filamentos-ed14-

Page 1


ARTES E LETRAS NA DIÁSPORA AÇORIANA

ARTS AND LETTERS IN THE AZOREAN DIASPORA

DÉCIMA QUARTA EDIÇÃO

técnica

Director: Diniz Borges

Editorial Board: Linda carvalho-Cooley; Eugénia Fernandes, Emiliana Silva and Micahel DeMattos

Advisory Board: Onésimo Almeida, Duarte Silva, Teresa Martins Marques, Renato Alvim, Debbie Ávla, Manuel Costa Fontes, Vamberto Freitas, Irene M. F. Balyer and Lélia Pereira Nunes

Designer: Humberto Ventura - www.illustratetheweb.com

FICHA

EM poucas palavras...

director

in a few words...

Há edições que se erguem de uma maré interior — não da tinta ou do teclado, mas de um movimento profundo em que memória, imaginação e pertença se entrelaçam para formar um só corpo luminoso. Filamentos nasceu desse impulso: unir o arquipélago e a sua diáspora num mesmo sopro criativo, num mesmo gesto de escrita capaz de atravessar oceanos e reconhecêlos como casa. Desde fevereiro de 2023, temos escutado essas vozes dispersas e devolvido ao mundo — em páginas digitais e horizontes de palavra — o brilho múltiplo do que somos. Hoje, menos de três anos depois, celebramos a 14ª edição, outro território onde esse diálogo se adensa..

Esta revista literária pertence aos Açores e à diáspora, simultaneamente raiz e deriva, chão e navegação. Aqui, quem escreve das ilhas encontra quem escreve delas longe; aqui, as vozes exiladas reencontram o rumor do seu primeiro mar. Cada texto é uma ilha que responde a outra ilha. Cada leitura, uma travessia de regresso. Assim se compõe esta cartografia de afetos e pensamento: um arquipélago que se estende pelas páginas, um corpo cultural que pulsa entre continentes.

Com o crescimento da plataforma filamentosarteseletras.art, espaço vivo e plural que acolhe a diversidade essencial do nosso projeto, decidimos renovar o compasso editorial da revista: a partir de agora, quatro edições anuais, mais amplas, mais meditadas

por vezes inteiramente dedicadas a um tema, uma figura, um universo que mereça aprofundamento. A plataforma continuará a acolher a multiplicidade; a revista oferecerá, em cada número, uma concentração luminosa dessa mesma pluralidade.

A 15ª edição, que surgirá em fevereiro de 2025, celebrará também o terceiro aniversário de Filamentos — inaugurando este novo ciclo com o fôlego que só os projetos enraizados na comunidade e na imaginação coletiva conseguem sustentar. A todos os que contribuíram para esta edição — autores, tradutores, leitores, pensadores, artistas — deixamos um agradecimento profundo. Nada aqui existe sem o vosso gesto. Cada colaboração é um laço que fortalece esta ponte atlântica; cada texto, uma prova de que a cultura não precisa de território fixo para florescer.

Que esta décima-quarta edição vos encontre como a maré encontra a rocha: trazendo algo antigo e algo inesperado, algo que era vosso e algo que ainda não sabiam que procuravam. Que a leitura prolongue a travessia. E que, ao fecharem estas páginas, sintam que o diálogo entre o arquipélago e a diáspora — esta conversa longa, luminosa e necessária — continua sem fim à vista.

Abraços

Diniz

There are editions that rise from an inner tide — not from ink or keystrokes, but from a deep, luminous current where memory, imagination, and belonging entwine to form a single radiant body. Filamentos was born from that impulse: to bind the archipelago and its diaspora in one creative breath, one gesture of writing capable of crossing oceans and

recognizing each shore as home. Since February 2023, we have listened to these scattered voices and returned to the world — through digital pages and widening horizons of language — the many-hued brilliance of who we are. Today, less than three years later, we celebrate Issue 14, another territory where this dialogue gathers strength.

This literary journal belongs to both the Azores and its diaspora — at once root and drift, ground and navigation. Here, those who write from the islands meet those who writefrom far beyond them; here, exiled voices rediscover the murmur of their first sea. Each text is an island answering another island. Each reading, a crossing toward home. Thus unfolds this cartography of affection and thought: an archipelago extended through pages, a cultural body pulsing across continents.

With the growth of our platform filamentosarteseletras.art, a vibrant and plural space that now fully embodies the diversity at the heart of our project, we have chosen to realign the journalism rhythm. From this point forward, we will publish four editions a year — larger, more contemplative, sometimes devoted entirely to a single theme, figure, or constellation that merits deeper attention. The platform will continue to host multiplicity; the journal will offer, in each issue, a concentrated and curated radiance of that same diversity.

Each contribution strengthens the bridge across the Atlantic; each text is proof that culture does not require fixed territory to bloom.

May this Filamentos 14 reach you as the tide reaches the Azorean cliffs: bringing something ancient and something unexpected, something that was already yours and something you did not yet know you sought. May the reading continue the voyage. And may you close these pages with the sense that the dialogue between the archipelago and its diaspora — this long, luminous, necessary conversation — is far from finished.

The 15th edition, to be released in February 2025, will mark the third anniversary of Filamentos — opening this new cycle with the vigor that only projects rooted in community and collective imagination can sustain.

To all who contributed to this issue — writers, translators, readers, thinkers, artists — we offer our profound gratitude. Nothing here exists without your generosity.

De Pedro Almeida Maia e dos nossos outros condenados

Vamberto Freitas

Comecemos pelo essencial que contextualiza este romance de Pedro Almeida Maia. Condenação:Uma

História De Um Gangster Açoriano na América é o volume que encerra a sua trilogia de uma outra imigração nossa ao longo de décadas, ou nos últimos dois séculos, os anos da mais numerosa fuga açoriana e procura de um outro destino, que não, uma vez mais, a condenação da miséria e da descarada opressão: Ilha-América (2020) e A Escrava Açoriana (2022) Antes de mais, uma observação também relevante.

Por entre a história constante de um abandono das ilhas açorianas por pura necessidade, quase sempre seguida pelas notícias da suposta prosperidade e felicidade dos que se reinventaram nos novos mundos, Almeida Maia atreveu-se, por assim dizer, a ficcionar essas outras experiências nos Estados Unidos e no Brasil.

Basta recordar a aventura real do jovem que foge para o outro lado do mar, a oeste, metido no vão das rodas de um avião a partir de Santa Maria — um feito devidamente documentado, mas de quem nada mais sabemos — e da jovem de Ponta Delgada que ruma ao Brasil ao encontro do sonho, mas acaba por sofrer a indignidade de uma sociedade que ainda procurava viver todo o seu passado de esclavagismo sexual, esquecendo o que temos por ser a dignidade humana.

esta, apenas insinuar a estilística e as temáticas absolutamente originais na literatura portuguesados Açores. Almeida Maia é esse escritor de ficção que investiga os factos, e depois imagina, em parte, o resto das suas histórias.

Desfaz mitos, desfaz a ideia de sermos os trabalhadores silenciosos, cautelosos, sofredores. É o outro lado da nossa suposta epopeia — a anti-epopeia da vida e do destino nas Américas do nosso sonho — a América também de alguns dos nossos desconhecidos sofrimentos. Condenação completa a nossa suposta odisseia, como só pode toda a grande arte literária. Se as nossas ilhas têm alguns nomes de santos, são ainda mais — foram também as ilhas dos demónios que nos exploravam ou simplesmente nos ignoravam e nos abandonavam.

Estamos aqui, nos anos 20/30, na gritante hipocrisia da chamada “Lei Seca” e do crime que ia muito além da proibição da venda ou consumo de bebidas alcoólicas nos EUA. Salvador Silver nasceu em Fall River; depois vivia em Providence com a mãe e as irmãs que lhe restavam, sempre irrequieto e tornado, pois claro, um alcoólico. Depressa se torna conhecido de mafiosos italo-americanos, com tudo o que isso implica em termos de sobrevivência a qualquer custo.

Não se podem dar pormenores de uma grandiosa e desusada trilogia como

Com ferros me matas — não é assim entre nós em alguma arte? — com ferros morres. Um jovem de origem açoriana acurva-se sem querer perante um dos mais famosos casos de injustiça norte-americana: o caso muito documentado, em livros e cinema, de Sacco e Vanzetti, os dois notórios anarquistas.

Sigamos com a prosa de Pedro Almeida Maia. O romance está estruturado a partir da inevitável influência dos thriller americanos; cada frase insinua a eventual desmontagem dos mistérios da narrativa, da sorte de cada personagem. Pelo meio, temos a vida diária e humilde da família de Salvador Silver, a sobrevivência pobre que tudo havia prometido, menos a tragédia que assolava alguns dos imigrantes, cujos sonhos se tornariam o absoluto contrário. Um filho desintegrado naquela sociedade não era assim tão comum, mas ainda hoje acontece o desterro permanente nas ilhas ou noutras partes do país que desconhecem. A dignidade do infeliz protagonista de Condenação é que tenta corajosamente salvar, sem sucesso, da cadeira elétrica os dois anarquistas, sem ele próprio fugir à sorte de uma morte precoce pelo mesmo processo numa prisão sem apelo ou qualquer perdão, mesmo todos sabendo dos seus desvios mentais, dos seus vícios sem aparente solução.

Para além de toda esta história estar ligada a esse famoso caso de injustiça e de preconceitos raciais e ideológicos, há algo mais de grande importância para a nossa própria história da imigração. Na grandeza desta trilogia reside um ato literário inusitado. Pedro Almeida Maia conhece muito bem a grande epopeia dos açorianos que atravessaram o Atlântico desde o século XVIII, repita-se sem apologia, em fuga à fome e à indiferença deste que é o nosso país natal.

Os relatos que nos chegavam eram de “sucesso”, muitas vezes falso, raramente abordando qualquer tragédia ou sequer infelicidade. Só que havia a outra parte — que pensamos ser uma minoria — cuja sorte, ou audácia rebelde, nunca deixou de existir. A trilogia única de Pedro Almeida Maia contanos esse outro lado da mesma moeda, em linguagens que se fundamentam, repito, em investigações aturadas: as investigações

possíveis num longo tempo ido, em vários continentes e países, ou nos feitos raros do nosso destino.

Ficção, por certo, mas que mistura a documentação sistemática com a profunda imaginação de um ficcionista que agora se coloca ao lado de outros escritores do mesmo género entre nós, aqui nos Açores.

Condenação: A História de um Gangster Açoriano na América segue apenas a vida de uma família açoriana de origem micaelense, em mais de trezentas páginas de fôlego e pormenor. Seria difícil entrar pelos meandros da vasta maioria que construiu para si um futuro simultaneamente de alegria e felicidade. A saudade da terra natal surge aqui em poucas palavras. É uma narrativa centrada nessa vida pouco comum entre nós — mas real — na terra do nosso histórico acolhimento.

Distingue-se por entre os meandros de uma América que tudo oferece, e tudo pode retirar

quando as suas regras são quebradas; quando a sua dureza ultrapassa a força de alguns menos aptos a enfrentar os seus sacrifícios, perante a aspereza das antigas fábricas ou dos campos, tudo adquirido legitimamente ou pelo crime, a ambígua conquista no grande país.

