Jornal Fala Favela (05)

Edição 09 / Rio de Janeiro / Complexo do Alemão / Março 2020 / Distribuição Gratuita Foto:

NO COMPLEXO DO ALEMÃO TEM MEIO AMBIENTE SIM. VIVA A SERRA DA MISERICÓRDIA

PARTICIPANTES DO JUVENTUDES EM MOVIMENTO FALAM SOBRE ENVOLVIMENTO E EXPERIÊNCIAS PROPORCIONADAS PELO PROJETO:

“Pude conhecer a história e origem do Complexo do Alemão, valorizando mais a favela”

UMA CRÔNICA SUPER BACANA SOBRE O SOBRENOME “SILVA” E COMO ISSO TEM RELAÇÃO DIRETA COM A HISTÓRIA DE ESPAÇOS POPULARES E PESSOAS COMUNS QUE LU TAM P O R DIREITOS IGUAIS

Olá, Pessoal; Como é bom fazer esse jornal. Ele tem cara de revista. É atemporal e tem uma identidade própria na editoria que vai além da linguagem. O Fala Favela é uma das principais experimentações e desafios de comunicação hoje promovido pelo Raízes em Movimento. É também comprovado um produto especial para a instituição. E nessa edição, novamente, teremos a favela como centralidade nos textos.

Aquele assunto que normalmente fica fora das pautas hegemônicas, mas aqui você se familiariza com ela ainda mais e percebe o valor em cada uma delas.

Dessa vez está ainda mais notável a importância que é estimular a produção dos(as) jovens que têm atuado junto ao Raízes. A maioria dos textos nessa edição é de autoria de alguns(mas) participantes do projeto Juventudes em Movimento, assim como a concepção geral das pautas a serem publicadas. Nas páginas à frente temos crônicas, poesias e artigos com um olhar voltado unicamente para a mensagem capaz de afetar (de afetividade), cada um de nós.

E como o Raízes em Movimento tem cada vez mais trilhado seus trabalhos na linha da Memória, foi um momento propício falar da Serra da Misericórdia e, com isso, trazer fotografias do projeto ESTAÇÃO NATUREZA, realizado pela ONG Verdejar Socioambiental, em 2012, no Complexo do Alemão. As fotografias aqui apresentadas são parte do acervo desse projeto, feitas em uma das saídas fotográficas que a turma fazia pela favela. Que incrível rever esse material.

Boa leitura;

EXISTE MEIO AMBIENTE NO CPX por Gizele Ribeiro

VERDEJAR (Luiz Poeta) “A Serra é quem clama, misericórdia!

Por entre balas e fumaças zona norte Rio A Serra se lança em seu maior desafio.

Verdejar já.”

Os moradores do Complexo do Alemão, quando perguntados sobre as condições ambientais existentes na comunidade onde moram, demonstraram desconhecimento sobre os elementos naturais que compõem o bairro em que vivem. Muitas pessoas não reconhecem a Serra da Misericórdia como parte deste território. De acordo com pesquisa de Cidadania Percebida que realizamos em 2019, somente 17% das(os) moradoras(es) reconhecem a existência de uma área de preservação ambiental. No Complexo do Alemão, a serra é incorporada pelas comunidades que cresceram ao seu redor.

Localizada na Zona da Leopoldina, zona norte do Rio de Janeiro, próxima ao Maciço da Tijuca e a Baía de Guanabara, a Serra da Misericórdia é o quarto maior maciço do município, estende-se por 27 bairros: Abolição, Bonsucesso, Brás de Pina, Cavalcanti, Cascadura, Complexo do Alemão, Del Castilho, Engenho da Rainha, Higienópolis, Honório Gurgel, Inhaúma, Irajá, Madureira, Olaria, Penha, Penha Circular, Piedade, Pilares, Ramos, Rocha Miranda, Tomás Coelho, Turiaçu, Vaz Lobo, Vicente de Carvalho, Vila Kosmos e Vista Alegre.

