Revista Educação 292 março 2023

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Guerra brasileira A rotina de violência imposta às escolas

revistaeducacao.com.br

Como pesquisar Alunos precisam aprender a interpretar as informações

EDUCACAO

Novo ensino médio

Educadores brasileiros divididos

Enquanto um grupo pede a revogação da reforma do ensino médio por considerá-la reducionista e desigual, outra turma defende sua necessidade por entender que estimula o diálogo entre os jovens e a profissão

Ensaio

A íntima relação entre saúde mental e aprendizagem

ANO 27 Nº292

Em entrevista, Nilma Lino Gomes detalha as reivindicações que se evidenciam com a chegada de negros e indígenas às universidades, como a descolonização do conhecimento, e o impacto disso nas escolas

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LOJA DO MESTRE ANDRÉ

CARTA AO LEITOR

Os Brasis dentro do Brasil

Ao refletir sobre as reivindicações dos pobres, negros e negras, indígenas e demais grupos que englobam as maiorias minorizadas, notamos a busca pelo reconhecimento e garantia de direitos mínimos. Como o reconhecimento de que somos uma sociedade estruturalmente racista e que precisamos romper essa ‘herança’. Ou ainda a história oriunda da Europa a qual coloca que o Brasil foi descoberto, esquecendo de se voltar para a visão indígena de que o país foi invadido.

E é diante das pequenas-grandes conquistas (possíveis de perceber ao analisar o contexto histórico), que o Brasil comemorou em 2022 os 10 anos da Lei de Cotas. Já em 9 de janeiro de 2023, completaram-se 20 anos da Lei 10.639, a qual determina o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas.

A análise que a pedagoga Nilma Lino Gomes faz sobre as relações étnico-raciais e o campo educação serve como um curso. Deveria chegar a todos os cidadãos, particularmente professores e professoras. Espaço limitado, tentamos deixar o máximo que ela falou na entrevista. Considerando a relevância de suas palavras, deixamos um trecho aqui.

“As cotas podem ser consideradas a modalidade mais radical e mais urgente de ações afirmativas. A entrada de sujeitos pertencentes aos coletivos diversos com histórico de desigualdade, de resistência e de luta por meio da política de cotas tem impactado o ensino superior brasileiro de um modo geral, seja no público ou no privado (como é o caso do ProUni, que pode ser considerado como uma modalidade de ação afirmativa)”.

...E a presença dos novos personagens no ensino superior, ela diz: “Os sujeitos diversos chegaram com tudo: com sua corporeidade, ideologias, opções políticas, conhecimentos, identidades, religiosidades, visões de mundo e experiências construídas na resistência, na sobrevivência. E tudo isso impacta a universidade como um todo. Impacta o currículo porque, atualmente, não se pode mais dar aula como nos anos 80”.

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Imagem de capa: Rafa B

EDUCACAO

A Plataforma Educação, composta por edições digitais e impressas, site, redes sociais e eventos, é publicada por RFM Editores

Ano 27 - Nº 292 março de 2023

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REVISTA

Ainda é polêmico

Reforma do ensino médio ainda não resolve os antigos problemas educacionais. Com isso, ganha desavenças entre educadores que precisam, mais do que nunca, de formação qualificada e apoio

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ENTREVISTA

Nilma Lino Gomes

Referência em educação e relações étnico-raciais, educadora analisa os impactos das ações afirmativas no ensino básico e no superior. E alerta que, enquanto a formação continuada docente tem avançado para dialogar com o tema, o mesmo não acontece na formação inicial

ENSAIO 30

Adriana Fóz

“Há mais alunos com meras dificuldades do que com um transtorno de aprendizagem”, alerta a neuropsicóloga

e mais

14 Transformação

24 Midiática

26 Censo Escolar

32 Como pesquisar

36 Gestão

40 Futuro da escola

48 Linguagens infantis

42

GUERRA BRASILEIRA

Desnaturalizar a violência

Entre alunos expostos e professores adoecidos, o fracasso duradouro de uma política de segurança pública

54 Internacional

56 Diálogos

58 Entre margens

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SUMÁRIO
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NOVO ENSINO MÉDIO
José Cruz/Agência Brasil
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“Descolonizar o conhecimento para reconhecer os saberes indígenas e negros”

Referência em educação e relações étnico-raciais, educadora analisa os impactos das ações afirmativas no ensino básico e no superior. E alerta que, enquanto a formação continuada docente tem avançado para dialogar com o tema, o mesmo não acontece na formação inicial

Estudar o movimento negro e, consequentemente, sobre racismo estrutural e relações étnico-raciais na atualidade, principalmente no campo da educação, implica ler e ouvir Nilma Lino Gomes. Primeira mulher negra a comandar uma universidade pública federal, em 2013, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), e ministra das mulheres, da igualdade racial e dos direitos humanos no segundo mandato de Dilma Rousseff, Nilma é um símbolo da luta por justiça social.

Mineira, é professora desde os 17 anos, formada em pedagogia, doutorado em antropologia social. Cumpriu estágio pós-doutoral pela Universidade de Coimbra, em Portugal, com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, e ainda tem pós-doutorado em educação.

Nilma fez estágio pós-doutoral em Portugal com Boaventura de Sousa Santos

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ENTREVISTA
Rafa B

Escritora de livros como Experiências étnico-raciais para a formação de professores (ed. Autêntica) e O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação (ed. Vozes). É professora titular emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Confira, a seguir, a entrevista.

No que diz respeito aos negros e aos povos indígenas, de que maneira a Lei de Cotas e outras políticas afirmativas vêm impulsionando a descolonização do conhecimento – rompendo com a visão única eurocêntrica?

As ações afirmativas são políticas públicas e privadas que visam corrigir desigualdades históricas que incidem sobre determinados coletivos sociais, étnicos, raciais, de gênero, entre outros. Quando públicas, elas representam uma ação do Estado de saída do lugar de neutralidade estatal e de reconhecimento de que as desigualdades existentes em determinada sociedade têm uma imbricação de motivos e que o Estado não pode ficar neutro. Tem que intervir afirmativamente para que todas as pessoas, todos os grupos, nas suas diferenças, possam ocupar lugares dignos numa posição de horizontalidade. É o que se deseja em uma democracia plena.

Impacta o currículo porque, atualmente, não se pode mais dar aula como nos anos 80. No terceiro milênio, no contexto das ações afirmativas e da modalidade de cotas, não só os sujeitos mudaram, mas a própria circulação, as indagações sobre o conhecimento são outras

bilitado uma descolonização do conhecimento e da educação. A presença de sujeitos pertencentes a coletivos diversos, e tratados historicamente como desiguais e inferiores, trouxe para as instituições educativas indagações sobre o conhecimento hegemônico que nelas perdura: o currículo, a organização acadêmica e escolar, a gestão, a assistência, a relação pedagógica e o trato da diversidade.

E as cotas são uma das modalidades de ações afirmativas. Que mudanças trouxeram para a educação?

As políticas de ações afirmativas implementadas no Brasil surgem como uma demanda do movimento negro no terceiro milênio [de 1º de janeiro de 2001 a 31 de dezembro de 3000] visando a correção de desigualdades raciais e a concretização da luta antirracista e que foi expandindo aos poucos para outros grupos sociais com histórico de discriminação e de desigualdade.

Essa mudança trouxe inúmeros impactos e tem possi-

Há cotas nas instituições públicas federais e estaduais de ensino superior. Para as federais, em especial, foi instituída a Lei 12.711 de 2012, a chamada Lei de Cotas, que implementou a modalidade das cotas sociorraciais, direcionadas para os seguintes sujeitos: população negra (pretos e pardos), indígenas e pessoas com deficiência, além de escola pública e baixa renda. As cotas podem ser consideradas a modalidade mais radical e mais urgente de ações afirmativas. A entrada de sujeitos pertencentes aos coletivos diversos com histórico de desigualdade, de resistência e de luta por meio da política de cotas tem impactado o ensino superior brasileiro de um modo geral, seja no público ou no privado (como é o caso do ProUni, que pode ser considerado como uma modalidade de ação afirmativa). Diante disso, a primeira mudança significativa que temos visto é a presença de uma maior diversidade no ensino superior, que antes era muito mais homogêneo do ponto de vista racial, étnico, de gênero, de orientação sexual e de classe social.

Os sujeitos diversos chegaram com tudo: com sua corporeidade, ideologias, opções políticas, conhecimentos,

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ENTREVISTA

Nilma Lino Gomes

identidades, religiosidades, visões de mundo e experiências construídas na resistência, na sobrevivência. E tudo isso impacta a universidade como um todo. Impacta o currículo porque, atualmente, não se pode mais dar aula como se dava nos anos 80. No terceiro milênio, no contexto das ações afirmativas e da modalidade cotas, não só os sujeitos mudaram, mas a própria circulação, as indagações sobre o conhecimento são outras. Cada vez mais a ciência moderna está sendo tensionada a entender que há um conjunto de outros saberes e visões de mundo pertencentes aos sujeitos diversos, que confrontam e enriquecem o próprio cânone.

Cada vez mais a ciência moderna está sendo tensionada a entender que há um conjunto de outros saberes e visões de mundo pertencentes aos sujeitos diversos, que confrontam e enriquecem o próprio cânone

Indígenas e pessoas negras no ensino superior lutam para que os seus conhecimentos sejam reconhecidos. Eles chegam exigindo, pressionando, porque estão nesses espaços por direito. E mostram que não adianta abrir as portas para uma maior inclusão e democratização do acesso e continuar negando o fato de que eles são sujeitos de conhecimento. É preciso garantir-lhes permanência digna. Esses sujeitos trazem suas visões de mundo, experiências, culturas, apresentam-nos outros autores, autoras e mestres dos saberes com visões emancipatórias e que são ainda pouco conhecidos (ou reconhecidos) pela academia. Sua presença e análises enriquecem as nossas aulas, os debates e as pesquisas.

As faculdades de educação, os currículos de licenciaturas têm dialogado com as transformações sociais? Estão passando por revisões para englobarem as questões étnico-raciais?

É impossível que as faculdades de educação e os cursos de licenciatura não passem por transformações, pois a sociedade está em transformação constante e tem exigido do campo da produção do conhecimento e da formação das professoras e professores mudanças que caminhem

em sintonia com a dinâmica do tempo que vivemos. No que diz respeito às questões étnico-raciais, essas têm um impulsionador muito importante que é alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) pela lei 10.639 de 2003, com a introdução obrigatória do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas da educação básica e que completa 20 anos em 2023. Essa legislação foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação e deu origem ao parecer 03 de 2004 do Conselho Pleno e da resolução 01 de 2004, também do Conselho Pleno, que no seu conjunto formam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Essas diretrizes são muito importantes e delas se originou um plano nacional de implementação que, infelizmente, ainda é muito pouco conhecido pelo campo da educação, pelos cursos de pedagogia e pelas demais licenciaturas.

Do ponto de vista das questões étnico-raciais voltadas para a população negra, as faculdades de educação, os cursos de licenciaturas em geral têm orientações muito preciosas e importantes e que estão contidas nessas Diretrizes. Destaco que o Artigo 1°, nos seus parágrafos 1° e 2 da Resolução CNE/CP 01 de 2004, normatiza para todas as instituições de ensino superior que tratem das questões étnico-raciais, como forma de superação dos estereótipos construídos pelo racismo, rumo à construção de uma nação democrática.

Só que a implementação dessas orientações e normas ainda é muito restrita perto da quantidade de cursos de pedagogia e licenciaturas que temos no Brasil e perto daquilo que já deveríamos ter feito. Porque ao se avaliar a implementação da legislação que originou toda essa discussão, que é alteração da LDB pela lei 10.639/03, nota-se que há uma irregularidade em curso. Temos ações acon-

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Quando ministra da mulher, igualdade racial e direitos humanos durante sessão da ONU em Genebra, Suíça

tecendo e mudanças muito significativas sendo desenvolvidas nos currículos das escolas. Porém, há pesquisas que registram que elas ainda dependem da liderança de uma docente negra ou de um grupo de docentes e/ ou gestores e/ou coordenadores negros. Aos poucos, docentes não negros têm se envolvido. No geral ainda não superamos o imaginário racista de que o trato da questão racial na escola é um dever somente das pessoas negras. Há instituições, cursos, secretarias e profissionais da educação que se negam a cumprir o que determina a Lei 10.639/03 e suas Diretrizes Curriculares ou que o fazem de uma forma muito precária.

Muitas vezes, a formação continuada e em serviço desenvolve mais ações voltadas para as questões étnico-raciais e africanas, na perspectiva da Lei 10.639/03, do que a formação inicial, tais como seminários, projetos, cursos de extensão, de capacitação e de especialização. Mas sabemos que é a formação inicial que prepara profissionais que atuarão nas escolas da educação básica, nas instituições públicas e privadas. Não é possível formar-se como docente, passar a atuar na escola e somente nos processos de formação em serviço tomar conhecimento da obrigatoriedade e da importância da alteração da LDB pela Lei 10.639/03 e, literalmente, aprender como trabalhá-la.

É possível enxergar as conquistas do movimento negro brasileiro nas ruas e nos ambientes escolares?

A maior conquista é o fato de a sociedade brasileira, principalmente o Estado brasileiro nas suas normas, Constituição Federal e legislações, reconhecerem a existência do racismo e, em particular, do racismo que incide sobre as pessoas negras. Essa é a principal conquista do movimento negro.

O reconhecimento da existência do racismo vai na contramão do imaginário social brasileiro e das práticas sociais contaminados pelo chamado mito da democracia racial, que é difícil de desconstruir. Esse mito induz a um pensamento equivocado de que houve um processo de escravização mais ameno em relação à população negra quando comparado com outras experiências de escravização dos tempos coloniais. Prega a existência de uma harmonia racial, que já foi desmistificada pela luta antirracista, atestada pelas pesquisas e pela própria vivência do racismo.

Outra conquista do movimento negro é trazer à tona e indagar a branquitude, o que tem provocado mudança de atitude de um grupo de pessoas brancas. A branquitude tem sido enfrentada e muitas pessoas brancas, hoje, começam a perceber que ser branco significa fazer parte de um grupo étnico-racial que sempre esteve nos espaços de poder e goza de inúmeros privilégios em nossa socie-

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ONU/Elma Okic

ENTREVISTA

Nilma Lino Gomes

dade, justamente, pelo fato de serem brancas. A branquitude anda lado a lado com o poder econômico, político e acadêmico. Ou seja, não são apenas as pessoas negras que têm que lutar contra o racismo. As pessoas brancas também são responsáveis e devem fazer parte dessa luta, bem como outros grupos étnico-raciais que vivem no Brasil. O racismo aprisiona todos e todas e impede a efetivação da democracia. Aos poucos, um grupo de pessoas brancas vem entendendo que é preciso ser antirracista.

Outra conquista do movimento negro é a própria alteração da LDB pela lei 10.639 e todos os desdobramentos legais que essa inclusão possibilitou na educação.

