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ATENÇÃO: UM JOGADOR TÓXICO APARECEU
from Mulheres no controle
by Rede Código


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Mulheres no controle
Computador ligado, fones de ouvido conectados, partida iniciada. Era pra ser mais um jogo como qualquer outro. Fase de rotas, farmar minions, conseguir a maior quantidade possível de gold, eliminar inimigos, conquistar objetivos e, por fim, acabar com a base dos adversários.
Logo no começo a partida se mostrou pegada. O jungler ini migo marcou presença nas lanes pressionando meu time e fazendo com que ficássemos recuados em nossas funções. Como tenho essa característica de jogo, não me incomodei muito. Prefiro ficar na minha, crescendo no decorrer da partida e conquistando eliminações quando meu dano for o suficiente para isso. Em menos de cinco minutos de jogo o placar estava favorável ao nosso time apesar da pressão inimiga.
Continuei seguindo meu plano, mas permaneci atenta às movimentações nas outras rotas. Observava constantemente o movimento através das sentinelas que me garantiam a visão e sempre que notava algo de estranho fazia o possível para avisar meus companheiros de time. Em determinado momento o jogador que batalhava diretamente contra mim deu uma vacilada e eu aproveitei do erro para conquistar uma eliminação. A partir daquele momento acabou minha paz.
Visivelmente ofendido por ter sido eliminado, o player logo notou meu nickname feminino e começou a me dirigir ofensas diretas no chat do jogo. Palavras de baixo calão, bordões machistas e insinuações a respeito de minha aparência foram parte integrante do show de horrores que se seguiu. Encorajados pela postura dele, outros jogadores do time adversário começaram a me atacar de forma semelhante, enquanto eu apenas fazia o meu jogo.
Uma partida feita para gerar diversão foi causadora de stress. Por mais que eu tenha me mantido firme no jogo meu emocional se abalou com os comentários e principal mente com a naturalidade com que as ofensas foram ditas.
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Mariana Lienemann Ramires
A partida terminou, meu time saiu vencedor e minha cabeça repleta de questões.
Assim como eu, outras garotas jogadoras também passam por este tipo de situação desagradável. É perceptível que isso acontece com maior frequência quando nos identificamos como mulheres, seja por conta do nickname, por chat de voz ou mesmo aparecendo em streamings. O simples fato da presença de uma jogadora em um ambiente cuja tradição é a da presença masculina, é fator suficiente para gerar desconforto e ataques desnecessários com demonstrações de intolerância e discriminação. São ações como esta que fazem com que a maioria das jogadoras opte por não revelar seu gênero através do nickname.
Os relatos de violência de gênero e assédio nos jogos e redes sociais relacionadas a eles são inúmeros. Vão desde ofensas consideradas leves no decorrer das partidas a casos de importunação sexual e perseguição. Em pesquisa realizada para esta reportagem, 100% do público feminino entrevistado afirmou já ter sido vítima de violência de gênero nas partidas, além de identificar como tal fatores que vão além da agressão, mas que interferem na jogabilidade.
Uma das formas que as mulheres encontraram de driblar estas agressões foi a união através de grupos de whatsapp que promovem a interação e as incentivam a jogar juntas umas das outras. Estes grupos tornaram-se um espaço seguro onde histórias podem ser compartilhadas entre pessoas que tem interesses em comum mesmo que não dividam um espaço físico próximo ou comum. São mulheres do Brasil inteiro que se uniram e criaram laços de amizade, dividindo os acontecimentos e buscando apoio umas nas outras para seguir no jogo.
Foi em um destes grupos que conheci a Mônica, uma carioca de 21 anos de idade que começou a jogar League of Legends para acompanhar seu então namorado. A história dela com os jogos online começou quando conheceu pessoas que compartilhavam o gosto pelos jogos, mas foi aos 15 anos que ela começou a jogar pra valer, incentivada por seu namorado. O jogo, que parecia uma forma de
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unir o casal, se tornou, na verdade, um dos motivos que levaram à separação: “Ele terminou comigo alegando que eu tomava os finais de semana dele, que ele perdia tempo que podia investir no jogo ao ter que ficar comigo.” Ela, que ultimamente tem optado por jogos off-line, conta que sente o ambiente de jogo um local absurdamente hostil, onde as jogadoras são postas em uma posição de ignorar tudo e todos ou se expor e, consequentemente, ser atacada por se posicionar contra as agressões. Muitas vezes, a agressão é motivada pelo nickname utilizado. Quando mulheres se identificam com o gênero feminino e utilizam nicknames que seguem essa identificação a agressão é direcionada a ela. Por este motivo, Mônica, que sempre gostou de usar o próprio nome como apelido, se censurou evitando assim parte dos ataques ocorridos.
