debaterem o presente e o futuro das avaliações brasileiras. Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) — representado por pelo menos 120 pessoas de secretarias estaduais —, União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e terceiro setor, como Todos pela Educação, Instituto Unibanco e Fundação Lemann, estiveram presentes.

Segundo Maria Helena, a divergência sobre o Enem ocorre principalmente por conta do novo ensino médio, mas também há outros pontos, como um grupo que defende a permanência dos testes de múltipla escolha. “O teste de múltipla escolha é limitado para avaliar o desempenho do aluno. O vestibular da Unicamp, vestibular da USP e exames mundo afora são cada vez mais integrados entre perguntas de múltipla escolha e questões abertas. O Pisa [programa internacional da OCDE] é uma avaliação interdisciplinar. O uso de provas digitais é uma prática no mundo inteiro. Desde 2017, nos Estados Unidos, não tem mais prova em lápis e papel. Não podemos ficar para trás.” Ter uma avaliação de formação geral e uma segunda etapa de aprofundamento das áreas do conhecimento escolhidas pelo estudante, com questões abertas e múltipla escolha é um dos caminhos visualizado por Maria Helena para o Enem — e que se assemelha à proposta de novo ensino médio inicial. “O Saeb [Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica] e o Enem estão parados do ponto de vista conceitual e metodológico há muito tempo. Enquanto isso, o Pisa e o Naep americano (principal avaliação da educação básica dos EUA) evoluíram.”

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Gustavo Morita/revista Educação

Candidatos em Brasília chegam para fazer a segunda etapa do Enem 2023

Maria Helena, que foi presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) entre 2020 e 2022 e atualmente é titular da recém-criada Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional, também defende critérios de estímulo aos estudantes, como já ocorrem no Provão Paulista, que dá acesso às universidades, e no PAS, vestibular da UnB. Nesse sentido, bolsa permanência é fundamental, uma vez que o ensino superior sofre também com evasão.

SAEB

Enquanto especialistas estão divididos sobre o Enem, no caso do Saeb há abertura para a inovação entre membros da Undime, Consed, Inep e entidades do terceiro setor. Entre elas, segundo Maria Helena, incluir as habilidades socioemocionais e o uso de plataformas digitais.

A presidente da Abave tem uma sugestão que quer levar para a discussão: ter um Saeb obrigatório e mais forte na 3ª série do ensino médio, para ser somado junto à nota do Enem.

No encontro da Abave, especialistas discutiram como alinhar o Saeb à Base Nacional Comum Curricular (BNCC). “O Saeb deste ano começou a introduzir questões abertas e produção textual para os alunos, mas entendemos que é preciso ir além e avaliar as competências de alta complexidade como a criatividade, as competências gerais da Base, a resolução colaborativa

A discordância sobre o Enem ocorre principalmente por conta do novo ensino médio, mas também há outros pontos, como um grupo que defende a permanência dos testes de múltipla escolha

de problemas, avaliação das competências digitais, socioemocionais. Também discutimos no encontro como fazer para a devolutiva pedagógica dos resultados do Saeb chegarem mais rápido à sala de aula para ajudar o professor a visualizar os conteúdos em que os estudantes estão com dificuldade. Não é tarefa fácil e vai demandar investimento grande do Inep.”

Durante o evento da Abave, MEC, Consed e Undime assinaram o Pacto Nacional pela Recomposição da Aprendizagem, que entre as frentes busca reduzir os impactos negativos intensificados pela pandemia.

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Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Gestão escolar deve prezar pela educação democrática e antirracista

Uma educação democrática e antirracista é aquela que afirma a força e o potencial emancipatórios da diversidade, em especial, a diversidade étnico-racial, na qual a população negra brasileira se encontra.

Para construir uma gestão democrática e antirracista é preciso compreender que o racismo está na estrutura da sociedade e nas instituições. Ao considerarmos essa realidade, entenderemos que a instituição escolar é também passível de racismo.

Há resistência de alguns setores educacionais em aceitar essa realidade, fruto de um posicionamento conservador e muitas vezes reacionário que tenta a todo custo omitir os conflitos e relativizar o peso de

fenômenos perversos, tais como: racismo, patriarcado, capacitismo, etarismo, LGBTQIA+fobia na vida dos sujeitos da escola, no cotidiano e no currículo escolares, na relação pedagógica, nos tempos e espaços das escolas. Fenômenos construídos historicamente nas tensas relações de poder e que reverberam em todas as instituições sociais.

Quanto mais lutamos para democratizar a sociedade e suas instituições, mais a raça, a classe, o gênero, a orientação sexual, as diferentes idades e vivências sociais e culturais se destacam. Quanto mais políticas educacionais, de igualdade racial, de gênero, para pessoas com deficiência, de moradia popular, de combate à fome e à pobreza existirem, mais essa situação será explicitada. Políticas essas que foram ameaçadas e

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OPINIÃO Shutterstock Shutterstock

descontinuadas no período de 2016 a 2022 quando padecemos de um desgoverno federal, sofremos com a pandemia covid-19 e assistimos a um sério ataque às instituições democráticas.

Esse projeto de poder e de destruição do público e da democracia, felizmente, foi derrotado no último pleito eleitoral. Mas ainda convivemos com as suas raízes perversas espalhadas nos mais diversos setores políticos, jurídicos, sociais, midiáticos, religiosos e educacionais. E o que é mais sério: elas estão incrustadas nas mentalidades e valores de várias famílias que afrontam e ameaçam as instituições educacionais, as educadoras, os educadores, as gestoras e os gestores que, publicamente, se posicionam a favor de uma escola que proporcione o conhecimento crítico, emancipatório, que respeita e reconhece a diversidade, que preza pelo direito à diversidade religiosa.

renças. Revela-nos que além da tomada coletiva das decisões, do trato competente e ético das questões técnicas e administrativas é também sua atribuição: o trato humano e digno de cada um e cada uma, o respeito à ancestralidade, a prática da não violência, da justiça, da igualdade e da equidade.

A educação antirracista deve ser princípio orientador da prática pedagógica, do currículo e da gestão

São as instituições com esse perfil político e pedagógico que incluem o antirracismo como um princípio orientador da prática pedagógica, do currículo e da gestão. É nestas que encontramos um conjunto de educadoras e educadores que entendem que a educação é um direito humano a ser garantido de forma permanente. E estas é que realizam práticas pedagógicas que efetivam a alteração da LDB pela Lei 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Por tudo isso, concluo que precisamos qualificar ainda mais o nosso debate sobre a gestão e a democracia nas escolas, à luz da educação antirracista. O antirracismo indaga e reeduca a gestão. Precisamos compreendê-la e debatê-la como uma ação e uma função pedagógica e eminentemente política.

A gestão democrática em uma perspectiva antirracista é aquela que constrói ações pedagógicas, políticas, administrativas e orçamentárias junto ao corpo docente, discente, demais profissionais e famílias que colocam em prática o direito à diversidade e às dife-

Uma gestão escolar democrática e antirracista não faz concessões ao racismo. Não admite preconceitos de qualquer ordem e age de forma firme na desconstrução dessas práticas junto aos docentes, discentes, profissionais da escola e famílias. É aquela que explicita para todas e todos que o antirracismo é um preceito constitucional, pois o racismo é crime inafiançável e imprescritível (CF, artigo 5º, inciso XLII). Além disso, a injúria racial, por meio da Lei 14.532/2023, foi equiparada ao crime de racismo. Logo, a prática desses dois crimes em qualquer instituição brasileira, inclusive na escola básica e nas instituições de ensino superior públicas e privadas, significa a transgressão de uma lei e é passível de sanção.

Uma escola injusta não é nem democrática e nem antirracista. O antirracismo coloca a educação diante do dever ético e político de ser justa, ética, acolhedora e equânime.

Que possamos fazer estas e outras reflexões, pois a realidade da gestão e das práticas educativas nesses 20 anos de sanção da Lei 10.639/03 revelam que, tanto na educação básica quanto no ensino superior, ainda há muito o que fazer para que a educação democrática e antirracista se concretize em nosso país.

Nilma Lino Gomes é professora titular emérita da UFMG. Ex-reitora da Unilab (primeira mulher negra a assumir esse cargo em uma universidade federal do país). Ex-ministra da Secretaria de Políticas e Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)

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VIOLÊNCIA ESCOLAR

A escola violentada

Mais do que policiamento, episódios extremos no ambiente escolar exigem reflexão sobre que escolas queremos e de que ambiente escolar os jovens precisam

| Por Paulo de Camargo

Columbine. Esse nome ficou inscrito no imaginário do final do século 20 e das primeiras décadas do 21 como símbolo de uma nova face da violência. Em 20 de abril de 1999, dois jovens executaram em sua própria escola um ataque minuciosamente planejado, assassinando 12 estudantes e um professor. Desde então, 369 novos episódios como esse se sucederam nos Estados Unidos. Mas não apenas lá: no Brasil, localidades começaram a ser lembradas por tragédias semelhantes. Sinta como se tornaram familiares esses nomes:

Aracruz, Suzano, Realengo, Blumenau... Desde agosto de 2001, em Macaúbas, BA, quando o primeiro episódio aqui ocorreu, foram 36 ataques cometidos por 39 alunos ou ex-estudantes, em 37 escolas, com 40 mortos, 102 feridos, milhares de traumatizados. O mais recente (até o fechamento desta matéria), aconteceu em São Paulo, na região de Sapopemba.