Também entra na lista o princípio das ações afirmativas ser reconhecido como constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 2012, além de leis como a 12.288/10, Estatuto da Igualdade Racial e a Lei 12.990/14, cotas raciais nos concursos públicos federais. Também posso citar a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, (extinta pelo governo que foi derrotado nas eleições presidenciais de 2022 e retomada como Ministério da Igualdade Racial pelo atual governo do presidente Lula); e o decreto 4887/03 que regulamenta todo o procedimento para identificação, reconhecimento e titulação das terras quilombolas.

Há um debate mais forte sobre a questão do genocídio da juventude negra com a produção de dados e pesquisas quantitativas e qualitativas, como o Atlas das Juventudes, Atlas da Violência e o Índice de Vulnerabilidade Juvenil e várias pesquisas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), os quais comprovam que esse genocídio existe. Isso dá instrumentos políticos para o movimento negro fazer a luta e o debate. E impulsiona o Estado a agir. A educação não pode ficar de fora desse debate.

Uma das formas de combater o racismo é retirar as pessoas negras do lugar de desigualdade, exclusão e negação de direitos em que vivem. Quando esses sujeitos conseguirem ter o direito de estar nos mais variados espaços, lugares e instituições sociais de forma horizontal e usufruindo de todos os direitos, então, será possível dizer que a nossa democracia está avançando e que a sociedade, de fato, mudou radicalmente. Essa é uma demanda histórica do movimento negro, portanto, todas as mudanças positivas nesse sentido, que assistimos nos últimos 30 anos, podem ser compreendidas como vitória desse movimento social. Um movimento que nos reeduca.

“Não adianta abrir as portas para uma maior inclusão e democratização do acesso e continuar negando o fato de que eles [negros e indígenas] são sujeitos de conhecimento”

Não é possível formar-se como docente, passar a atuar na escola e somente nos processos de formação em serviço tomar conhecimento da obrigatoriedade e da importância da alteração da LDB pela Lei 10.639/03
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Marcello Casal/Agência Brasil

Coletivo feminista, coletivo do cabelo crespo e outros levantes praticamente não existiam - ou não tinham a força que têm - há 15 anos nas escolas e faculdades. Como educadoras(es) podem dialogar com esses movimentos de modo a enriquecer o ensino e aprendizagem?

Ao olhar as trajetórias das diversas organizações negras desde o século 20, percebe-se que um dos debates travados na luta contra o racismo diz respeito ao fortalecimento da autoestima e da identidade negra. O cabelo é um ícone identitário no processo de construção da identidade negra. Principalmente no terceiro milênio, notamos que foi construído pelo movimento negro um discurso afirmativo sobre o corpo e a estética negra.

O próprio movimento negro trouxe para a sociedade brasileira, desde o século 20, uma crítica aos processos de branqueamento, aos quais as pessoas negras eram (e ainda são) subjugadas. Uma dessas formas é o alisamento dos cabelos. Há uma série de questões complexas envolvendo o debate sobre os padrões estéticos, mas o fato é que para a população negra sempre existiu uma imposição de um padrão estético branco inspirado na Europa Ocidental. Isso resultou, por exemplo, em situações muito dramáticas vividas por crianças, adolescentes e mulheres negras em relação à sua estética, em relação aos seus próprios cabelos. Sabendo disso, o movimento negro brasileiro inspirado em movimentos como Black is Beautiful, nos Estados Unidos, e nas lutas por libertação dos países africanos, implementou no Brasil a discussão sobre a estética corporal, ou seja, a valorização de todos os sinais diacríticos que nós, pessoas negras, temos e que constituem a nossa corporeidade.

E o que isso tem a ver com a escola e o processo de ensino e aprendizagem? Em primeiro lugar, as professoras e professores precisam saber essa história e o seu significado na luta pela superação do racismo. Esse conhecimento contribuirá na interação com as crianças, adolescentes, jovens e adultos negros, compreendendo a importância cultural, social e identitária dos seus padrões estéticos, principalmente as formas mais criativas de usar os seus cabelos, suas roupas, seus adereços. Docentes poderão interagir pedagogicamente ao discutir essa questão com os estudantes e as estudantes sem associá-la aos discursos preconceituosos sobre a estética negra.

Uma das formas de combater o racismo é retirar as pessoas negras do lugar de desigualdade, exclusão e negação de direitos em que vivem

As professoras e os professores podem trabalhar com seus estudantes as mudanças estéticas negras que foram acontecendo ao longo da história do Brasil e o que isso significou para o processo de combate ao racismo, estudar os movimentos estéticos que já aconteceram e ainda acontecem dentro e fora do nosso país como uma das formas, por exemplo, de trabalhar questões da lei 10.639/03.

Destaco que o reconhecimento, o respeito à história, da visão de mundo, da corporeidade e das identidades negras devem ser vistos como um direito, possibilitando um ambiente pedagógico que proporcione uma relação afirmativa e igualitária e equitativa entre estudantes negros e brancos. É possível trabalhar didaticamente o fato de que as culturas devem ser respeitadas, de que todas as pessoas devem ser vistas como sujeitos e colocadas no mesmo padrão de humanidade e de direito.

Podemos partir da compreensão da estética negra, tendo como ícone o cabelo crespo, para rever valores e aproximar professoras, professores e estudantes uns dos outros num patamar de humanidade, de solidariedade, respeito, justiça - que é aquilo que precisamos para que qualquer relação de ensino e aprendizagem seja bem-sucedida.

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TRANSFORMAÇÃO

Reverter tendências históricas

Escola acolhedora é a que está atenta às distintas realidades da comunidade escolar

| Por Damaris Silva

O ‘saber cuidar’ é um conceito que, há algumas décadas, Leonardo Boff, teólogo e professor emérito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, nos trouxe por meio da obra Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Lançado em 1999, o livro nos traz pistas do que ele considerava, à época, o sintoma mais doloroso dos nossos tempos. Que chamou de “difuso mal-estar da civilização”, que se espelhava sob o fenômeno de um descuido por completo. Falta de cuidado e descaso com aqueles que estão à margem da humanidade, aos que não têm condições dignas de sobrevivência econômica, social e política.

A partir disso, o autor discorre sobre o abandono a que estão submetidas crianças e jovens marginalizados da humanidade, para os quais não há acesso a condições saudáveis de sobrevivência. Estão também à sombra de políticas públicas efetivas, que atendam às suas necessidades. Em um final ‘não-conclusivo’, Boff ressalta que não há sujeito único responsável por essa mudança, trata-se de um empenho coletivo orientado para um novo sentido de viver e de atuar no mundo, “um caminho coletivo que se faz caminhando”.

Nesse sentido, ao inaugurarmos mais um ano, faz-se necessário atentar ao cuidado e ao acolhimento, não só das crianças, mas também dos professores e de toda a comunidade escolar com vistas à justiça social e à equidade. Devem-se fortalecer laços em prol do enfrentamento das dificuldades desde o início do ano letivo. Trata-se de um momento importante para que gestores, professores e alunos se sintam acolhidos e preparados, de modo que se ofereça um ambiente inclusivo e respeitoso para todos.

Sob a perspectiva do acolhimento, destacar o exemplo do governo do estado do Ceará que, por meio da Secretaria da Educação, anunciou em 2023 a temática das relações étnico-raciais. Serão parte integrante dos ambientes de ensino e aprendizagem da rede de ensino, como

Sobre os problemas sociais, Leonardo Boff diz que se trata de “um caminho coletivo que se faz caminhando”

um compromisso com uma educação antirracista de modo interdisciplinar e transversal, desde a sua implementação nos currículos escolares às relações pessoais. A presença do tema não será apenas em momentos pontuais no calendário escolar.

Acolher a comunidade escolar em sua diversidade é uma forma de demonstrar que todos ali são valorizados e respeitados na escola e em seu entorno. Trata-se de um momento oportuno para desconstruir, ressignificar e reconstruir determinadas práticas, usos e costumes. Enfim, reverter tendências históricas que precisam ser revisitadas a todo momento.

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Fernando Frazão/Agência Brasil Damaris Silva mestre em letras e especialista em gestão escolar

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Entre oportunidades e descasos

Reforma do ensino médio ainda não resolve os antigos problemas educacionais. Com isso, ganha desavenças entre educadores que precisam, mais do que nunca, de formação qualificada e apoio

Aimplantação gradual do novo ensino médio (NEM) se tornou obrigatória em 2022, só que até o momento faltam programas em todos os estados compromissados com uma formação inicial e continuada que dialogue com tais transformações. Desde então, o que para muitos educadores está sendo um desafio instigante, para outros, principalmente os da rede pública, o sentimento é de frustração. Claudia (nome oficial ocultado) é docente na rede estadual da Paraíba e desabafa que os professores receberam uma formação genérica e define a implantação do NEM como um caos. “Ano passado trabalhei com o itinerário formativo de história, foi bem complicado, sobretudo porque o estado não trouxe nenhum tipo de formação específica para esse novo currículo. Ofereceram um curso geral no meio do ano letivo, mas que não ajudou muito. Já a escola em que eu trabalhava não teve ação voltada para esses itinerários, então cada professor fazia o que já sabia”, critica.

Contudo, reconhece um esforço do estado: “a Paraíba lançou uma proposta curricular descrevendo como deveria ser [a implantação do NEM]. É um documento interessante, apesar de na prática não ter funcionado direito”.

Há 10 anos lecionando, o abismo educacional entre a rede particular e a pública ficou ainda mais claro para a pedagoga e professora de língua portuguesa Joseane Brito com a chegada do novo ensino médio. Joseane mora em Minas Gerais e dá aula para essas duas realidades. “Acredito que a mudança funciona, sim, na particular, mas na pública a experiência que eu tive não deu certo, principalmente pela falta de recursos.”

Metodologias ativas e resoluções de problemas estão no DNA da instituição

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NOVO ENSINO MÉDIO Rodnae Productions/Pexels

Colégio Unochapecó está no mesmo campus da universidade, usufruindo de toda a infraestrutura e ainda do apoio dos professores universitários

Joseane deu aula em uma escola estadual para o ensino médio ano passado, no município mineiro de Vespasiano. Dedicada, busca sempre se atualizar sobre práticas pedagógicas com o intuito de estimular seus alunos. Porém, enquanto a visão de educação de Joseane vem se ampliando e dialogando com as necessidades atuais, a coordenação pedagógica da escola na qual lecionava está presa ao modelo antigo expositivo, do século passado, o qual defende que o aluno esteja sentado na cadeira enfileirada o tempo todo. Os desgastes foram tantos que trouxeram a certeza de que no ano letivo seguinte não trabalharia com itinerário. Foi então que em 2023 ingressou em uma escola municipal, agora como supervisora pedagógica. “Brincar de dar aula não é comigo.”

Voltando a 2022, primeiro ano oficial do NEM, Joseane assumiu na escola estadual o itinerário práticas comunicativas e criativas. Comunicaram que ela teria que se virar para dar aula. “Fiquei empolgada quando li o documento orientador do estado. Falei: uau, dá para trabalhar vários gêneros textuais dentro da língua portuguesa, posso abordar interpretação, produção. Mas ao chegar à escola comecei a ser cortada. ‘Não temos material; não tem como usar a sala de vídeo; não tira a turma da sala agora porque vai tumultuar; não podemos disponibilizar internet para os alunos’.”

O que é o novo ensino médio?

A Lei 13.415 de 2017 amplia a carga horária do ensino médio de 2.400 horas para 3.000 horas ao final dos três anos e divide o currículo em duas partes: conteúdos obrigatórios, os quais não mais são divididos por disciplina, mas por áreas do conhecimento, e cria os itinerários formativos, um leque de áreas de aprofundamento o qual cada escola tem liberdade para a escolha dos temas. A carga horária obrigatória deve ter até 1.800 horas, já o restante é destinado aos itinerários formativos, que não possuem limites de horas.

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Fotos: Divulgação

NOVO ENSINO MÉDIO

Com isso, seus alunos ficaram presos a um conteúdo que poderia ser explorado de diferentes maneiras, mas, pela falta de engajamento da coordenação, se resumiu a quadro e caderno.

Segundo Joseane, a coordenação deixou claro que não tinha material para apoiar os professores – ou não queria –, só que ao pesquisar ela descobriu um documento orientador dividido por bimestre elaborado pelo estado de Minas Gerais. E foi a partir desse documento que se orientou para elaborar as aulas.

Quando buscou fazer junto aos seus alunos um jornal, por exemplo, o desafio foi convencê-los de que era instigante o que estavam criando, mesmo tendo apenas caderno e caneta. “Não tinha tinta, pincel ou qualquer recurso para fazer de verdade um jornal. E percebi que essa falta de recurso vinha do coordenador do ensino médio por achar que os alunos só aprendem quando estão sentados na cadeira, em fila e olhando pro quadro.”

Em outro momento, redistribuiu a sala em grupo, deixando de lado o modelo de carteira enfileirada. “Queria que a gente estivesse de igual para igual, ouvindo. É o que chamamos de protagonismo e troca de chapéu - quando o aluno também traz informações, e às vezes eles trazem mais do que o professor”, reconhece Joseane. Após a atividade, a professora recebeu a orientação de não tirar mais as carteiras do lugar.

“Brincar de dar aula não é comigo”, diz professora que se decepcionou com os itinerários formativos e deixou a escola estadual para atuar como supervisora na rede municipal

A experiência da Joseane está entre as mais comuns das escolas: o ‘atrito’ entre coordenação e professor. Um é a base do outro, só que nem todos os profissionais querem compreender isso. Enquanto alguns educadores têm sede de aprender, buscam o novo, outros estão presos ao que aprenderam no início da carreira e não procuram constante atualização.

“Acho que se a escola tivesse acreditado na proposta do novo ensino médio e dissesse aos professores: ‘Olha, estamos juntos, vamos trabalhar’, teria dado muito certo, porque a proposta é boa no papel, só que a gestão da escola tem que acreditar na proposta.”

Hoje, na escola municipal, a realidade é outra: “sou supervisora pedagógica de verdade, aquela que elabora projeto, que coloca a mão na massa apoiando os professores. Não sou a que dá ordem. Abro para sugestões e adaptações. Estou tentando fazer a diferença lá dentro”, assegura.

PROJETO QUE INSPIRA

Localizada no interior de Santa Catarina, é na promissora cidade de Chapecó que o novo ensino médio acontece de maneira inspiradora, constata Eduardo Deschamps, presidente entre 2016 e 2020 das comissões do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) no Conselho Nacional de Educação. Em 2021, a Universidade Unochapecó lançou sua frente de educação básica particular, no momento apenas voltada ao ensino médio, o Colégio Unochapecó, instalado dentro do campus, compartilhando salas, professores, laboratórios e equipamentos de ponta que só uma universidade consegue adquirir.

Por conta do ano em que foi lançada, a proposta pedagógica do colégio nasceu alinhada com o novo ensino médio, valorizando a interdisciplinaridade, como ao

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Divulgação Em Chapecó, o colégio particular que Marizete Matiello dirige não abre mão das quatro horas semanais de planejamento coletivo e integrado para todos os docentes

cumprir com a carga horária de formação geral básica por área de conhecimento, criando como saída a regra de ter sempre dois professores por área de conhecimento na mesma sala. No caso da área de ciências humanas e sociais aplicadas, por exemplo, lecionam no mesmo momento um professor que abarca geografia e história e outro professor que abrange sociologia e filosofia. Juntos mobilizam os conhecimentos da área de forma articulada.