A partir do Decreto nº 19144/2000 tornou-se uma Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (Aparu) com objetivos principais de recuperar parte dos domínios originais da Mata Atlântica da região; promover o controle do crescimento das favelas existentes; proteger e recuperar os mananciais existentes; promover o desenvolvimento de programas de educação ambiental; preservar e ampliar a biodiversidade; melhorar a qualidade de vida da população local, entre outros. O

Decreto Municipal 27.469/2006 estabelece a Serra da Misericórdia como Parque Municipal. No ano de 2010, o Decreto 33280 renomeia para Parque Municipal Urbano da Serra da Misericórdia e objetiva destinar espaços públicos para o lazer, prática desportiva, e recreação em meio à natureza, promoção da educação ambiental e valorização das manifestações culturais e tradições locais. Estes decretos só puderam ser criados graças ao esforço e união de ONG’s locais como Verdejar, Raízes em Movimento, Oca dos Curumins, entre outras instituições locais.

O PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, que realizou algumas obras de urbanização no Complexo do Alemão - muitas ainda inacabadas teve um projeto para o parque urbano municipal que, infelizmente, nunca saiu da projeção de ideia.

Os moradores, em sua maioria, têm a saúde física e mental afetadas pelas diversas formas de violência que vivenciam diariamente, e acredita-se que com o acesso ao parque - se existisse - os mesmos poderiam ter melhores condições de direito ao lazer próximo ao seu local de moradia.

JOVENS RELATAM SUAS EXPERIÊNCIAS NO PROJETO por Gizele Ribeiro

O Projeto Juventudes em Movimento atravessou o meu caminho em um dos momentos de grande dificuldade em minha vida pessoal, eu estava no início de um amargo luto devido a morte do meu pai - vítima de “bala perdida” - causada por uma incursão policial em uma das comunidades do Complexo do Alemão. Eu precisava reagir para conseguir sair do fundo daquele poço. Por muitas vezes, eu achei que não conseguiria estar aqui hoje, da maneira que estou, vivendo a vida apesar da saudade. Eu sei que este projeto, ou melhor, as pessoas, que tornaram o JM realidade, mudaram a minha vida. A marca registrada em mim jamais irá se apagar, levarei todos para sempre em meu coração e serei eternamente grata.

Meu maior desafio era justamente lidar com as juventudes que são diversas e na minha mente todos eram tão diferentes de mim, a começar pelo modo de criação, pela cultura favelada que viviam e consumiam diariamente através das músicas, rodas de culturas, bailes, entre tantas outras formas que vibravam no modo de falar e agir em cada participante. Isso muito me assustou no início, logo eu tão polida com inúmeros cursos, ensino fundamental, médio e superior em instituições fora da favela estava ali me misturando com estas pessoas, neste lugar onde crescemos escutando que nada presta, não gera bons frutos, que se andar com um ou outro a gente se perde, engravida, não tem futuro e por aí vai. Eu cresci ouvindo isso, não foi de um ou outro, foram muitas vozes que ecoavam um único som: na favela não tem nada que presta! Você tem que estudar, conhecer a cidade, a vida lá fora, uma cultura adequada socialmente.

E aqui estava eu, não apenas misturada, mas participando, refletindo, produzindo e aprendendo em cada encontro. Sempre uma novidade. Uma gíria nova, um outro jeito de solucionar problemas, uma viela apertada mas cheia de vida com energia pulsante, bons sentimentos, cheirinho de comida no fogo e amor. Não posso afirmar que conheço cada comunidade no Complexo, mas através do JM agora eu conheço bem mais que antes.

Conheço muito mais do que podia enxergar no horizonte da minha redoma de vidro chamada Nova Brasília. Eu descobri que tudo neste território é tão único e tão plural. Tem siginificado. E é significante. Minha raiz profunda.

E com tantas descobertas, me orgulho cada vez mais das coisas boas e principalmente das pessoas que estão neste lugar.

Aqui eu pude aprender que por mais que eu me esforce, eu não sou o coletivo. Sou apenas eu. Sozinha. Não faço verão em vôos solos e rasantes. Descobri que quando assumo a responsabilidade de quase tudo, em todas as frentes o coletivo não caminha. Aprendi que preciso ter mais calma e empatia com a dificuldade do outro. Que nem tudo o que eu gosto vai agradar a todos e está tudo bem nisso.

por Maria Honorato

Em dezembro de 2018, me inscrevi para a seleção do projeto Juventudes em Movimento, pela rede social, passei pela seleção e foi um contato bem positivo estar juntos com outros(as) jovens, pois tivemos a oportunidade de compartilhar nossas histórias de vida. Depois de alguns dias recebi a notícia de que eu tinha passado pelo processo seletivo do projeto e foi aí que muitas coisas em minha vida começaram a mudar.