Embora não tenha sido o primeiro, nem o maior, o evento de Columbine foi um marco pela forma como aconteceu e, por isso, continua lembrado nos novos ataques, cujos envolvidos muitas vezes o citam como inspiração. Feito personagens de um game real, os autores do massacre

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Shutterstock
Estudo recente indica: 70% das escolas de ensino médio nos EUA contam com policiais ou agentes de segurança; 10% têm detectores de metal, 80% câmeras. Apesar disso, ataques e mortes aumentaram

cuidaram para que tudo fosse transmitido ao vivo. Assim, tornaram-se um tipo de ídolo às avessas, anti-heróis de grupos caracterizados pelo discurso de violência, de ódio e de preconceito. O objetivo final não é somente o assassinato em si: as redes sociais, as subcomunidades e a dark web se tornaram o verdadeiro palco dos que se lançam a um extermínio online a sangue frio e em série, coroado pela morte dos executores, tornando-se o que chamam de ‘sanctus’, imolações feitas para viralizar.

O episódio de Columbine deu início a um grande debate internacional. Deixou muitas lições e fez com que eventos como esse passassem a ser estudados como fenômenos complexos e multicausais. Pelo menos três amplos conjuntos de respostas se destacaram a partir daí: as políticas de segurança baseadas em revistas, grades, raio-x, câmeras, e, também, em adaptações na legislação, tornando-as mais rigorosas; as ações preventivas de inteligência para agir antecipadamente nas redes sociais, incluindo rastreamentos e, finalmente, uma discussão sobre a relação entre a violência e o tema da qualidade da convivência e da formação ética na escola, a partir de pesquisas cada vez mais refinadas.

CUIDADO NAS SOLUÇÕES IMEDIATISTAS

Dois documentos publicados em novembro deste ano no Brasil trazem uma revisão geral do que se sabe sobre esse tipo de tragédia e apontam caminhos. O primeiro é fruto de estudos que vêm sendo realizados nos últimos anos, e foi elaborado por um time de 10 pesquisadores, coordenado pela pesquisadora Telma Vinha, da Unicamp. Chama-se Ataques de violência extrema em escolas no Brasil: causas e caminhos, publicado pela organiza-

ção social D3e. Quase simultaneamente, o Ministério da Educação divulgou o Ataque às escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental. Desde que o número de ataques às escolas se acelerou, Telma Vinha, considerada uma das principais referências sobre o tema, vem dedicando grande parte do seu tempo a ajudar professores e gestores a entender e a lidar com o fenômeno. Recebe até quatro convites diários e viaja pelo país, buscando enfatizar a importância de iniciativas que priorizem a qualidade da convivência escolar. Ela se preocupa com o reducionismo com que frequentemente o tema da violência é tratado. “O tema está em pauta, mas não significa necessariamente avanço. De forma geral, tudo é muito reativo”, diz a pesquisadora. Telma faz referência ao pipocar de soluções imediatistas, que focam na segurança. “Os gestores e a sociedade precisam saber que nenhuma solução vai funcionar no curto prazo”, alerta.

INICIATIVAS

Até como resposta a uma sociedade assustada, a segurança pública fala mais alto ou, pelo menos, mais rápido. Recentemente, o estado do Espírito Santo, onde aconteceram quatro ataques nos últimos anos, realizou

Multiplicam-se em casas legislativas propostas que sugerem muros transparentes e revista de mochilas. “São medidas populistas; com aparência de sensação de segurança”, critica Daniel Cara, relator de documento do MEC

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Arquivo
pessoal

VIOLÊNCIA ESCOLAR

o I Fórum Nacional de Segurança Escolar, para a troca de experiências, com representantes de 17 estados e 52 municípios. O Espírito Santo lançou o primeiro Plano Estadual de Segurança Escolar, em 27 de abril, com 29 projetos. Depois, diversos outros foram produzidos.

Entre outras ações relatadas no evento pelos participantes, surgiram exemplos como reforço de policiamento, guardas escolares independentes, capacitação em primeiros socorros, bem como ações de inteligência, disk denúncia e outras ações. Mas, segundo o educador Vitor de Angelo, secretário de Educação do Espírito Santo, não se pode correr o risco de reduzir a questão à dimensão da segurança pública. “Claro, há fatores extraescolares e não devemos ser refratários ao envolvimento da segurança ou das forças da inteligência. Mas cada um tem seu papel e o da segurança é externo à escola”, reforça Vitor, que é também presidente do Conselho Estadual de Secretários de Estado da Educação (Consed).

Para ele, são bem-vindas parcerias: a polícia pode estar presente para palestras eventuais, por exemplo, mas não para patrulhamento interno. “O que está dentro da escola exige políticas de educação, de atenção à saúde mental, de assistência, de envolvimento da comunidade e uma reflexão mais ampla sobre que país é esse em que a escola está sendo vítima de violência”, defende o secretário.

A literatura científica pós-Columbine dá razão a Vitor de Angelo e mostra que as políticas baseadas em policiamento interno são pouco efetivas. Segundo um estudo recente feito nos EUA e citado pelo grupo de es-

Para todos os autores, a escola foi palco de sofrimento, diz Telma Vinha.
“Tinham, portanto, um significado negativo da instituição escolar. Esse sofrimento, em geral, era desconhecido pelos profissionais da escola”

“O tema está em pauta, mas não significa necessariamente avanço; nenhuma solução vai funcionar no curto prazo”, alerta Telma Vinha, pesquisadora da Unicamp

tudos de Telma Vinha, 70% das escolas de ensino médio estadunidenses contam com presença de policiais ou agentes de segurança; 10% têm detectores de metal, 80% câmeras, 20% cães farejadores em busca de drogas, além de realizarem revistas em estudantes e treinamentos de defesa e fuga. Apesar disso, ataques e mortes aumentaram, e não param de surgir propostas ainda mais assustadoras, como treinar professores para o manejo de armas de fogo.

“O investimento em segurança é muito alto e pode até mesmo gerar mais violência”, diz Telma.

“REVISTAR MOCHILA DE ALUNO É VIOLÊNCIA”

O Brasil segue lógica parecida: o número de licenças para uso de armas aumentou sete vezes se comparado com 2018 — e a disponibilidade de armas favorece esse tipo de crime e aumenta a letalidade. Multiplicam-se em casas legislativas propostas que sugerem até mesmo muros transparentes e revista de mochilas. “São medidas populistas, um mais do mesmo requintado. Segue uma lógica do senso comum, com aparência de sensação de segurança, mas resultado nulo sobre o fenômeno”, critica Daniel Cara, pesquisador da USP e relator do documento apresentado em novembro pelo MEC.

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Alice Vergueiro/Jeduca
Um dos pontos em comum nos estudos publicados sobre violência nas escolas é a necessidade de controle social dos novos grandes impérios de tecnologia, expõe a jornalista Januária Alves

Para o sociólogo César Callegari, ex-secretário de Educação de Taboão da Serra, SP, entre 2005 e 2009, município reconhecidamente com alto índice de criminalidade na Grande São Paulo, muitas vezes a prevenção baseada em segurança é, em si mesma, violenta. “Revistar a mochila de um aluno é de uma violência absurda contra a privacidade, como se todos fossem uma ameaça”, lembra. Além disso, diz, mais câmeras na escola é tudo o que desejam os autores dos crimes. “É uma compulsão por visibilidade, querem mais é ser filmados”, lembra Callegari. Para ele, que enfrentou o caso de um assassinato em sua gestão, é preciso cuidado com o que chama de “vendedores de parafernália tecnológica”.

Os estudos recentes indicam que o perfil predominante dos autores dos ataques no Brasil é de jovens, estudantes ou ex-estudantes, masculinos, com características de isolamento social, valores opressores (racismo, misoginia e ideais nazistas). São jovens que demonstram ausência de perspectiva de futuro e buscam notoriedade, reconhecimento e valorização — e por isso frequentemente anunciam o que vão fazer em seus grupos na web.

No trabalho coordenado por Telma Vinha, ressalta-se que para todos os autores a escola foi palco de sofrimento. “Eles percebiam-se como alvos de bullying e tiveram experiências dolorosas, como humilhação, exclusão e injustiças. Tinham, portanto, um significado negativo da instituição escolar. Esse sofrimento, em geral, era desconhecido pelos profissionais da escola e, em alguns casos, pelos colegas”, diz o estudo. Por isso, os ataques representam a ponta de um iceberg muito maior — que, no fundo, levam à pergunta: que escola queremos ter? Que jovens desejamos formar? Para qual sociedade?

“A política de segurança não é emancipatória, a educação precisa ser”, diz. Enfrentar o cenário passa por uma política educacional ampla de convivência escolar, com prioridade efetiva para o tema.

PERIGO DAS REDES

Aqui entra em cena o fenômeno das redes sociais, que vem sendo estudado pela jornalista Januária Alves, autora de livros sobre o tema. Para Januária, é preciso educar as novas gerações para esse universo. Os jovens não buscam as redes sociais por acaso. É o espaço de se conectar com amigos, acompanhar o mundo e, principalmente, de sentir-se visível e de escapar ao julgamento do adulto. A questão é que este é um ambiente em que sobra interação, mas falta conexão, afetos verdadeiros e relações humanas. Os ideais de comportamento são os influenciadores. Pior: as redes fomentadas por algoritmos aproximam os iguais, formam grandes bolhas de pensamento único, criam o solo propício para a desinformação e para o discurso de ódio.

