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UMA GUILDA DE MULHERES FORTES

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APERTE O PLAY

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Mulheres no controle

Quando somos crianças sempre nos perguntam o que queremos ser quando crescer. As respostas, geralmente, são as esperadas: médico, veterinário, professor, dentista e jogador de futebol. Todas profi ssões romantizadas pela mídia tradicional e endeusadas graças ao estereótipo de luxo associado a elas.

Assim como a sociedade vai passando por mudanças e o ambiente de contato das crianças vai sendo alterado, a lista da escolha de profi ssões também vai recebendo novas possibilidades. É comum perguntarmos para uma criança ou jovem a respeito da profi ssão que espera para o futuro e ouvir as seguintes respostas: jogador de videogame, ilustrador e criador de jogos.

Isso tudo nada mais é do que um refl exo do meio que é alterado conforme os produtos de seus agentes. À medida que os jogos eletrônicos conquistam espaço na mídia, sua divulgação é constante e faz com que as pessoas com maior contato desenvolvam o desejo de desempenhar atividades relacionadas a tal meio.

Como mencionamos anteriormente, são inúmeras as possibilidades de carreira quando falamos a respeito do mundo dos jogos. Elas englobam diversas áreas do conhecimento e independem, em alguns casos, do fato de ser ou não um jogador desempenhando tal função. Contudo, assim como ocorre com as demais relações estabelecidas com os games, as profi ssões relacionadas a este produto são, em grande parte das vezes, associadas à fi gura masculina. Não é segredo que a indústria dos jogos é focada no público masculino. Mesmo após pesquisas apontarem que o público feminino domina o consumo deste mercado as pessoas que produzem conteúdos para ele continuam, em sua maioria, produzindo para agradar o público masculino. Com isso, as profi ssões voltadas para os jogos permanecem estigmatizadas e geralmente quando uma mulher resolve seguir carreira neste nicho é vista ou como uma sonhadora idealista ou masculinizada.

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Mariana Lienemann Ramires

Essa visão é reforçada pela fala da Vice Presidente de Operações da BBL Michelle, quando afirma que a vontade é trazer mais profissionais mulheres para atuar nas profissões relacionadas ao mundo gamer, mas que a contratação destas profissionais é muito difícil. Muitas vezes estas mulheres acabam se sentindo acuadas por conta do estigma carregado por estas carreiras e deixam de lado seus sonhos.

Uma das minhas primeiras experiências de emprego foi justamente em uma grande empresa especializada na publicação de jogos online. Durante alguns anos atuei em contato direto com os jogadores, acompanhando partidas, realizando eventos e também auxiliando na manutenção e verificação do conteúdo dos jogos. Nesta época, cerca de cinco anos atrás, eram poucas as mulheres que atuavam diretamente com o jogo e quando atuavam estavam voltadas a jogos mais casuais, sendo estes culturalmente associados à figura feminina.

Recentemente tive a oportunidade de retornar a esta empresa para conversar com outras mulheres que, assim como eu, entraram de cabeça no mundo dos jogos. Tenho que confessar que fui surpreendida.

A equipe, que antes possuía poucas mulheres em contato direto com os jogos e jogadores, agora conta com um número maior de garotas que desempenham estas tarefas. O objetivo da minha visita foi justamente conversar com elas, que atuam neste mercado, a respeito de suas percepções como jogadoras e fãs de games. Éramos seis mulheres, Ana Beatriz, Bruna, Gabriela, Kathleen, Mariana e eu. Juntas, fomos para uma sala de reunião, a mesma que por vezes frequentei enquanto trabalhava naquele ambiente e além das memórias afetivas pude reviver momentos e produzir novas lembranças, que compartilho com vocês neste capítulo 2 .

2 Por se tratar de uma roda de conversas onde as opiniões foram compartilhadas entre as participantes e como forma de favorecer o ritmo narrativo do capítulo, optei pela não identificação das participantes fala a fala.

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Mulheres no controle

Começamos nos apresentando e conversando um pouco sobre a nossa história com os jogos, pudemos concluir que ela se divide em duas partes: o antes e o depois dos jogos online. No antes, o contato se deu praticamente por meio de consoles como Super Nintendo, Game cube, Dreamcast e Megadrive além de idas a fliperamas quando possível. Eram momentos comparados a diversões comumente apresentadas. “Assim como as pessoas leem um livro ou assistem à TV, eu jogava. Era meu passatempo.”.