Logo no início do projeto conheci os(as) jovens que seriam minha família durante um bom tempo. Foi algo tão diferente, pois eu não tinha muito contato com pessoas da minha faixa etária, então foi um dos pontos bem positivos entre tantos outros.

Com o projeto eu comecei a frequentar o Centro da Cidade, uma coisa que era raro de acontecer, pelo fato de eu ter receio em circular por esses lugares, por ser um lugar tão grande cheio de prédios e muitas pessoas circulando ao mesmo tempo, então o medo de ficar perdida era maior do que a vontade de transitar por esses lugares.

O projeto me ajudou a controlar minha timidez, e logo no primeira saída para as ruas entrevistar os moradores, me surpreendi muito, pois eu tinha entrevistado em algumas horas 12 pessoas. Mesmo com minha timidez eu conseguia abordar as pessoas nas ruas para poder realizar as entrevistas e a cada dia meu número de pesquisa aumentava. A pesquisa de fluxo me fez circular por lugares no Complexo do Alemão que eu nunca tinha ido antes, com isso consegui conhecer melhor o território. Não foi fácil realizar 1903 entrevistas, junto com meus colegas, passamos por diversas situações durante um mês e meio dessa pesquisa de campo.

Quando estudei sobre gênero foi incrível. Me senti muito envolvida no assunto, aprendi muitas outras coisas relacionadas a gênero, sexualidade, o que era mulher trans e cis, e a homofobia. Foi algo que mais me despertou interesse para estudar, pesquisar, ler e compartilhar todo esse conhecimento.

Mesmo com algumas dificuldades eu consegui aprender a trabalhar em grupo e ajudar os colegas em algo que encontrassem dificuldade. Aprendi a ter concentração nos estudos e principalmente em minha vida. Aprendi a qualificar os indicadores de cidadania do Complexo do Alemão, com as rodas de diálogo, eu consegui articular e compartilhar todos os conhecimentos produzido com os indicadores de cidadania.

Com os meus coordenadores aprendi que devemos ser sempre positivos e nunca desanimar, por mais que esteja difícil a situação, devemos estar sempre fortes e enfrentar nossos obstáculos.

Levarei pra sempre as pessoas que me ajudaram, me ensinaram boas coisas até aqui. Guardarei todos os momento de grande aprendizado, de felicidade e também até os momentos de extrema exaustão.

E está sendo incrível poder participar de mais um projeto na minha comunidade pelo instituto Raízes em Movimento, guardarei todos os meus colegas que enfrentaram junto comigo as dificuldades e também as alegrias que o projeto Juventudes em movimento me proporcionou.

SÓ MAIS UM SILVA? por Gizele Ribeiro

As favelas na cidade do Rio de Janeiro têm sua origem no processo de esvaziamento de moradias do Centro para ocupação com atividades mais rentáveis e com mais dignidade moral, argumento utilizado no período colonial quando haviam cortiços nesta área.

Mesmo passados tantos anos, a população, em sua maioria pobre e negra, que atualmente reside em favelas continuou sendo vista pelas lupas das mazelas. Acostumaram-se a observar as favelas através do recorte da violência, com isso perde-se toda essência desta forma de ocupação e modo de vida que se origina no seio das diversas famílias que dão vida e tornam único o território. E por falar em família…

A família Silva é sem dúvida uma das mais conhecidas por todo o Brasil. Este sobrenome tornou-se comum com a vinda dos portugueses que desejavam se desvincular com o passado europeu tornando-se anônimos em um novo local. Silva significa selva, floresta ou bosque. Durante o período colonial, o sobrenome se espalhou, pois foi dado aos inúmeros escravos que por aqui chegaram, segundo o Dicionário das Famílias Brasileiras.

Nos anos 90, Mc Bob Rum lançava um hit que contava como os Silva são vistos na favela. No rap do Silva ele conta sobre um trabalhador e morador de favela que aos finais de semana saía para curtir um baile funk em sua comunidade e, por isso, ele era marginalizado. Mesmo passados mais de vinte anos do lançamento, a letra continua muito atual. Pobres, negros e favelados, muitos Silvas, permanecem sendo vistos muitas vezes pela sua limitação territorial – a favela – e com isso sofrem os mais diferenciados tipos de discriminação.