Segundo ela, um dos pontos em comum nos estudos publicados sobre violência nas escolas é a necessidade de controle social dos novos grandes impérios de tecnologia. Quem pensaria, por exemplo, que nos diálogos marginais de plataformas de videogame como o Discord novos assassinos em série são cooptados, estimulados, admirados? Novos espaços como esses se multiplicam na mesma proporção em que a tecnologia avança e crescem gerações inteiras que passam mais tempo na tela do que na vida de carne e osso, com relações e vínculos reais. Se antes a chamada dark web era utilizada, o que requer conhecimentos mais pro-

Polícia para palestras eventuais, mas não patrulhamento interno.

“O que está dentro da escola exige políticas de educação, de atenção à saúde mental”, diz o secretário de Educação do ES, Vitor de Angelo

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Ascom

VIOLÊNCIA ESCOLAR

fundos do funcionamento da rede, hoje subgrupos em redes sociais diversas são frequentados por jovens que se tornam vítimas fáceis de manipuladores.

O cyberbullying é uma das manifestações doentias desse ecossistema. “Há um pedido de socorro dessa nova geração, que não está sabendo lidar com esse desafio online. Existe uma agressão violenta, que não acaba, pois o que está publicado nas redes sociais fica. A vítima revive infinitamente a agressão e o trauma”, conta. Por isso, na visão de Januária, a escola precisa assumir que é o espaço privilegiado da convivência cotidiana, não mediada pela tecnologia, em que os estudantes podem conviver com o diferente e a aprender a lidar com as diferenças. “É preciso que seja um espaço de confiança e escuta”, diz.

INTENCIONALIDADE PEDAGÓGICA

É aí que falta densidade ao trabalho realizado nas escolas. Assim como as políticas de segurança, multiplicaram-se pequenos projetos de rodas de conversa, atendimento psicológico e atenção psicossocial. Tudo é importante, mas insuficiente. “O que temos visto no campo da convivência são visões reducionistas”, diz Telma Vinha.

Para a pesquisadora da Unicamp, é preciso que haja políticas de convivência permanentes, com espaços institucionalizados na escola. “Existem várias formas de escuta e para todas é preciso haver intencionalidade pedagógica”, lembra. “A escuta não pode ser utilitarista, no tempo do adulto, o adolescente é sensível para perceber quando realmente querem ouvi-lo e levá-lo a sério”, afirma. Da mesma forma, para ela, o foco não pode ser o indivíduo em quem a escola identifica problemas, mas todo o coletivo de alunos, e deve-se bus-

Mais câmeras na escola é tudo o que desejam os autores dos crimes. “É uma compulsão por visibilidade, querem mais é ser filmados”, lembra Cesar Callegari, exsecretário de Educação de Taboão da Serra

Escola precisa ser espaço de confiança e escuta, orienta a pesquisadora Januária Alves

car não apenas o bem-estar dos jovens, mas formar cidadãos que participem da sociedade, sejam capazes de um olhar crítico, com perspectiva de valorização da convivência e da construção social.

Na visão de Callegari, a solução também passa por fortalecer o esgarçado tecido social em torno da escola, o que envolve a aproximação das famílias. “Alunos não podem ser vistos como uma categoria sociológica, são pessoas, precisamos promover a sua visibilidade, a autoria, a participação, o pertencimento”, pontua. O gestor lembra que os projetos para tornar Taboão da Serra uma cidade educadora, em que professores visitavam as famílias de seus alunos, proporcionou uma radical redução da violência.

Evidentemente, tudo isso requer políticas de longo prazo e muito investimento em formação de diretores e professores. Aqui começa outro impasse crônico da educação brasileira: como uma escola com profissionais sobrecarregados, com muitas turmas de alunos dos quais não conseguem guardar sequer o nome, será capaz de enfrentar esse desafio?

“Quisemos deixar isso claro no relatório”, lembra Daniel Cara. “Bom clima escolar depende de dignidade: é preciso garantir escolas bem estruturadas, profissionais com boas condições de trabalho, e isso tem um custo”, avalia. Segundo Cara, o relatório do MEC deve agora subsidiar uma política nacional para o tema. Para ele, a questão da violência contra a escola agora está colocada de forma permanente. “A tendência é de estabilização do fenômeno, em um patamar muito alto. Podemos ter de 10 a 20 ataques no ano que vem”, arrisca. “Infelizmente, não cabe mais perguntar se, trata-se de quando”.

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Futuro negado

Quase 1 milhão e meio de crianças e adolescentes estão fora da escola. Estratégia de busca ativa escolar do Unicef e parceiros atua de maneira intersetorial: há mães de baixa renda que batem de porta em porta a agentes de saúde que acionam a escola

Estudante do 5º ano do ensino fundamental, Antônio (identidade ocultada) vinha frequentando a escola regularmente nos dois primeiros meses do ano até que, sem qualquer explicação, passou a faltar às aulas. Uma ausência que, de imediato, mobilizou os profissionais de uma escola municipal da zona leste de São Paulo, que adotaram uma série de protocolos para falar com a família do menino sobre a razão da infrequência e evitar que o problema evoluísse para um caso de evasão escolar.

Pesquisa do Ipec para o Unicef com jovens de 11 a 19 anos: 48% deixaram de estudar para trabalhar;

30% por dificuldades de aprendizagem;

6% relatam racismo

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EVASÃO

Coube a Tamires Gonçalves, que integra o projeto Mãe Guardiã — iniciativa da prefeitura de São Paulo em parceria com o Unicef que oferece oportunidade de trabalho e bolsa-auxílio que chega a 1.386 reais para mães de alunos da rede municipal de educação, e cujo objetivo é a permanência e o sucesso escolar dos estudantes —, a missão de se encontrar com a família da criança. “Fui até o endereço dele, mas não o encontrei. Quando questionei os vizinhos, me disseram que não o conheciam”, lembra, mencionando serem problemas comuns a dificuldade de encontrar famílias que vivem em comunidades sem um logradouro reconhecido oficialmente e o temor de pessoas próximas em se envolver nessas histórias.

“Como eu sabia que, talvez, eles não quisessem se envolver, mas tivessem contato com a mãe do Antônio, deixei meios para que entrassem em contato”, conta. “No dia seguinte, a mãe dele ligou. Ela explicou que morava em uma ocupação e estava sem água em casa há alguns dias e, por isso, não havia mandado o filho para a escola. Mas, agora, a situação estava normalizada”, recorda, comemorando que o simples fato de ter demonstrado alguma preocupação por aquela criança tenha bastado para contornar o problema, o que, para ela, é sinal da eficácia da ação de busca ativa — como é chamada a estratégia que visa identificar, localizar e resgatar crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão escolar, garantindo o seu direito à educação.

A exemplo do relato de Tamires, as mães guardiãs atuam nas escolas municipais apoiando as ações de busca ativa dos estudantes. E para fortalecer os vínculos familiares, a promoção dos direitos humanos e o cumprimento dos protocolos sanitários. Isso contribui para o enfrentamento do problema de exclusão educacional que assola o país, afetando milhões de crianças e adolescentes que não frequentam ou estão em risco de abandonar a escola. “A minha motivação para fazer esse trabalho, além de ser uma fonte de renda, é saber que estou contribuindo para frear essa fuga de crianças da escola”, orgulha-se. Tem consciência de que a ação é fundamental diante dos impactos da exclusão escolar, que vão além dos prejuízos à aprendizagem, afetando também a saúde, a renda, a cidadania e a proteção das crianças e adolescentes.

RAIO-X

Segundo o Censo Escolar de 2022, 1,4 milhão de crianças e jovens entre quatro e 17 anos não estão matriculados em nenhuma instituição de ensino.

Busca ativa escolar envolve prefeito da cidade até profissionais da saúde, assistência social, educação e direitos humanos, conta a chefe do escritório do Unicef de São Paulo, Adriana Alvarenga

“Existe um rol de questões sociais que precisam ser consideradas quando estamos falando do enfrentamento da exclusão escolar”, sinaliza Leila Costa, assistente social em escolas municipais de Maceió

Chefe do escritório do Unicef de São Paulo, Adriana Alvarenga reconhece que há uma forte relação entre a evasão escolar e a pobreza, afetando principalmente os alunos do ensino médio. Ela lembra que muitas crianças e adolescentes deixam a escola porque precisam trabalhar para ajudar no sustento da família ou cuidar de parentes, geralmente irmãos mais novos que não são assistidos em creches. Além da questão econômica, Adriana cita também a pedagógica, que diz respeito a fatores que influenciam a aprendizagem, como a qualidade da educação e o interesse dos alunos, que foram prejudicados pela pandemia, quando escolas ficaram fechadas e não foram oferecidas alternativas adequadas para o ensino online.

Na mesma linha, o professor Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, ONG que desenvolve estudos e projetos com foco na equidade e qualidade na educação pública, também

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Guido Bompan Arquivo pessoal

EVASÃO

sustenta que estas são as duas razões fundamentais pelas quais crianças e adolescentes deixam as escolas. “No caso das crianças em situação de vulnerabilidade, uma forma de lidar com essa questão seria a implementação de políticas de renda cidadã”, indica.

Já a segunda razão, diz, tem a ver com a ação da escola que acaba excluindo determinadas crianças e adolescentes do ambiente escolar, sendo a reprovação a mais óbvia forma de isso acontecer. “Trata-se de uma medida que afeta a autoestima e a adaptação social dos estudantes, levando ao abandono escolar”, explica, acrescentando que o preconceito em relação à orientação sexual e ao racismo também favorecem a infrequência e a dificuldade de aprendizagem, que levam à reprovação e, posteriormente, à evasão e abandono escolar.