Para construírem os temas dos itinerários formativos, o colégio, que ‘nasceu do zero’, escutou estudantes da região. A experiência dos itinerários aconteceu com a primeira turma, em 2021. Desde então, a equipe busca escutar seus alunos para ajustarem os itinerários de acordo com o interesse deles, garante a diretora Marizete Matiello. Atualmente, a instituição oferece para o 1º ano do ensino médio 800 horas da formação básica e 200 horas de itinerários formativos diversificados, sem aprofundamento, distribuídos em projeto de vida; processos de criação e comunicação visual; negócios, finanças e empreendedorismo; e ambiente, saúde e bem-estar. Já o 2º ano tem 600 horas da formação básica e 400 horas de itinerários em aprofundamento em comunicação, saúde e meio ambiente. E no 3º ano há uma inversão para 400 horas de formação básica e 600 de itinerários, sendo eles os mesmos do ano anterior, só que em mais profundidade e com o acréscimo da visão empreendedora.

Para mudanças como o novo ensino médio surtirem efeito com qualidade, a formação inicial e continuada

dos professores é fundamental. Sabendo disso, dentro da proposta pedagógica do Colégio Unochapecó nasceu a garantia de quatro horas semanais de planejamento coletivo e integrado para todos os docentes. A proposta é um diálogo entre os professores que incentive a articulação dos saberes, o que inclui a compreensão das competências e habilidades prescritas para o ensino médio.

“Contratamos professores com perfil para trabalharem em uma proposta ousada, por metodologias ativas; a nossa sala de aula não é tradicional. Além disso, em janeiro de 2021 iniciamos um processo de formação sobre o novo ensino médio voltada às metodologias ativa e interdisciplinaridade. Então formação, pra gente, se dá em tempo de serviço. Não é fácil, é um desafio, nem todos os professores estão preparados”, reconhece a diretora. Ela enfatiza que a proposta escolar tem dado certo porque toda a equipe se dedica, tendo o hábito de estudar, uma vez que boa parte dos professores são mestres e doutores.

Os docentes universitários que lecionam nos itinerários formativos também participam. “Eles têm que entender o processo da educação básica.”

A diretora sabe que o novo ensino médio pede ousadia, mas, como ninguém nasce sabendo de tudo, os professores necessitam de apoio. “Precisamos ter pessoas nas coordenações, na gestão pedagógica, para fazer a orientação, o trabalho pedagógico do que é planejar interdisciplinarmente. Aqui estamos preparados, mas, e as redes públicas, elas possuem domínio pedagógico para dar a segurança de que o professor preci-

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Novo ensino médio tende a aprofundar o abismo educacional entre escola pública e particular

NOVO ENSINO MÉDIO

sa?”, alerta a diretora Marizete, que também é professora universitária e atua na escola pública há 19 anos, sendo a maior parte com o ensino médio.

No Colégio Unochapecó, as salas de aula são distribuídas por áreas do conhecimento. A de ciências da natureza tem mesas circulares que se desencaixam para facilitar diferentes distribuições em sala – sendo que nenhuma sala tem carteiras alinhadas –, justamente o modelo que a professora de Minas Gerais Joseane tentou aplicar, mas cuja escola a proibiu. “Não usamos livro didático. Não temos um sistema de apostilamento porque não existe ainda algo que possa nos oferecer com qualidade as relações interdisciplinares entre saberes”, diz a diretora Marizete.

COMPROMISSO

Os relatos de Claudia, Joseane e Marizete apontam para um desafio escolar antigo, mas que em momentos de mudanças estruturais, como é o caso do novo ensino médio, se torna ainda mais latente: a vontade política das secretarias de educação, dos diretores escolares e coordenadores pedagógicos – tanto da rede pública quanto da particular – para os projetos serem implantados com eficácia, seja o NEM ou qualquer outra iniciativa.

Amábile Pacios, presidente da Câmara de Educação Básica no Conselho Nacional de Educação, concorda. “O diretor precisa abraçar o novo ensino médio junto de seus coordenadores porque senão a gente não implantará nenhuma proposta pedagógica. A gestão precisa deixar isso claro para a sua comunidade acadêmica. Até porque os professores vão ficar dependendo de uma orientação: ‘vamos por aqui, para lá’.”

Questionada sobre avaliar a atuação das secretarias de educação do país para a efetivação do novo ensino médio, prefere falar do Mato Grosso do Sul. Ela defende que o estado tem uma experiência exitosa de apoio às escolas. “Notamos que quando a secretaria tem um diálogo claro com o sistema, este absorve com clareza o que tem que ser feito. Agora, se a secretaria deixa na dúvida, a escola não sabe direito como atuar em sua proposta pedagógica”, analisa a presidente.

PEDRAS NO CAMINHO

Selma Rocha é doutora em história social, foi secretária municipal de educação em Santo André, SP (19972000), e ainda carrega o orgulho de ter atuado na secretaria de educação da cidade de São Paulo quando

A historiadora Selma Rocha pede a substituição da lei do NEM. “Essa reforma é uma reforma de contenção. Só uma elite do país terá acesso à ciência. A grande questão no Brasil é que nós não tenhamos uma educação de segunda classe para os jovens”

Paulo Freire era o gestor. Indagada se acredita que o NEM chega para diminuir a evasão escolar e aproximar os jovens do mercado de trabalho, Selma afirma que essa reforma não resolve nenhum problema do ensino médio e defende, assim como outros pesquisadores, a substituição da lei. Para ela é necessário repensar o conceito de competência. “Precisamos abrir um debate; a discussão é bem mais complexa”, alerta.

“Mas, antes de discutir diretamente o texto da reforma, temos que fazer perguntas que o antecedem: o que queremos com esse ensino médio no Brasil? O que queremos para a juventude?”, reflete Selma Rocha.

Uma grande preocupação da professora Joseane, de Vespasiano, e que ainda hoje é tida como polêmica dentro do novo ensino médio, é a ‘redução’ de disciplinas como história, geografia, sociologia e filosofia. “Esses alunos estão deixando de ter conteúdo, então reduziram as aulas de história, de geografia, reduziu-se o conteúdo que vai ser cobrado no vestibular. Com isso, a rede pública distancia ainda mais seus alunos de concorrerem com alunos das outras escolas”, desabafa Joseane.

Contudo, há educadores que defendem que essas disciplinas apenas não estão visíveis, mas que permanecem. No caso do Colégio Unochapecó, a diretora Marizete explica que houve uma espécie de adiantamento da matéria, para no 3º ano os estudantes se aprofundarem em outros campos.

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Camila de Oliveira

A historiadora Selma Rocha concorda com Joseane. “Dentro da reforma, em função do conceito de competência, houve uma redução no currículo muito profunda, de tal maneira que os estudantes não terão acesso a várias dimensões do conhecimento. É um currículo pobre tanto no que diz respeito à ciência, à tecnologia, às artes, como em relação à formação técnica. Formação profissional exige ciência e técnica. Paulo Freire dizia: ‘a prática não é redutível à teoria e a teoria não é redutível à prática’. Ou seja, nenhuma pode ser substituída pela outra e a meu juízo o conceito de competência tenta fazer isso. No mundo em que vivemos, seja lá qual for a profissão, a pessoa precisa cada vez mais entender o mundo e entender o real. Se elimino isso da formação de um jovem, ele dificilmente pensará o mundo e, certamente, outros pensarão por ele.”

O segundo problema, no entender de Selma, é que formação profissional não gera emprego. O que gera emprego são algumas políticas de desenvolvimento econômico, ambiental, e essas políticas podem e devem envolver a perspectiva de formação profissional, mas não apenas de maneira instrumental, acredita. “Porque os ofícios que a BNCC e a reforma sugerem são de baixa qualidade. Sem qualificação, o acesso ao emprego não vai ser melhor, a não ser que seja para ser subexplorado no mercado. Mas não podemos achar que o horizonte de um país é formar gente para ser subexplorada no mercado. Não podemos ser vendedores de ilusão”, critica a historiadora.

relação considerando uma ampliação de vagas e articulando os institutos federais, as escolas técnicas estaduais, todo o sistema de formação profissional no país com base regional [para dialogar com as necessidades locais]. Então seria interessante que o ensino médio favorecesse uma relação de construção de itinerários via formação profissional, mas não por dentro do ensino médio”, detalha Selma.

Outro ponto crítico da historiadora e também apontado por outros pesquisadores é que o projeto de vida tende a fazer com que a criança e o jovem acreditem que depende deles conseguir um emprego e se desenvolverem profissionalmente. “Isso não é verdade. A sociedade tem que permitir que tenha emprego. Por que há gente com qualificação dirigindo Uber? Não podemos partir do pressuposto de que uma parcela da sociedade será excluída e contida por meio da reforma do ensino médio.”

O NEM do Colégio Unochapecó, SC, é tido como inspirador. Entre as causas, por garantir aos alunos a aprendizagem por área do conhecimento. A solução: na formação geral obrigatória, sempre dois professores da mesma área de conhecimento atuam conjuntamente em sala

Em relação ao itinerário, analisa que é uma palavra dentro da reforma, mas que não existe itinerário: o cidadão conclui o ensino médio sem ter a formação profissional. “Esses itinerários não formam. Tanto é assim que não é uma formação técnica. Acho que o itinerário dentro do ensino médio não ajuda. Eu trabalharia o itinerário na relação ensino médio e formação profissional, que é outra coisa bem diferente. Trabalharia essa

Ainda sobre outra proposta de novo ensino médio, Selma volta a 2015, quando os estudantes secundaristas ocuparam as escolas em São Paulo e no Paraná e construíram outro currículo, ao qual não apenas o mercado interessava, mas a criação também. “Os alunos tinham literatura, poesia, teatro, cinema. O trabalho não é só técnico. Então essa reforma do ensino médio é uma reforma de contenção. Só uma elite do país terá acesso à ciência. A grande questão no Brasil é que nós não tenhamos uma educação de segunda classe para os jovens. Os processos cognitivos não são lineares. Então um jovem precisa ter contato com o esporte, com a dança”, afirma.

Selma finaliza reforçando que os jovens precisam de financiamento para concluírem a educação básica e /ou a formação profissional. Também defende o fortalecimento das bibliotecas: “um jovem que lê literatura escreverá em qualquer área porque ele pensa os problemas, as épocas diferentes, ele cria. A literatura é libertadora”.

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MIDIÁTICA

O que ainda nos faz humanos?

Recorrentes novidades como o ChatGPT atingem o ‘sagrado ato de educar’

No filme 2001, uma odisseia no espaço (Stanley Kubick, 1968), o sistema de inteligência artificial fictício HAL 9000 tem como objetivo conduzir uma missão espacial humana ao planeta Júpiter. Para isso, ele elimina quase toda a tripulação, deixando vivo o único astronauta capaz de completar a tarefa com sucesso. Ardiloso e manipulador, o computador de bordo levantou nos espectadores mais questões sobre a humanidade do que sobre as máquinas. O astronauta sobrevivente, Dave Bowman, ironicamente, era o único que compreendia a ‘natureza’ fugidia de HAL.

Atualmente, o espanto vem do cotidiano. Ao deparar com a rapidez e a qualidade de um algoritmo de inteligência artificial que levanta padrões, em meio a uma gigantesca qualidade de dados, e assim gera um produto final (um texto mais preciso do que muitos cérebros fariam), sentimos mais uma vertigem mórbida sobre os limites das capacidades humanas do que uma admiração pelo desenvolvimento de um sistema inteligente. No final das contas, o ChatGPT, e outras filiações da chamada inteligência artificial generativa, nos alertam para os limites da nossa própria existência.

A chegada de tecnologias no universo da educação sempre chacoalhou o tradicionalismo que impera entre os muros da escola e, pior, entre os limites morais do que é considerado o ‘sagrado ato de educar’. O rádio, as calculadoras, a televisão, os processadores de texto, o recurso de ‘copiar e colar, as redes sociais, os games e o buscador Google profanaram aquilo que é sublime para muitos: a aprendizagem. Afinal, esse complexo processo sempre foi tido como puro, emocional, exclusivamente humano e delegado à escola.

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Ante o espanto, o melhor caminho é a compreensão. Em primeiro lugar, é importante admitir que a ontologia contemporânea tem espaço para os ‘quase-objetos’, ou os híbridos (como propõe a antropologia do francês Bruno Latour). A vida cotidiana é permeada e mediada por entes não exclusivamente humanos por décadas - somos criadores e criaturas delas. Admitindo isso, é possível perceber que o processo de aprendizagem nunca foi puro, tampouco é exclusivamente humano. Aproximá-lo de uma questão moral é quase um risco. Negar que fenômenos como o desenvolvimento da inteligência artificial farão parte cada vez mais de nossas vidas é pouco eficiente.

Neste exato momento, profetas dos mais diversos se dedicam a pensar práticas, dicas, proposições, explicações e limitações morais que possam tranquilizar os professores. Talvez eu seja um deles, mas não consigo tranquilizar ninguém. No caminho que invento, sugiro explorar a questão singular e inicial deste texto: o que ainda nos faz humanos?

Em primeiro lugar, os sistemas de inteligência artificial, como o ChatGPT, não têm consciência, sentimento ou originalidade. O que fazem, basicamente, é cumprir tarefas. Um algoritmo é uma lista de tarefas que a máquina é ordenada a fazer para obter determinado resultado. No caso, estabelecer padrões e comparar dados para fornecer algo mais próximo da resposta que desejamos. Sua capacidade de realizar isso é milhões de vezes maior que a dos seres humanos. Os resultados dependem muito da qualidade de nossas perguntas e são muitas vezes superestimados por nós mesmos.

O impacto da inteligência artificial é imenso e tem influência de transformação em muitos campos; nesse sentido, tem sido comparada àquelas promovidas pela energia elétrica

A entrevista em que o escritor Joca Reiners Terron dialoga com o próprio sistema, publicada no jornal Folha de S.Paulo, pedindo que esse produzisse textos ao estilo de William Shakespeare, resultou em um texto sem originalidade, mas com maneirismos ‘shakespearianos’. Em outra frente, diversos letristas da música popular solicitaram ao sistema uma produção no estilo de seus trabalhos; como resultado, obtiveram cópias falastronas.