Para ela as agressões influenciam de forma a desestimular as jogadoras a participarem do ambiente de jogo. Foram diversos relatos de violência de gênero narrados, desde ofensas em jogo até um jogador que abandonou a partida para procurá-la no Facebook, retornando logo depois para ofendê-la no chat. “Já fui xingada por mil e uma pessoas que eu não faço ideia de quem são, falando que eu sou sem coração, que sou uma vadia, burra, inútil, que era melhor eu ser boa na cama porque não presto pra jogar.”
A princípio, as agressões faziam com que a experiência de jogo fosse gravemente afetada, mas hoje ela buscou tratar o ódio gratuito recebido com carinho e paciência. Tentando entender o que se passa por trás do personagem que promove aquela ofensa. Em um destes casos, ela diz ter recebido um feedback positivo do jogador que, após ser “acolhido” por ela, se arrependeu das ofensas realizadas e repensou sua postura durante as partidas.
Histórias como a de Mônica são comuns, e permeiam o ambiente dos jogos sejam eles casuais ou competitivos. No cenário profissional essas ofensas tendem a interferir de forma mais intensa, fazendo com que mulheres percam a vontade de se profissionalizar para evitar ficarem expostas a este tipo de agressão. Não é à toa que 51
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para as jogadoras profissionais os principais obstáculos na busca por um cenário feminino forte no competitivo são justamente o preconceito e os haters.
Para Yatsu, mid laner da Pink Swords e pró player da INTZ, o hate se destaca, mas o principal fator é a forma como lidamos com ele. Ela comentou um episódio recente em que sua colega de time, Mayumi, foi alvo de ofensas em partidas. “Um cara disse que ela estava jogando mal porque tem nickname feminino. Todos jogamos mal um dia, ninguém é um robô. Ainda acontece bastante disso de que se jogou mal é porque é menina. Ninguém fala que jogou mal porque é um cara.”. A jogadora ainda reforça que para ela a melhor forma de lidar com atitudes desrespeitosas é ignorar o agressor e seguir dando o melhor de si nas partidas.
Já Naper reforça que apesar de ainda existir muito preconceito no ambiente de jogo a cena está evoluindo, mas reforça que isso varia conforme o jogo que estamos abordando. “Quando comecei a jogar (CS) tinha bastante preconceito, quase não tinha campeonatos, e quando tinha era muita gente falando besteira. Já ouvimos muito xingamento, muita coisa ruim (...) No nosso cenário do CS os meninos tendem a entender um pouco mais, mas os outros cenários dos jogos é complicado.”
Ao pararmos para pensar, notamos que, conforme os dados da Pesquisa Gamer Brasil 2019, a maioria dos jogadores são do sexo feminino mas ainda assim o cenário competitivo é dominado pelos times masculinos. Para Michelle, da BBL, isso é uma consequência direta da violência de gênero sofrida pelas jogadoras. “A gente já participou, fez e viu várias campanhas que mostram que o mercado feminino não se fomenta porque elas sofrem assédio, bullying e isso faz com que elas não treinem e joguem muito por medo disso. Onde já se viu entrar em algo que é legal e acabar sofrendo esse tipo de agressão, ficar ouvindo besteira?” Ela ainda ressalta que este tipo de atitude afasta cada vez mais as jogadoras do ambiente dos jogos e também do sonho de se profissionalizarem. “A gente conversa muito sobre ter um cenário 52
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seguro onde elas possam se desenvolver enquanto atletas. Resolvemos ajudar a fomentar e profissionalizar o mercado feminino para que em algum tempo possamos ter meninas competitivas no formato misto que é o que seria ideal.”
Mas engana-se quem pensa que essas ações acontecem somente dentro do ambiente de jogo e na comunidade online. Fatores como estes somados ao pré-conceito associado à carreira no mundo dos jogos fazem com que a quantidade de mulheres atuando nos bastidores seja pequena quando comparada à quantidade de mulheres que gostam deste tipo de entretenimento. Contudo, quebrando este padrão, cada vez mais mulheres se destacam com cargos diferenciados e em posições de comando dentro deste ambiente. “Aqui temos produtoras, narradoras, apresentadoras e comunicadoras. Meu cargo, por exemplo, é de vice-presidente de operações, é uma mulher que tá encabeçando um cargo de grande importância, em um mercado ainda dominado pelo masculino.”
Assim como a movimentação do cenário competitivo do jogo pode auxiliar no combate à violência de gênero, outras ações também aparecem com este papel. Elas vão desde grupos que prestam suporte às jogadoras auxiliando no conhecimento e prática in game, até campanhas que tomam as redes sociais e mostram em formato de denúncias grande parte das faces da violência de gênero. No próximo capítulo vamos conhecer iniciativas que auxiliam a mulher jogadora e fazem com que o papel da figura feminina no ambiente de jogo, seja ela personagem ou player, seja repensado. Ações de grande importância e influência para que outras atitudes sejam tomadas.
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