ENFRENTAMENTO

Para enfrentar o desafio da exclusão escolar, Adriana Alvarenga destaca algumas iniciativas que o Unicef desenvolve em parceria com o poder público e com outros setores da sociedade. Entre elas, a estratégia da busca ativa, adotada em diversos municípios brasileiros, que consiste em identificar as crianças fora da escola ou em risco de evasão e acionar os serviços responsáveis por resolver as causas que impedem a

“A minha motivação para fazer esse trabalho, além de ser uma fonte de renda, é saber que estou contribuindo para frear essa fuga de crianças da escola”, orgulha-se a mãe guardiã Tamires Gonçalves

“Fui até o endereço dele, mas não o encontrei”, lembra a mãe guardiã Tamires Gonçalves, mencionando a dificuldade de encontrar famílias que vivem em comunidades sem um endereço reconhecido e o temor de pessoas próximas em se envolver nessas histórias

sua permanência na escola. Essa ação envolve desde o prefeito da cidade até profissionais da saúde, assistência social, educação e direitos humanos.

Ela fala do sistema que permite que os profissionais registrem sinais de alerta quando encontram uma situação de exclusão escolar, informações compartilhadas com os demais serviços. Por exemplo, se um agente de saúde visita uma família e descobre que uma criança está fora da escola, dá o sinal de alerta no sistema e a escola é informada. A escola verifica o que está faltando para que a criança volte a estudar e, se necessário, aciona outros serviços, como a assistência social. Assim, a criança recebe o apoio necessário para retornar ao sistema de ensino.

“A implementação dessa tecnologia exige que todos os envolvidos tenham sempre muito cuidado para não fazer uma leitura imediatista e simplista. E para que tentem compreender o todo e, assim, agir adequadamente. Existe um rol de questões sociais que precisam ser consideradas quando estamos falando do enfrentamento da exclusão escolar”, sinaliza Leila Costa, que atua há 18 anos como assistente social em escolas da rede municipal de educação de Maceió.

“Às vezes, na busca, esbarramos com alguns impasses, como crianças com algum comprometimento e

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Participar ativamente. Sustentar financeiramente. Fortalecer politicamente.

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Sobre os ‘nem-nem`, Romualdo Portela de Oliveira, diretor do Cenpec, pontua que o problema é a falta de perspectiva de futuro e de oportunidade quando terminam o ensino médio

responsáveis resistentes em aceitar essa questão, que pode ser uma neurodivergência, como TDAH e autismo. Então, não bastaria encaminhar a criança para o atendimento sem sensibilizar os responsáveis por elas”, pontua, acrescentando que, em outras ocasiões, a infrequência pode ter relação com alguma questão familiar, como um contexto de mãe solo. Há também casos de estudantes que presenciam atos de violência no próprio bairro, diante de conflito entre facções, ou violência doméstica.

“No caso dos adolescentes, há também outros problemas que os afastam da escola, como o trabalho e a gravidez precoces. Por isso é importante trabalhar o tema da educação sexual em sala de aula, quando devemos falar sobre a dignidade menstrual, evitando que meninas deixem de ir à aula por falta de absorventes”, completa Leila.

MUDANÇAS

Como a busca ativa é uma estratégia importante para levar crianças e adolescentes de volta para a escola, o professor Romualdo de Oliveira pondera que, além dessa ação, é preciso combater as causas que geraram o abandono, seja por condições de vida ou no âmbito da escola. “Senão vamos apenas enxugar gelo”, alerta. Para que isso aconteça, defende uma série de medidas abrangentes, que passam pela criação de emprego e renda para os adultos e pela garantia do aprendizado de todos os estudantes, desenvolvendo estratégias pedagógicas variadas que dialoguem com as características de cada um. Neste ponto, destaca a importância da valorização dos pro -

fessores, oferecendo-lhes boas condições de trabalho, salário e formação.

Outra questão abordada por Oliveira é a geração ‘nem-nem’, como são chamados os jovens entre 18 anos e 24 anos que não trabalham e nem estudam. Pondera que o problema tem a ver com a falta de perspectiva de futuro e de oportunidade para o jovem que termina o ensino médio e que não quer ou não pode ir para a universidade. Não é exatamente um problema educacional, o professor critica a estrutura de ensino que não apresenta uma alternativa de vida para essas pessoas, e sugere que é preciso garantir a profissionalização para todos que terminam o ensino médio, oferecendo cursos técnicos de boa qualidade que permitam a inserção digna no mercado de trabalho.

A urgência da mudança

Pesquisa realizada pelo Ipec a pedido do Unicef, também de 2022, revelou que dois milhões de crianças e adolescentes de 11 a 19 anos não estão frequentando a escola no Brasil — o que representa 11% do total da amostra pesquisada. Esses números evidenciam que o Brasil está longe de cumprir a meta de universalizar a educação básica, um direito fundamental e um investimento estratégico para o desenvolvimento das pessoas e da nação. Este último levantamento indica algo que a mãe guardiã Tamires Gonçalves percebe no dia a dia: há um forte viés socioeconômico por trás das estatísticas de exclusão escolar. A pesquisa apontou que 48% dos respondentes deixaram de estudar para trabalhar fora e, 30%, por terem dificuldades de aprendizagem. Já 29% disseram ter desistido dos estudos porque, à época, a escola não havia retomado as atividades presenciais em decorrência da pandemia, 28% informaram que tinham de cuidar de familiares. Falta de transporte afetava 18%, a gravidez, 14%, e desafios por ter alguma deficiência excluíam 9%, enquanto 6% se afastaram devido ao racismo.

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MIDIÁTICA

Os horrores da guerra e da desinformação

Pela primeira vez, a Guerra na Ucrânia e no Oriente Médio é também uma guerra nas redes sociais; compreender seus algoritmos e funcionamento também auxilia o estudante a construir sua opinião sobre fatos históricos

Os horrores de uma guerra são capazes de endereçar ao menos quatro importantes assuntos por entre as disciplinas, atividades e elementos curriculares da escola: a complexidade das narrativas, a historicidade dos fatos, o relativismo da verdade e a ética das mídias.

Longe de ser uma tarefa simples, levar esses assuntos para a sala de aula exige, sobretudo, formação adequada dos educadores e preparação do ambiente para um debate que deve contar com regras claras e argumentos estruturados. Há oportunidade para transformar o espanto coletivo, uma sensação não muito produtiva se isolada, em compreen-

são; algo importante para que gerações possam desenvolver culturas de paz e empatia.

Não é de hoje que as ‘atualidades’, ou seja, aquilo que acontece agora e ainda não virou história, têm dificuldades em fazer parte do currículo escolar. Em parte, há a vocação da educação em apenas olhar o passado, que acaba por isolá-la do mundo externo; por outro lado, a sobrecarga de disciplinas deixa pouco espaço para análise crítica do noticiário, por exemplo. Mesmo assim, na linha do tempo, não faltaram políticas públicas para estimular o olhar da escola para as notícias e as questões contemporâneas.

Na década de 1990, por exemplo, o Brasil aprovou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que pretendiam incentivar o trabalho por projetos, transdisciplinar, que abordasse desde questões climáticas, até aquelas ligadas à cidadania e às midiáticas. Por ser uma proposta não regulatória, e também não apresentar soluções para a formação docente e alívio da carga disciplinar, a maravilhosa coleção de livros dos PCNs, produzida e distribuída pelo MEC, foi usada como peso para

Não é de hoje que as ‘atualidades’, ou seja, aquilo que acontece hoje e ainda não virou história, têm dificuldades em fazer parte do currículo escolar
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segurar porta em muitas localidades do país (realmente presenciei isso como repórter).

Hoje, o campo da educação midiática e suas oportunidades na Base Nacional Comum Curricular abre mais uma frente para que a educação formal não deixe que as guerras surjam descontextualizadas no colo de estudantes, vulneráveis aos fluxos de desinformação por entre as redes sociais.

Os recentes conflitos na Ucrânia e Oriente Médio escancaram como a guerra de narrativas nas mídias é um elemento bélico tão poderoso quanto fuzis e granadas. A complexidade transforma as narrativas em iscas fáceis para aqueles que buscam histórias lineares ou maniqueístas. Pela primeira vez, essa é também uma guerra nas redes sociais; compreender seus algoritmos e funcionamento auxilia o estudante a construir opinião sobre fatos históricos.

A integridade da informação necessita de guardiões, e os professores são os melhores, se estiverem preparados para isso. Os conflitos globais desde a Segunda Guerra Mundial, se olhados em perspectiva e com uma análise de mídia, podem gerar planos de aula (sobretudo, para os anos finais do fundamental e ensino médio) que auxiliam os estudantes na clareza e compreensão.

Separei alguns exemplos que podem inspirar leitores/ educadores a preparar atividades abordando os conflitos, as mídias e a construção de narrativas baseadas em fatos históricos:

1) Segunda Guerra Mundial - O nascimento do termo ‘propaganda’, os cartazes estilizados, os panfletos jogados pelos aviões, além de Goebbels, um marqueteiro em ação no front, são elementos cruciais para entender o papel da comunicação na Segunda Guerra Mundial. Além disso, a BBC (British Broadcast Company), serviço de comunicação de interesse público do Reino Unido, teve papel crucial na contrainformação; transmitia a visão do conflito em ondas curtas, no idioma alemão, desconstruindo assim a narrativa de Hitler. Áudios e documentários com essa abordagem são facilmente encontrados no YouTube.

2) Invasão ao Afeganistão e Iraque - Os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, que precederam a invasão ao Afeganistão e Iraque, foram os primeiros a serem transmitidos pela internet em tempo real. A cronologia que a rede CNN criou em seu site, além da televisão, prova o quão impreciso e arriscado é reportar um

evento que está acontecendo naquele momento. Recuperar essa cobertura explicita aos estudantes o exercício de apuração da informação para se chegar a um resultado confiável, e a inevitabilidade do erro nesse processo.