Há também resultados incríveis, devemos admitir, que passam longe do que um ser humano teria habilidade para

criar sozinho; o que nos pode ser muito útil. Já a acurácia das respostas e a assertividade dos textos irão melhorar com o tempo - de imediato para solicitações menos complexas. Acertar as questões do Enem, por exemplo, é mais um problema de relacionar resultados em uma base de dados confiável; o Google buscador já é capaz de fazer isso há tempos, só não nos entrega o texto pronto. A questão que responde ao título desse artigo, portanto, não reside em minimizar o impacto da inteligência artificial. Ele é imenso e tem influência de transformação em muitos campos; nesse sentido, tem sido comparada àquelas promovidas pela energia elétrica. Trata-se de um rio caudaloso que, como todos, só corre para um lado. Empregos são extintos, transformados e o próprio conceito de cognição, colocado em xeque. O ponto central é que a inteligência artificial não tem subjetividade mas, ao mesmo tempo, não é neutra. Trata-se de um sistema estatístico de probabilidade, como define a pesquisadora e doutora brasileira Dora Kaufman, da PUC de São Paulo. Os sistemas são desenvolvidos por seres humanos, e grande parte de suas diversas implicações éticas podem ser mitigadas durante o processo de desenvolvimento ou na base de dados à qual estão expostos. Parafraseando novamente Latour, temos que ser modernos, finalmente. Na educação isso significa repensar como educamos, para quê educamos, com base em que evidências avaliamos, com quem ou o quê interagimos na vida cotidiana e em quem media nossas relações com o mundo. O dedo mais uma vez está apontado para os vícios de uma educação ‘bancária’, conservadora e que enxerga ainda um mundo industrial e linear. Compreender esse cenário significa sobreviver a ele, tal qual o astronauta Bowman, de 2001.

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Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance
Alexandre

CENSO ESCOLAR

66% dos diretores de escolas municipais são indicações políticas

MEC promete iniciativa para barrar prática eleitoreira no Brasil. Outro problema é que 1,4 milhão de crianças e jovens entre quatro e 17 anos não frequentam a escola, aponta o Censo Escolar 2022

Prática comum, mas que ainda assim choca e precisa ser revista, é que 66% dos diretores de escolas municipais estão no cargo exclusivamente por indicação/escolha da gestão. Na rede estadual esse costume é de 23%. As informações foram divulgadas pelo Inep no início de fevereiro, na coletiva de imprensa sobre os resultados do Censo Escolar 2022.

A prática de indicação de cargo é conhecida por estar atrelada a interesse eleitoreiro, deixando de lado a habilidade de gestão e pedagógica. Durante a coletiva, Camilo Santana indicou que o Ministério da Educação (MEC) pretende realizar ação nacional para evitar esse tipo de escolha.

Enquanto nos municípios o mais comum é a indicação, nas escolas dos estados é o processo exclusivamente eleitoral com a participação da comunidade escolar, representando 31,9%.

O processo seletivo qualificado e eleição com a participação da comunidade escolar é a realidade de 17,3% das escolas dos estados e 4% dos municípios. Concurso público específico para o cargo nas escolas dos estados chega a 11,4% nos estados e nos municípios a 7%.

MULHERES CONTINUAM MAIORIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Pelos dados do ano passado, o país possui 162.847 diretores e 2,3 milhões de professores que atuam em 178,3 mil escolas de educação básica tanto particular quanto pública,

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“Em torno de 400 mil professores do ensino básico não têm licenciatura ou formação para a área em que lecionam”, reconhece o ministro da educação, Camilo Santana

Em relação aos diretores, 80,7% são mulheres e 10% não possuem formação superior. Desses diretores, 19,3% têm curso de formação continuada em gestão escolar com no mínimo 80 horas.

O Censo Escolar é realizado anualmente. A partir da pesquisa é possível obter dados sobre escolas, professores, gestores, turmas e alunos do ensino regular, ensino integral, educação especial, EJA e profissional. Os dados são fundamentais no apoio às políticas públicas, uma vez que acabam fazendo uma espécie de ‘raio-x’ da realidade educacional, sendo base para estratégias no Ministério da Educação e outras instâncias.

DESAFIOS DOCENTES

“Em torno de 400 mil professores do ensino básico não têm licenciatura ou formação para a área em que lecionam. Precisamos construir estratégia para recuperar [a qualificação desses profissionais]”, reconheceu o ministro da educação, Camilo Santana.

Nos anos iniciais, mais de 70% dos professores possuem licenciatura ou bacharelado na mesma disciplina que lecionam – tido como o ideal –, apenas os de língua estrangeira estão fora desse quadro, sendo 34,4% com esse tipo de formação. Professores de educação física são os que estão mais alinhados, compondo 83,3% dessa realidade. Em seguida vêm os de língua portuguesa, com 77,6%. Já os professores de geografia são os que mais lecionam sem formação superior, representando 15,1%. Os de história estão em segundo, com 14,8% sem formação superior.

Já nos anos finais há uma mudança considerável: a formação tida como a ideal cai e ganha destaque a licenciatura ou bacharelado em disciplina diferen-

te daquela que leciona. Dos professores de geografia, 26,3% estão nesse enquadramento. Os de matemática chegam a 24%.

“Grande parte desses professores, sobretudo nos anos finais, é o pedagogo atuando na disciplina de física, química, é aquele que não teve formação inicial”, explicou Carlos Moreno, diretor de estatísticas educacionais no Inep.

CRESCEM MATRÍCULAS EM CRECHES PARTICULARES

Matrículas em creche particular tiveram queda de 21,6% entre 2019 e 2021. No mesmo período, a rede pública obteve baixa de 2,3%. Os números são reflexos da pandemia, uma vez que de 2018 para 2019 as matrículas na rede particular cresceram e só a partir de 2020 começaram a cair.

O país tinha 1.208.686 de matrículas em creche privada em 2020. Já o menor número registrado nos últimos anos aconteceu em 2021, com apenas 1.017.444 de matrículas. Contudo, 2021 mostra crescimento e menos impacto pandêmico, chegando a 1.321.846 de ma-

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Agora nacional, programa cearense Alfabetização na idade certa é reafirmado por Camilo Santana, do MEC Valter Campanato/Agência Brasil

CENSO ESCOLAR

Outros dados

do Censo Escolar 2022

-Desde 2020 há um aumento na matrícula de estudantes em ensino médio integral. Hoje, o país tem mais de 20% de estudantes nessa modalidade. Carlos Moreno, do Inep, assinalou como um ponto positivo. Para o ministro da educação, Camilo Santana, esse aumento se deve a esforços individuais dos governos estaduais: “[ainda] não há política a nível do MEC que possa coordenar esse processo e diminuir a distorção entre estados”. Por exemplo, enquanto a proporção de estudantes de ensino médio em tempo integral em Pernambuco é de 62,5%, no Paraná é de 4,4%;

-Há crescimento de estudantes com deficiência em classe comum, tido como positivo. Contudo, Paraná e São Paulo possuem forte atendimento de estudantes com deficiência em classes exclusivas;

-Ano passado, outra modalidade que cresceu em matrículas foi a educação profissional. Saltou de 1.892.000 estudantes para 2.115.000. Ambiente e saúde, e gestão e negócios são os dois cursos que mais receberam matrículas. “Com o novo ensino médio, a expectativa é continuar com esse aumento”, disse Carlos Moreno.

-Há uma grande distorção de idade-série no 6º ano. ”Há estado com 30% de distorção e outros com 5%. Precisamos fazer a criança ler e escrever na idade certa. Não posso deixar de falar da política do Ceará [do qual foi governador] e que tem sido referência. Porque se você não garante aprendizagem na idade certa, o futuro será prejudicado”, alertou Camilo Santana.

trículas em creche particular. Com isso, a rede privada cresceu 29,9% só em 2022, já a rede pública teve um aumento de 8,9%.

“Em todas as etapas, estamos voltando ao período pré-pandemia, tanto de aumento na matrícula de creches como no aumento da reprovação dos estudantes [no auge da pandemia, os estudantes foram aprovados automaticamente]”, destacou Carlos Moreno.

CRIANÇAS FORA DA ESCOLA, DIREITO VIOLADO

Entre os dados do Censo Escolar 2022, o que mais chamam a atenção é o de que 1,4 milhão de crianças e jovens entre quatro e 17 anos não frequentam a escola. “Precisamos de estratégias para garantir a frequência. É um desafio. Esses dados permitem construir estratégias com estados e municípios”, disse o ministro da educação, Camilo Santana.

Sobre como superar esse e outros obstáculos educacionais, Camilo foi direto ao colocar a importância dos regimes de colaboração* entre estados e municípios, uma vez que hoje faltam diálogo e cooperação.

“Nos últimos quatro anos, não houve o menor diálogo entre o MEC e governadores. Eu fui governador [do Ceará]. O governo passado não teve olhar que a edu-

cação merece neste país”, desabafou Camilo Santana.

Ele complementou: ”a estratégia em que não houver forte colaboração entre estados e munícios não terá força”.

ALERTA: EJA EM QUEDA

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) está em queda pelo menos desde 2018. “A matrícula precisa ser ampliada. Temos um desafio tremendo entre estados e municípios. Teve queda de matrícula, mas o país tem mais de 70 milhões de pessoas sem educação básica e que não frequentam a escola”, pontuou Carlos Moreno, diretor no Inep.

O diretor destacou que nos anos iniciais do EJA, a idade dos alunos é variada, de 20 anos a 70 anos. Só que nos anos finais, há uma concentração de jovens – provavelmente, aqueles que repetiram mais de uma vez e acabaram evadindo do ensino médio regular. “O estudante não sai na primeira repetição”, afirma Carlos.

*A revista Educação também tem podcast. Busque por Brasil Educação e escute o episódio ‘Regimes de colaboração: trabalho em rede que proporciona melhorias na educação’

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ENSAIO

A ‘saúde’ da educação

A íntima relação entre saúde mental e aprendizagem

| Por Adriana Fóz

Uma boa saúde mental pode predizer uma boa capacidade de aprendizagem. Mas, e se o estudante está deprimido ou com um rendimento abaixo do esperado? Estas são razões para se compreender tal relação, principalmente após anos tão difíceis e custosos à educação.

Falar sobre aprendizagem é sem dúvida falar também das dificuldades e suas variáveis. Mas, vamos descomplicar? Problemas de aprendizagem podem ser entendidos de várias formas. Aqui alguns pontos-chaves, a começar pela diferença entre uma mera dificuldade e um transtorno. Os transtornos de aprendizagem (TAs), que eram anteriormente chamados de distúrbios, são um grupo heterogêneo caracterizado por falhas inesperadas do indivíduo em adquirir, recuperar e/ou usar informações de modo competente e/ou esperado. O TA é um termo genérico referindo um grupo de desordens ou disfunções no sistema nervoso central, manifestadas por dificuldades na aquisição e no uso de habilidades, tais como falar, ler ou raciocinar, as quais não dependem, prioritariamente, do ambiente e tampouco se constituem como sinônimo de falta de inteligência.

Já a dificuldade de aprendizagem depende mais do ambiente. É quando uma regulação faz com que a dificuldade seja pontualmente superada. Por exemplo, uma criança trocou de lugar na classe e melhorou o desempenho, ou após mudar de escola recuperou os conteúdos e está mais engajada e feliz.

Importante saber que há mais alunos com meras dificuldades do que com um transtorno de aprendizagem. Por volta de 40% da população em idade escolar pode apresentar dificuldades de aprendizagem. Apenas entre 3% e 5% teriam um transtorno de aprendizagem, como apontam várias pesquisas. E vale a pena ressaltar que problemas de memória, de atenção e dificuldades no gerenciamento das interações sociais não são considerados TAs.

Se a criança, por exemplo, apresentar uma instabilidade na sua memória operacional ou memória de trabalho, não necessariamente configurará um caso de TA. Ademais, transtornos mentais também têm uma etiologia complexa, passando por questões que vão desde o nível genético, o momento histórico, as condições socioeconômicas, até as características da comunidade em que está inserida a criança. A susceptibilidade maior aos problemas de saúde mental tem

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a ver com a falta de suporte, a características da personalidade e temperamento, que podem influenciar no aparecimento da doença mental*.

Os profissionais da saúde e educação estão ‘observando’ o impacto da pandemia pelo SARS-CoV-2 e de outros fatores, tanto na saúde da mente quanto na aprendizagem dos alunos. Uma pesquisa da FMUSP em 2021 mostra que mais de um terço dos jovens (entre cinco e 17 anos) apresentavam níveis clínicos de sintomas ansiosos e depressão. Estes sintomas ‘conversam’ com as dificuldades de aprendizado, e não é de agora. No entanto, uma criança que apresenta um transtorno e é tratada pode gozar de saúde integral, aquela que transcende ao físico, envolvendo as emoções, a cognição, ou melhor, a mente e seu organismo.

O reconhecimento precoce e o encaminhamento a profissionais de saúde mental qualificados para diagnósticos e tratamentos baseados em evidências são necessários para alcançar o melhor resultado possível. Identificar qual questão se encontra mais na base, ou seja, perceber se a dificuldade na atenção se mostra mais prevalente do que a dificuldade para aprender a matemática. Isso exige muita experiência e comprometimentos dos especialistas em questão.

Criança que apresenta transtorno e é tratada pode gozar de saúde integral, a que transcende ao físico, envolvendo as emoções, a cognição, a mente e seu organismo

Melhorar os problemas da educação pública passa por conhecimentos de ordem sistêmica, de gestão e responsabilidades entre as partes. Tanto uma criança quanto um adolescente precisam ser vistos e atendidos considerando seus aspectos emocionais e mentais subjacentes ao pedagógico. O que aponta para a importância e necessidade de as escolas e os serviços de saúde mental apresentarem esforços para um maior cuidado e comunicação mais efetiva junto aos pais, professores e especialistas.

Afinal, da mesma forma que uma criança não aprende de ‘barriga vazia’, não aprende também com uma mente ‘cheia’ de medos, angústia, ansiedade, sem contar o estresse nocivo, o qual compromete, além da saúde, a capacidade para uma aprendizagem de acordo com o esperado para a faixa etária correspondente. Para tanto, indico o e-book Conversando sobre saúde mental e emocional na escola** - para baixar gratuitamente.

Da integralidade do aluno à necessidade da boa formação e condições de trabalho do professor, somente assim vislumbraremos uma educação brasileira mais ‘saudável’.

Ademais, cabe à escola orientar a melhor conduta para a aprendizagem escolar do estudante. Não há um único caminho ou tratamento mágico. Mas é possível escolher por condutas mais adequadas e reavaliar sempre que possível. No consultório temos recebido famílias e jovens em sofrimento pelo exagero de cobranças das escolas particulares. É claro que esta pode ser a realidade para famílias que fazem parte de menos de 2% da população.

Por outro lado, 50% dos estudantes com 15 anos de idade não atingiram o nível mínimo na última edição do Pisa (2018), quadro este agravado após a pandemia. Não entro no mérito do descaso com a educação básica pelo anterior governo, contudo, meu intuito é sensibilizar para os entendimentos da íntima relação entre a saúde mental e a escola.