A escrita deste autor não faz julgamentos, e muito menos contextualiza valores ou a ideologia do “sucesso” ou do “falhanço”.

Conta uma história fascinante, de página em página — essa América feita de transgressão e violência, da criminalidade que desde o seu início nunca esteve ausente, parte íntima dos que nunca aceitaram a escravidão que hoje se espalha pelo resto do mundo, e que todos nós fazemos por ignorar ou tolerar.

Salvador Silver é um “perdedor”, um outro fraco que se autojustifica com a falta de sorte familiar, particularmente com a precoce morte do pai, num país em que o trabalho insano era o quotidiano essencial a um mínimo de existência respeitável.

Nenhum — ou pouquíssimos — leitores se irão rever nas suas opções de vida sem futuro. Terá de aceitar, numa obra de arte literária, que o “outro” poderá ser cada um de nós; terá de aceitar que a humanidade que desejamos também não tem geografia, como bem sabemos. Não somos diferentes em nada, nem para o bem nem para o mal.

Vamberto Freitas, crítico literário

Pedro Almeida Maia, Condenação: Uma História de Um Gangster Açoriano na América, Cultura Editora, Lisboa, 2025.

No BorderCrossings, do Açoriano Oriental, 14 de novembro de 2025.

Quando o desejo sabe a mar, de Carlos Enes,ou a navegação dos corpos

tem, como leitmotiv, duas relações apaixonadas e clandestinas, em que o desejo antecede o amor.

“E quando o desejo sabe a mar, a onda ultrapassa o infinito.” (pág. 200)

Acabo de ler um romance impregnado de erotismo e que mergulha fundo no imaginário terceirense: Quando o desejo sabe a mar (Letras Lavadas Edições, 2025), de Carlos Enes, o historiador que na literatura encontrou a sua estrada para Damasco.

Natural da Vila Nova, ilha Terceira, e herdeiro assumido da tradição oral, este autor, que já havia dado boa conta de si na ficção narrativa com Terra do Bravo (Instituto Açoriano de Cultura, 2005), reincide agora com Quando o desejo sabe a mar, sendo notório um salto qualitativo deste em relação àquele livro.

Escrito em bom vernáculo e com fluidez narrativa, a ação do romance decorre precisamente na ilha Terceira, no decorrer dos anos 60 e 70 do século passado, e começa por traçar um muito bem conseguido retrato da época: um tempo marcado por um profundo mal-estar português, com subdesenvolvimento, pobreza, intolerância, a guerra colonial, a PIDE e todas as chagas sociais, políticas e culturais deixadas pelo Estado Novo.

Com um título expressivo e plurissignificativo, Quando o desejo sabe a mar tem tanto de apreensão de um mundo real como de construção de um mundo fictício. No fechamento e circularidade da ilha, a trama do livro

A primeira acontece entre Ricardo, um jovem de 18 anos, e Maria do Nascimento, beirã, empregada doméstica “a rolar pela casa dos trinta” (pág. 20). Partilhando secretas cumplicidades e eróticas intimidades, ambos se entregam ao desejo inadiável. Ricardo tipifica — e bem — a adolescência: tempo de descoberta e aprendizagem, onde habitam as primeiras emoções e sensações, os ritos iniciáticos, o despertar para o mundo e para o conhecimento das coisas. Órfão de mãe, é arrancado da sua freguesia rural e vem estudar para o liceu de Angra, ficando instalado em casa dos padrinhos: Augusto, que andou pelas Américas e é homem de negócios bem-sucedido, e Beatriz, cerca de 30 anos mais nova do que o marido, mulher bela, atraente e sensual que, em busca de ascensão social, vive de luxos e mordomias.

E porque “não se faz boa literatura com bons sentimentos” (André Gide dixit), a segunda relação é ainda mais escaldante, implicando adultério com contornos de um crime de padre Amaro, à boa maneira quéirosiana. Aproveitando as sucessivas ausências do marido em viagens de negócios, Beatriz e o padre Maurício cedem aos apelos da carne — na pulsão do desejo, na vertigem do prazer, na navegação dos corpos e na explosão dos sexos.

Para os amantes pecaminosos, as consequências das suas ações serão

Víctor Rui Dores

muitas, a começar por um pesadíssimo sentimento de culpa.

De resto, Beatriz é reincidente, pois, anos antes, já havia atraiçoado Augusto quando, num hotel de Lisboa, seduziu e se deixou seduzir por um joalheiro.

Está dado o mote e, obviamente, não contarei o que se segue, pois é ao leitor que cabe fazê-lo. Apenas direi que Carlos Enes sabe modelar as suas personagens, dando-lhes consistência e profundidade psicológica.

Por exemplo: D. Glória das Mercês de Albuquerque e Távora, senhora de duvidosa nobreza, paroquiana dada a chás, licores e canasta. E gostei particularmente de uma figura deveras cénica: Ulisses Parménio, “autointitulado poeta-filósofo” (pág. 93), excêntrico, dotado de espírito crítico, especulativo e dialético, com observações judicativas e um discurso quase filosófico.

Não há literatura sem geografia. Por isso, o autor capta, a partir do microcosmo de Angra do Heroísmo, aspetos da realidade humana, geográfica, social, cultural e política da ilha Terceira: campo versus cidade, ruralidade versus urbanismo, burguesia versus povo. O luxo do Lawn Tennis Club ou a limpeza do Clube dos Oficiais Americano em nítido contraste com os bairros pobres das periferias de Angra do Heroísmo e da Praia da Vitória — ou seja, um verdadeiro “espírito do lugar”.

Com efeito, as 254 páginas de Quando o desejo sabe a mar percorrem tradições, usos e costumes, ciclos e ritos de vida do povo terceirense, tido por festivo e festeiro, dividido entre o religioso (o Divino Espírito Santo) e o profano

(as folgas), num tempo em que todos os caminhos iam dar ao Pátio da Alfândega, porta de entrada e saída de Angra, cidade imersa no seu plácido sono histórico do “aqui já só foi Portugal” e politicamente dominada por situacionistas.

Belíssimo é o retrato que nos é dado de Angra, a cidade dos cheiros das mercearias e dos odores das pastelarias; da Rua da Sé, do Teatro Angrense, da Recreio dos Artistas, da Fanfarra Operária; dos engraxadores da Praça Velha, dos passeios no Jardim Público e das compras na Praça do Mercado; dos bailes do Clube Musical Angrense; dos boatos no Atanásio e dos mexericos no canto da Caixa; das tardes de domingo de futebol entre o Lusitânia e o Angrense; das tertúlias de clubes e cafés, onde jovens insubmissos e contestatários (e Carlos Enes foi um deles) partilhavam opiniões irreverentes.

À cidade de Angra iam chegando os ecos da crise académica universitária de 1962 e do Maio de 68, em França, bem como as ideias arejadas do Concílio Vaticano II (“a aurora dos novos tempos”, como então se dizia), de cujo aggiornamento foram defensores alguns professores do Seminário, tendo daí resultado ventos de mudança a nível cultural.

Fizeram-se então ouvir alguns movimentos progressistas da Igreja. Sucederam-se as edições de livros de jovens poetas emergentes. Houve cinema e teatro na sua expressão moderna. E gente corajosa a dizer coisas corajosas aos microfones do Rádio Clube de Angra. Existiu a cooperativa cultural Sextante e a Galeria Gávea. E as reuniões subversivas em casa de um advogado sindicalista… E, acima de tudo, havia uma imensa “vontade de revirar o mundo” (pág. 197), não fosse a literatura uma procura do sentido da vida e uma interrogação do homem no mundo.

Neste ambiente, Ricardo já não quer tirar o curso de engenharia. Em vez disso, cuida dos bens do padrinho Augusto, de quem será herdeiro, torna-se rebelde, sonha com uma sociedade mais justa e deseja mudanças radicais. Pouco tempo depois, a sorte veio ter com ele: acontece a Revolução do 25 de Abril de 1974 e nada em Portugal viria a ser como dantes.

Quando o desejo sabe a mar dá conta disso mesmo: a instauração da democracia e as mudanças ocorridas no país; os entusiásticos anseios dos movimentos do MFA e do PREC; a exaltação revolucionária e os conturbados tempos de uma deriva ultraesquerdista; o fim da guerra e fim de um ciclo colonial; a inquietação populista do Verão Quente de 75 e, nos Açores, as emboscadas e a ação terrorista do movimento independentista da FLA.

Quando o desejo sabe a mar é um romance com grande poder evocativo, eficácia descritiva, capacidade narrativa e indiscutível qualidade literária. Saudemos a humaníssima voz de Carlos Enes, escritor em trânsito por várias linguagens que, escrevendo da Rua do Galo para o Mundo, continua a engrandecer e a dar luzimento à nossa literatura, por mais que ele diga que só é historiador.A Poem and an interpretive noteHomily for the Last Beer and a Shot BreakfastSam PereiraNoone understoodBack then how a man avoided deathBy leaning into the greasiest omeletAvailable in the central plainsAnd washing it downAt a random Joe’s PlaceWith a bourbon over iceWhile calling it her delicious earThat even in the best of times no one

Homily for the Last Beer and a Shot Breakfast

Sam Pereira

No one understood

Back then how a man avoided death

By leaning into the greasiest omelet

Available in the central plains

And washing it down

At a random Joe’s Place

With a bourbon over ice

While calling it her delicious ear

That even in the best of times no one

Ever died from clinging to.

Years later, after the fall of America

A man’s liver might blossom

Into a full-blown and in bloom rose

The kind with its thorns hidden

In some obscure gravy of love.

Through all of this there would be

And I say this with intermittent shame

Several illustrious vestibules

Inside some opportune religion

Men carrying baskets of gold

Presumably to purchase the afterlife

In the form of a new kitchen stove

For a dilapidated rectory

In the name

Of some drunk’s immortal soul.

2025 Sam Pereira

The Sacred Ordinary: Reading Sam Pereira’s

“Homily for the Last Beer and

Diniz Borges

Sam Pereira’s “Homily for the Last Beer and a Shot Breakfast” is a hymn to the flawed divinity of everyday life. It proves, yet again, the poet’s rare genius — his ability to draw light from the residue of ruin, to turn the raw materials of American existence into a liturgy of survival and grace. Few poets can make the “greasiest omelet” and a “bourbon over ice” feel like relics of endurance, sacraments for the weary heart.

Pereira’s poem moves between elegy and stand-up prayer, as if Whitman had wandered into a roadside bar at the end of empire, raising a toast to what’s left of tenderness. There is something deeply American and profoundly AzoreanPortuguese in this vision: a spiritual toughness that knows the body decays, but the soul insists on singing even as it coughs. Humor here becomes theology — the way a man might keep faith through laughter when everything else has been repossessed.

When Pereira writes that

“a man’s liver might blossom into a full-blown and in bloom rose,”

he turns the grotesque into grace, redefining redemption not as purity but as the strange flowering of what remains human amid collapse.

By the poem’s end, his world becomes a surreal sacrament: men bearing gold to

a Shot Breafast”

“purchase the afterlife in the form of a new kitchen stove.”

The absurd and the divine clasp hands — commerce and salvation, whiskey and prayer. Pereira’s closing image is visceral and beautiful, comic and tragic, earthly and heavenly. It is a benediction for a bruised country and a poet’s reminder that the true miracle is not ascent, but endurance — the courage to keep loving in a fallen world.