3) Surgimento do ISIS - O surgimento do ISIS, ou Estado Islâmico, grupo terrorista fruto do desmantelamento da Al-Qaeda, levou a produção de comunicação por parte de não especialistas a outro patamar de qualidade. O que antes eram gravações primárias, tornaram-se produções bem feitas para espalhar o terror ao mostrar reféns e exercícios de ataque. Os vídeos não devem ser explorados, pois são extremamente violentos, mas ao contar essa história percebemos como a tecnologia de câmeras e edição evoluiu e como as habilidades de comunicação foram desenvolvidas rapidamente até por entre grupos terroristas. Essas mesmas habilidades, contudo, podem ser exploradas pelos estudantes para a paz.

4) Conflitos atuais - Por fim, os recentes conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio são marcados pelas narrativas nas redes sociais, mais que nenhum outro anterior. Histórias se constroem de forma descentralizada, pela voz de internautas de todo o mundo; algumas falaciosas, outras imprecisas ou simplesmente errôneas, sob o ponto de vista da história. A comparação entre narrativas com a colaboração dos alunos pode ser um excelente exercício para se diferenciar um fato histórico, de uma impressão, uma opinião ou mesmo uma mentira.

Não é exagero atribuir aos conflitos bélicos o desenvolvimento tecnológico (como a aviação e a radiodifusão), além da propagação do conceito de propaganda. Mas cabe aos educadores também explorar que as guerras são o principal terreno de propagação da desinformação. Com tanto material disponível gratuitamente na internet, é imprescindível uma boa curadoria e muita sensibilidade na condução das atividades. A compreensão e a empatia são sempre os melhores elementos para a construção da paz nas escolas e no mundo.

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura).

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FUTURO DA ESCOLA

Leitura de livros é incentivada com passeios fora da escola

Projeto Passaporte da Leitura leva estudantes leitores a livrarias e eventos

Entre 2015 e 2019, o país teve uma queda de 4,6 milhões de leitores, revelou a 5ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro (IPL), Itaú Cultural e Ibope Inteligência. No lugar de ler, as pessoas preferem assistir televisão e ficar na internet.

Para incentivar os estudantes a lerem, na biblioteca do Colégio Santa Esmeralda, em Arapiraca, Alagoas, acontece uma roda de leitura semanal com os pequenos da educação infantil e mensalmente com os anos iniciais. Ozeni Alves

dos Santos Silva, auxiliar de biblioteca no colégio há dois anos e responsável por fazer a leitura, comenta que a iniciativa torna as crianças mais participativas: “Faço de uma forma dinâmica para que os alunos não fiquem só escutando, muitas vezes eles são os personagens. Então percebo que eles gostam, procuram ler mais e ficam sempre curiosos para saber qual será a próxima leitura”.

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Série apoiada pela
Colégio Santa Esmeralda, Alagoas Fotos: Divulgação Participaram da Bienal do Livro em Maceió 13 alunos das turmas dos anos iniciais e uma aluna dos anos finais Projeto Passaporte da Leitura aproxima os pequenos do livro físico

PASSAPORTE DA LEITURA

Ainda na perspectiva de sair do digital e valorizar a leitura de livros físicos, Lusineide Afonso de Almeida, diretora e fundadora do colégio, ressalta que para manter o objetivo do espaço, não há computadores na biblioteca.

Além disso, criaram o projeto Passaporte da Leitura, cujos estudantes ganham um passaporte — caderno confeccionado com os seus dados —, em que registram os livros, revistas ou gibis que pegarem na biblioteca ao longo do ano. Aqueles que possuem o maior número de leituras participam de uma viagem a livrarias em Maceió. Neste ano, em especial, o colégio levou 14 estudantes para a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas 2023, que ocorreu entre 11 e 22 de agosto. “Não temos limite, já chegamos a levar mais de 30 jovens. Participam alunos até os anos finais, porque os do ensino médio estão em uma fase que não se interessam muito por leitura. Eles chegam a pegar livros na biblioteca, mas selecionam um ou dois apenas”, comenta a diretora Lusineide.

Ozeni, que participa das viagens e é responsável pela locação dos livros na biblioteca, percebe um aumento de jovens interessados pela leitura, principalmente pelos livros físicos: “Os estudantes não param de ir à biblioteca e locar livros, estão sempre procurando novos para levar para casa. E não é só devido à premiação da viagem, eu percebo que eles continuam pelo prazer da leitura”.

“Noto que, apesar de já terem acesso às tecnologias digitais, a maioria prefere o livro físico por conta do contato de folhear, de sentir o cheiro, de poder marcar a página em que parou. O impacto do livro físico sem dúvida é grandioso”, complementa.

DESAFIOS DE INOVAR

Com 33 anos de história, apesar de não ser favorável à leitura digital, o colégio não é contra as ferramentas tecnológicas na educação, tanto que, visando a inovação, busca se atualizar sobre as novas tendências. O Colégio Santa Esmeralda começou como uma instituição de reforço e hoje atende todos os níveis da educação básica, do ensino infantil ao ensino médio, e conta com 850 estudantes e 75 funcionários.

“Continuo investindo na minha capacitação e na de todas as pessoas que trabalham aqui. Vou para con-

Lusineide Afonso, diretora e fundadora do Colégio Santa Esmeralda

Ozeni Alves, auxiliar de biblioteca do colégio, percebe um aumento do interesse dos estudantes pela leitura

gressos em São Paulo e procuro levar meus funcionários também. Estou sempre em busca de tudo que há de novo no mercado, tento sempre estar inovando”, enfatiza Lusineide.

Há cinco anos, o espaço possui uma sala 3D com 43 óculos digitais, além disso, também tem laboratórios de matemática, ciências e um centro esportivo que foi inaugurado em 2020. Atuando em período regular, no centro são oferecidas aulas no contraturno de natação, futsal, handebol, vôlei, beach tênis, ginástica rítmica, judô, entre outros, sendo que os estudantes podem escolher fazer até duas modalidades gratuitamente. O colégio, inclusive, é considerado referência nos esportes tendo jovens medalhistas na competição do estado JEAL (Jogos Escolares de Alagoas).

A experiência como administradora do Colégio Santa Esmeralda faz Lusineide Afonso de Almeida acreditar que as pessoas que trabalham com educação precisam ter ‘um pulso mais firme’, saber ouvir todos os lados e também criar limites. “Na educação temos desafios todos os dias, temos de ter um olhar especial para nossas crianças e saber que elas precisam da gente, e precisam de orientações”, explica. Mas isso não impede de criar relações e vínculos com os estudantes, ouvindo suas preocupações e dificuldades. Com isso, a mensagem final que deixa para os jovens é: “não desista, eu acredito em você. Agora é acreditar em você mesmo”.

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Fotos: Arquivo pessoal

TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Dignidade e acolhimento: escolas devem estimular permanência de estudantes trans

Em meio a descasos, Secretaria do Ceará é referência em boas práticas, como a criação da Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional (Codin), um dos primeiros órgãos no país a propor a discussão de gênero na área da educação básica pública

Passar o turno inteiro de aulas contendo a vontade de ir ao banheiro. Abdicar da hora do recreio no pátio e se manter em sala de aula com a desculpa, caso alguém pergunte, de estar adiantando o dever de casa. Não poder participar das brincadeiras que deseja e nem socializar com quem prefere. Todas essas decisões, movidas pelo medo de ser novamente espancada pelos colegas de escola, foram tomadas por Luma quando criança em uma escola no interior do Ceará entre as décadas de 1980 e 1990. Além da violência física e verbal, ela ainda tinha suas queixas deslegitimadas pelos professores e, em casa, não podia contar para a família o que ocorria para não sofrer mais violências e acabar tornando real seu outro medo, ainda maior do que o de apanhar: deixar a escola.

Luma precisou trocar de turno. Negociou com a direção do colégio e foi, ainda menor de idade, cursar o ensino noturno com os adultos para sofrer menos perseguição. A situação melhorou um pouco. Dos primeiros anos na escola até o final do doutorado, tudo foi extremamente difícil na trajetória educacional de Luma Nogueira de Andrade, primeira pessoa transgênero a concluir o doutorado em rede pública no Brasil e autora do livro Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa (Metanoia Editora). É essa dificuldade, movida pela ignorância e pelo preconceito, que precisa ser combatida porque, ainda hoje, crianças

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Luma Nogueira de Andrade, primeira pessoa transgênero a concluir o doutorado em rede pública no Brasil: “Onde esse corpo travesti vai ele é pedagógico, modifica os espaços” Arquivo pessoal

e adolescentes como Luma continuam vendo a escola como espaço de medo, exclusão e violência.

“Onde esse corpo travesti vai ele é pedagógico, modifica os espaços, principalmente quando tem consciência política e atua para a transformação”, explica Luma. Além de doutora em pedagogia, ela vem transformando espaços da docência, da educação básica até a universidade, onde leciona hoje, a partir de sua presença e também de sua atuação em cargos de gestão. Em 2012, Luma também se tornou a primeira travesti docente efetiva de uma universidade pública federal, no caso, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Nesta entrevista à revista Educação, Luma revela um dado potente de sua atuação como professora: “ao contrário de colegas e gestores, que muitas vezes me discriminaram, nunca tive problemas com meus alunos. Pelo contrário, sempre fui muito querida por eles”. A boa relação com os estudantes se deve, em parte, à abertura para as diferenças que, se bem trabalhada, costuma se manifestar nos jovens.