No depois, o mundo de possibilidades foi aberto e a capacidade de integração e interação geradas pelos jogos em rede alterou a forma como nos relacionamos uns com os outros, fazendo com que até mesmo as pessoas mais introvertidas desenvolvessem um contato maior. “O que me fez querer jogar mesmo é a possibilidade de interagir com pessoas desconhecidas que você nem sequer sabe quem são e nem onde estão. Desde sempre fui muito introvertida, interagir com as pessoas no mundo online sempre foi mais fácil do que no mundo afora em si.”.

Em determinado momento da vida, os jogos deixaram de ser somente diversão e a possibilidade de trabalhar com games tornouse real. Por estarmos em um momento onde essa realidade ainda é a de uma minoria, as oportunidades por vezes são tidas como algo fantasioso ou duvidoso, e só são consideradas reais no momento em que são relacionadas com a atuação direta no desenvolvimento de jogos. Como já falamos anteriormente, as carreiras no mercado de games vão além da possibilidade de desenvolver um personagem, programar um jogo ou escrever um roteiro. Uma delas é justamente atuar no suporte ao jogador.

Não só existem pessoas que prestam suporte aos jogadores como também ninguém melhor para desempenhar esta função do que quem sabe exatamente o que eles estão vivenciando: os próprios players. “Eu sempre tive pra mim que ia trabalhar com pessoas e não com máquinas e agora eu estou aqui, trabalhando com pessoas e com jogos que são coisas que eu adoro.”.

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Mariana Lienemann Ramires

Perguntei às meninas qual foi a reação delas, e de familiares, à possibilidade de atuar nessa área. E, confirmando o fato de que a percepção a respeito deste mercado está gradualmente mudando, percebi que na maioria das vezes a primeira reação vem repleta de dúvidas e incertezas, “Quando eu mostrei a vaga pro meu pai ele deu risada e disse ‘até parece que tem alguém que vai dar suporte pro jogador’ - ele duvidou que era sério.”.

Mas, assim como os jogos deixaram o mundo underground para se tornar uma das indústrias do entretenimento mais rentáveis, as profissões relacionadas aos games também estão sendo vistas com outros olhos. “Minha mãe falava que eu perdia tempo e que isso não ia levar a nenhum lugar ai beleza, então mãe, estou trabalhando com um jogo. Hoje ela fala pra todo mundo que consegui meu emprego por causa dos jogos.”

Por mais que exista a possibilidade de unir os dois mundos, o da diversão e o da profissão, ainda assim nem tudo são rosas. A partir do momento que estamos inseridas em um meio baseado na cultura do masculino, estamos sujeitas aos estigmas que esse mundo carrega. Isso tudo fica muito claro quando pensamos sobre mulheres gamers que quebram as barreiras do anonimato e se fazem presentes na posição de streamers e influenciadoras. Ao juntamos os padrões de beleza cobrados pela sociedade com a imagem sexualizada das personagens e da mulher gamer, temos uma mistura extremamente inflamável. Fica difícil saber ao certo qual é o ponto de ebulição, por vezes basta um nickname feminino, outras vezes basta a voz.

“Só o fato de ter um nick feminino, mesmo que não seja mulher por trás da tela, já te traz ofensas e isso é algo que a partir do momento que você coloca seu rosto na frente da tela e se mostra pra todo mundo faz com que a onda de ódio aumente em níveis drásticos.” No caso das jogadoras que dedicam seu tempo para atuar em lives e produção de conteúdo sobre os jogos, a cobrança é intensificada.

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Você passa a ser cobrada por ser mulher, pela sua aparência, pela sua postura no jogo, pela sua vida pessoal e também se joga ou não de forma considerada “ok” pela comunidade. Agora se você pensa que essa cobrança toda é só para mulheres que aparecem em frente às câmeras e que não seguem o “padrão de beleza”, está na hora de repensar um pouco, pois ela é para todas e, nos casos em que as streamers não seguem os padrões, pode ainda ser mais intensa.

