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O PRIMEIRO COMBATE
from Mulheres no controle
by Rede Código


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Mulheres no controle
Assim como os jogos dominaram o ambiente em rede, eles também começaram a alcançar novos horizontes. Voltando alguns anos no tempo pouco se falava sobre esportes eletrônicos. Campeonatos e encontros de jogadores eram parte do mundo underground, restritos a pequenos eventos segmentados com pouca, ou nenhuma, divulgação ou então a pequenos espaços cedidos em grandes eventos voltados para cultura pop.
Conforme os jogos foram ganhando os espaços de divulgação e os campeonatos começaram a ter cada vez mais infl uência sobre a rotina dos jogadores, a forma como os players encaram essa realidade passou a ser alterada e a carreira como um profi ssional deste ramo começou a ser almejada por vários.
Aos poucos, campeonatos amadores e profi ssionais foram ganhando a mídia, seja através de uma nota ou de uma breve notícia em programas de esportes, e conquistando fãs. Entre os mais conhecidos estão os campeonatos de Counter Strike, Fifa e, recentemente, League of Legends e Free Fire. Esses torneios são responsáveis por movimentações que vão além das telas do computador e já somam valores que podem ser equiparados aos de campeonatos de futebol. Se em 2012 o campeonato de League of Legends estava sendo realizado na BGS, em 2019 a fi nal do campeonato brasileiro foi realizada na Jeunesse Arena, após ter passado por locais como o Allianz Parque e Maracanãzinho.
Apesar destas mudanças, a presença de mulheres nos grandes campeonatos é praticamente nula e quando ocorre a cobrança é dobrada. Recentemente, um time russo de League of Legends ganhou as manchetes das publicações voltadas a esportes eletrônicos. O motivo: sua line up era composta somente por mulheres.
Por mais que a iniciativa tenha surgido em um país reconhecido por sua cultura machista e excludente, num primeiro momento as manchetes foram positivas. A comunidade foi ao delírio e jogadoras de várias partes do mundo reagiram de forma positiva no twitter,
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facebook e em grupos de whatsapp, porém não foi preciso muito tempo para que o outro lado da moeda aparecesse.
Críticas e cobranças sobre o desempenho e aparência das jogadoras começaram a aparecer em meio a comunidade. Se por um lado as mulheres aprovaram a iniciativa por se verem representadas em uma liga oficial, por outro estavam apreensivas a respeito da forma como estas jogadoras seriam tratadas durante o torneio. Logo chegou o dia da estreia das meninas do Vaevictis E-Sports, e os temores se confirmaram na partida realizada contra o time masculino da RoX. Para você poder entender o que aconteceu, antes vou explicar o básico sobre uma partida competitiva de LOL.
Uma partida oficial de League of Legends é composta pela fase de escolhas e banimentos e, em seguida, pelo combate. Durante os picks e bans os times tem a oportunidade de traçar sua estratégia para a partida através da seleção de campeões. Ao todo são aplicados dez banimentos, cinco para cada equipe, que excluem determinados campeões da possibilidade de escolha. Essa é a oportunidade ideal para atrapalhar a estratégia do adversário ao remover da partida personagens com os quais os jogadores possuem um bom desempenho, dificultando a escolha e obrigando a equipe a sair de sua zona de conforto. Na partida entre Vaevictis e RoX, uma equipe feminina contra uma equipe masculina, todos os campeões removidos do jogo pelos homens foram personagens que desempenham a função de suporte.
Os suportes são, em sua maioria, personagens que não apresentam bom desempenho em batalhas diretas “um contra um” e tem como principal tarefa proteger o carregador do time, uma das principais fontes de dano da equipe. Esta função é designada a um dos integrantes do time e comumente não é o foco do time adversário no momento das escolhas e banimentos. Como vimos anteriormente, a figura feminina é constantemente associada ao papel de suporte nos games por ter sua função relacionada a características associadas ao estereótipo da mulher na sociedade, como o cuidado e a dedicação ao outro. O que leva à famosa frase
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que grande parte das mulheres já escutou ao jogar online: “Suporte é coisa de mulher”.