EDUCAR PARA AS DIFERENÇAS:

DEVER DE TODA ESCOLA

O resultado da hostilidade que pessoas trans encontram dentro da escola é o baixo índice de conclusão dos estudos que esta população apresenta. De acordo com a pesquisa de 2020 da Rede Nacional de

As queixas da então estudante eram deslegitimadas pelos professores. Também não contava à família o que ocorria para não sofrer mais violências e acabar tornando real seu outro medo, ainda maior do que o de apanhar: deixar a escola

Para Homero

Henrique, que integrou no Ceará a Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional, o momento não é mais de discutir se pode ou deve discutir questões de diversidade e, sim, de encontrar as formas de fazer

Pessoas Trans no Brasil, 64,1% dos transexuais não concluíram o ensino médio. Para especialistas como Luma Nogueira de Andrade, é importante olhar criticamente para o termo ‘evasão’ ao se referir a essa questão, pois “dá a impressão de que houve uma escolha por ‘abandonar’ a escola quando, na verdade, há uma expulsão por meio da violência”, explica.

Essa realidade vai de encontro ao direito fundamental à educação e também a outros dispositivos legais que buscam garantir a permanência das pessoas trans na escola. É o caso da Resolução Nº 2, de 19 de setembro de 2023 do Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, que preconiza, entre outros pontos, o uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, o respeito ao nome social requerido pelo estudante e orienta: “Nos casos em que as instituições de ensino estiverem atuando para impedir o acesso ou negarem, seja a garantia do uso do nome social e/ou o acesso a banheiros e espaços segregados por gênero de acordo com a identidade e/ou expressão de gênero do/da estudante, orientamos aos pais e responsáveis legais que efetivem denúncias para os órgãos de proteção às crianças e adolescentes”. Apesar de indesejável, o caminho do conflito legal já é uma possibilidade para famílias e estudantes trans em caso de escolas que não ofereçam condições dignas e acolham as diferenças. “É preciso entender a escola como lugar da pluralidade, combater a ideia de ‘caixinhas’ — que todo mundo que entra ali tem que sair padronizado”, defende Ismael Lima, professor de filosofia e sociologia na rede estadual do Ceará.

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pessoal
Arquivo

TRANSIÇÃO DE GÊNERO

Em 2017, Ismael criou o Projeto Dandara, que buscava discutir sexualidade, afetividade e diversidade e estimular o debate sobre esses temas no ambiente escolar, o que resultou, ao fim do ano letivo, na produção de um seminário e, depois, em diversas intervenções artísticas. “Acredito que o principal efeito do projeto tenha sido a tomada de consciência sobre o combate às discriminações, a percepção de que faltam espaços, mas que quando esse espaço é oferecido, as pessoas se interessam, têm o desejo de conversar sobre isso, de entender”, explica o professor.

Ismael conta, ainda, que a partir do projeto Dandara — nomeado em homenagem à travesti Dandara dos Santos, assassinada violentamente em Fortaleza em 2017 —, estudantes que tinham dificuldades de se colocar em relação à sua sexualidade ganharam mais segurança para se afirmar. “Promover o encontro entre pessoas que enfrentam questões parecidas já é muito valioso, são momentos para perceber que você não está sozinho. A partir do [projeto] Dandara, surgiram outros grupos de conversa, autônomos”, comenta o docente.

MOMENTO É DE AGIR, E JÁ HÁ

BONS EXEMPLOS

Pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país com maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo. Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em 2022 foram 131 homicídios. Registraram-se 20 suicídios relacionados à discriminação e ao preconceito transfóbicos. Pernambuco foi o estado que mais registrou assassinatos, com 13 casos, seguido por São Paulo e Ceará, com 11 mortes cada.

Paralelamente, o Ceará se destaca como pioneiro na implementação de medidas anti-lgbtfobia e na estruturação de questões de gênero no âmbito da Secretaria da Educação do Estado. O professor de geografia e mestre em políticas públicas Homero Henrique faz parte da história deste pioneirismo, tendo integrado a Coordenadoria de Diversidade e Inclusão Educacional (Codin) do estado, um dos primeiros órgãos no país a propor a discussão de gênero na área da educação básica pública.

“Já há bastante evidência de que em escolas cujo ambiente naturaliza violências lgbtfóbicas, machistas, racistas etc. há uma tendência a que os alunos percam o

Ismael Lima, professor na rede estadual do Ceará, criou o Projeto Dandara para discutir o tema no ambiente escolar

interesse, tenham queda nos rendimentos e até mesmo evadam. Para desenvolver educação de qualidade é preciso reconhecer e valorizar a diversidade. ‘Aceitar’ e ‘tolerar’ são termos que nem cabem mais na discussão”, explica Homero, que é doutorando em sociologia, com foco em questões de gênero.

O docente, que trabalhou com formação de professores e assistiu a muitas conversas entre escola e responsáveis, acredita no caminho do diálogo quando estudantes trans e suas famílias discordam em relação a como a escola deve se posicionar.

“É comum a escola silenciar quando a família se opõe à identidade do filho ou da filha. Mas também já presenciei diálogos entre escola-pais. Muitas vezes, os familiares não têm o conhecimento mínimo para entender o processo pelo qual o aluno está passando. Quando conseguimos tocar o íntimo desse pai, dessa mãe, é muito provável haver entendimento, termos êxito nas demandas do jovem. Agora, quando a escola silencia, colabora com o estado atual, não promove mudanças”, conta Homero.

Ainda de acordo com o professor, o momento não é mais de discutir se pode ou deve discutir questões de diversidade e, sim, de encontrar as metodologias, as formas de fazer. “Compreender que essas questões de gênero também podem ser consideradas conteudistas, mas não se limitam ao conteúdo programático. Projetos culturais, artísticos e também a linguagem usada na escola, a projeção de que carreira que meninos e meninas devem seguir, tudo isso, que está presente no dia a dia, também são formas de abordar esses temas e avançar na discussão”, defende o docente.

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Arquivo pessoal

TRANSFORMAÇÃO

O papel da escola em reconhecer e enfrentar o racismo

Dia da Consciência Negra e lei que obriga ao ensino da história e cultura afro-brasileiras ainda sofrem entraves

Parte do cotidiano dos jovens matriculados no ensino médio é dedicar seus estudos ao Enem. A avaliação tem como uma de suas principais características refletir e gerar debates contemporâneos sobre temas que permeiam nossa sociedade, sendo comum, em suas diferentes áreas, trazer pautas que estão no centro das questões políticas, sociais e culturais de nosso país.

A primeira fase da edição do Enem 2023 trouxe à tona, na prova de sociologia, uma questão que tratou da revisão de expressões racistas. O item apresentou uma canção entoada pela torcida do Fluminense em direção à torcida do Flamengo, que incluía a frase “mulambo imundo”. “Mulambo”, termo originário de Angola, traduz-se como ‘farrapo’ e é comumente empregado de forma depreciativa para descrever alguém desleixado. Esse episódio nos convida a refletir sobre a urgência do enfrentamento do racismo no contexto curricular da educação básica e quão transversal se mostra a temática da ‘consciência negra’, celebrada em 20 de novembro.

O Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, em 2011. A data faz referência à morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, e foi promulgada a partir da luta dos movimentos sociais, sobretudo o movimento negro, como forma de não limitar a revisitação da história do negro no Brasil apenas na perspectiva da promulgação da Lei Áurea. Desde que instituída como lei federal, a data ainda encontra entraves em sua aplicação, por exemplo, o Dia da Consciência Negra é feriado oficial apenas em seis estados brasileiros: Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro e São Paulo, segundo a Fundação Cultural Palmares.

O paradoxo se dá justamente no percentual de pretos e pardos no Brasil, segundo dados do IBGE, trata-se de 55,9% da população brasileira. A mesma dificuldade encontrada na comemoração do feriado nacional é vista em outras políticas afirmativas, por exemplo, a

Estátua de Zumbi dos Palmares, Salvador, BA

implementação da Lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileiras em todo o currículo escolar.

A questão do Enem ilustra a necessidade de uma abordagem educacional que não apenas reconheça a existência do racismo estrutural de nossa sociedade, mas também trabalhe ativamente para desmantelá-lo. O canto racista da torcida carrega consigo séculos de discriminação. Ao trazer essa questão à luz, o Enem nos lembra da importância de questionar e revisar não só o uso de tais termos em nossa linguagem cotidiana, mas também as possibilidades curriculares oferecidas aos nossos jovens.

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Roberto Sabino Damaris Silva mestre em letras e especialista em gestão escolar

Frutos da prática do ballet clássico acompanham o aluno por toda a vida

Independentemente dos caminhos profissionais que nossos alunos e alunas sigam no futuro, o ballet traz benefícios físicos e comportamentais que são para a vida e, também, uma ponte para a construção do sucesso.

Por meio de um trabalho de conscientização corporal, o ballet trabalha os principais grupos musculares, desenvolve a disciplina, foco, determinação e a confiança, ajudando no desenvolvimento pessoal de cada aluno, sem comparações, pois entende que cada indivíduo é único e trilhará um caminho só seu.

O ballet clássico serve como base para diversas danças ao trabalhar o equilíbrio, alongamento, ritmo e coordenação motora. As aulas de ballet iniciam com atividades de aquecimento e alongamento, seguidas de movimentos de treino e repetição na barra, no centro e na diagonal da sala. Trabalhos técnicos que desenvolvem a consciência corporal e melhoram a qualidade dos movimentos, os exercícios de repetição são importantes e realizados da forma adequada, não cansam a turma.