Notes on slavery in the Azores

Teófilo Braga

The subject of slavery in the Azores, or even in the country, is almost taboo. It is rarely discussed in society and has not yet been adequately addressed in our schools. In fact, throughout 11 years of schooling— primary, middle school, and high school—I never heard about it, and this year, when I asked my 9th-grade students in the Citizenship and Development class, they said they were unaware of the existence of slaves in the Azores.

Apparently, the silence remained despite the legislation prohibiting talk of slaves, referred to by Ana Barradas in her book “Ministros da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa” (Ministers of the Night – Black Book of Portuguese Expansion), which is transcribed below, as being very old and no longer in force:

“Any Portuguese citizen or any individual of another nationality residing in Portuguese territory who intentionally, through speeches delivered at public meetings or through manifestos, brochures, books, newspapers, or other publications intended to be sold or distributed free of charge to the public, disseminates false information in order to demonstrate the existence of slavery or the slave trade in the Portuguese colonies, shall be punished with a fine of 2,000 to 20,000 escudos or with imprisonment for up to two years, and may also be expelled from Portuguese territory. (Labor Code for Indigenous People of the Portuguese

Colonies in Africa, December 6, 1928).”

As a teacher of the subject, as mentioned earlier, which includes human rights as one of its topics, I began researching the subject. Last December I attended the recording of the 7th Encontro com História (Encounter with History), promoted by Históriasábias – Associação Cultural, on “Slavery in the Azores (15th–19th centuries).”

Listening to Professor Margarida Vaz do Rego Machado talk about the will of one of the greatest merchants of the Azores of his time, NMRA – Nicolau Maria Raposo do Amaral (1737–1816), in which he requested that one of his slaves be kept and welltreated by his children during his illness, I remembered that I had some documents that had been given to me for consultation by a descendant of that businessman.

All the examples mentioned below were taken from the documentation mentioned earlier.

In a letter dated February 7, 1777, addressed to Manuel Correia Branco, NMRA regrets that he cannot be of service because there is no mulatto woman on the island as desired, but that he will make arrangements to “buy one who is not older than 14 years of age, and who is not ugly, and if I can buy her, I will send her to be taught in your house so that she can serve My Lady.”

In a document entitled ”From the 4th Copier of NICOLAU MARIA RAPOSO DO AMARAL (FATHER) copy dated July 25, 1782), regarding the facilities of the “College that belonged to the so-called Jesuits of the island of São Miguel,” that businessman complained

that “of the 18 cubicles mentioned above, 12 are for the accommodation of my family.”

And what was family to him? Here is the answer: “my wife, five daughters, four sons, a nanny, two maids, four female slaves, and servants and three male slaves...”

On May 12, 1784, in a letter addressed to João Filipe da Fonseca, NMRA writes that he may send a ship from Angola to Rio de Janeiro with slaves.

On August 6, 1785, NMRA, in a letter addressed to the same recipient, after writing that he felt “that the spirit of the law must be preserved in these Islands for the freedom of the Blacks brought from our America,” adds the following: “The inconvenience suffered here due to the lack of slaves is incomparable: my house cannot function otherwise, and since Your Majesty tells me so, it seems that I am under a strict obligation to grant freedom to a few who accompanied me from Brazil years ago in good faith.”

In a letter dated August 6, 1785, addressed to João Filipe da Fonseca, NMRA again refers to slavery on the island of São Miguel, as follows:

“I am sorry to hear the news you have given me, that the spirit of the Law must be preserved in these Islands for the freedom of the Blacks brought from our America. The inconvenience suffered here due to the lack of slaves is incomparable: my house cannot function otherwise, and since Your Majesty tells me so, it seems that I am under a strict obligation to give freedom to a few who accompanied me from Brazil 17 years ago in good faith.”

from the island of Madeira, the following can be read at a certain point:

“I am sending Your Majesty a Black slave of mine, named Rosa, who was raised from a young age in this House, where she learned all the duties of her service. I purchased this slave from a daughter of Dionísio da Costa o Marchante, as stated in the deed I am sending to you, along with a certificate of her age and a power of attorney for you to make this sale, either at auction or by private agreement, as soon as you can and as soon as she arrives.

This slave has had no vices until now. Still, I am ordering her to be sold because I know that she has dishonored herself with a slave from this house, whom I believe to be pregnant. If this misfortune had not befallen her, I would not sell her for all the money that might be offered for her, and she would be freed upon my death and that of my wife.

In a letter dated March 20, 1796, addressed to José Inácio de Sousa Melo,

What I am telling Your Excellency is the truth, and I hope that she will find a good house to buy. Your Excellency will use her net income to pay the amount I am requesting, and you can send me everything by this ship or by another that is leaving for this island. Otherwise, Your Excellency will send it in letters to Lisbon, as I recommend. If Your Majesty wishes to keep this slave, you can do so for ten thousand reis less than the highest price”

offered for her: that is, if she pleases you.”

On October 6, 1797, in a letter addressed to Jerónimo José Carvalho, he mentions owning three slaves. Otherwise, he would be forced to sweep the stable and carry water to his house.

On March 8, 1800, in a letter addressed to João Filipe, NMRA mentions the liberation of slaves “by the pardon of the Law, notwithstanding some Sentences of the Court of Appeal that oblige them to slavery, based on the fact that the Law does not extend to these islands, but only to the kingdom”, and goes on to state that no one dares to send for blacks from Brazil because they risk losing them.

In 1802, in a letter dated August 8, addressed to Manuel Tomás, he writes that he “plans to send a brown slave to Lisbon to learn to be a coachman.”

In a letter sent to João do Rego Falcão, from Pernambuco, he writes about two slaves he bought in Ribeira Grande, asking him to sell them because “they have degenerated into the vice of cohabiting with various concubines” and because they have begun to want to revolt against him.

In a letter addressed to the João mentioned above do Rego Falcão, dated November 14, 1804, he places a series of orders, such as honey, cotton, rosewood sticks, etc., and “a well-built Molecão slave, with good legs, who can already carry a barrel of water: being of a good Nation, not Cabondá, Moxecongo, or Mujólo, or other disapproved nations, but rather from the best nations,” as well as “three black Moleconas with good faces, girls aged twelve to fifteen years old, more or less, so that they can knead bread and serve a house well, being from

good nations as I have recommended, and none from the disapproved races.”

On October 6, 1805, NMRA writes to João do Rego Falcão acknowledging receipt of the requested slaves. Thus, according to him, “the Moleque and Negrinhas arrived alive. The Moleque’s homeland is unknown, only that he is from the Malagueta or Cafraria coast. One Negrinha Cabondá, being from the worst nations, and two Benguelas.”

In 1807, the slave trade continued. In fact, NMRA wrote in a letter to Joaquim José da Fonseca that he “wants to sell a black slave because she mistreated a granddaughter.” He does not want her to stay on the island and asks that she “be sold to a charitable home, even if it is for less than her value.”

When it comes to the abolition of slavery, the first step was taken in Portugal in 1761, through a charter ordering the liberation of all black slaves who arrived in the metropolis. Complete abolition, throughout the territory under Portuguese control, at least on paper, would not occur until February 25, 1869.

Despite the legislation passed, in practice the extreme exploitation of the human workforce continued to such an extent that in a book published in 1944, Norton de Matos, who was governor of Angola, wrote the following: “Slavery continued (...) in Angola and other African colonies, almost to the present day. Concealed, camouflaged, sophistically disguised, it continued to exist, and I would certainly be remiss if I did not state that I found it under various names or disguises in the Portuguese overseas province that I governed in 1912 and the following years.”

History cannot be erased or judged with today’s eyes, especially since slavery continues to exist, with more people in slavery today than in the past. According to the ACEGIS—Association for Citizenship, Entrepreneurship, Gender, and Social Innovation—there are 40.3 million victims of modern slavery in the world, a quarter of whom are children.

If we cannot correct the mistakes of the past, we can act to prevent them from continuing in the present and the future. The first step is to study history, not hide anything from new generations, and denounce all situations of slavery, whether overt or covert.

Bibliography:

Barradas, A. (1991). Ministers of the Night—Black Book of Portuguese Expansion. Lisbon: Antígona.

Casas, B. (1990). Brevíssima Relação da Destruição das Índias (A Very Brief Account of the Destruction of the Indies). Lisbon: Antígona.

Mendes, L. (1977). Memória a respeito dos escravos e tráfico da escravatura entre a Costa d’África e o Brasil (Memoir on slaves and the slave trade between the African coast and Brazil). Porto: Publicações Escorpião.

The Myth of the Consensual Culture

Do we still think about cultures as areas of consensus, where shared visions of the world allow coordinated action?

This was the dominant understanding, from the 40s on, as the influence of the work of anthropologists such as Ruth Benedict and Margaret Mead grew, stemming from research on remote Pacific islands.

Soon after, and as a means of fostering and maintaining consensus, cultures began attracting attention from disciplines beyond the original anthropology/sociology/psychology block. Organizational administration and management seemed the most interested of all. By the 70s, “organizational culture” was established not only as a concept in organizational theory but also as a managerial apparatus for achieving greater efficiency.

Lasting for a few decades, what seemed a fashion became a natural interest in the new perceived nature of culture, now understood as part of the organizational morphology (Smircich, L. 1985).At this point, we can consider some of the formal questions and preoccupations of today’s scientific communities, topics such as: Is this perspective of culture closer to objective reality? Given all the investments made in its study, are we getting any meaningful results? Is it returning any profits? And, despite all efforts, is “management by culture” more

efficient now than any other model of the past (the hierarchical, for example)?The answers that could shed light on these questions seem to be still far away from an established understanding. Instead, polemic new perspectives are destroying the clear view of a consensual paradise, coming from the first reports on “culture”. As a result, its definition, under the consensual perspective, is now seen as more difficult than ever. On the contrary, and due to the evolution of the concept, cultures are now understood as controversial arenas where each participant or member holds a different position on each issue.

At the other end of the swing, or the opposite pole, this understanding is reinforced by modern approaches, which stand in contrast to the dogmatic, authoritarian one of the past. However, societies (including their scientists), have changed now assuming a much more democratic posture towards difference. From this new point of view, we can appreciate more clearly the dynamic and controversial flows of influence that sweep a “culture” during its process of reality construction and adaptation.

In this context, cultures arenow better understood when approached through a Differentiation perspective, or even a Fragmentation one (Meyerson, 1991), which allows for a broader scope of the events and actors being observed, rather than through a limited, outdated model of analysis such as the consensual one. However, to fulfill the expectation of “an ordered environment”, this new understanding of cultures responds in a very poor way.

From the manager’s point of view, who wants “recipes” for manipulating culture in

Antonieta Costa

a way that appears more profitable to his organization, the actual scientific position and, in general, the evolution of the concept are causing more confusion than benefits. Specifically, it seems less relevant to management.

“Management by culture” was one of the applications back in the 70s thought to be a possible advancement in the field of organizational theory. However, the actual situation not only makes the use of the concept difficult but also hinders the initial position, offering no solutions to the problems. The source of these problems seems to come from two sources: one is the pragmatic aspect, evolving from the social environment and new democratic social thought, which are gradually changing mentalities and thus the perspectives with which people approach the issues. Under this new position, each individual is given equal power to express their opinion. Instead of listening to the “authority’s” opinions, everybody is now feeling free to produce their new “visions” of reality, giving rise to a natural phenomenon that was invisible under the authoritarian regimes of the past.