No caso da polêmica partida, como forma de provocação, os adversários optaram por retirar dos jogos somente personagens que desempenham o papel de suporte deixando claro que seu posicionamento é pautado pela premissa acima apresentada.
Durante as escolhas, risos, comentários de deboche e uma postura desrespeitosa foram marcas da equipe masculina, enquanto as jogadoras mantiveram a postura séria e as escolhas focadas na estratégia para partida, que acabou com vitória do time masculino e provocou uma onda de discussões nas redes sociais. Se levarmos em conta as polêmicas que envolvem os eSports a mundial, foi a primeira vez que se viu com clareza uma atitude de violência de gênero bem como a comoção gerada na comunidade gamer.
Enquanto grande parte da comunidade buscava um posicionamento por parte da Riot Games, empresa responsável pelo jogo, outra mostrava que os pensamentos dos jogadores russos também eram compartilhados por uma parcela dos players. Ao final do episódio, a ação que era para trazer um novo significado e incluir as mulheres no cenário competitivo tornou-se um agente de revelação de pensamentos intolerantes e preconceituosos levando para fora das partidas isoladas falas, frases e posicionamentos que milhares de garotas já presenciaram em suas horas de jogo. Ao final, a desenvolvedora e publicadora do League of Legends se posicionou perante a comunidade e aplicou punições à RoX e outras equipes que agiram com postura desrespeitosa para com a equipe feminina. Longe dos holofotes, ações como esta continuam a ocorrer não somente em partidas de LOL, mas também em outros jogos.
A presença de mulheres no cenário competitivo é baixa, mas diversas iniciativas buscam alavancar a quantidade de jogadoras profissionais. Para Moondded, uma das organizadoras do Projeto Sakura, isso acontece em parte porque a competitividade e o ato de jogar não são incentivados para as mulheres uma vez que são vistos como característica do masculino. Desta forma, a presença de ações
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que incentivem a participação feminina neste meio faz-se necessária para gerar a representatividade que o cenário demanda.
Recentemente outro campeonato tomou as notícias tanto de forma positiva quanto de forma negativa. O torneio Girl Gamers é um campeonato pensado especificamente para o público feminino e realizado em diversas cidades ao redor do mundo. Nele cada região participante conta com um time campeão que disputará com as equipes das demais regiões pelo título mundial. São times compostos exclusivamente por mulheres, cis e trans, que competem nos jogos League of Legends e Counter Strike: Global Offensive. A fase final da edição Sul Americana do campeonato aconteceu na cidade de São Paulo e movimentou o público que curte os esportes eletrônicos. Na estrutura da Bad Boy Leeroy Arena, localizada na região do Brás, foi montado o cenário para receber as partidas que agitaram o público. Logo na entrada da arena era possível notar os diferenciais do evento ao ser recebido por uma equipe composta principalmente por mulheres. Em conversa com a organização do campeonato fui informada de que essa é uma das premissas do evento. Promover um campeonato onde as mulheres estivessem envolvidas não somente como jogadoras, mas também nas demais áreas que vão desde a operacional até a linha de frente, como narradoras, comentaristas, comunicadoras, entre outros cargos envolvidos.