O Ballet Paula Castro utiliza a metodologia da Escola Nacional de Ballet de Cuba (ENBC – BR), cujo trabalho em grupo é valorizado e permite que os alunos percebam a sua importância, respeitando as individualidades, limites e diferenças. Além disso, a metodologia dosifica o programa de acordo com as séries e habilidades do aluno.

Aluna do Ballet Paula Castro desde os quatro anos, Rafaela Freire fez ballet, jazz, sapateado e teatro musical até os 17 anos. Hoje, com 19, Rafaela estuda Administração nos Estados Unidos e trilha um caminho rumo a uma grande carreira.

“Eu danço desde os meus quatro anos. Hoje, nos Estados Unidos, sei que o ballet me trouxe muitas oportunidades, sociais e profissionais também. Ter o ballet em minha formação e em meu currículo me abriu várias portas”, conta Rafaela.

Mantendo o foco e a disciplina e aprendendo a controlar a ansiedade, Rafaela aprendeu a lidar com situações inesperadas, aprendizados importantes em seu caminho. Ser mais sociável e extrovertida ajudaram-na a desenvolver o carisma e a conquistar o público. “Quando estamos em uma apresentação e erramos, ou quando você está no palco e um laço cai da sua cabeça, precisamos saber agir, e às vezes trata-se de simplesmente ignorar o laço que caiu”, explica.

“Foi dançando que fiz muitas amizades e com os palcos aprendi a desenvolver o carisma. Agradeço por ter crescido no Ballet Paula Castro, que me ajudou a ser quem sou e espero que todo mundo possa ter a mesma experiência que eu tive”, declara Rafaela.

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Rafaela Freire, aluna do Ballet Paula Castro desde os quatro anos
APRESENTADO POR

É o oposto do que ocorre com os docentes universitários canadenses, revela relatório Professores adjuntos nos EUA são desvalorizados

| Por Jon Marcus, The Hechinger Report

De Montreal (Canadá) - Raad Jassim gosta muito do seu trabalho. Ele ganha o equivalente a cerca de US$ 7.000 por curso, por semestre, tem um contrato de vários anos e normalmente pode escolher as disciplinas que leciona. Possui um escritório, acesso a treinamento profissional e seguro saúde fornecido pelo governo. Todas essas coisas, segundo ele, o ajudam a se concentrar na razão de estar ali: seus estudantes.

Poucos desses benefícios, ou esse tipo de remuneração, estão disponíveis para os seus colegas ao sul da fronteira, nos Estados Unidos. A situação de trabalho comparativamente precária dos adjuntos estadunidenses “é uma história triste”, diz Jassim, que leciona finanças corporativas, investimento imobiliário e economia gerencial e de engenharia na Universidade McGill. “Isso parte meu coração.”

“As pessoas em quem confiamos para ensinar nossos jovens são dedicadas e veem significado em seus empregos, mas não ganham um salário digno”, afirma Candace Sue, diretora executiva do Centro de Aprendizagem

Digital da Chegg

Agora há um novo levantamento sobre como os salários e benefícios dos adjuntos afetam não só eles, mas também os seus estudantes, que muitas vezes contraem dívidas para cobrir o aumento das mensalidades. Cerca de 44% dos professores universitários e universitários estadunidenses trabalham em tempo parcial, de acordo com o Centro Nacional de Estatísticas da Educação. Os adjuntos norte-americanos preocupam-se com a sua capacidade de interagir com os alunos e com quão bem eles estão a aprender, de acordo com um novo estudo que compara os adjuntos canadenses com o que chama de adjuntos estadunidenses “lamentavelmente subapoiados e mal remunerados”.

“As pessoas em quem confiamos para ensinar nossos jovens são dedicadas e veem significado em seus empregos, mas não ganham um salário digno”, afirma Candace Sue, diretora executiva do Centro de Aprendizagem Digital da Chegg, uma subsidiária da empresa de livros didáticos e de ajuda ao estudo que produz recursos sobre tecnologia e educação e encomendou o estudo. “Não é justo com eles — nós sabemos disso. Mas também não é justo com os alunos que dependem deles para se concentrarem na sala de aula e para mantê-los em atividade.”

A investigação é uma das mais recentes a documentar as desgraças daquilo que se transformou num exército de 792 mil universitários dos EUA em tempo parcial e docentes que trabalham em tempo parcial ou com contratos fixos. Os professores adjuntos estadunidenses ganham em média US$ 3.700 por curso, um valor que diminuiu significativamente quando ajustado pela inflação, afirma a Associação Americana de Professores Universitários (AAUP). O número provém de 900 universidades e faculdades que fornecem dados de emprego para cerca de 370 mil professores em tempo integral e 90 mil em tempo parcial.

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Redpath da Universidade McGill, em Montreal. Lá, professores de meio período ganham mais, em média, e têm mais benefícios do que seus colegas ao sul da fronteira dos EUA

Mais de um em cada quatro adjuntos ganham abaixo do nível de pobreza federal para uma família de quatro pessoas, conclui outro relatório da Federação Americana de Professores (AFT). Mais de três quartos têm emprego garantido por apenas um período ou semestre de cada vez. Essas informações são baseadas em pesquisa distribuída aos adjuntos filiados à AFT e, por meio das redes sociais, aos adjuntos não filiados ao sindicato; 1.043 responderam. A AFT representa 85.000 adjuntos sindicalizados.

“Se você tem empregos em diferentes universidades para sobreviver, você não tem tempo para fazer o trabalho que deseja com seus alunos”, alerta o presidente da AFT, Randi Weingarten.

57% dos professores adjuntos e quase todos os adjuntos das faculdades comunitárias não recebem benefícios médicos, afirma a AAUP. Cerca de um em cada cinco depende do Medicare ou Medicaid, de acordo com a AFT. “Você é quase como um artista faminto”, critica Antwan Daniels, adjunto em Kansas City, EUA, e pai de quatro filhos que ensina química em três uni-

Gastos com ensino das universidades, por estudante, diminuem à medida que aumenta a proporção de docentes adjuntos

versidades diferentes — uma presencial e duas online — enquanto também faz doutorado em administração de ensino superior.

Mais de um terço dos adjuntos do estudo do Centro de Aprendizagem Digital, conduzido pela Hanover Research, disseram que os baixos salários e a falta de benefícios ou de segurança no emprego afetaram a sua capacidade de interagir com os alunos e a aprendizagem que eles levam consigo nas aulas. Os professores adjuntos são mais propensos do que os professores em geral a dizer que não

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Elements
Envato Museu
Allen McEachern/Relatório Hechinger

têm tempo suficiente para preparar seus cursos e não recebem apoio administrativo suficiente, de acordo com um detalhamento de uma pesquisa do corpo docente fornecida ao The Hechinger Report pela publicação educacional e empresa de tecnologia Cengage.

“A menos que a escola tenha um sistema de apoio completo para o corpo docente adjunto, estará atendendo os alunos provavelmente com 60% de sua capacidade”, diz Daniels. “Você está tendo uma conversa apressada. Está tentando resumir em: ‘O que você precisa neste momento?’ ”Os alunos não são atendidos da maneira que deveriam”.

Menos de metade dos adjuntos afirmam ter recebido a formação necessária para ajudar estudantes em crise, concluiu o inquérito da AFT. Esses novos estudos seguem descobertas anteriores do Projeto Delphi sobre a mudança do corpo docente e do sucesso dos alunos, mostrando que o aumento da dependência de professores em tempo parcial e sem estabilidade resultou em taxas mais altas de evasão, médias de notas e taxas de graduação mais baixas e uma probabilidade reduzida de que os alunos de faculdades comunitárias continuarão em instituições de quatro anos para obter bacharelado, entre outras coisas.

“Existem agora duas décadas de pesquisas que mostram que ter mais exposição a professores em tempo parcial que não têm apoio leva a mais desistências, taxas de graduação mais baixas, notas médias mais baixas e dificuldade em encontrar uma especialização”, afirma Adrianna Kezar, diretora do Projeto Delphi. As contratações de última hora e a falta de segurança no emprego estão entre os maiores problemas, completa Kezar.

“Se você está atuando em diferentes universidades para sobreviver, você não tem tempo para fazer o trabalho que deseja com seus alunos”, alerta o presidente da AFT, Randi Weingarten

Jay Lister leciona meio período na Universidade McGill, Montreal.

“Não consigo imaginar o que faria sem a segurança no emprego”

As coisas parecem melhores no Canadá, concluiu o estudo do Center for Digital Learning em sua comparação. Os adjuntos canadenses tinham quase três vezes menos probabilidade de se preocuparem com os baixos salários e 87% deles recebem benefícios. “Isso mostra que existem alternativas disponíveis”, concluiu o relatório.

Embora políticas como esta exijam investimentos financeiros por parte de universidades e faculdades, o presidente da AFT Weingarten diz que é principalmente uma questão de prioridades destas instituições. Os gastos com ensino das universidades, por estudante, diminuem à medida que aumenta a proporção de docentes adjuntos, descobriu um pesquisador do Centro para o Estudo do Trabalho Acadêmico da Universidade Estadual do Colorado. As pessoas pensam que o custo do ensino superior está a aumentar “porque há cada vez mais recursos destinados ao ensino e à aprendizagem e é completamente o oposto”, pontua Weingarten. “Para onde vai o aumento das mensalidades? Para onde está indo o dinheiro?”

A vida como adjunto canadense não é perfeita, esclarece Jay Lister, que leciona educação na Universidade McGill, no Canadá. Mas “tenho emprego garantido”, afirma. “Mesmo nos dias em que estou normalmente estressado, me preocupo com meus alunos. Não consigo imaginar o que faria sem a segurança no emprego.”