Each individual also has their own idiosyncratic conception of the world. It is only the exchange of that conception with others in a negotiation taking place during social interaction (in positions of equality) that creates reliable social representations of reality, which are the essence of culture. This fact may give an idea of how social processes have been distorted through the use of dogmatic and/or integrative perspectives. Democratic freedom has thus stimulated the natural variety already inherent in the nature of the process, legitimizing it and producing a diversified culture (called “fragmentary” by Meyerson, 1991).

Another source of “problems” is the increasing perplexity due to the contradiction of attitudes felt in this phase of transition from authoritarian to democratic societies (which Western societies are still crossing) that is obstructing the establishment of a coherent process of reality construction. During daily activities and interactions, people tend to adopt ambiguous attitudes towards situations, sometimes adopting an authoritarian stance (denying others the right to establish a new position, for example), and at other times adopting a democratic stance and accepting it. This inconsistency of attitudes hinders the development of the democratic process, introducing yet more ambiguity and incoherence.

All these phenomena and their dynamics, occurring in societies and organizational environments, may confuse managers’ views of the hypothesis that culture can be used to manage organizations.

The real origin of the problem, however, seems to spring from the fact that there is no confidence on the part of managers at all levels of administration

author Antonieta costa

in delegating power to lower levels, thereby enabling the process of democratic reality construction to take place. The reason for that lack of confidence is the alleged chaotic situation that occurs when a clear line of authority is not established, said to happen when a clear line of authority is not established. The lack of consensual opinions and positions in the production of culture is altering the former concept, which was first understood (Schein, 1985) as a clear system of ideas. The application of this concept to organizational approaches and management provides no greater guarantee of concerted action. It is clear that its nature has changed, giving rise to a new understanding. The managerial dilemma, then, may be this: give up power and reduce expenses (running the risk of collapse as they fear), or conserve hierarchies, reduce flexibility, and increase costs (losing survival capacity).

Now we reach the ultimate question: Is consensual culture necessary for the implementation of concerted action? The answer is – no! Consensual opinions about anything can only be artificial productions. This does not mean a lack of capacity to produce concerted action despite arising from diverse positions. Only now are we understanding that the two positions can co-exist. The problem remains that we need to accept the variety and trust that common points, or more coincidences, will always emerge, maintaining coherence in the resulting action. Only when we fully accept this assertion as a more realistic description of reality will it be possible to leverage culture as a managerial tool, or even to establish a new organizational philosophy. This new understanding will become visible after the transfer of power, grounded in the principle of an equalitarian attitude toward others. The true potential of cultural dynamics could

then be appreciated.

Do we have proof of their existence? Yes, we do. There is (at least) one organization following this principle, doing so for the last 500 years with great success. The Brotherhoods of the Holy Spirit maintain formal relations with the Catholic Church, but remain outside of its authority. In this organization, there is a very unusual situation. Due to its horizontal structure, in which every member has the same authority and responsibility for the results of their actions, concerted action emerges. This appears to be a consensus, but when analyzed in detail, there are very different opinions on everything, as well as different ways of executing to achieve the objectives. This does not impede the performance of the tasks, and/or the maintenance of the objectives. On the contrary, the variety of interpretations gives a richer view to the rituals, introducing excitement and dialogue where there could be just dogma and restriction.

From the observation of this behaviour, we can now state that simple social interaction among people (such as in a leaderless group but with objective goals), will produce concerted action, even if this group does not have any structured authority levels. It seems that once the organization’s ideals are established and there is perfect equality of power to reinforce them, the entire group works in synchronization. Although they have different perceptions of the objectives and receive different influences from each other, they end up finding the best way to cope with environmental contingencies and constraints. This attitude of confidence seems to help the organization respond more effectively to the environment and in a much more flexible way, despite the apparent lack of consensus.

As once stated by Prigogine (1995), the tendency for organizing in ever-increasing complexity is a universal principle, visible in a star as in a mosquito. This organizing effort seems to work with a centrifugal orientation, despite the centripetal forces that might arise from idiosyncratic perceptions. Why then do we disturb its natural flow by introducing contradictions such as power and hierarchy? We should, instead, learn more about the principles of running flat structures, like those of the referred organization, and try to understand the dynamics that underpin such an economy of means, not only for this reason, but also considering their contribution to the dignification of the human resource.

Bibliographic references

Costa, A. (1999). O Poder e as Irmandades do Espírito Santo. Ed. Rei dos Livros, Lisboa.

Meyerson, D. (1991). “Acknowledging and uncovering ambiguities in cultures”, in Frost, P., Moore, L., Louis, M., Lundberg, C., Martin, J., Reframing Organizational Culture, Sage Publications.

Prigogine, I. (1995). “Time, Chaos and the Two Cultures”, in Polanyi, J., Science and Society, ed. M. Moskovits (House of Anansi Press, Ltd.).

Schein, E. (1985 / 1991). “The Role of the Founder in the Creation of Organizational Culture”, in Reframing Organizational Culture, Sage Publications, Inc.

Smircich, L. (1985). “Is the concept of culture a paradigm for understanding organizations and ourselves?”, in Frost, P., Moore, L., Louis, M., Lundberg, C., Martin, J., (1985) Organizational Culture, Sage Publications, Inc., California.

Literatura e Sociedade

Há pouco mais de vinte anos, Bruno Latour publicou um famoso ensaio anunciando que a crítica literária tinha perdido o gás. Seguiu-se um debate internacional, particularmente no mundo anglófono.

Numa das mais interessantes intervenções nesse debate, Colin Vanderburg escreveu recentemente um muito oportuno ensaio em que, a dada altura, afirma:

À medida que os estudos literários perdem importância pública, que os departamentos de literatura diminuem de tamanho, que as licenciaturas em literatura declinam em número, as críticas dirigidas à sociedade aumentam de intensidade. [...]

Não estamos a mudar o mundo. Qualquer indivíduo que já emergiu de uma conferência académica de vários dias reconhecerá a verdade: quando se põe o sol sobre resmas de programas amarrotados, quando o pessoal auxiliar aspira a alcatifa, a gente dirige-se à estação de autocarros ou ao aeroporto interrogando-se sobre que para quê e para quem se fez tudo aquilo. As nossas alternativas ecológicas, os nossos arquivos de resistência, as nossas epistemologias de insurgência – o que fazem, exceto serem um modo de vida para cada vez menos pessoas?[1]

Na verdade, o mal não está na literatura nem na sua crítica. A literatura sempre, de algum modo, refletiu a sociedade em que surgiu. O problema, que já na altura era pressentido por espíritos intuitivos mais

atentos, hoje é bem mais sério e profundo, como tão lucidamente explanou James Marriott num brilhante ensaio acabado de publicar, intitulado:

“The dawn of the post-literature society and the end of civilization” – A aurora da sociedade pós-literária e o fim da civilização”[2].

O título será talvez demasiado pessimista, se não mesmo catastrófico, porém o recheio do ensaio é uma bem fundamentada análise da situação atual, vinte anos depois do escrito de Bruno Latour que referi a principiar esta comunicação. O artigo abre com uma epígrafe de Neil Postman:

“George Orwell tinha medo de quem bania livros. Aldous Huxley tinha mais medo era de não haver razão para se banir os livros pois ninguém os queria ler.[3]”

Marriott começa o seu texto evocando o século XVIII, quando teve início a grande revolução da leitura. O livro tornou-se popular, já que cada vez mais gente era alfabetizada e queria ler. O que é frequentemente referido como “a revolução da leitura” permitiu uma democratização da informação sem precedentes.

AUTHOR ONÉSIO TEOTÓNIO ALMEIDA

Recorda que, na Inglaterra, na primeira década do século XVIII, foram publicados 6.000 livros e, na última década, já só se publicaram 56.000. Mais de um milhão de livros surgiu na Alemanha nesse mesmo século. Mas – lembra Marriott – estamos agora a entrar numa contra-revolução, pois, trezentos anos depois do início dessa prodigiosa revolução, os livros estão a morrer.

Nos EUA, continua ele, a queda de leitura de livros nas últimas duas décadas foi de 40% e, no Reino Unido, 1/3 dos leitores adultos deixou de ler livros. As estatísticas sobre a leitura entre as crianças apontam para os números mais baixos de sempre. Alexandre Larman recorda que as tiragens que antigamente atingiam as dezenas e mesmo centenas de milhar de exemplares agora só por sorte alcançam os cinco mil.

Mas o problema não se restringe ao mundo anglófono. Os índices de leitura têm diminuído na maioria dos países desenvolvidos, segundo um relatório da OCDE de 2024.

Devo confessar que, até me aposentar há pouco mais de um ano, não tive razão de queixa dos meus alunos na Brown, mas as universidades de elite não são necessariamente a regra. E, quando converso com professores universitários portugueses, ouço confissões desoladoras sobre os baixíssimos, quase inexistentes níveis de leitura dos atuais estudantes, se bem que em Portugal a leitura nunca tivesse sido um hábito generalizado, mesmo entre universitários.

Escreve Marriott:

É virtualmente impossível desenvolver um argumento lógico pormenorizado no discurso espontâneo – perdemonos, vai-se-nos o fio da argumentação, contradizemo-nos e confundimos o nosso auditório tentando refrasear pontos ineptamente expressos.[4]

Escrevi e desenvolvi um ponto de vista semelhante num texto que me foi solicitado pelo Presidente do Supremo Tribunal da Justiça para uma revista por ele recentemente fundada, e que incluí depois no meu livro Diálogos Lusitanos [5]; mas prefiro trazer para aqui uma voz mais autorizada do que a minha.

Volto a citar Marriott:

À medida que poder e conhecimento se concentram nas esferas mais altas da sociedade, um público dividido, desinformado e zangado, carece de meios para compreender, analisar e criticar ou alterar o que está acontecendo. Em vez disso, cada vez mais as pessoas se deixam impressionar pelo tipo de apelos altamente emocionais, carismáticos e místicos, que constituíram o fundamento do poder na era anterior à literacia.[6]

Voltando a James Marriott e ao seu deprimente ensaio, ele cita Walter Ong no seu livro Orality and Literacy, lembrando que um pensamento de lógica algo complexo não pode ocorrer sem leitura e escrita.

Todo este pessimismo que grassa nos circuitos mais intelectuais dos EUA reproduz-se na Europa, onde não faltam autores ecoando esses receios, documentando com dados empíricos o que se vai passando do lado de cá. Este sentimento não tem, todavia, a ver apenas com livros, mas com o malestar generalizado que se instaurou no Ocidente e que tem múltiplas, se bem que convergentes, origens.

A revolução da informática está a transformar o mundo a uma velocidade

e dimensão nunca vistas. Está hoje sendo abalada nos seus alicerces a antiga e, durante séculos estabelecida, convicção iluminista de que a razão aos poucos construiria sólidas estruturas que assegurariam o funcionamento democrático de instituições destinadas a garantir o cumprimento das leis criadas pelo estado de direito, permitindo a todos os cidadãos o espaço suficiente para exercerem as suas liberdades.