Ao contrário do que se esperava, o público presente no evento era misto, composto por homens e mulheres fãs de esportes eletrônicos, amigos e parentes das jogadoras e até mesmo por jogadores e treinadores das equipes masculinas de CS e LOL. A disputa teve início na manhã do sábado, 05 de outubro, mas só conhecemos as equipes campeãs no final do domingo, 06 de outubro. Durante as partidas de Counter Strike cada eliminação era comemorada com entusiasmo e em momentos de tensão era visível a apreensão dos espectadores, mas a torcida especial ficou por conta dos pais de Naper, jogadora da INTZ que foi escolhida como a
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melhor jogadora da partida. Ela conta que essa foi a primeira vez que contou com a presença de seus pais em um jogo, mas que nem sempre foi assim, pois quando começou a jogar, a escolha causou algumas brigas. Para a jogadora, a torcida especial fez toda a diferença: “Minha mãe estava com minha camisa torcendo, então pra mim é um up a mais, um apoio muito forte vindo deles.” Pelo visto, o apoio realmente ajudou. As meninas da INTZ conquistaram o campeonato e carimbaram o passaporte para Dubai, onde será disputada a final mundial do torneio. Mas para chegar até ali, nem tudo foram rosas. Conversando com as jogadoras, uma questão foi unânime: a violência de gênero dentro do ambiente de jogo e no cenário competitivo. Lembramos que consideramos como violência de gênero ações que busquem discriminar, agredir ou ofender as jogadoras baseadas no gênero. Relatos de agressões verbais foram constantes, mas também chama a atenção os relatos de inferiorização das mulheres com a recusa de times masculinos a treinar ou disputar com os times femininos. Para Khiza, jogadora argentina de CS:GO, as críticas à equipe sempre estarão presentes, mas para seguir em frente é preciso ignorar essas críticas e criar novas formas de se manter no cenário.
Para ela, inciativas como o Gamer Girls são importantes, pois influenciam outras mulheres a jogar e promovem uma representatividade que faz com que as jogadoras participem não somente pela premiação, mas por serem parte de algo que está vindo para mudar o cenário dos jogos eletrônicos. E quando o assunto é representatividade, os times de League of Legends reforçam ainda mais o tema com a presença de mulheres cis e trans em suas escalações. Superando o hate dos outros jogadores e as dificuldades relacionadas a regulamentos específicos para mulheres trans, as jogadoras fizeram bonito nas partidas sendo pontos de referência para outras mulheres.
Para Alana, mulher trans, jogadora de League of Legends e espectadora do campeonato, ver que as mulheres trans ganharam
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a causa e estão marcando presença no competitivo feminino é algo para se orgulhar. “Todo mundo vive falando de inclusão, todo mundo quer que o que eles gostam seja incluído no seu cotidiano, mas ninguém quer aceitar as diversidades das outras pessoas, as mulheres trans estão ganhando muito espaço mesmo que grande parte da população não queira aceitar.”
Por mais que na arena o clima tenha sido marcado por emoção, alegria e muita garra, nas redes sociais a situação esquentou um pouco. Enquanto as partidas eram transmitidas era possível notar no chat a presenta de homens que utilizaram argumentos sexistas para justifi car cada uma das atitudes das jogadoras presentes nas partidas e também com relação a narração e comentários das casters. Comentários referentes à aparência das narradoras e à postura das jogadoras foram constantes, mostrando que a internet, por mais que proporcione momentos de interação e representação, também favorece o anonimato e a falsa noção de impunidade. Permitindo que pensamentos agressivos e retrógrados sejam transmitidos.
Ao fi nal do campeonato, a fi gura feminina foi protagonista e se mostrou presente nos mais diversos aspectos do torneio. Foram lágrimas de felicidade que marcaram os discursos após as partidas mostrando o quanto iniciativas como essa são importantes para divulgar e modifi car a visão que o cenário competitivo feminino tem hoje. Nas palavras de Michelle, “dar esses primeiros passos é importante para que os times tenham uma perspectiva do que vai acontecer no cenário feminino e possam mostrar isso pras pessoas.”.
Ainda assim estamos longe do que seria o cenário ideal, mas iniciativas como esta mostram o quanto já avançamos em relação ao princípio da história dos jogos e o quanto continuamos promovendo mudanças para alcançar o cenário ideal. Afi nal, o meio é diretamente infl uenciado pelos que atuam nele e a partir do momento que nos colocamos como seres capazes de modifi car o ambiente nossas ações começam a promover essa alteração.
Os obstáculos estão postos em nosso caminho, e a batalha contra eles está prestes a se intensifi car. 46