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APERTE O PLAY

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Mulheres no controle

Era mais uma noite em família. Estávamos sentados juntos na sala de estar relembrando as histórias de minha infância. Os primeiros passos, primeiras artes, primeira apresentação de dança e os momentos divertidos que passamos juntos. Dentre todos, voltaram à minha memória as lembranças de 1995, quando aos finais de semana nos sentávamos em frente à televisão para travar uma incansável batalha contra o temível Robotnik.

Meu pai ligava o Mega Drive e transportava a família toda para Emerald Hill. Eram horas de embates acirrados na pele do ouriço Sonic, mas por fim ele sempre vencia o Dr. Robotnik. Com o tempo fui observando, aprendendo e logo a primeira fase era a minha fase. Eu pegava o controle e com a maior concentração possível tentava ultrapassar cada obstáculo. Foi assim que o bichinho dos jogos me pegou.

Fui crescendo sempre ligada à tecnologia e fascinada com a capacidade de movimentar um personagem que não era eu, mas que ainda assim era controlado por mim. Aos poucos, as fases que enfrentava na pele de Sonic foram se tornando mais fáceis e, à medida que avançava na vida, avançava no enredo do jogo.

Em determinado momento, assim como Sonic tinha a Tails, passei a ter ao meu irmão, que sentava e observava enquanto eu jogava. Quase como se a história fosse se repetindo e o gosto pelos jogos fosse passando de geração em geração na família, fase por fase, level por level.

Algum tempo depois, aprendi a ligar o computador por conta pró pria e pedia em meio a pulos para que meu pai colocasse o “jogo do príncipe” 1 , pois queria fazer o personagem “pular os buraquinhos”. Logo, também percebi que em nove disquetes era possível caber a história de um jogo, mesmo que ele não fosse assim tão adequado para uma criança de 8 anos.

1 Prince of Persia era um dos jogos integrado ao MS-DOS, sistema operacional da Microsoft nos anos 90.

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Mariana Lienemann Ramires

E se tratando de televisão, era aquela ansiedade toda vez que chegava da escola para pegar o telefone e tentar a tão sonhada participação no programa do Hugo com seus joguinhos controlados por telefone. Um dia o telefone atendeu, mas a frustração bateu. Telefones de discar não permitiam controlar o personagem e entrar na brincadeira.

A tecnologia foi avançando e logo os nove disquetes se resumiram a um CD, desta vez com uma temática mais adequada a minha idade. Eram pequenos joguinhos da Turma da Mônica incentivando a percepção das cores e a coordenação motora. E como joguei cada um daqueles mini games! Em determinado momento sabia até mesmo as falas de cor.

Os anos 2000 se aproximavam, o bug do milênio assombrava a todos e as inovações não paravam. Agora eram Pokémons e Digimons invadindo as telas das televisões pela manhã, enquanto um habilidoso encanador buscava resgatar sua Princesa das mãos de um terrível vilão nos videogames. As tardes de Mega Drive continuavam, mas a fase que antes era minha agora passara aos cuidados de meu irmão, enquanto eu avançava um pouco mais para somente duas ou três fases depois passar o controle para meu pai.

Certo dia, meu pai chegou em casa com uma surpresa para nós, agora além de Sonic também poderíamos pilotar carros de corrida, mesmo que ainda muito distantes dos 18 anos. Foi a primeira vez que vivenciei a tensão de tirar o cartucho do videogame, assoprar e aguardar com a respiração presa a tela ligar e a palavra “SEGA” aparecer.

Mais alguns anos se passaram e o meu velho companheiro foi perdendo seu brilho aos olhos da tecnologia. Agora, para que o aparelho funcionasse era preciso uma série de adaptações que, em algum momento, deixaram de funcionar e adormeceram a batalha contra o Dr. Robotnik.