Ainda hoje é comum ouvir muitos relatos desta situação: jovens que não conseguem emprego nas áreas centrais e sul da cidade por morarem em favela ou nas zonas norte/ oeste/ baixada. São julgados também pela aparência física, estilo do cabelo, cor da pele, por não se adequarem a uma vida acadêmica, entre outros.

Até quando o racismo estrutural, estruturado em nossa sociedade, influenciará as escolhas nos processos seletivos e dificultar a vida de tantas pessoas?

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A CIDADE É TODA NOSSA MESMO por David Amen

Eu to no alto do morrão. Estudei na Zona Sul, em Botafogo, frequentei a Rua Farani nos intervalos. Já estive em varias exposições no CCBB, Centro do Rio de Janeiro. Já curti baile da Gaiola, Chatuba, Bulufa, Jacaré, Vidigal, em tantas outras partes da cidade. Ia de onibus, kombi, carro, moto taxi, de algum jeito tinha que chegar. Seja em bailes, museus, cursos ou praia, circulava a cidade construindo uma relação empírica com o sentimento de pertencimento. A Cidade é Nossa. Posso estar, estarei onde quiser e vou aprender.

Dei calote e pulei roleta em ônibus. Ia a praia descalço e sem documentos. Me divertia bastante na areia quente e quase branca. Usei carterinha vencida pra curtir clubes da região, falsifiquei assinatura do meu pai pra entrar em boate para maiores de 18 anos. Só queria curtir e dançar, apesar de ouvir muitas vezes que aquele lugar não era pra mim.

Corri e brinquei por ruas e vielas aqui no morro. Matei aula pra jogar bola na rua da escola e pra ir no Shopping, quase sempre em Madureira. Sem dinheiro. Antigamente estudante tinha acesso livre no transporte público. Dava vários rolés pela cidade. Ia de bicicleta até a Ilha do Governador aos domingos, carrinho de rolemã nas ladeiras adjacentes à favela e carona pendurado no caminhão do gás era uma das aventuras prediletas da época.

Fui pouco ao cinema, mas tinham vários pertinho de casa, ainda quando existiam salas nas ruas. Dava pra ir andando até o cinema de Ramos ou em Olaria. Que saudade dessa época. A cidade era menos densa, menos trânsito, mais democrática.

Pixei muros e toquei campainhas escondido. Corri, tropecei e levantei. Cresci. Sobrevivi. Sustentei todo sentimento de morador de favela, mas com direitos garantidos, conquistados, pela cidade que instiga e inpsira para a circulação, crie coragem e vai, siga em frente.

Só Vai!

JUVENTUDES FAVELADAS por Hugo Dullaham

Minha infância na favela Foi ver crianças brincando pela janela Olho pra cima vejo um céu estrelado Por balas traçantes pra todo lado Como consigo dormir sossegado Se sei que pessoas morrem do meu lado É assim…

Do nada vem um estampido Ouvem-se os gritos, abaixa que é tiro!!!

Correndo por becos e vielas Sem rumo, perdidos pela favela Pá pum…“cabô, tombô mais um’’ Na favela é assim Corre, corre sem parar Limpa aqui, lava ali e o chão a esfregar Mas né só de tristeza e violência, Que é feito esse lugar Voe, voe passarinho, o quão longe possa voar E onde quer que você vá Leve os prantos dessa mãe Pro seu coração consolar O que era deixou de ser E o que foi já não é mais.

Em mais um amanhecer Gerando esperança de PAZ Essa é a minha forma de descrever o meu olhar sob uma das faces do lugar onde vivo. Decidi transmitir em versos a parte triste. Fica mais bonito. A minha favela tem passado, presente, futuro; tem história, cultura, arte! E isso se encontra em qualquer parte, estampados nos muros grafitados desse outro lado da cidade.

No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição e definido pela Lei nº. 11.445/2007 como o conjunto dos serviços, infraestrutura e Instalações operacionais de abastecimento de água, esgotamento sanitário, limpeza urbana, drenagem urbana, manejos de resíduos sólidos e de águas pluviais.

Fonte: Trata Brasil

David Amen

JORNAL FALA FAVELA Editor: Ricardo de Moura Projeto Gráfico e ilustrações: David Amen Colaboradores(as): Alan Brum, Gisele Ribeiro, Hugo Dullaham, Hector Santos, Joice Cristh, Maria Honorato, Renato Tutsis e Thiago Matiolli Tiragem: 2000 exemplares Distribuição Gratuita

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