O exemplo mais preocupante é o dos Estados Unidos, pois habituámo-nos a ver nesse país um farol e um campo de experimentação inovador. Costumávamos vê-lo como uma espécie de cadinho monumental que, dada a sua maior mistura de etnias e credos religiosos e políticos, criara estruturas capazes de aos poucos abrandar conflitos e proporcionar soluções, assentes em legislação apropriada que o direito comum permite facilmente integrar e assimilar no seu sistema.

Não é mais assim. Até os Estados Unidos, onde aliás surgiram as maiores descobertas tecnológicas dos últimos cinquenta anos, nomeadamente em matéria de informática, foram surpreendidos por novidades nunca alguma vez previstas na sua Constituição, a primeira no mundo a tornar realidade o estado moderno.

Chegámos à explosão total da liberdade do indivíduo, que tem agora ao seu alcance uma variedade de meios de expressar os seus pontos de vista; o espaço público tornou-se uma selva como nunca vislumbrou Thomas Hobbes, nem nenhum dos pensadores que contribuíram para as ideias estruturantes da modernidade.

direito de propalar as suas verdades sem ter de fazê-las passar pelo crivo estabelecido de qualquer tipo de controlo. Tudo virou opinião e o espaço público fez-se centro de uma algazarra anódina, descontrolada e mesmo violenta, sem ninguém parecer ter autoridade para regulá-la.

É todo este contexto cultural (no sentido antropológico) que reduziu cada um dos grandes autores de ideias e dos grandes criadores literários a apenas mais uma voz tão válida como a de qualquer energúmeno ignorante e analfabeto. Estranhamente, quase só no desporto se aceita a existência de elites com base no talento, e os salários descomunais a ele correspondentes.

Em todas as outras esferas sociais, qualquer hierarquia de valores e regras é posta em causa. É por isso também que, nos últimos tempos, Shakespeare e Camões, Dante, Fernando Pessoa, Cervantes ou Flaubert passaram de repente a valer tanto como qualquer escriba que consegue publicar um livro.

Aliás, a edição de livros tornou-se outra banalidade democrática, acessível a qualquer um. As esmeradas regras de edição desenvolvidas e estabelecidas ao longo de séculos também são rejeitadas, melhor dito, ignoradas, porque muitos autores nem sabem da existência delas e pensam que publicar um livro é apenas uma questão de imprimir palavras em folhas de papel, encaderná-las e pô-las à venda.

Cada ser humano com acesso a meios informáticos passou a ser um superhomem nietzscheano, sentindo-se no

Mas não vejo que esse seja o problema maior. Para mim, ele consiste no facto de atualmente os leitores se perderem no mar de lixo disponibilizado na Internet, tornando-lhes difícil – impossível mesmo – selecionar o que, na verdade, tem valor.

Desperdiçam imenso tempo descobrindo por si próprios que muitas das leituras que fizeram não valiam a pena. Isso no melhor dos casos, porque o mais normal é ficarem eles próprios perdidos no meio de babilónica confusão. É a famosa lei de Gresham – a moeda má deita fora a moeda boa. Muito livro bom se afoga no meio do mar imenso de tanta escrita que não interessa ou interessa muito pouco.

É claro que o que acima disse se aplica não apenas à literatura, mas a todas as áreas do saber, das ciências à história e às humanidades em geral. A literatura não é uma ciência, todavia tem uma abrangência que inclui todas as áreas. Não lhe assiste, porém, qualquer obrigatoriedade de se subjugar ao real, como acontece na ciência, nem sequer quando se dedica a temas históricos.

Daí dever ser considerada arte em vez de ciência, sendo os seus critérios de ordem estética, em vez de epistemológica. Mas ela inclui, em regra, doses fortes de ciências sociais, sobretudo de psicologia e sociologia, bem como de ética, visto aflorar constantemente questões de valor, muito embora tudo seja inteiramente dependente das subjetividades do/a autor/a e dos leitores e leitoras.

A literatura abarca o todo e sempre foi usada como um veículo de intervenção no debate sobre as grandes questões da vida humana. Os grandes escritores foram indiscutivelmente fontes preclaras de reflexão sobre o humano e a humanidade, precisamente porque não se limitam à esfera do empiricamente mensurável ou quantificável.

humanos nas peças de Shakespeare do que em muitos livros de ciências sociais (escrevi sobre isso, por exemplo, no meu De Marx a Darwin – a desconfiança das ideologias, 2009), porque aquele génio agarrou pelo cerne questões humanas que por completo transcendem as esferas da ciência.

Nas suas obras, os grandes autores sempre ofereceram pistas valiosas para os leitores aprenderem e refletirem sobre a sociedade. Mesmo Sócrates e Platão ainda têm imenso a ensinar-nos. Leiase, por exemplo, o recentíssimo livro de Donald J. Robertson, How to Think Like Socrates. Ancient Philosophy as a Way of Life in the Modern World (New York: St. Martin’s Press, 2024). Os não-anglófonos que prefiram autores franceses poderão encontrar valor equivalente no livro de André Comte-Sponville, Petit Traité des Grandes Vertus (Paris: PUF, 1999).

Obviamente, tenho consciência de ter abruptamente saltado da literatura para a filosofia, porém não mudei de comprimento de onda. Os grandes autores continuam atualíssimos porque os seres humanos, no que os define como tal, não mudaram. As grandes questões humanas são, no seu âmago, as mesmas de há dois mil anos; apenas se complexificaram.

Não me canso de repetir – venho fazendo isso há décadas nas minhas aulas e intervenções públicas, orais e escritas – que aprendemos mais sobre os seres

Veja-se as obras de Shakespeare, Cervantes, Charles Dickens, Eça de Queirós, Camões, Flaubert, Dostoievski, para referir apenas alguns clássicos em vez de outros mais modernos e contemporâneos. A velha questão sobre como medir a superior ou inferior validade entre a literatura e as ciências sociais não tem resposta. Há simplesmente gostos ou preferências. Há leitores que se sentem mais em sintonia com a literatura, incluindo a poesia, enquanto outros se identificam mais com o registo da história,

da filosofia e das ciências. Mas as questões nucleares emergem nessas várias áreas das Humanidades.

É tempo de deixar estas considerações genéricas e centrar-me mais no nosso universo açoriano. Dizia atrás que foi a alteração da cultura moderna (uso sempre cultura no sentido antropológico, isto é, referindo os nossos modos de ser e agir) que reduziu o papel da literatura, retirando-lhe a importância que durante séculos teve na formação das mentalidades e na criação de valores que regeram e ainda regem as nossas sociedades.

Não me sinto tão negativo como alguns dos autores que citei no início desta minha intervenção. Vejo com bons olhos a profusão de livros editados nos Açores. Se eles se publicam é porque há compradores e, naturalmente, leitores também. Obviamente, as tiragens são muito menores do que as de outrora (o fenómeno é geral: na década de 60, uma edição portuguesa normal era de 3.000 exemplares; hoje dificilmente atinge os 1.000).

E como as pessoas têm cada vez menos tempo porque passam muitas horas nas redes sociais, resta-lhes poucas ocasiões para ler e, quando o fazem, com frequência se entretêm com livros de importância secundária. Mas vou deixar de lado as lamentações do género das que fazem os padres na igreja, queixando-se dos que lá não vão. O público que aqui veio está interessado em livros e em literatura, e por isso não vou cair nesse desajuste de incidir a atenção nos que não partilham desse gosto.

como veículo para aprofundamento dos valores da sociedade em que ela surge, vou terminar esta minha divagação sobre o estado do mundo com algumas considerações sobre a literatura açoriana – ou, se preferirem, a nossa literatura –e a sua importância para refletirmos e entendermos melhor a sociedade em que vivemos.

Os Açores são, de há muito, um lugar muito especial no espaço português, produzindo uma percentagem elevada de escritores e livros, fenómeno reconhecido pelas pessoas do exterior devidamente informadas. Temos uma plêiade de escritores que nos tem oferecido uma panóplia de obras, muitas delas deveras estimulantes e resistentes ao tempo, autênticos clássicos. São os nossos clássicos.

A propósito de clássicos e de leituras, permitam-me que abra um parênteses para expressar o meu entusiasmo e admiração pelo magnífico trabalho no campo da leitura que, na Terceira, há vinte anos vem sendo levado a cabo por Miguel Monjardino, que todas as semanas conversa sobre clássicos gregos (sobretudo teatro) – em tradução, está visto – com quatro turmas de 16 alunos, de idade entre os 13 e 17 anos. Esse trabalho verdadeiramente notável e inovador mereceria ser mais conhecido e replicado, se bem que não seja fácil fazê-lo, pois não nascem todos os dias idealistas como Miguel Monjardino.

Por isso, na sequência da ideia atrás esboçada de que a literatura reflete a cultura, mas também reflete sobre a cultura de uma sociedade e funciona

Volto aos nossos clássicos açorianos. Há duas décadas, José Manuel Rebelo, então presidente da Casa dos Açores do Norte, no Porto, elaborou um inquérito que enviou a várias pessoas e ao qual eu respondi. O objetivo era obter alguma bibliografia açoriana, de modo a fornecêla aos leitores dela desconhecedores,

mas eventualmente interessados[7]. Transformei o inquérito a meu modo, formulando as perguntas de modo a servirem melhor os meus objetivos, e estruturei a minha reação como se a respondesse aos mais variados tipos de gostos e interesses.

1. «Não gosto de romances mas gosto de ler livros sobre os Açores»

As Ilhas Desconhecidas. Notas e Paisagens de Raul Brandão

Corsário das Ilhas de Vitorino Nemésio

2. “Gosto de literatura, mas da que fala da vida de antigamente nos Açores”

Pastorais do Mosteiro e Gente das Ilhas de Nunes da Rosa

Contos e Narrativas de Florêncio Terra

3. “Não gosto de literatura mas gosto de saber coisas antigas sobre os Açores”

Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra

4. “Mas seria capaz de ler uma história da literatura dos Açores”

Então leia os estudos introdutórios de Eduíno de Jesus às obras de Armando Côrtes-Rodrigues, Madalena Férin e António Moreno

5. “Gosto de livros sobre coisas antigas, mas não romances”

Voz de Longe de Armando CôrtesRodrigues

6. “Gosto de romances e contos, mas sobre São Miguel”

Raiz Comovida e Grito em Chamas de Cristóvão de Aguiar

Gente Feliz com Lágrimas e O Meu Mundo

Não É Deste Reino de João de Melo

Grande Ilha Fechada e Sobre a Verdade das Coisas de Daniel de Sá

O Barco e o Sonho de Manuel Ferreira

7. “Gosto de romances e contos, mas quero conhecer a vida nas outras ilhas”

Pedras Negras e Mar pela Proa de Dias de Melo

Mau Tempo no Canal de Vitorino Nemésio

A Fome de José Martins Garcia

Todos os mencionados em 1)

8. “De literatura só gosto de poesia, mas gosto de poesia que tenha algo a ver com os Açores”

Pão Verde e Eu Fui ao Pico, Piquei-me de Álamo Oliveira

Almas Cativas de Roberto de Mesquita

9. “Leria poesia açoriana só se não falasse de nuvens nem de mar e basalto”

A Viagem Possível de Emanuel Félix

Sonetos (quase todos) de Antero de Quental

Etnologia dos Açores (2 vols.) de Carreiro da Costa

A Deusa da Chuva de Eduardo Bettencourt Pinto

Quase tudo de Emanuel Jorge Botelho e de Natália Correia

A poesia de Eduíno de Jesus reunida no volume Signos do Silêncio

10. “De literatura, só gosto de diários”

Era Uma Vez o Tempo de Fernando Aires

Relação de Bordo de Cristóvão de Aguiar

11. “Só lerei escritores açorianos se não escreverem sobre os Açores”

Lugar de Massacre e Contrabando

Original de José Martins Garcia

Autópsia de um Mar de Ruínas de João de Melo

Até Hoje de Álamo Oliveira

Braço Tatuado de Cristóvão de Aguiar

Se não se refere apenas a ficcionistas, experimente, por exemplo, as crónicas de Mário Mesquita: A Regra da Instabilidade

12. “Haverá livros açorianos que falem da emigração?”