*Em janeiro do ano passado, a autora conversou em live com Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência da USP. Assista em https://bit.ly/40LKprg

**E-book resultado da parceria entre Fundación Mapfre e a Secretaria da Educação do Estado de SP por meio do CONVIVA, com a realização técnica da Unifesp e NeuroConecte: www.neuroconecte.com/livro

Adriana Fóz, neuropsicóloga e diretora da Neuroconecte

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O plágio apaga a voz do aluno

A escola precisa ensinar o aluno a pesquisar e a interpretar os conhecimentos adquiridos – ainda mais em tempos de fake news. A cópia pura e simples para um trabalho elimina a criatividade e possibilidade de dialogar

Apesquisa sempre esteve presente na escola. Desde a época das exaustivas cópias em folhas de papel almaço, quando o que valia era a extensão do trabalho, a letra legível, o capricho da capa e a pontualidade na entrega. Pouco ou nenhum interesse havia se algo daquele extenso trabalho havia feito algum sentido para o aluno. Se havia aprendido a matéria, tampouco aprendido a pesquisar. Segundo Wagner Dias, doutor em didática pela Université Laval, no Canadá, os estudantes não recebem as orientações adequadas para a realização de uma pesquisa, tampouco o acompanhamento necessário, como se já soubessem pesquisar. Muitas vezes, a pesquisa é um dos instrumentos de avaliação do bimestre, ou uma complementação do conteúdo ministrado em sala de aula. Há casos em que é solicitado para que o aluno tenha contato com um tema, um assunto que o professor não teve tempo hábil para desenvolver em sala, explica.

Wagner Dias: O problema do plágio escolar está no apagamento da voz do aluno

Andressa, de 15 anos, aluna do 1º ano do ensino médio de uma escola particular em São Paulo, queixa-se da falta de planejamento dos professores na escolha dos temas a serem pesquisados. Ela explica que a maioria dos alunos consulta as mesmas fontes e os trabalhos apresentados ficam muito parecidos, o que torna o conteúdo desinteressante e sem sentido. “O professor precisa saber se o tema da pesquisa possibilita que os alunos percorram caminhos diferentes, que apresentem olhares variados, para que haja troca e complemente o que já foi estudado em sala e que assim percebam o sentido de pesquisar”, reflete. Wagner, que também é doutor e mestre em ciências humanas/educação pela PUC-Rio, afirma que quando o aluno pesquisa algo que é do seu interesse, a tendência é que se envolva de modo mais rico no processo, por isso sugere que professores proponham temas sobre os quais os alunos tenham curiosidade. “A pesquisa é muito mais interessante quando visa responder a uma dúvida real do aluno e não apenas cumprir uma tabela curricular”, ilustra.

Wagner ensina uma estratégia para que o aluno não se limite apenas a copiar e colar o texto na hora de pesquisar, que é exigir que ele se posicione criticamente sobre o assunto. “Tenho defendido a ideia de que a pesquisa escolar tenha como objetivo primeiro despertar no aluno um senso de curiosidade e de criticidade que fará com que ele desenvolva seus raciocínios com base nas fontes consultadas”, aponta Wagner, que se dedica ao estudo do plágio acadêmico e às questões relacionadas à formação de professores, autoria, leitura e escrita na escola.

PLÁGIO ESCOLAR

A questão da cópia/plágio no ensino fundamental e médio não parece ser um problema. Para Wagner, a questão do plágio escolar está no apagamento da voz do aluno,

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que deveria ser autor de seus discursos, camuflando-se e tornando-se mero repetidor de ideias. Estudantes copiam porque não sabem fazer pesquisa, mudam a forma de escrever, sem citar de onde retiraram a informação, a famosa paráfrase, diz. “O que os alunos não sabem é que toda ideia oriunda de outrem, ainda que reescrita com suas próprias palavras, deve ser referenciada.”

De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ensinar a pesquisa na escola implica o desenvolvimento da própria intelectualidade, de um exercício crítico-reflexivo que demanda uma aprendizagem ativa e, assim, exige daquele que pesquisa as capacidades de analisar, comparar, refletir, levantar hipóteses, estabelecer relações, sintetizar, generalizar etc. Nessa perspectiva, é preciso que seja compreendido também como uma aprendizagem a ser desenvolvida. O mais importante é que os estudantes se reconheçam não como meros consumidores de conhecimento, mas como sujeitos capazes de produzi-lo também.

A aluna Andressa conta que na sua escola há professores que dão nota máxima mesmo quando a pesquisa está quase idêntica ao site ou livro pesquisado, mas há outros que exigem que o aluno tente escrever com suas próprias palavras. Aliás, tema delicado, assim como seus colegas de classe, Andressa assume que escrever um texto 100% seu é ainda muito difícil. “Plagiar tira do estudante a possibilidade de criar, de dialogar, de construir, com base no que leu de terceiros e, ao professor, cabe verificar o plágio, pois é um ato educativo”, afirma Wagner.

NUM CÍRCULO VICIOSO, PLÁGIO

CHEGA À UNIVERSIDADE

O aluno chega ao ensino superior com dificuldade em interpretar e produzir textos, escrever com clareza e objetividade. É necessário fazer um levantamento dos conhecimentos prévios. O que ocorre é que muitos estudantes prosseguem nesse processo, vão sendo aprovados e recebem um diploma, incapazes de se expressar com as próprias palavras.

Fabio Cunha, professor de metodologia da pesquisa no Centro Universitário Fieo (Unifieo), encontra no ensino superior uma defasagem enorme nos alunos em relação à pesquisa. “Na universidade, as aulas de metodologia da pesquisa partem do básico, pois os alunos não sabem pesquisar e inserir o conteúdo num trabalho de forma a não ser tornar plágio.” O professor explica que há vários aspectos envolvidos, desde a leitura, interpre-

A estudante Andressa relata que a maioria dos alunos consulta as mesmas fontes e os trabalhos apresentados ficam muito parecidos

“Na universidade, as aulas de metodologia da pesquisa partem do básico, pois os alunos não sabem pesquisar e inserir o conteúdo num trabalho de forma a não ser tornar plágio”, diz Fabio Cunha

tação de texto até a síntese com o discurso do próprio discente. “Percebemos que os alunos que gostam de ler desde a época da escola, independentemente do gênero literário, são os que no decorrer do ano, já na graduação, possuem um desempenho melhor nas pesquisas, tanto na interpretação dos textos quanto na escrita.”

Ele acredita que a escola deveria introduzir os conceitos básicos da pesquisa para que ao chegar à universidade o aluno pudesse partir para a prática da pesquisa científica, cuja base é a mesma e é utilizada em toda a sua trajetória acadêmica.

É papel do professor ensinar o aluno a discernir o que é um site confiável e técnico de um site de opiniões, sem argumentação científica crível, que os conteúdos e materiais disponibilizados na internet não são públicos, que possuem um dono e que é preciso respeitar autorias, que o roubo de ideias, grosso modo, é crime, afirma Wagner.

“O desafio é fazer com que a pesquisa encante o aluno. Precisamos discutir mais sobre o tema, oferecer formações continuadas para ensinar a pesquisar; preparar os futuros professores para lidar com o ensino da pesquisa na escola. O plágio, ou a cópia, é apenas uma ponta deste iceberg”, finaliza Wagner.

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MARCA PENTACAMPEÃ.

PELO 5º ANO, A MARCA MAIS LEMBRADA

ENTRE OS SISTEMAS DE ENSINO DO BRASIL.

KÁSSIA EDUCAÇÃO FÍSICA - UEPG

FELIPE CASTANHARI EMBAIXADOR DO FTD SISTEMA DE ENSINO LEONARDO ENGENHARIA UFAL E UFV

Crise muda cenário das escolas particulares

Fechamentos, vendas de escolas e redução de turmas fazem parte da realidade de diversas instituições do Brasil nos últimos dois anos. Dirigidas por famílias ao longo da história, a economia altera esse panorama

Com a voz emocionada, a professora Renata Batista utiliza comparações da biologia para descrever a gestão de uma instituição de ensino. “A escola é um organismo sensível, que levou muito tempo para gestar e crescer. Se não cuidarmos atenciosamente de cada detalhe, ela adoece e morre.” Renata é a mantenedora do Colégio Educar, de Guarulhos, SP, que recebe estudantes do ensino infantil ao ensino médio, e se viu numa situação desafiadora nos anos de 2020 e 2021, período das fases mais intensas da pandemia da covid-19.

A pandemia evidenciou uma crise que atingiu a educação brasileira de um modo geral, da básica à superior. Nas escolas que sempre foram dirigidas por famílias, o fundador legava aos seus descendentes, que tratavam de fazer crescer, ou às vezes acabar com o negócio. Por exemplo, a Universidade Nove de Julho, Uninove, nasceu na zona norte da cidade de São Paulo como uma escola de datilografia. Hoje é uma gigante.

Mas os colégios de educação básica enfrentam batalhas em várias frentes. A queda da natalidade, a concentração com vários grupos adquirindo escolas de tamanho médio visando o ganho em escala, e a pressão para segurar a correção das mensalidades. O objetivo agora é chegar aos números de alunos da pré-pandemia. As creches e pré-escolas privadas saíram de 2,5 milhões de alunos em 2019 para 1,9 milhão em 2021. O levantamento em 2022, no entanto, mostra um caminho para a recuperação, com aproximadamente 2,4 milhões de alunos registrados, segundo o Censo Escolar, elaborado pelo Inep.

Não foi uma situação isolada. As consequências negativas para o processo educacional, assim como a disseminação do coronavírus, foram globais. Segundo da-

Bruno Eizerik, da Fenep, analisa que assim como aconteceu no ensino superior, grandes grupos educacionais estão de olho na compra das instituições de educação básica

dos da Unesco, a pandemia afetou as rotinas de mais de 1,5 bilhão de estudantes no mundo. Um dos mais tradicionais colégios do país, o Liceu Coração de Jesus foi fundado em 1885 em São Paulo com o apoio da princesa Isabel. Na unidade estudaram, por exemplo, o ator Grande Otelo e o cantor Toquinho. O colégio chegou a ter mais de 3.000 alunos e ofereceu até mesmo cursos de graduação, mas há cerca de 20 anos sofre com a insegurança do local. Localizado na Cracolândia, na capital paulista, não restou outra alternativa. Fechou suas portas este ano.

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GESTÃO
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No Brasil, a interrupção necessária das aulas presenciais, a migração de parte dos trabalhadores das famílias ao regime de home office e a insegurança econômica familiar tiveram reflexo no universo educacional, com o fechamento de unidades, vendas de escolas e redução no número de turmas. O impacto foi ainda maior na educação infantil.

Movimento semelhante também é visualizado no número comparativo de estabelecimentos desse mesmo perfil. Em 2019, o país compreendia 114,8 mil escolas de educação infantil. Em 2021, no auge da pandemia, o cenário já mostrava uma redução para 112,9 mil delas. O Censo 2022, por sua vez, revelou crescimento, com um total de 113,4 dessas instituições.

Como consequência dos mais de 12 meses sem permissão para realizar aulas presenciais nas escolas, por conta da covid, cerca de 30 instituições privadas fecharam as portas na capital baiana, segundo informações do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Esta-

do da Bahia (Sinepe). O porta-voz da entidade que representa escolas particulares no estado, Jorge Tadeu, diz que a pandemia foi o estopim que explodiu nas que já enfrentavam dificuldades. Ele confirma que as unidades de ensino de pequeno e médio porte, focadas no ensino infantil, lideram a lista das mais atingidas pelo cancelamento de matrículas no período de pandemia.

CENÁRIO AINDA INCIPIENTE

Na visão do presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Bruno Eizerik, o que o cenário educacional infantil apresenta no país é algo já consolidado no ensino superior. “É um processo que ainda está começando na educação básica, mas que avançou muito nas faculdades e universidades.” O professor refere-se à tendência de grandes grupos de educação adquirirem a operação de outras unidades. “O mercado é assim, não existe uma proibição, está ligado à oferta e à procura – no ensino superior, o cenário já

Evolução do total de matrículas na educação básica por rede de ensino - Brasil 2018

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Fonte: Inep/Censo Escolar 2018-2022 8.995.249 39.460.618 48.455.867 2018 2019 2020 2021 2022 Privada Pública Total 38.739.461 38.504.108 38.532.056 38.382.028 9.134.785 8.791.186 8.136.345 9.000.046 47.874.246 47.295.294 46.668.401 47.382.074
- 2022

GESTÃO

está consolidado onde o que se vê é um grande comprando outro grande”, ressalta.

Bruno integrou um movimento organizado pela abertura das escolas com atuação nos diversos estados da federação, buscando que os respectivos órgãos governamentais conduzissem essa retomada das atividades – ele lembra que o primeiro a aderir foi em Manaus, e os últimos, as instituições de Minas Gerais.

Outro ponto que a Fenep observa no período da pandemia relaciona-se às questões financeiras. “Foi um momento de cautela, em que orientamos os gestores a não concederem descontos lineares, ou seja, de valores idênticos para todos de uma turma, mas que a realidade de cada estudante fosse analisada”, diz. Segundo o dirigente, existem gestores que, até agora, estão se recuperando dos efeitos de reduções excessivas das mensalidades.

O presidente da Associação Brasileira de Escolas Particulares (Abepar), Arthur Fonseca Filho, concorda com a análise. “Nossos associados não sofreram consequências maiores. Quem teve mais problemas foi a educação infantil, numa faixa econômica menor”, explica.

Ao fazer uma análise na revista Ensino Superior, o cientista digital e professor Maurício Garcia lembra que a população em idade universitária está decrescendo, “as matrículas no ensino médio em queda, financiamento estudantil limitado, queda nas ações das empresas de capital aberto, guerra de preços se acentuando. Ou seja, o cenário para o ano deverá seguir pressionando as instituições, que continuarão a ser impactadas com a redução da demanda e a queda nas receitas”.

DESESPERO E ESVAZIAMENTO

Uma ‘chuva’ de inadimplentes, revolta de pais e resistência aos processos digitais para o ensino remoto. Essas são algumas das agruras vivenciadas pela mantenedora Renata, do Colégio Educar, durante os meses mais duros do isolamento social. “Vivemos um desespero que levou ao esvaziamento da educação infantil e das séries iniciais, principalmente até o primeiro ano”, conta.

Outro obstáculo relatado foi a falta de suporte para a operação e prática docente naquele momento. “Inúmeras pessoas e empresas fazendo mais do mesmo, de forma simples e mecânica; havia falta de experiências de sucesso, pois foi um contexto novo para todo mundo.”

Hoje, quem passa pela instituição no bairro Jardim Presidente Dutra ouve os sons de uma escola viva, evidenciada pelo barulho das vozes de seus alunos. Mesmo com a redução de turmas que foi registrada no epicentro da crise sanitária, continuou a funcionar. “Quem segurou para mim esse período foram os matriculados do fundamental 2 e do ensino médio; ter prédio próprio também ajudou, pois acredito que, caso não fosse, também teria fechado as portas, pois perdemos muitas salas de aula”, relata.

A mantenedora fala com alívio e a emoção de quem, como ela mesma disse, conseguiu resistir. Reflete ainda sobre as palavras que ouviu na recente visita a São Paulo do pesquisador português António Nóvoa: “Não tem lugar como a escola – é insubstituível; e a pandemia só revalidou o quanto esse chão escolar é importante na vida desses estudantes”, conclui.