Todo esse preconceito e essa cobrança para a figura feminina pode ser visto como algo restrito às ofensas e manifestações preconceituosas. Mas a realidade vai muito além disso. A violência de gênero começa no momento em que uma personagem é construída como a donzela indefesa que sempre necessita do auxilio de um bravo herói, pois não é capaz de enfrentar por si mesma os desafios designados a ela, tendo sua força e opinião própria negadas enquanto sua vontade é subjugada ao desejo de outros.

Dificilmente vemos personagens com características visuais femininas que desempenham funções divergentes da de apoio, quando estas personagens aparecem suas características femininas ficam restritas ao timbre da voz e detalhes da aparência que passa a ser masculinizada. Já no oposto, quando temos personagens femininas desempenhando atividades de apoio ou papeis que necessitam de um auxilio para sua evolução na história, as características femininas são exacerbadas e fazem com que a figura apresentada seja convertida em um sex simbol. O porquê disso tudo? Vou deixar as próprias mulheres explicarem: “Porque é um conteúdo feito para homens. Quando você vê uma personagem forte, que não precisa ser meiga e é super-respeitável mesmo sendo mulher, quem criou? Uma mulher. Uma mulher cria mulheres fortes para mulheres. Um homem cria mulheres frágeis e sexualizadas para agradar outros homens.”.

Ao realizar essa escolha, muitas vezes a problemática levantada não tem relação com a forma como a imagem da mulher será retratada, mas sim com a rentabilidade que criar um personagem com essas características trará para a empresa que comercializa

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Mariana Lienemann Ramires

determinado produto. “Às vezes não é nem o posicionamento que a empresa tem, mas é o que vende, é o que está na cabeça de quem tá consumindo porque os próprios jogadores querem isso. Quando mudam isso em personagens que já existem, vem uma chuva de ódio gratuito”.

E por falar em mulheres explicando e sendo as protagonistas de sua própria história, chegamos a outro ponto de importante discussão. Quando passamos por todas essas etapas que vão desde a aceitação da nossa presença em um mundo desenhado para ser preenchido pelos homens até a inclusão de mulheres no mercado de trabalho relacionado aos jogos, independente de qual seja a área, nos deparamos com outra face da violência de gênero: a desqualificação da opinião feminina. É comum vermos a presença de streamers e influenciadores digitais no mundo dos jogos online. Em sua maioria são homens que produzem conteúdo sobre determinado jogo para aquele público em específico. Mulheres também produzem esse tipo de conteúdo, porém muitas vezes sua opinião não é levada em conta em momentos de tomada de decisão ou quando se veem diante de discussão sobre determinado assunto. Isso não é exclusividade de streamers e influenciadoras, pode ocorrer no desenvolvimento de um jogo, em grupos específicos para jogadores nas redes sociais e também no próprio ambiente de trabalho. “A gente acaba sofrendo muito mansplaining.”. “São homens querendo nos ensinar sobre como jogar um jogo que, em alguns casos, é o jogo com o qual trabalhamos, então entendemos do assunto.”

Apesar de tudo isso, o mundo dos jogos permanece fascinante para essas mulheres com as quais divido a paixão pelos games. Assim como outras conquistas de mulheres na história, conquistar e firmar o nosso espaço dentro desta indústria ainda vai levar algum tempo, mas se nos apoiarmos e incentivarmos umas às outras, o caminho pode ser menos árduo.

Imagine um grupo de aventureiras em um jogo de RPG. Cada uma desempenha uma função específica que auxilia a equipe a 38

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conquistar os objetivos em comum e somente com a colaboração de todas é possível completar a missão com o menor número possível de danos recebidos. No mundo real precisamos agir desta forma se quisermos cumprir essa quest e mostrar aos homens que não é a toa que somos mais da metade do público da indústria de jogos na América latina.

Juntas, nós concluímos que o segredo para completar essa quest e obter um ambiente de jogo menos tóxico e mais inclusivo está justamente na união. Estamos avançando pouco a pouco na busca por esta conquista e fazer com que nossa voz seja ouvida é essencial para concluir essa missão.

Quando me despedi das garotas, tive certeza que a guilda das mulheres avançou mais um passo em direção ao seu objetivo, afinal, o fato de hoje discutirmos a importância de nosso papel nessa indústria já mostra o quão relevante é nossa participação nela. Juntas podemos e fazemos a diferença.

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