Quase todos.

Já Não Gosto de Chocolates e Mar e Tudo de José Francisco Costa

13. “Só gosto de livros de viagens”

Além dos apontados em 1):

Das Velas de Lona às Asas de Alumínio de Dias de Melo

14. “Só gosto de poesia simples”

Antologias de Manuel Augusto de Amaral e de Armando Côrtes-Rodrigues

Festa Redonda de Vitorino Nemésio

Do Tempo e de Mime

Ilha em Terra de João Teixeira de Medeiros

15. “Preciso de livros que me ajudem a perceber a literatura açoriana”

O Imaginário dos Escritores Açorianos

Mar Cavado de Vamberto Freitas

Urbano Bettencourt, O Gosto das Palavras I e II

A escrita crítica de Victor Rui Dores, infelizmente ainda dispersa.

De propósito, não atualizei a lista. Por um lado, evito ferir suscetibilidades. Por outro, os livros mais recentes são frequentemente referidos nos meios de comunicação.

Portanto, prefiro aproveitar esta oportunidade para mencionar estes nossos clássicos que ajudaram a formatar o imaginário açoriano. Herdámos esse património e devemos mantêlo vivo na nossa conversação cultural, porque eles ajudam-nos a compreender o presente e, por isso, não podem ser esquecidos por uma sociedade como a nossa, que se preza de resistir aos abusos do mundo moderno e defender os valores do passado que vale a pena manter e transmitir aos jovens e ao futuro que eles estão construindo para si e para os seus descendentes.

Viagem ao Contrário de Manuel Ferreira

Duarte

Muita da literatura que hoje se produz nos Açores continua, aliás, essa nossa tradição de refletir a nossa sociedade e, por isso, deve ser lida, divulgada e discutida no nosso

quotidiano. Uma cultura viva não pode deixar de fazê-lo

Portanto, Literatura e Sociedade, não sendo sinónimos, são irmãs-siameses. Uma não pode viver separada da outra. Pelo menos, foi isso que tentei demonstrar, cumprindo o pedido que me foi feito e cingindo-me a ele.

Muito obrigado pela vossa presença e atenção.

Notas e Referências

* Texto lido na abertura do IV Encontro Literário, patrocinado pela Câmara Municipal de Ponta Delgada e coordenado por Pedro Paulo Câmara, realizado no Centro Natália Correia, Fajã de Baixo, S. Miguel, Açores, a 9 de outubro de 2025.

[1] “Crise en abyme, Quiet please: critics at work”, Issue 50: Harsh Realm, Spring 2025. Disponível em: https:// www.nplusonemag.com/issue-50/ reviews/crise-en-abyme/

Esta e todas as subsequentes traduções de textos ingleses são da responsabilidade de Leonor Simas-Almeida, a quem agradeço a colaboração.

[2] Culture Capital, 19 de setembro de 2025. Disponível em: https:// jmarriott.substack.com/p/thedawn-of-the-post-literate-societyaa1

[3] No seu livro Amusing Ourselves to Death, New York: Penguin

[5] “Ideias claras e distintas (cada vez mais caras e extintas)”, in Diálogos Lusitanos com Portugal à distância. Lisboa: Quetzal, 2024, pp. 19-38.

[6] Culture Capital, 19 de setembro de 2025.

[7] Casados Açores da Nova Inglaterra –Boletim Informativo, n. 10 (2001), p. 6-7. Inclui essa lista no meu livro Minima Azorica. O Meu Mundo É Deste Reino Lajes do Pico: Companhia das Ilhas, 2014, pp. 211-213.

[4] Culture Capital, 19 de setembro de 2025.

Crónica

Viagens iniciais –Açores

A primeira viagem que fiz foi, certamente, a mais confortável de todas quantas vim a fazer. Ia embalada e aconchegada, nada me podia perturbar, nada me podia ser desagradável, tudo me era benigno, e, acredito, eu era calidamente feliz. Ia, mais pequena do que o dedo mínimo da minha mão, no (nosso) espaço inicial, nesse espaço de que, sem o sabermos, somos todos saudosos. Ia no ventre de minha mãe, jovem mulher cujos muitos acalentados desejos se começavam a realizar. Poucos meses antes, casara ela com o homem dos seus sonhos, que nunca o deixou de ser; agora acompanhava o marido rumo a uma terra distante, feliz só porque ia com ele; mais felizes seriam ambos quando soubessem que eu fizera a viagem com eles, minúscula, silenciosa, embalada, aconchegada.

Não me lembro dessa viagem, lamentavelmente. Sei que saía da minha ilha para ir nascer a um lugar distante, talvez inóspito, um lugar que não era o meu, que não era o dos meus maiores. Minha mãe assim também ia: apreensiva por deixar a sua ilha, por se afastar do seu chão e do seu mar. Ia, todavia, confiante no homem que amava e que a amava, portanto ia feliz. Nasci nesse lugar que não era rodeado de mar por todos os lados, que não tinha odor a maresia, cujo

firmamento não se volvia bruma sobre a terra, cujas gentes falavam de forma diferente da que falava minha mãe. Creio que, ao nascer, já trazia a saudade que habitava na alma de minha mãe, também na de meu pai.

Vivi nesse lugar até completar seis anos de idade, tempo suficiente para a ele me afazer, mesmo para cuidar que aquele era o meu espaço. Se bem perscrutasse os olhos de meus pais, saberia, decerto, que não, que aquele não era o nosso lugar, que o nosso lugar estava para além da orla do mar, e era um espaço onde o mar se fazia mais amplo. Foram, pois, necessários seis anos para eu chegar à minha terra, à terra de onde partira mais pequena do que o dedo mínimo da minha mão, e à qual regressaria com a expetativa desconhecida de quem regressa sem o saber.

A segunda viagem que fiz foi a de regresso à minha terra. Viajei com meus pais e minha irmã, segunda filha do casal, a bordo de um barco cujo nome não recordo. Recordo, isso sim, que vestíamos, eu e minha irmã, blusinhas floridas e saias corde-rosa forte, com suspensórios e fivelas, quando o barco atracou na doca da ilha prometida. Creio, ou imagino, que o meu deslumbramento ante aquele mar foi o mesmo que ainda agora me toma quando nele mergulho o corpo que cresceu, que amadureceu, que vai envelhecendo. Voltar à ilha é, agora, o vou pensando, como imergir renovadamente naquele lugar inicial onde estava, minúscula, silenciosa, embalada, aconchegada, quando fiz a primeira de todas quantas viagens vim a fazer.

Voltar à ilha foi, não o digo por liberdade poética, reconhecer o meu mundo, aquele a que sempre pertenci, a que pertenço sem remissão. O mar, esse mítico espaço que um só ilhéu conhece e compreende

plenamente, que só um ilhéu ama ilimitadamente, volveu-se-me tão íntimo como as águas iniciais o foram na primeira viagem. Assim as brumas. Assim o verde que se alonga até ao oceano inteiro, do qual nem os meus sentidos nem a minha alma se apartam, pois, mesmo que o quisessem fazer, não lhes era isso possível. Todos temos o nosso espaço particular, isto o penso com frequência, e o meu é a ilha, que nunca se esgota porque se prolonga no mar que a envolve.

Se a minha primeira viagem foi um apartamento dessa terra-mãe que é a ilha, a segunda foi um resgate de mim mesma, pois regressei à ilha. E regressei para sempre, porquanto todas as viagens posteriores foram feitas com o propósito do regresso. E, sempre que regresso, os meus sentidos e a minha alma experimentam o deslumbramento do primeiro retorno. Parti para voltar – é o que penso sempre que, saindo do avião que me traz das incursões no mundo dos outros, retorno a este espaço todo meu, onde eu sou eu e o mar e a imensidade verde que me espera.

Chego a pensar, quando o avião aventuroso aterra, que a ilha espera por mim, que me diz: “chegaste, que bom, esperava por ti, tive tantas saudades”, e eu saúdo-a comovidamente, quase pedindo desculpas por aquele tempo que dela estive apartada, como se a tivesse traído um pouco por ter buscado outros lugares – qual deles o mais encantatório, é verdade, mas nenhum meu. Ou eu de nenhum deles, pois a este pertencem os meus músculos e tendões e ossos e órgãos internos e pele e alma inteira.

Texto publicado originalmente no jornal

Ilha Maior

author paula de sousa lima

O HERDEIRO

José Henrique Silveira de Brito DE MICHAEL GOUVEIA

Em novembro de 2023, fui a Montréal, Canadá, participar no colóquio “A Comunidade Portuguesa do Quebeque – Uma Visão do Passado, Presente e Futuro”, comemorativo do 27º aniversário do jornal LusoPress e do 10º aniversário do canal de televisão LUSAQ TV, a convite de Norberto Aguiar, alma daqueles dois órgãos de comunicação social. Foi o meu primeiro contacto ao vivo com uma comunidade da diáspora açoriana, experiência inesquecível, como disse numa crónica publicada na altura. Contribuiu muito para a memória positiva desse colóquio o convívio, a qualidade dos intervenientes nos diversos painéis, quer os que foram de Portugal, quer os elementos da comunidade portuguesa do Canadá, a importância dos temas propostos e o modo como foram tratados, o que foi comprovado pelos debates a que deram origem.

No primeiro dia, houve dois painéis que decorreram em paralelo: um com o título “A Mulher na Comunidade” e o outro subordinado ao tema “A Juventude na Comunidade”. Após uma hesitação inicial, optei pelo primeiro, porque algum tempo antes tinha lido um texto sobre a mulher na nossa diáspora nos Estados Unidos. Segundo o autor, chegadas ao país de acolhimento, as mulheres açorianas adaptavam-se, normalmente, com mais facilidade do que os homens, porque revelavam uma capacidade de leitura mais perspicaz do novo mundo que as rodeava e, mais rapidamente, conseguiam organizar

lhes proporcionava. Pensei, então, que seria interessante descobrir se algo de semelhante se verificava no Canadá.

No intervalo que se seguiu às sessões paralelas, Onésimo Teotónio Almeida, que fora assistir ao painel sobre a juventude da comunidade, disse-me que tinha ficado muito bem impressionado com todas as intervenções, particularmente com a apresentação que Michael Gouveia tinha feito do seu romance L’Héritier; a intervenção do jovem escritor tinha sido de muita qualidade e parecia-lhe que o livro valia a pena, pelo que ia manter-se em contacto com o autor.