Esta reportagem foi produzida pelo The Hechinger Report, uma organização de notícias independente e sem fins lucrativos nos Estados Unidos focada na desigualdade e na inovação na educação.

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Allen McEachern/Relatório Hechinger

INCLUI BÔNUS:

“A maneira certa de desenvolver novos hábitos”

entrevista com JAMES CLEAR , autor de Hábitos atômicos.

DESCUBRA O QUE OS GRANDES

TALENTOS FAZEM DE DIFERENTE

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O poder humanizador da literatura

Uma escola deveria se orgulhar de seus cursos de literatura e de repertório.

Boa parte das angústias do viver resolvemos com apoio das fabulações

Orepertório cultural, social, político e científico é fundamental na formação de uma criança e de um jovem. É com ele e nele que o estudante participa do mundo, reconhece suas belezas e agruras e o enfrenta com bagagem suficiente para evitar tropeços e assombros. Se fosse o estudante o cavaleiro destemido e andante, o repertório seria a armadura, o escudo, a lança e o escudeiro, e o mundo seria bem mais que gigantes a se disfarçarem de moinhos de vento.

É na escola que um mosaico imenso de informações, de conhecimento e de relações organizadas e sistematizadas é apresentado ao estudante para que ele possa juntar ao vivido fora dela e elaborar sua compreensão sobre o ser e o estar no mundo. Não que em casa, nas redes sociais e nas relações que estabelece fora dos muros escolares o jovem não encontre a mesma tríade, mas talvez não se

depare com uma organização intencional e ajustada que tenha por princípio básico lhe oferecer passaporte para o que chamamos de processo civilizatório.

Entre todos os repertórios propostos, destacam-se a leitura da palavra e do mundo e o encontro com a evolução humana embaixo do sol como os pilares que sustentarão a trajetória consistente do aprendiz para seu percurso na vida.

Nesse sentido, a literatura será pedra fundamental desses alicerces, porque nela encontram-se condensadas as experiências humanas. Nela, histórias, dramas, tramas, valores, dogmas, confrontos, guerras, amores, justiças, injustiças, artes, ciência, filosofia, política e a caminhada do homem são apresentados com verossimilhança, método e coerência.

O ensino da literatura (literária e não literária) propicia um vivenciar e uma experimentação de mundo raros e fascinantes. Porque traduz em suas fabulações e

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DIÁLOGOS Shutterstock

constatações as emoções, as visões de mundo que buscam de forma estruturada nos explicar, nos questionar, nos entender e nos problematizar. Desde que, é claro, o ensinamento e a instrução não se limitem à triste e à mesquinha identificação de características de obras, de personagens, de épocas e ao limitado e vergonhoso resumo do livro e do pensamento do autor.

O crítico, professor e sociólogo Antonio Candido considerava a literatura um direito humano e sugeria que ela seria “o sonho acordado das civilizações” que permitiria ao leitor e ao estudante viver dialeticamente os problemas da vida. “Toda obra literária”, escreve Candido, “é antes de mais nada uma espécie de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção.” E reforçava que a literatura é uma “necessidade universal imperiosa” e “fruí-la é um direito das pessoas de qualquer sociedade”: do indígena “que canta suas proezas de caça ou evoca dançando a lua cheia”, ao cosmopolitano “que procura captar com sábias redes os sentidos flutuantes de um poema hermético”.

É a instituição escolar que oferece passaporte para o processo civilizatório. E a literatura pode ser pedra fundamental desses alicerces, porque nela encontram-se condensadas as experiências humanas

E conclui: “Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável”.

Por isso, é fundamental que a escola se volte cada vez mais à formação humana integral e destine boa parte de seus cursos a inundar os jovens de narrativas que lhes permitam entrar em contato com um repertório cultural repleto de vidas e de histórias que a envolvam sentimentalmente. Essa expressão artística “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

No entanto, hoje a escola atua como simulacro do mundo do trabalho com seus modismos e como uma preparação monótona e átona para os concursos de vestibulares e provas do Enem. Obviamente que é papel da escola garantir esses dois percursos com encorpadura, mas não de formação obtusa e obstinada.

Assusta um pouco essa história de que preparar para o século 21 é insistir fundamentalmente em cursos de empreendedorismo, em módulos de startups, em educação STEM, em aprendizagem maker, em iniciação científica, em tecnologia, em aulas específicas para ‘matar’ questões de vestibulares e, ora veja, aulas de socioemocional. Não que esse arsenal todo não seja importante e não deva ser oferecido com consistência. Pelo contrário, é um caminho sem volta e necessário para enfrentar o mundo contemporâneo, porém, destinar as aulas que exploram a ficção e as questões que mais interessam o homem a uma grade básica sem muita importância talvez não seja uma escolha razoável.

Uma escola deveria se orgulhar de seus cursos de literatura e de repertório. Deveria destacar que aqui, nesta instituição, nos emocionamos com a vida humana, problematizamos as questões fundamentais que estão nas pulsões de cada ser que vive nessa comunidade educativa. E que boa parte das angústias do viver resolvemos com apoio das fabulações. E buscamos de alguma forma que na vida se adote algum critério estético como num romance ou pintura.

Não tenho dúvida de que pais e mães ficariam mais satisfeitos vendo seus rebentos comovidos, tocados, sensibilizados, sacudidos e por que não abalados com os encontros de vida que tiveram na escola quando abriram páginas de livros (físicos, preferencialmente).

E mais ainda, os responsáveis veriam que todo aquele conjunto de possibilidades oferecidas pela escola (STEM, empreendedorismo, tecnologia, espaço maker e simulados) foram mobilizados pelos filhos, e por gente que consumida, inquieta, influenciada, sensibilizada, encorajada, alegre e preocupada tende a compreender e interagir no mundo em busca de um sítio melhor para viver e conviver.

Revista Educação 47
João Jonas Veiga Sobral Escritor, professor de língua portuguesa e orientador educacional

ENTRE MARGENS

Entre a barbaridade e a fraternidade

Os horrores do mundo continuam, mas novas construções sociais de aprendizagem também

| Por José Pacheco

Maricá, 31 de outubro de 2043

O amigo Sérgio mostrava-se preocupado com o meu silêncio:

“Espero que esteja bem e feliz, apesar dos horrores a que temos assistido, diariamente, que põem à prova nossa crença e esperança na humanidade — mas, ao mesmo tempo, acentuam a necessidade de uma educação que fomente a fraternidade e o respeito à diferença”.

Um famoso ‘influencer’ (era assim que se designava quem, em redes sociais, tinha ‘seguidores’) comentava os ‘horrores’:

“O mundo está pesado. Uma espessa camada de tristeza está sobre nós. Cada um reage a seu modo. Alguns estão agressivos, outros intolerantes, muitos estão deprimidos. É preciso construir esperança, derramar nos espaços que habitamos uma poeira de amor e sentimentos positivos”.

Estávamos em pleno período das conferências municipais preparatórias do Plano Nacional de Educação 2024-2034. A elas assistia, atento, mas reservado, obsequiosamente calado. Já participara na preparação do PNE 2014-2024 e alertara para o risco de repetirmos erros de antanho.

Àquilo que é novo não se deve aplicar raciocínios dedutivos. Há 30 anos, aconselhei que o debate acompanhasse a conceção e prática de uma nova educação. A bafienta escola do século 19, subentendida no texto das conferências, viria a neutralizar todas as intenções constantes das 20 metas do plano 2014-2024.

Nas conferências de 2023 e 2024, não me pronunciei. Quedei-me por uma escuta atenta. Mas, já era de mau agoiro que no texto-base das conferências se naturalizasse práticas obsoletas e que a discussão sobre os sete eixos decorresse em salas de cadeiras enfileiradas, com apoio de braço só do lado direito (como se não houvesse esquerdinos por ali…).

Com a vovó Ludi e uma equipe de extraordinários educadores, tentei que os 10 anos que se seguiram fossem de mudança e inovação. Enviamos para secretarias, agrupamentos, universidades e outras instituições um ‘convi-

te’. Reconhecíamos ser inadiável o cumprimento de planos municipais e nacionais, concretizando a melhoria da qualidade da educação, a erradicação do analfabetismo, a sustentabilidade socioambiental, a promoção da gestão democrática e da cidadania, com ênfase em valores morais e numa ética do cuidar.

Avaliando o projeto ‘experimental’ desenvolvido ao longo de 2023, concluímos ser possível assegurar a materialização do princípio que dizia ser a educação um direito de todos e que todos poderiam aprender, desde que fossem criadas condições para tal.

Desenvolvemos um projeto de formação continuada e de transformação das práticas educacionais para promover uma boa qualidade da educação, com potencial de difusão em rede. Realizamos reconfigurações de práticas escolares em escolas das redes municipais e estaduais por meio do desenvolvimento de novas competências e da reelaboração da cultura pessoal e profissional dos seus professores.

A criação de protótipos de comunidade de aprendizagem correspondeu à necessidade da instituição de novas construções sociais de aprendizagem. Nesses contextos se assegurou a efetiva prática de educação integral.

Construídos indicadores de melhoria da qualidade da educação, formulamos diretrizes a adotar na formação de profissionais de desenvolvimento humano. A celebração de contratos e termos de autonomia permitiu dispormos de um tempo de sereno e profícuo trabalho. Propiciada a estabilidade das equipes de projeto, se tornou possível cuidar do socioemocional dos professores e, sem fazer dos alunos cobaias de laboratório, consubstanciar tarefas e alcançar objetivos.

Revista Educação 48
José Pacheco Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal) josepacheco@editorasegmento.com.br

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