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“Ter prédio próprio ajudou na superação [da crise]”, afirma Renata Batista, do Colégio Educar Fotos: Divulgação
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FUTURO DA ESCOLA

Capacitar os jovens para reconhecerem suas emoções

Ao buscar um olhar de cuidado sensível aos alunos, instituição baiana considera a necessidade da valorização do ser humano

Ao longo dos anos, a educação começou a entender que, além de formar o aluno com conhecimentos básicos e conteúdos fixos, é preciso pensar em sua formação como ser humano. Com isso, há modelos de ensino que procuram desenvolver novas habilidades nos jovens e assim despertar o potencial e protagonismo de cada um. Atualmente, vale ressaltar a necessidade da atenção e cuidado ao socioemocional e à saúde mental dos estudantes.

O Colégio Guadalupe, na Bahia, trabalha com o Sistema de Orientação Educacional e Psicológica (SOEP), um serviço que realiza atendimento a alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem e/ou que estão passando por dificuldades pessoais. Com 53 anos de história, a aproximação com os psicólogos em busca de oferecer um melhor apoio aos seus alunos é prática antiga da instituição.

“O trabalho do psicólogo na escola sempre foi de acolher e atender às necessidades dos alunos, porque eles estão em um processo de constante mudança. Você percebe muitas inseguranças, incertezas, preocupações e medos vindos deles. O papel do psicólogo, o papel do SOEP na escola sempre foi de escuta e de acolhimento. Mais tarde ele foi se especializando e hoje também temos um cuidado muito específico com as crianças com necessidades educativas especiais”, explica Lizzia Pereira, diretora-geral do colégio.

SISTEMA DE ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL E PSICOLÓGICA

Lizzia atua no cargo de direção há 22 anos, porém, está no colégio há mais de 40 anos, uma vez que a instituição foi fundada por seus pais e hoje é dirigida pela família. No cargo de direção pedagógica está sua filha mais nova, Laiz Pereira, que além de pedagoga também é psicóloga e tenta atuar diretamente no SOEP com o psicólogo responsável.

No projeto Café com Letras, alunos se expressam por meio das artes

Série apoiada pela
Gil Andrade

Laiz conta que no caso do atendimento voltado a alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem, o sistema realiza um mapeamento individual. Caso seja identificada alguma necessidade educativa diferenciada, esse aluno é encaminhado a um especialista externo e a escola passa a preparar o professor para conseguir lidar com ele e com a família da melhor forma possível, pois acreditam na inclusão e na importância de o aluno frequentar a escola regular.

“A partir do mapeamento, a gente vai perceber como esse aluno aprende, orientando os professores a tirarem o máximo de aproveitamento, incentivando-o e o trazendo para próximo, adaptando nossos materiais. Também convidamos a família para entender o que está acontecendo na vida de seu filho, que muitas vezes precisa de atenção especial ou tem alguma dificuldade. Pois, muitas vezes, as famílias não identificam que aquela dificuldade pode ser muito bem tratada por um acompanhamento fora [e dentro] da escola”, detalha Laiz, que atua no colégio há 17 anos, sendo dois anos como diretora pedagógica.

O atendimento do SOEP é voltado aos estudantes, porém, segundo Laiz, foi contratada “uma equipe de meditação de mindfulness, que é uma metodologia extremamente ligada à psicologia cognitivo-comportamental e ao gerenciamento das emoções [para os educadores]”. Uma ação realizada no período da pandemia, mas que será continuada.

A POTÊNCIA DAS ARTES

Além do SOEP, o colégio possui diversos projetos que procuram incentivar os estudantes a conseguirem se expressar, por exemplo, o Café com Letras. O que começou com uma ação em que os alunos podem falar sobre um tema específico por meio da poesia, se tornou um evento anual voltado apenas para os alunos e professores. Agora, além de poesia, eles podem desenvolver, a partir do tema estabelecido no ano, trabalhos com música, teatro, dança e outros tipos de artes.

“Por que os pais não podem ser convidados? Porque às vezes eles intimidam. As crianças e os jovens ficam mais tímidos com sua presença e na escola eles se comportam de outra forma… Eu digo ser um momento intimista, em que eles se apresentam para a escola não somente como estudantes, mas como jovens, como alguém que está na sociedade, que está vivendo e sentindo suas próprias dores. No ano passado teve um poema lindo que foi apre-

Fortalecimento emocional dos alunos e educadores é a aposta da diretorageral Lizzia Pereira

O colégio acredita na inclusão e na importância de o aluno frequentar a escola regular, defende a diretora pedagógica, Laiz Pereira

sentado que falava da valorização da mulher, do espaço de que a mulher precisa e vem buscando encontrar na sociedade e no mercado de trabalho”, diz Laiz Pereira.

A ESCOLA PRECISA ACOLHER O DIVERSO

O colégio possui 650 alunos e um total de 64 educadores, tendo uma mensalidade média entre 700 e 800 reais, e oferece todos os níveis da educação básica em período regular. Segue uma educação sociointeracionista baseada no tripé da teoria de Lev Vygotsky (aprendizagem a partir da convivência), de Jean Piaget (fases de desenvolvimento da criança) e de Henri Wallon (afetividade). As diretoras acreditam que o futuro da educação está na valorização do ser humano e nesse cuidado sensível com os alunos. “Eu entendo que a educação tende a ficar mais aberta. Os muros das escolas precisam ser mais rebaixados. A escola precisa acontecer em todo lugar”, apresenta Laiz.

“Temos apostado no fortalecimento emocional, tanto dos alunos quanto dos professores. Eu, sinceramente, acredito que à medida que a educação for capacitando pessoas que tenham um reconhecimento das suas emoções, do seu poder de criação, a própria educação se torna melhor, mais fluida, capaz de estar em vários lugares e sair das caixinhas de português, matemática, história e ir para algo mais abrangente. Acredito em formar cidadãos que estejam prontos para interagir com várias frentes, várias tecnologias, metodologias e que tenham empatia em vários campos, para que o aluno possa dar conta das diversas aprendizagens”, conclui Lizzia.

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GUERRA BRASILEIRA

“É tiro, tia.” A rotina de violência imposta às escolas em áreas

de risco

Entre alunos expostos e professores adoecidos, o fracasso duradouro de uma política de segurança pública

Por Ana Gabriela Nascimento, do Rio de Janeiro

Em anos letivos com conflitos, a ausência de professores aumenta em 5,8%, indica estudo

Shutterstock

17 de outubro de 2009 seria um sábado de aulas comum para mim e meus colegas de ensino médio caso um helicóptero da Polícia Militar não tivesse sido abatido a tiros no Morro dos Macacos, zona norte do Rio de Janeiro, naquele dia. A cerca de 5 km de onde estudávamos, no Colégio Pedro II em São Cristóvão, o confronto não podia ser ouvido da nossa sala de aula, mas foi suficiente para que um inspetor batesse à porta e avisasse o que tinha acabado de acontecer:

— Derrubaram um helicóptero da PM.

Quem vive fora do Rio pode não entender exatamente a relevância dessa informação, mas se aprende cedo as implicações de um ataque desse tipo. A morte de um policial significa que vai haver uma reação. A morte de alguns traficantes e milicianos, também. Em termos simples: é guerra. Só que o campo de batalhas é a cidade, especialmente as favelas e seu entorno. Ali mesmo, no meio de casas, comércios, postos de saúde. E escolas.

Se aquele sábado de aulas de 2009 parece tão fresco na memória é porque uma colega de sala começou a chorar copiosamente. Talvez por morar naquela favela, ou por ter pai policial, e também porque foi a primeira vez, em 10 anos, naquela escola, que o tema da violência atravessou seus enormes portões de forma tão crua. A informação precisou passar pela equipe de segurança, transpor muros altos, salas de arte, música, laboratórios de ciências e quadras poliesportivas para interromper a explicação da professora e suspender aulas de todas as turmas. Em um colégio público de qualidade, cujos direitos à vida e à educação deveriam ser respeitados, o perigo de confrontos armados ficava do lado de fora. É o básico, a alunos de todas as escolas, mas virou exceção.

ESTADO PRECISA DESNATURALIZAR A VIOLÊNCIA

“Estava dando aula e ouvimos barulho de tiro. Nesses casos, a recomendação é sair da quadra esportiva e ir para a parte interna. Vimos o helicóptero sobrevoar a escola, mas isso fazia parte da rotina, sempre víamos. Só que, nesse dia, o barulho da hélice foi ficando cada vez mais alto, mais perto, até que eles (policiais) pousaram na quadra, desceram do helicóptero e seguiram para uma parte descampada que dá acesso à favela para seguir trocando tiros”, conta a professora de educação física do município do Rio, Laís Clímaco.

Esse episódio com helicóptero, diferente do primeiro, aconteceu em uma escola da Praça Seca, zona oeste,

entre 2017 e 2018, e foi um dos mais assustadores da trajetória da professora entre muitos outros que já presenciou em uma década como concursada da prefeitura. O bairro voltou a viver dias consecutivos de conflitos entre o final de 2022 e o início deste ano. “Não vejo melhora. As coisas ficam calmas por um tempo. Achei que tinha melhorado e agora voltou novamente”, lamenta Laís.

No mesmo 2017, outra aula de educação física, em um ponto oposto da cidade, foi interrompida, mas com uma consequência brutal. Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, foi atingida por tiros na quadra da Escola Municipal Jornalista e Escritor Daniel Piza, em Acari, na zona norte, e morreu. O laudo da perícia confirmou que as balas partiram da arma de um policial. Os pais de Duda, como era chamada a menina, um pedreiro e uma auxiliar de serviços gerais, seguem cobrando justiça do estado.

ESCOLA ELABORA PROTOCOLO DE GUERRA EM RAZÃO DOS TIROTEIOS

Blindagem de edifícios, estudo balístico, procedimentos para evacuação do prédio. Todos esses termos podem parecer retirados de uma rotina militar em circunstância de guerra, mas, na verdade, fazem parte do cotidiano de um colégio de ensino médio localizado em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), unidade técnico-científica da Fiocruz, instituição pública federal de ensino e pesquisa, precisou elaborar um Plano de Contingência para o caso de conflitos armados no entorno.

“O prédio tem três pavimentos e cada um deles conta com um responsável. No caso de tiroteios, conduzir todos os presentes no seu andar para o centro do prédio, que é o local mais seguro de acordo com um estudo balístico conduzido pela equipe de segurança”, descreve o professor de história José Mauro da Conceição. Neste contexto de risco de vida, ele ensina futuros técnicos em saúde sobre a relação da humanidade com a doença ao longo do tempo, além da história do SUS e de outros sistemas de saúde.

Elaborada em 2017, a cartilha com o Plano de Contingência foi uma resposta à frequência e à intensidade das operações policiais que a favela de Manguinhos vivia àquela altura. “A interrupção da circulação de trens (que dão acesso à escola), o sobrevoo de helicópteros, as rajadas de armas pesadas e o barulho de bombas que pareciam de filmes de Vietnã eram nossa rotina”, comenta José, que também já foi diretor de colégio estadual em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro. Lá, no turno da noite, ele assistiu e

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GUERRA BRASILEIRA

mediou situações de violência contra os estudantes.

“Sei que situações como essas não são normais, mas é a minha normalidade. Não consigo mais sentir medo quando acontece um tiroteio, nem fico surpreso quando sei de um assassinato, como aconteceu com uma aluna em São Gonçalo. É tanto tempo vivendo neste estresse que naturalizamos. Chega a um ponto que não te causa mais espanto, você endurece”, revela o ex-diretor.

ESTRESSE, ANSIEDADE E DEPRESSÃO ASSOLAM TRABALHADORES DA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Apesar dessa constatação, José identifica que um dos maiores danos causados por esses conflitos é o adoecimento psicológico dos trabalhadores da educação. Ele contou que em um dos tiroteios entre policiais e traficantes em Manguinhos, uma bala entrou pela janela da escola e ficou cravada na parede, no posto de trabalho de uma funcionária, na altura de sua cabeça. Ela estava de férias na ocasião. Quando retornou e viu a marca do tiro, teve uma crise nervosa. “Ela chorava imaginando a possibilidade de não estar em folga no momento, precisou ser atendida no posto médico e, como muitos outros, deixou a escola um tempo depois. Aquilo acabou com ela”, relembra José.

O prolongamento de situações como essas tem consequências ainda mais sérias na vida dos docentes. Em sua pesquisa de mestrado Violência armada e escola pública: desafios à atuação do professor em favelas do Rio de Janeiro, Luana Caroline dos Santos entrevistou trabalhadores de colégios localizados no entorno de comunidades em diferentes pontos da capital. Os prejuízos à saúde mental desses profissionais são incalculáveis.

“São muitos casos de depressão, ansiedade, estresse. Não é fácil passar por isso e seguir até o fim da tarde dando aula. Ver essa realidade e seus alunos na-

“Estava dando aula e ouvimos barulho de tiro. Nesses casos, a recomendação é sair da quadra esportiva e ir para a parte interna”, recorda a professora Laís

quele contexto gera muita tristeza. Mas os professores acabam se adequando para poder seguir em frente com seu trabalho. Eram perceptíveis o amor e a dedicação que todos manifestavam pelo magistério, do mesmo modo que eram explícitas as enormes dificuldades a serem superadas”, explica Luana, que além de mestre em educação, cultura e comunicação em periferias urbanas pela UERJ, também atua como pesquisadora no Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (NUPEC/EDU-UERJ).

TIROS EM TODO CANTO: ALUNOS DE ÁREAS CONFLAGRADAS NÃO

TÊM DIREITO À PAZ

“No meu primeiro ano como concursado, os confrontos estavam muito intensos. Nunca esqueço o dia em que cheguei à escola, estava tendo operação policial e um aluno de seis anos me falou: ‘tio, tem que vir pelo cantinho!’. Ele estava me alertando sobre como caminhar pra me proteger de possíveis tiros. Mas ele ainda estava aprendendo a falar, era muito pequenininho”, conta o professor de educação musical da prefeitura do Rio, Lucas Torres. Ele dá aulas em Senador Camará, zona oeste. “Nesse dia, eu chorei muito”, completa.

Segundo os professores com quem a repórter conversou, a maioria dos estudantes que vive em áreas cujos confrontos armados são frequentes não demonstra tanto pavor com a situação quanto eles, educadores. A escola se torna uma extensão do que vivem cotidianamente em outros espaços. “A gente se assusta muito mais do que os alunos. Eles devem ver muito isso (tiroteios) perto de casa. Quando dá um disparo e olho assustada pros alunos, eles falam com naturalidade: ‘é tiro, tia’. São desde cedo impedidos de terem uma rotina normal de criança”, reconhece Laís.

Para além dos riscos à vida e à integridade, esses alunos ainda sofrem outras consequências da violência em seus processos de aprendizado. Em anos letivos com conflitos, a ausência de professores aumenta em 5,8%. As escolas que vivenciam violência em dias contínuos têm chances 12% maiores de ter um diretor com menos de dois anos no cargo. Os números são da Nota Técnica da Fundação Getulio Vargas (FGV) Tráfico de drogas e desempenho escolar no Rio de Janeiro, elaborada por Joana Monteiro e Rudi Rocha. A ausência de professores e a descontinuidade das gestões espelha a dificuldade de elaborar projetos de longo pra-

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Blindagem de edifícios, estudo balístico, procedimentos para evacuação do prédio. Todos esses termos podem parecer retirados de uma rotina militar em circunstância de guerra

zo para os estudantes em decorrência do ambiente violento em que a comunidade escolar está inserida.