Com o andar do tempo, as notícias sobre o romance foram-me chegando. A primeira, que o livro era interessantíssimo e valeria a pena traduzir para português e publicálo. A seguir, que já tinha encontrado tradutora para o texto. Pouco depois, que já tinha editora e, por último, em junho deste ano, que o romance tinha saído. Em setembro, quando nos encontrámos na sessão promovida pela Casa dos Açores, em Lisboa, integrada nas comemorações do centenário do nascimento do Prof. José Enes, o Onésimo ofereceu-me um exemplar de O Herdeiro, com tradução de Leonor Simas-Almeida. O livro está incluído na coleção “Comunidades Portuguesas”, da Imprensa NacionalCasa da Moeda.

Tenho sempre entre mãos dois ou três livros, pelo que não iniciei imediatamente a sua leitura; dei-lhe uma volta rápida e pu-lo no monte a aguardar, mas foi pausa de pouca dura. A tentação era grande e, de vez em quando, lia um capítulo. Até que pequei no livro em leitura mais continuada e só parei no fim. Fiquei encantado.

O romance retrata a vida de alguém nascido na diáspora: os pais chegaram ao Canadá e, um ano depois, nasceu o primeiro filho. Como é comum na primeira geração nascida no país de acolhimento, o João, é o nome do protagonista, nasce num mundo português, numa “ilha” de cultura portuguesa, mais concretamente açoriana, rodeado pelo Canadá francófono por todos lados. Com a ida para a escola, vê-se num mundo mais vasto, em que “o francês era a língua comum que me abria ao resto do mundo, enquanto o português era uma língua especial, reservada à minha família e a algumas outras pessoas” (p. 19).

Essa experiência de viver entre dois mundos culturais vai aparecendo, simultaneamente, como uma riqueza e uma dificuldade, o que, aliás, é uma situação típica dos que constituem a primeira geração nascida na diáspora. No caso do João, o problema agravase devido à sua enorme timidez, que o impede de fazer amigos ao longo de toda a sua vida escolar, situação que se prolonga na universidade.

A narrativa, por certo muito inspirada na biografia do escritor, como diz Onésimo Teotónio Almeida no prefácio muito informativo e esclarecedor, vaise desenrolando nesta encruzilhada de dois mundos. João apercebe-se das dificuldades de integração no país de acolhimento dos pais. Sintoma disso é até notório no nome que tem, João, que

os não portugueses têm dificuldade em pronunciar. Pessimista inveterado, pensa para consigo que até no nome que lhe deram teve azar.

Para tentar superar tanta dificuldade, tanta adversidade junta, resolve e consegue ser um aluno brilhante ao longo de todo o percurso escolar. Fechado na sua solidão, sonha vencer na vida e pensa que o estudo será o caminho para lá chegar. O leitor, por seu lado, avançando na leitura do livro, vaise perguntando como será isso possível.

Curiosas são as páginas em que o herói do romance fala sobre futebol. A leitura dessas páginas mostra o lugar e a importância que aquela modalidade desportiva, e particularmente a seleção nacional, tem na vida da diáspora. Para os portugueses espalhados pelo mundo, tudo o que significa pertença a Portugal é vivido de um modo muito particular, e o futebol ocupa um lugar privilegiado nessa vivência. As páginas sobre os jogos da seleção ensinam-nos imenso sobre o que é ser português a viver no estrangeiro.

Recorrendo a uma formulação de Immanuel Kant (1724-1804), que marcou indelevelmente a história do pensamento, em síntese a Filosofia sempre procurou responder a uma só pergunta: “o que é o homem?”. A literatura, por sua vez, foi, ao longo da sua história, uma reflexão constante sobre o homem. Por isso, compreende-se que o grande filósofo e homem de cultura José Enes (1923-2013), cujo centenário do nascimento acabámos de celebrar, tenha iniciado a sua participação no debate cultural escrevendo vários ensaios sobre literatura, e que Emmanuel Lévinas (1906-1995), o grande filósofo lituanofrancês do século XX, tenha afirmado

que a sua introdução à Filosofia se deu pela leitura dos clássicos da literatura russa do século XIX.

É nesta linha de pensamento que considero que o romance de Michael Gouveia nos ensina mais sobre a emigração portuguesa, concretamente açoriana, do que muitos estudos de base científica publicados sobre esse fenómeno. Os emigrantes que encontramos em O Herdeiro são gente de carne e osso: ri, chora, trabalha, sonha e espera vencer. Mas a narrativa tem uma qualidade admirável: o autor vai descrevendo o que lhe acontece e refletindo sobre esses acontecimentos, permitindo ao leitor perceber “o que é homem”, que, como referi, é o objeto da filosofia e da literatura.

Duas notas finais. A primeira: acima falei de um texto que afirmava que, na diáspora, em comparação com os homens, as mulheres açorianas em geral se adaptam mais rapidamente porque interpretam com facilidade o que as rodeia no país de acolhimento. No romance de Michael Gouveia, a mãe do João é disso um bom exemplo: nada do que se passa portas adentro ou fora de casa lhe escapa; nela, o filho encontra, em todas as circunstâncias, uma boia de salvação.

A segunda nota: Leonor Simas-Almeida é autora da excelente tradução de O Herdeiro. O respeito que teve pelo tom das diversas estórias que compõem a narrativa valorizou sobremaneira a publicação do romance em português.

Apresentação

Os Pássaros de Dódóia, de Henrique Levy

galardoado com o Prémio

Carlos de Oliveira (2025)

Ângela de Almeida

O júri, que no Salão Nobre dos Paços do Concelho de Cantanhede se reuniu, decidiu, por unanimidade, atribuir o sétimo Prémio Literário Carlos de Oliveira ao romance Os Pássaros de Dódóia, cujo autor é Henrique Levy, pela capacidade de reconstituição do universo social e metafísico africano, pelo rigor da escrita, pela densidade da estruturação narrativa e pela capacidade de criar personagens, em particular a de Dodóia, mulher cuja sagacidade a define, conduzindo-a a modelar um destino à partida desfavorável, impondo-se ao meio e conquistando um lugar de destaque na comunidade.

Júri do Prémio Carlos de Oliveira 2025, fragmento da acta de deliberação.

“Quando um ser historicamente condicionado [...] deixa-se invadir pela sua própria parte não-histórica [...], não é necessariamente para retroceder ao estado animal da sociedade, mas para descer às origens mais profundas da vida orgânica: inúmeras vezes, ele reintegra pelas imagens e símbolos que utiliza, um estado paradisíaco do homem primordial [...], pois esse ‘homem

primordial’ apresenta-se sobretudo como um arquétipo impossível de ‘realizar-se’ plenamente em uma existência qualquer.”

Mircea Eliade, Imagens e Símbolos

“Com os pássaros o povo aprende a desejar libertar-se da opressão de quem o impede de voar.”

Henrique Levy,Os Pássaros de Dódóia

A imaginação simbólica de Henrique Levy, desenvolvida a partir de uma vida de estudos literários que inicia na doutrina horaciana e na epopeia homérica, passando inevitavelmente pela épica e lírica camoniana e prolongandose pelos séculos XX e XXI, incluindo o conhecimento aprofundado da literatura africana – nomeadamente cabo-verdiana – sustenta com inequívoca excelência a intertextualidade deste romance. Logo no início, somos conduzidos a Rumo ao Farol (Woolf, 1927), onde se ergue a mesma luz, a mesma capacidade de alertar, guiar e anunciar o caminho para uma promessa de vida, num universo insular e arquipelágico. Nesse universo, a solidão do faroleiro de Woolf recebe, como em Levy, a sabedoria que o lugar ermo e elevado proporciona.

Essa promessa de vida está, desde o início, ancorada em símbolos ascensionais: a ilha, símbolo da Terra-Mãe, alcançada através de um voo. No universo simbólico, sobe-se à ilha através do pássaro ou ave,

força ascensional que desperta a natureza inteira (Bachelard, 2001:70) ou, como afirma Durant (1989:92), o “instrumento ascensional por excelência é a asa”.

Deste modo, o pássaro é um mensageiro do céu para a terra, do divino para o humano, podendo anunciar, indicar, libertar e viabilizar o realismo mágico deste romance. Exerce também a função romanesca destacada por Lukács (2000:85):

“O romance é a epopeia do mundo abandonado por Deus.”

Daí que, ao longo desta ficção, abundem as referências a esse abandono do «deus dos brancos» e do «deus dos europeus», símbolo da crucificação de toda uma humanidade. O próprio título deste romance, Os Pássaros de Dodóia, conduznos à imaginação simbólico-estilística do autor, nessa função libertadora que entrega ao narrador e ao plano mitológico da obra.

A dupla nacionalidade do autor — cabo-verdiana e portuguesa —, o compromisso com a condição feminina e com a humanidade, enquanto universo subtextual dos seus romances anteriores, como é o caso de 27 cartas de Artemísia (2022), galardoado com o Prémio Internacional Natália Correia – Ficção, e o domínio de uma estilística que se prolonga em belíssimas páginas pautadas por riquíssimas figuras de estilo, conferindo uma escrita poética que enaltece a eloquência do corpus literário de um autor com o alcance daquele que agora analisamos, conduzem Henrique Levy a uma escrita do fantástico que torna viável a concretização da promessa de vida acima referida.

— «pássaros» — e um nome próprio, também no plural — «Dodóia» —, ligados pela preposição «de» que, neste caso, indica posse. Podemos então concluir que os pássaros, a que este título se refere, pertencem a Dodóia.

Além disso, logo no início percebemos que pássaro é um símbolo, como referimos acima, e que, no título, estamos perante uma sinédoque, uma vez que Dodóia simboliza o sofrimento de todas as mulheres cabo-verdianas e de todo o povo de Cabo Verde. «Pássaros» é uma metáfora que deverá ser interpretada como mulheres e povo, tal como Baltasar Lopes (1907-1989) escreveu em Chiquinho (1947: 29): «Nós somos pássaros engaiolados», referindo-se à opressão e à repressão sobre o povo cabo-verdiano durante a época colonial, marcada também por uma severa seca que mataria à fome e entregaria a valas comuns crianças, mulheres e homens de pleno direito.

Conforme podemos verificar, estamos perante um nome comum no plural

«Dodóia» é uma derivação feminina da onomatopeia «dodói», que, como sabemos, significa dor. Esta poderosíssima imagem — que transporta simultaneamente uma sinédoque, uma metáfora e uma onomatopeia — pode muito bem ser interpretada como “o voo de Dodóia”, isto é, a libertação e a liberdade de Dodóia: das mulheres caboverdianas, das mulheres em geral, do povo cabo-verdiano e, em última análise, da própria humanidade.