As tardes dos finais de semana deixaram de receber um ouriço que corria atrás das Esmeraldas do Caos para serem preenchidas

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Mulheres no controle

pela exclamação “It’s me! Mario!”. Dividíamos os controles do Nintendo 64 enquanto partíamos ao resgate da princesa, competíamos uns contra os outros com as curvas e armadilhas em jogos de kart e, é claro, como bons mestres Pokémon, entrávamos em algumas batalhas.

Vivemos mil vidas e enquanto o videogame estava desligado, assistíamos a minha mãe vencendo as cartas ao jogar Paciência no computador.

Assim como os disquetes, logo os cartuchos foram substituídos por CDs, os jogos foram se tornando mais complexos e, já perto dos meus 15 anos, me reencontrei com um grande inimigo de infância. O Dr. Robotinik estava novamente a minha frente e cabia a mim e ao meu fiel companheiro derrotá-lo. Foram horas, dias e mais dias de batalha incansável até que finalmente, após 10 anos, conseguimos vencê-lo! Com a missão cumprida, finalmente pude me dedicar a uma nova empreitada. Por vezes, na sala de aula, escutava falar sobre um tal de Ragnarök, um jogo que prometia a capacidade de personalizar os personagens e enfrentar batalhas em conjunto com gente do país todo.

Logo resolvi me aventurar nesse mundo, e lá ia eu, juntando o troco do lanche de cada dia e me enfiando nas Lan Houses depois da aula. Por vezes era a única menina do lugar, o que desagradava meus pais, afinal já se tinha aquela visão de que ambientes de jogo eram ambientes masculinos. Jogar em casa tudo bem, mas entrar no meio da batalha de homens? Nem pensar.

Ainda assim, usava minhas habilidades de fuga para conseguir jogar e pouco a pouco me apaixonava cada vez mais por esse mundo. Conheci outros títulos, conheci outras culturas, fiz amigos que carrego comigo até hoje. De Ragnarök fui a World of Warcraft, passei por Grand Chase e após um tempo cheguei aos Campos da Justiça de League of Legends.

Por vezes ouvi que não era bonito, ou correto, uma garota trabalhar com isso ou até mesmo ter nos games sua forma de

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Mariana Lienemann Ramires

distração. Fui chamada de moleca, desleixada e cheguei até a ouvir que “homem nenhum gosta de mulher que joga melhor do que ele”. Como se eu estivesse preocupada com isso!

Mergulhei de cabeça nesse mundo, fi z dele minha profi ssão por um tempo e nele me apaixonei pelo curso que em 2019 encerro. Dos jogos tirei minha diversão, meu ganha pão e encontrei minha paixão, talvez em mais de um aspecto da minha vida. Construí amizades, quebrei barreiras de distância, até mesmo entre outros continentes, e visualizei a oportunidade de pesquisar e conhecer cada vez mais a fundo esse mundo, essa cultura, que me fascina. Como nem tudo são fl ores, também passei alguns bons perrengues. Ofensas e comparações fazem parte da rotina. Ouvir que deveria estar lavando louça ou pilotando fogão ao invés dos carros de um fl iperama foram apenas algumas poucas coisas que já escutei nos simuladores da vida. Entrar em uma partida e ser defi nida como o “elemento mais fraco do time”, apenas pelo fato de meu nickname terminar com a letra “A”, chegou a ser algo praticamente diário. Assim como receber comentários agressivos nas streamings por não ser nem um pouco parecida com as personagens dos jogos que, além de terem um corpão, entram na guerra trajando um belo top com calças justas e salto alto. Se isso interfere em alguma coisa na minha paixão pelos jogos? Sinto muito senhores, de forma alguma.

Assim como eu, outras jogadoras permanecem na ativa, vivendo mil e uma vidas diferentes em cada um dos jogos, encarando batalhas contra os mais variados vilões e, em alguns casos, fazendo dos jogos sua profi ssão. Aperte o start, abra estas páginas e acompanhe a história de heroínas que cresceram com os jogos e que, a cada fase, vencem um novo desafi o. Enquanto você embarca nessa jornada eu aproveitarei pra reencontrar um velho desafeto meu, afi nal, as Esmeraldas do Caos não serão recuperadas sozinhas.

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