Há seis anos como professor em Senador Camará, Lucas enxerga também outros efeitos indiretos que a brutalidade do bairro gera dentro do colégio. “Acredito que o entorno violento cria uma tendência à violência até nas práticas cotidianas, mas com verniz escolar. Castigos como deixar o aluno em pé por longos períodos, gritos para dar ordens e turmas em filas com as mãos para trás e a cabeça baixa são coisas que já vi”, comenta o docente.

ROTINA DE CONFRONTOS

COMPROMETE O APRENDIZADO

Para além de todas as tensões e dificuldades, o efeito colateral da realidade vivida nessas escolas é uma

rotina de suspensão de aulas. Em dias com conflitos intensos ou já previstos, diretores de colégios das diferentes áreas da cidade, reunidos em grupos, ganharam recentemente maior poder de pressionar as gerências regionais a conceder o fechamento das escolas, segundo os professores. A comunicação via aplicativo de mensagens tanto para os trabalhadores quanto para as famílias dos alunos aumentou, em algumas escolas, a previsibilidade do cancelamento de aulas.

“Foi um avanço minúsculo, mas diminuiu um pouco o risco de sermos surpreendidos com portões fechados em meio a um confronto ao chegar para dar aulas, como acontecia”, comenta o professor Lucas. “Foi um ganho da junção de diretores organizados. É muito difícil ter qualquer esperança, mas acredito nessa força do coletivo como forma de propor mudanças”, explica.

O fracasso da política de segurança pública brasileira, em especial no Rio de Janeiro, vai para muito além dos muros das escolas. É sistêmica, basilar. Mas antes de resolvê-la é impraticável vislumbrar melhorias substanciais no aprendizado desses alunos que, no meio da aula, a qualquer momento, podem ter que se abaixar e correr para os corredores para se proteger de bala.

“Não podemos naturalizar que essas instituições, e nem qualquer outro lugar, estejam sujeitas cotidianamente à violência armada. É preciso ter políticas públicas efetivas que preservem a segurança dos moradores e da comunidade escolar”, defende a pesquisadora Luana.

*A reportagem começa na primeira pessoa por conta de a lembrança ser da própria repórter.

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Morro dos Macacos, comunidade a qual a repórter relembra o caso do helicóptero da PM derrubado. Imagem de 2014

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LINGUAGENS INFANTIS

Um olhar para a criança

Em suas múltiplas expressões, a linguagem infantil requer a observação atenta da professora(o), que se realimenta dessas informações para aprimorar sua prática docente e dar voz às culturas e histórias das crianças

| Por Maria Fernanda Ziegler da revista Educação Infantil*

Acriança tem 100 mãos/100 pensamentos/100 modos de pensar /de jogar e de falar”, escreveu Loris Malaguzzi, idealizador da pedagogia de Reggio Emilia, na Itália. Nesse sentido, um desenho, uma brincadeira, um movimento, nada é descartável aos olhos do professor. Especialmente para as crianças que ainda não falam ou que não se expressam com clareza é extremamente importante que o professor esteja atento a diferentes manifestações. E a partir daí, ele pode planejar as atividades em sala de aula”, diz Heloísa Helena de Azevedo, professora do programa de pós-graduação em Educação da PUC Campinas (SP).

Mais do que o olhar, porém, Malaguzzi preferia a analogia com outro sentido: a escuta. Um exercício que significa voltar a atenção para o que a criança é capaz de fazer, sem qualquer estrutura predeterminada de expectativas e normas. Saindo do ‘adultocentrismo’ e colocando a criança como protagonista do processo educativo, a escuta faz com que o professor tenha “um projeto centrado no esforço de compreensão da criança nos seus modos de ser, estar e relacionar-se”, descreve Marina Marcondes Machado em Merleau-Ponty & a Educação (Autêntica Editora, 2010). Para aproximar-se da criança, o filósofo menciona a necessidade de uma “nova linguagem” que revele as relações criança-corpo, criança-outro, criança-espaço, criança-tempo, criança-linguagem, criança-cultura.

A CONSTRUÇÃO DO OLHAR

Como construir essa linguagem?

Como compreender os que ainda não se expressam em palavras? O primeiro ponto é o professor se perguntar: que imagem te nho dessa criança?

“Quem sou eu?! Essa é a frase que a criança constantemente faz a si mesma, aos seus pares, aos adultos. Garantir que a criança vá descobrindo esta imagem de si a partir dela e dos outros é a possibili dade de oferecer um sentido de si próprio”, descrevem Maria Carmen Silveira Barbosa e Paulo Sergio Fochi em O desafio da pesquisa com bebês e crianças bem pequenas

O desafio é sentido por todos que se propõem a realizar uma prática pedagógica ‘em relação’ com a criança. “É muito difícil observar. É preciso treinar o olho do professor e usar aquilo que aprendeu em sua formação”, diz Heloísa.

O RECORTE DA OBSERVAÇÃO

Qual o ponto de partida para essa observação, então? O fato de não ter expectativas preconcebidas e se concentrar no que ocorre na interação com as crianças não significa falta de planejamento. Pelo contrário. O pretenso vazio é preenchido pelo recorte que o professor dará à sua proposta de observação. O que irei observar? Com qual propósito? De acordo com essas respostas é possível criar um esquema de observação por temas, atividades, crianças – diário, semanal ou mensal.

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“O professor precisa criar condições para ir observando e também conhecer a capacidade de exploração e interação das crianças”, afirma Maria Clotilde Ferreira, professora emérita da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP).

Dessa forma, é preciso que o professor se organize, tanto em relação às atividades quanto na estruturação dos espaços. Clotilde afirma que, ao criar contextos favoráveis para a exploração infantil em pequenos grupos, o professor pode passear entre as crianças, observá-las e também interagir com os pequenos. No caso dos bebês, construir cenários para que eles brinquem e interajam entre si também é fundamental.

Embora não haja receita certa e errada sobre como dosar observação e interação, é possível fazer as duas coisas. Para isso, é preciso que o professor tenha a consciência de que ele pode aprender com a criança, saindo do papel de quem vai apenas ensinar para aque-

O que irei observar?

Com qual propósito?

De

acordo

com essas respostas é possível criar um esquema de observação por temas, atividades, crianças – diário, semanal ou mensal

le de quem também vai aprender. “Assim é possível ver coisas fenomenais. Crianças com menos de um ano interagindo com outras crianças, demonstrando solidariedade”, diz a professora da USP.

A TRINDADE

Observar, se relacionar, registrar. Essa é a tríade da abordagem da documentação pedagógica de Malaguzzi. Em Reggio Emilia, toda produção infantil é registrada e considerada importante. Os trabalhos do dia são expostos de maneira a formar uma memória sobre a experiência, tanto para os professores quanto para pais e crianças. A documentação coloca o professor na posição de pesquisador e é o caminho para tornar visível a produção e a expressão infantil. Significa, em última instância, valorizar esse saber e acreditar que ele vai realimentar a prática docente. Obviamente, os modos de fazê-lo são diversos, e devem se adequar a cada contexto.

Em sua tese de mestrado, defendida pela USP, a professora de educação física Deise de Oliveira Rezende observou 45 crianças de quatro a cinco anos. Sua conclusão é que, ao olhar as culturas infantis, os professores podem melhorar sua própria prática. “Quando você entra em grupo e as observa, seja o comportamento motor até o social, vê como a criança tem adaptabilidade, necessidades, possibilidades e, principalmente, sua organização no brincar.”

Confira nas próximas páginas algumas linguagens infantis e suas possibilidades de observação.

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LINGUAGENS INFANTIS Linguagens para observação

Veja algumas expressões infantis e suas possibilidades de interação

No começo, o que fica no papel são garatujas que temem tomar espaço para fora da folha branca. Há dificuldade de segurar o lápis, mas tudo é expressão, emoção, movimento. É linguagem. Os desenhos dos pequenos são materiais riquíssimos para entender as crianças.

Rosa Iavelberg, professora da Faculdade de Educação da USP, lembra que o desenho não é espontâneo. “A ideia mais antiga é que ele é algo espontâneo, mas não é. Ele se desenvolve enquanto linguagem. É um sistema de linguagem”, diz.

O efeito do lápis pelo papel resulta em histórias cheias de detalhes, mas que muitas vezes não têm relação aparente com os traços. Mesmo assim, há expressão, assimilação, cultura, influência. “A partir do desenho, a criança consegue se manifestar de modo autoral e cria novas realidades, além de demonstrar suas referências. O desenho possibilita a aprendizagem compartilhada e a troca de experiências compartilhadas”, diz.

No ambiente educacional, crianças que desenham lado a lado tendem a se influenciar. “Se uma crian-

ça desenha um morcego, logo mais esta temática e o modo de desenhar vão aparecer no desenho de outra criança”, conta. Afinal, se aprendemos a falar imitando nossos pais e as pessoas que nos cercam, por que não aprenderíamos a desenhar desta maneira? Para tanto, ela defende que a partir da observação o professor deve mobilizar a criança com o que ela pode fazer. “O professor tem de incentivar o jeito de cada um e também a interação entre os pequenos”, diz.

Rosa conta que nos últimos anos é possível notar cada vez mais crianças de menos de cinco anos afirmarem que não sabem desenhar. “Antigamente isto era comum em crianças mais velhas. Mas acontece que cada vez mais existe a referência de desenhos animados, logomarcas de produtos. Há uma atual avalanche de Bob Esponjas nos desenhos infantis”, reflete.

LINGUAGEM NÃO

VERBAL:

MIL SIGNIFICADOS

Até que a criança balbucie as primeiras palavras, há um longo caminho que engloba maneiras diversas de se comunicar. Sabe-se hoje que os bebês são grandes comunicadores, sempre buscando chamar a atenção do adulto, seja pelo olhar, riso, choro, gestos das mãos. Por isso a importância do papel do professor em criar cenários para que os bebês interajam entre si e de observação e compreensão dessas etapas do desenvolvimento.

É nos desenhos que a criança se manifesta de maneira autônoma
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LINGUAGENS INFANTIS

As memórias infantis do professor também podem se manifestar em suas aulas

“Não é possível querer que a criança passe a falar de uma hora para outra. São etapas. Mas é possível se comunicar com ela, seja por meio da música, conversando enquanto realiza atividades como a troca da fralda”, diz Daniela Leonardi, diretora pedagógica da Escola Beit Yaacov, em São Paulo.

Embora seja mais fácil para a criança entender as palavras quando faladas no modo moderese (uma fala mais infantilizada, curta e voltada para a criança), é necessário criar situações reais para ouvir e conversar. “É preciso ouvir, conversar com a criança sem ‘tatibitate’ ou condescendência para construir significados e sentidos por meio do uso, e não de exercícios”, diz Maria do Rosário Longo Mortatti, professora do curso de pedagogia e do programa de pós-graduação em educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, SP.

Mesmo com a ansiedade que gera a fase em que a criança está aprendendo a se comunicar oralmente, especialistas afirmam que o ideal é colocar o pé no freio e não atropelar. O que elas precisam é de contextos e oportunidades de experiências. E de serem ouvidas em suas múltiplas linguagens.

EXPLORAÇÃO DOS SENTIDOS

Na Escola Stance Dual, em São Paulo, SP, as crianças são estimuladas a explorar os mais diversos materiais, de lã a toco de madeira, de palha de aço a tintas. ”A criança pequena se expressa das mais diferentes maneiras. Tudo constitui uma forma de comunicação. O corpo vai falar, os olhos, os ouvidos, as mãos, os pés”, conta Karen Rastelli, coordenadora pedagógica da escola bilíngue.

Por esse motivo, os professores precisam observar o que as crianças estão querendo dizer nas ações que

exercem. ”Hoje se fala muito em criança pesquisadora. Mas o professor também tem esse papel. Ele precisa ser observador, pois cada ação, expressão, movimento, vai dizer alguma coisa. E quando ele consegue fazer a relação entre todas as ações, ele compreende a criança e consegue trabalhar o seu desenvolvimento”, conta.

BRINCADEIRA: A CONSTRUÇÃO

DO MUNDO SOCIAL

Dentro das linguagens, a brincadeira é um lugar privilegiado para a construção das culturas infantis. Por isso, a importância de o professor observar as crianças durante seus momentos de brincadeira livre, aquelas que não são dirigidas pelo adulto. Nesses momentos é possível perceber, por exemplo, como as crianças significam e ressignificam aquilo que aprendem em relação ao professor, à família, ao vizinho, etc. Ou como se apropriaram de coisas que aprenderam em alguma atividade dirigida, como músicas ou mesmo brincadeiras. Esse é um bom sinal para o professor perceber como está sendo significativo para as crianças o que está sendo ensinado durante as atividades.

A professora Rubia-Mar Nunes Pinto, da Universidade Federal de Goiás (UFG), defende que a experiência de vida e da infância de cada professor pode ajudar muito no desenvolvimento do trabalho com as crianças. “Ao mobilizar memórias de brincadeiras infantis que brincou quando era pequeno, mesmo que as crianças de hoje não as conheçam, o professor relembra e entende na prática as necessidades, dificuldades e emoções vividas por seus alunos”, diz Rubia-Mar.

*Matéria publicada originalmente na edição 9, de 2019, da revista Educação Infantil

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A beleza e a força da diversidade

| Por Alhassan Susso, The Hechinger Report*, nos Estados Unidos Reconhecer e celebrar as diferenças entre as culturas é a chave para entender nossos alunos

Minha jornada como imigrante de uma pequena cidade no menor país continental da África, Gâmbia, para a maior cidade dos Estados Unidos, Nova York, com suas diversas culturas, me deu uma perspectiva única. Sou um professor melhor por causa disso. Também me ajudou a perceber que as diferenças são importantes e, em vez de apenas tolerá-las, elas precisam ser celebradas. Como aluno da Poughkeepsie High School, no norte de Nova York, e depois como educador do ensino médio no Bronx, observei, tanto dentro quanto fora da sala de aula, que muitos de nós desenvolvemos vieses inconscientes. Eles influenciam e obscurecem as lentes sociais por meio das quais vemos e experimentamos o mundo ao nosso redor.

Ensinar é tudo sobre relacionamentos. Como educadores, é crucial que aprendamos e entendamos as histórias de nossos alunos para construir relacionamentos significativos com eles. Aprender suas histórias nos dá uma visão sobre o que os influencia. Mas, ao fazer isso, precisamos verificar nossos preconceitos inconscientes para que possamos desenvolver conexões mais profundas com os alunos. É assim que criamos salas de aula harmoniosas.

xou escapar na frente de toda a classe: “Se as pessoas querem usar seus vestidos engraçados, devem ficar em seu país. Esta é a América”.

Fiquei chocado. O que ele não sabia era que eu tinha acabado com minhas roupas “americanas” limpas. Ele não conhecia a minha história. Ele ignorava que eu só tinha um punhado de roupas. Foi uma situação desconfortável, mas com a qual nós dois aprendemos mais tarde.

As diferenças são importantes e, em vez de apenas tolerá-las, elas precisam ser celebradas

Como um novo imigrante no ensino médio, certa vez usei uma roupa gambiana para ir à escola: um kaftan branco bordado de três peças com calças combinando. Recebi muitos elogios de professores e alunos. No entanto, meu professor de história parecia incomodado por eu ter usado roupas africanas na escola. Ele dei-

Nos meses seguintes, ele começou a me conhecer; parou de considerar estereótipos e suposições. Desenvolvemos um forte relacionamento baseado na compreensão das origens e valores um do outro. Ele me ajudou durante o almoço com minhas tarefas de história e se interessou pelo papel da imigração na história estadunidense. Para nosso projeto final de aula, ele nos designou entrevistar imigrantes em nossa comunidade sobre suas experiências nos Estados Unidos. Compilamos as histórias em um livro, Poughkeepsie pride: the stories of our immigrants (Orgulho de Poughkeepsie: as histórias de nossos imigrantes, em tradução livre), e distribuímos cópias para a comunidade local. Essa experiência me deu a oportunidade de reconhecer minha miopia cultural. Tive que confrontar minhas próprias suposições sobre estudantes negros no centro da cidade, pessoas brancas em todos os lugares e minha própria cultura. Anos depois, como professor do primeiro ano, muitas das minhas lutas na sala de aula ainda envolviam percepções culturais errôneas.

Por exemplo, a maioria dos meus alunos era da República Dominicana, cujos abraços e beijos na bochecha fazem parte do dia a dia. No entanto, na sala de aula, isso me incomodava por causa de meus próprios

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Reserve um tempo para aprender a história de cada aluno. Quando você conhece a história de alguém, é difícil não gostar dela. Na foto, crianças de Gâmbia em frente a uma escola (Shutterstock)

preconceitos. Para mim, essas demonstrações públicas de afeto eram inadequadas.

Claro, eu comuniquei esse preconceito verbalmente e de outras formas. Logo no início, estabeleci um tom de julgamento, essencialmente franzindo a testa para um comportamento natural e inocente comum à cultura de meus alunos dominicanos. Eu estava vendo por meio de lentes africanas. Uma lente muçulmana. Uma lente masculina. E não é de admirar que eu não pudesse alcançá-los e, portanto, ensiná-los.

Ao examinar meus preconceitos inconscientes, rapidamente entendi que a cultura de meus alunos poderia enriquecer e ser compatível com minhas crenças e compreensão do mundo. Foi quando pudemos nos relacionar uns com os outros e formar relacionamentos produtivos.

Minha interação com educadores de todo o país me provou que a maioria deles tem o desejo de construir laços fortes com seus alunos. Portanto, aqui está uma sugestão simples, porém profunda, para acelerar esse processo: reserve um tempo para aprender a história de cada aluno. Quando você conhece a história de alguém, é difícil não gostar dela.

Em minha sala de aula, peço aos alunos que escrevam uma carta para seus futuros ‘eus’ que eles teriam orgulho de compartilhar com a turma em junho. Esta carta inclui suas esperanças, sonhos e visão. Mas também contém suas preocupações, lutas e frustrações.

A leitura de cada carta no início do ano me informa sobre o que motiva cada aluno. Esta atividade me capacita a construir uma conexão forte e significativa com cada um deles. A partilha de histórias é tão humana e fundamental como a própria respiração. É como nos relacionamos uns com os outros em uma base pessoal. Tornamo-nos, assim, melhores indivíduos, melhores professores e melhores cidadãos. Apesar de nossas diferenças, as histórias são o que mantém intacto nosso vínculo de humanidade. E o processo começa na fundação. Como Maya Angelou insiste: “É hora de os pais ensinarem aos jovens desde cedo que na diversidade há beleza e força”.

E nós, educadores, devemos reconhecer a beleza e a força em todos os alunos.

*Alhassan Susso ensina governo, economia e desenvolvimento pessoal na International Community High School, em Nova York. Ele recebeu a maior honra da Fundação NEA, o Prêmio de Benefícios de Membro da NEA por Excelência em Ensino, em 2020, e o prêmio de Professor do Ano do Estado de Nova York em 2019.

Esta história sobre ensino e diversidade cultural foi produzida pelo The Hechinger Report, uma organização de notícias independente sem fins lucrativos nos EUA focada na desigualdade e inovação na educação.

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Inteligência artificial exige escola pensante

Estudantes precisam de preparo para questionar, criar e propor frente às informações que chegam do mundo analógico e digital

| Por João Jonas Veiga Sobral

ALuneta mágica, de Joaquim Manuel de Macedo, é subestimada e negligenciada nas escolas. Raramente consta na lista de adoção de leituras obrigatórias ou sugeridas. A narrativa surpreende pelo tom fantasioso e mágico bastante distante do empregado pelo mesmo autor em seus romances românticos de formação, como A moreninha.

A fabulação se sustenta em um enredo metafórico e versa sobre as agruras de Simplício, um rapaz absurdamente míope, crédulo e sem filtro interpretativo. Aprendiz de feiticeiro, tem em uma luneta mágica sua pandora a lhe mostrar o mundo e sua luta incessante entre o bem, o mal e seus escrutínios.

O herói da trama assim se define: “Chamo-me Simplício e tenho condições naturais ainda mais tristes do que o meu nome. Nasci sob a influência de uma estrela maligna, nasci marcado com o selo do infortúnio. Sou míope; pior do que isso, duplamente míope - míope física e moralmente.

Miopia física: — a duas polegadas de distância dos olhos não distingo um girassol de uma violeta. E por isso ando na cidade e não vejo as casas.

Miopia moral: — sou sempre escravo das ideias dos outros; porque nunca pude ajustar duas ideias minhas. E por isso quando vou às galerias da Câmara temporária ou do Senado, sou consecutiva e decididamente a favor do parecer de todos os oradores que falam pró e contra a matéria em discussão.

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Se ao menos eu não tivesse consciência dessa minha miopia moral!... mas a convicção profunda de infortúnio tão grande é a única luz que brilha sem nuvens no meu espírito”.

Suponho que a leitura se faz necessária porque estamos balançando ao sabor das informações que pululam nas mídias e nas redes sociais. E para agravar a deriva somos mais antenados do que reflexivos, mais caixa de ressonância do que curadores do próprio pensamento. “Sou sempre escravo das ideias dos outros; porque nunca pude ajustar duas ideias minhas.”

Para sacudir mais o balançado e o mexido, surge a novidade preocupante da inteligência artificial com o ChatGPT, que é capaz de responder a questões de concursos, a provas escolares e universitárias e de produzir textos coerentes, coesos e adequados para questões acadêmicas, jurídicas, médicas, culturais e, mais ainda, até de imitar o estilo de renomados escritores.

Cogita-se que o ChatGPT, em breve, interagirá com a voz humana e oferecerá com rapidez impossível ao homem respostas às indagações da vida e do mundo. Por enquanto, consta que não cria e não inventa, mas se aproxima disso a depender das perguntas feitas e das possibilidades de articulação das informações oferecidas. É habilitado, inclusive, a oferecer resposta aparentemente crítica à sua própria condição de máquina: “Como uma máquina, eu não tenho capacidade de sentir desejos ou vontades”. A criatividade é uma característica humana e não pode ser atribuída a máquinas ou programas de computador.

proposição. Formará muitos Simplícios, incapazes de uma autonomia crítica.

Por isso, o desespero bateu à porta e à aorta, e virou de cabeça para baixo o universo escolar. Muitas instituições de ensino estão buscando caminhos para proibir o inevitável, coibindo o plágio e a “cola” de estudantes e universitários que terão à disposição uma máquina generosa pronta a oferecer articulação de pensamento, elaboração de textos e respostas a um sem-número de indagações feitas nos bancos acadêmicos. Seria mais razoável, que os alunos se debruçassem sobre as informações e extraíssem algum olhar criativo.

Somos mais antenados do que reflexivos, mais caixa de ressonância do que curadores do próprio pensamento

Decerto, esse caminho não será simplório demais (para não escapar do campo semântico do nosso protagonista). A jornada dos jovens no mundo será espinhenta e árdua se não remodelarmos na comunidade escolar (pais, professores, pedagogos, diretores e governantes) a visão de escola, de conteúdo, de habilidades e de competências. Diante disso, precisamos estar atentos e fortes à viração dos ventos que sopram no mundo digital. Não há mais lugar para uma escola baseada apenas em perguntas que remetem à articulação, à análise e à elaboração de respostas e pesquisas ao que já está posto. Não faz mais sentido insistir em uma rota única, em um samba de uma nota só que torna alheia a descoberta do mundo.

A máquina em questão pode ser muito útil à escola e extremamente perigosa também. E ameaçadora aos Simplícios da vida moderna — seres míopes, incapazes de produzir um pensamento autônomo ou autoral.

No entanto, uma escola arraiga a um projeto pedagógico que não explora a hipótese, a indagação, a elaboração, a imaginação, a fabricação, a idealização, a conclusão. E ainda faltam o contraste, a crítica, a validação, a contestação, a estimação, o julgamento, a formulação. Sem esquecer da invenção, montagem, projeção, prospecção, exame, questionamento, previsão, solução, e a

Formamos muitos Simplícios ao longo do tempo. É preciso oferecer condições aos estudantes para que eles encontrem situações-problema para inferir, criar, cogitar, propor, solucionar e tecer o trabalho fino com as informações que chegam do mundo analógico e digital. Assim sendo, o ChatGPT e suas variações serão ferramentas mais contributivas do que assustadoras.

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João Jonas Veiga Sobral Escritor, professor de língua portuguesa e orientador educacional

ENTRE MARGENS

Yanomami, descarte de ‘indesejáveis’

São Gabriel da Cachoeira, 29 de janeiro de 2043

Darcy traduzira “tudo o que o Brasil poderia ser e ainda não era”. A escrita de O povo brasileiro, reflexo do convívio com as comunidades do Xingu, era uma mistura de experiências colhidas num criativo caldo cultural, num enorme e sincrético potencial de humanização, que foi historicamente “entravado pela medío cre classe dominante, que impedia o desenvolvimento da civilização brasileira”.

Imigrado no Hemisfério Sul, português herdeiro de um peculiar cosmopolitismo horizontal, eu passei longas temporadas entre os Xavante, Tupinambá e Pataxó. Visitei culturas pré-colombianas, como os Mapuche do sul do Chile. Reaprendi a aprender, a descolonizar a mente, a mitigar um etnocentrismo, que me impedia de compreender Darcy.

Adentrei a Amazônia, a partir da Boca do Acre. Viajei a partir de Santarém. Mas a incursão que me levou ao seu extremo foi aquela que me mostrou que, após cinco séculos, o genocídio dos povos originários não cessara. A Amazônia contida nas representações paulistanas ou brasilienses não correspondia à realidade que eu observara – a Amazônia era uma ilustre desconhecida dos brasileiros.

As escolas que por lá encontrei eram armazéns de crianças, em que imperava o modelo educacional lancasteriano, que Bolívar e Santander tinham introduzido em Nova Granada, no início do século 19. Apesar de algumas ‘adaptações’ – pois já não eram utilizadas as videoaulas enviadas de Manaus –, garimpeiros, pastores e professores completavam a destruição de culturas milenares.

A obra de Cândido Rondon não fora suficiente para obstar à cobiça e à maldade humana. Proliferavam variantes escravocratas e réplicas do rapto das seringueiras, cujas sementes migraram para a Malásia. E bastou que bonsais humanos chegassem ao poder, para que grandes laboratórios multinacionais se apropriassem de curadoras misturas de ervas, para que o que restava da cultura de povos sem propriedade privada fosse

transformada em mercadoria, e para que a Amazônia remota fosse transformada em terra de ninguém.

Os indígenas ficavam abandonados à sua sorte, transformados em peças de caça do agronegócio, de madeireiros e garimpeiros. Ao longo de quatro anos, o rebaixamento moral e ético aliou-se a extremismos de uma direita fascizante. E as imagens da tragédia humanitária dos indígenas Yanomami correram o mundo, expondo as chagas da ideologia do descarte de indesejáveis.

Faz, agora, 20 anos que a sociedade brasileira despertou para a dura realidade de uma tragédia há muito anunciada. Com o cessar de tempos sombrios, os brasileiros começaram a tomar consciência da dimensão da catástrofe. Nos idos de 23, os primeiros contatos escancaram a dimensão de uma crise causada pela corrupção generalizada, por interesses escusos, pela boçalidade dos políticos e a ignorância daquilo que ocorria no norte do território.

Da pauta da transição governamental de 22 constava a proteção das comunidades de povos originários. Mas quem as protegeria de uma escola alheia às suas culturas e necessidades? Aquilo que eu vira nessas comunidades fora a prática de um modelo educacional desumanizador, a que eram colados ‘projetos de inclusão social’ e paliativos instrucionistas.

A sobralização do ministério viria a mostrar-se incapaz de reverter a trágica situação. Entretanto, dei conta de que algo esperançoso acontecia. Discretamente, à margem do desgoverno educacional, havia quem tivesse consciência da necessidade de trocar o nortear sobralense pelo suliar freiriano.

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José Pacheco Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal) josepacheco@editorasegmento.com.br

Na corda bamba, só quem dança se equilibra

“Educar através da dança”, princípio vital do Ballet Paula Castro, com mais de 43 anos de tradição, eleita a melhor escola de ballet brasileira. Com a dança a criança respeita seu corpo e seus limites, se posiciona em sala de aula em relação às outras crianças, desenvolve a segurança, a atenção e a criatividade, explica Paula Castro, pedagoga, educadora física e fundadora da escola. “Esse é o objetivo principal do meu trabalho, é o que levo para dentro das escolas parceiras.”

Com três unidades em São Paulo, o Ballet Paula Castro é representante oficial da Escuela Nacional de Ballet de la República de Cuba (ENBC) no Brasil e também cuida das áreas de dança de grandes escolas regulares participando de todo o calendário festivo. O estudo do ballet se estende também aos meninos e há grande receptividade do público masculino nas aulas de hip hop, sucesso nas escolas parceiras. Vale destacar que a modalidade estará presente nas próximas olimpíadas.

“Ensinar é uma arte, e a dança, como tal, potencializa nosso equilíbrio, sensibilidade e expressão”, defende Paula Castro

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) determina que as habilidades da dança estejam presentes na educação básica, pois é um instrumental poderoso, condutor da educação, uma vez que trabalha a criatividade, a desinibição e a autoconfiança nos alunos.

“É pouco para mim ensinar a dança apenas como técnica, o que eu quero é trabalhar com a criança ensinando-a a se tornar uma pessoa melhor e, ainda, a dançar bem.” O Ballet Paula Castro faz parte do período integral das escolas e também atua no contraturno das aulas.

“A arte em geral é a saída para que as pessoas possam aflorar a sua individualidade. A dança é a busca do equilíbrio, a luta contra a lei da gravidade e, mais do que isto, potencializa a nossa sensibilidade e nossa expressão”, declara Paula Castro.

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A dança possibilita que a criança respeite seu corpo e seu limite, tenha segurança e criatividade Fotos: Nanah Dluize
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