É um facto que toda a acção se desenvolve em Cabo Verde: o nome do país nunca é nomeado (em literatura, não se diz tudo), porque a literatura, enquanto casa da representação, e nunca da apresentação, não diz tudo. Todavia, está bem presente o Portugal colonial do Estado Novo, a seca, a mestiçagem resultante do domínio dos portugueses sobre a população do arquipélago: Dódóia diz a Andile que quando o filho nascer e «tomar a côr definitiva», «não haverá dúvidas em lhe conferir a parentalidade. Se for fulo, há forte possibilidade de o pai ser o meu defunto esposo. Casa nasça com pele escura, como nós, então é tua a semente que o meu ventre concebe vida». (p. 125)

Também a paisagem, o crioulo (Nha Funa, Nho Semedo), as crenças, os usos e os costumes fluem nesta ficção que nos transporta ao primeiro romance caboverdiano, O Escravo (Lisboa, 1856), de José Evaristo D’Almeida, e ao amor impossível entre ele, escravo, de pele preta, e a «sua senhora», uma vez que no livro de Levy estamos perante um amor cheio de entraves entre Andile, o faroleiro, e Dódóia, primeiro lenhadora, que, num bosque de acácias – símbolo de imortalidade e de (re)nascimento –, carrega a lenha e a entrega ao faroleiro.

Andile, que, num burro, a transporta e entrega no Sobrado Grande, onde vive Nho Semedo, administrador de propriedades e abusador de mulheres, todavia, agora, velho. Grávida de Andile, Dódóia casa com Nho Semedo, que tem uma biblioteca onde a libertadora de pássaros, agora «senhora do Sobrado Grande», aprenderá a ler e a escrever, ferramentais essenciais ao vôo. Após a morte do marido, Dódóia casa com Andile.

No âmbito desta memória intertextual cabo-verdiana, existe ainda o pioneirismo de Levy ao trazer, para a literatura daquele país, uma personagem feminina protagonista. Neste aspecto, lembramos a contista Orlanda Amarilis (1924-2014), que em Ihéu dos Pássaros (1983) também utiliza o crioulo e o português, embora a sua ficção assente num chão diaspórico, enquanto o narrador de Levy apresenta-nos, por via do realismo mágico, um destino libertador, ao encontro da liberdade e da justiça social dentro do próprio país – Cabo Verde; não esqueçamos, a propósito, o lema «fincar os pés na terra», da revista Claridade, fundada em 1936, por Baltazar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes. E não esqueçamos toda a resistência feita de um imenso amor ao país, ancorado numa imensa sabedoria, pacifismo, alegria, firmeza, oferecendo assim uma imensa lição à militarização, à invasão territorial, ao armamento, ao genocídio. Não esqueçamos! Morabeza, Morabeza! Ouvir, dialogar. Empatia.

Este romance, que à primeira vista se poderá designar um romance de personagem, mas a trama sinedoquiana conduz-nos ao todo arquipelágico, é quanto a nós um romance de espaço e

está simbolicamente divido em duas partes, prólogo e epílogo.

Cada uma das partes está divida em capítulos com o discurso corrido de um narrador heterodiegético é intercalado por outros onde, na segunda pessoa e com uma pontuação completamente diferente, a voz do Tempo, na primeira parte, e a voz da Morte, na segunda, viabilizam ou condicionam e alteram a realidade. Ora, o que isto significa é que, naturalmente, o Tempo e a Morte, aqui introduzidos, são ferramentas simbólicas, das quais se serve o autor, na senda de Homero e de Camões que tão bem fizeram depender do Olimpo o rumo das suas epopeias. Ora, Levy, admirador e estudioso confesso da épica e da lírica camoniana – não apenas como romancista de grande fulgor, mas também enquanto poeta entre os melhores da nossa geração –, transporta para o texto esse universo subtextual camoniano. Quem não se recorda de Tétis no Canto X, quando explica a Gama a máquina do mundo? Também, em Os Pássaros de Dódóia, o Tempo mostra a Dódóia «as quatro arestas da vida», reveladoras do percurso espiralado que aquela fará até à libertação que viabiliza o pleno vôo da mulher. Mais, Levy segue os quatro planos da épica camoniana: o plano mitológico, já aqui falado, o plano da História, que nos mostra o período colonial em Cabo Verde, o plano da viagem – neste caso, a viagem interior, uma vez que se trata do percurso iniciático de Dódóia –, o plano das considerações do poeta, tão ao gosto de Camões que, no final de cada Canto, nos presenteia com a sua visão crítica da arte, das letras e da poesia de então. Aqui, também é recorrentemente evocada a poesia.

se o agente da mudança. «Só eu conheço o que dorme dentro de ti»; «Ressurgirás, Dódóia, na medida em que a literatura junta claridade e alaga a agitação de leitores cortejados pela libertação de pássaros soprados à passagem da ventania» (p.18). Mas, afinal, que razão move o autor a criar um prólogo, onde a voz do Tempo intercala, em cada capítulo, a voz do narrador, e um epílogo, onde a voz da Morte intercala cada capítulo da diegese? Regressemos a Lukács (2000:76): «o romance é o «entrelaçamento entre a independência relativa das partes e a sua vinculação ao todo». Ora, o Tempo, elemento da mitologia grega aqui introduzido –Chronos – é uma divindade. Por ser imutável, é a única entidade que pode alterar o plano da existência e motivar a fusão do passado com o presente e com o futuro. Para isso, precisa de um adjuvante: a Morte, outra divindade – Thanatos –, pode destruir a existência. Efectivamente, a solução genial do autor é entregar à Morte a tarefa de pôr fim a um tempo de escravatura, de opressão, de repressão, de servidão humana. Terminado esse ciclo cronológico, pode então o Tempo fundir, criando uma nova época, plena em libertação, liberdade, harmonia, vôo. E, naturalmente, o autor cria uma trama imbuída do fantástico que viabiliza uma solução mágica para a libertação das mulheres e do povo.

Há, deste modo, um discurso proléptico, libertador que apenas o Tempo anterior pode efectivamente anunciar, tornando-

Enquanto em O Memorial do Convento (Saramago, 1982), Blimunda, após comer uma hóstia em jejum, está apta a ler as «vontades» das pessoas, no romance de Levy, Dódóia, ao comer um pássaro morto, livra-se da morte que lhe arrancou a mãe e os irmãos e recebe as «asas» com as quais se libertará, bem como o seu povo. Diz o Tempo a Dódóia: «Ao ser engolido nas asas de uma ave impedida de voar e adormecida para te salvar, desato o fim da

sede nos olhos ardentes dos sobreviventes da fome». Este agente da mudança, o Tempo, viabiliza assim a passagem do instante à eternidade, da injustiça à justiça, do caos à ordem natural, da morte à vida, da colonização à autodeterminação, da opressão à ousadia, da repressão à libertação, da libertação à liberdade, da liberdade ao vôo, da iliteracia à [texto incompleto], da seca à chuva, da miséria à abundância, da escuridão à luz, do conhecimento à sabedoria. Ao comer um pássaro morto, ódóia recebe a coragem para libertar-se de todas as formas de violência, tornandose a «mulher-pássaro» – expressão da poetisa Madalena Férin. Diz o Tempo para Dódóia: «Não te deixarei morrer sem te oferecer o veludo do vôo de pássaros a planar livres no céu, depois de libertados de exíguas gaiolas. Na alameda desse vôo, correrá o grito de um povo em busca da libertação e da liberdade no dia em que homens brancos fizeram desembarcar nestas ilhas outros homens carregados em porões. O lamento dos escravizados trouxe, para além do ouro dos senhores a bailar na espessura de chicotes, um grito mudo atingido pelo calor e pelos braços de amantes arrancados do sono escondido nos olhos e nos lábios dos que de mãos vazias navegavam o oceano» (P.).

E é esse adjuvante do Tempo, a Morte, que acabará com um processo histórico colonial, opressivo, repressivo, da mais completa morte das crianças, das mulheres e de um povo roubado no livre direito à autodeterminação: «No dia em que Dódóia me reconhecer como a razão de todas as alterações dominadas pela Natureza e insubmissas a pretensões humanas ou a entidades divinas, já o seu povo será independente. Livre de amarras, traçará, como pássaros em vôo, um rumo sem repressão nem leis a subordinar os habitantes de cubatas ao chicote de

senhores de sobrados».

Sem dúvida que o vôo de Dódóia é uma resposta a Penélope e, sem dúvida que, para responder a Penélope, foi necessário aprender a caligrafia dos pássaros. Apenas os bons livros oferecem este princípio fundador e libertador do olhar atento e interventivo que um farol dirige a um quarto que seja seu (Woolf, 1929).

Muito obrigada, sempre, escritor e poeta Henrique Levy, pelo contributo inigualável para a literatura caboverdiana, portuguesa, lusófona, para a literatura, e pela honra e pelo imenso prazer que foi para mim analisar cientificamente esta obra-prima, porque apenas um poeta que estuda a literatura e ama indistintamente a humanidade pode receber, no chão da escrita, a também indistinta luz de um farol.

Referências bibliográficas Amarilis, Orlanda (1982). Ilhéu dos pássaros. Lisboa: Plátano.

Bachelard, Gaston (1943, 1ª ed.). O ar e os sonhos. Ensaio sobre a Imaginação do Movimento. Trad. Antonio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Martins Fontes (2001, edição brasileira).

D’Almeida, José Evaristo (1856, 1ª ed.). O escravo. Praia: Livraria Pedro Cardoso.

Durand, Gilbert (1960, 1ª ed.). As estruturas simbólicas do imaginário. Trad. Carlos Aboim e Brito. Lisboa: Presença (1989, 1ª ed. portuguesa).

Eliade, Mircea (1952). Imagens e Símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. Trad. Sónia Cristina Tamer. Rio de Janeiro: Martins Fontes (1991, ed. brasileira).

Levy, Henrique (2021). 27 cartas de Artemísia. Prémio Internacional Natália Correia-Ficção. Ponta Delgada: Câmara Municipal e Letras Lavadas.

Levy, Henrique (2025). Os pássaros de Dódóia. Prémio Carlos de Oliveira, 7ª edição. Ponta Delgada: Letras Lavadas.

Lopes, Baltazar (1947). Chiquinho. S. Vicente: Claridade.

Lukács, Georg (2000). A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Livraria Duas Cidades.

Saramago, José (1982). Memorial do convento. Lisboa: Caminho.

Woolf, Virginia (1929, 1ª ed.). Um quarto que seja seu. Lisboa: Vega (ed. portuguesa, 1996).

Irmã de António Avelar

As minhas saudações a todos os presentes e o meu agradecimento por estarem hoje aqui, disponíveis para ouvir algumas considerações minhas sobre Irmã, um justamente galardoado livro de António

Avelar na 1ª edição do Prémio Vitorino Nemésio. Ao António quero também dizer que aprecio o facto de se ter lembrado de mim para o papel de apresentadora desta sua obra. Registo a confiança que depositou na minha pessoa quando me dirigiu o convite, irrecusável, para vir à sua ilha natal falar de Irmã. Digo “irrecusável” porque, embora nos últimos quatro anos – após a minha aposentação – eu me tenha escusado a quase toda a sorte de intervenções públicas, desta vez as razões para aceitar a tarefa de que António Avelar me incumbiu sobrepuseram-se à minha própria vontade.

Ainda antes de começar a ler este romance, já sabia que me seria difícil declinar o convite. O autor é alguém por quem tenho especial carinho. Apesar de a nossa convivência ser muito escassa, cruzámo-nos em momentos significativos das nossas vidas, primeiro como colegas de licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa. Só nos reencontrámos recentemente, mas esse reencontro foi uma encantadora surpresa.

É altura de acrescentar uma declaração de interesses, que não traduz bem o que em inglês se denomina disclaimer: o júri desconhecia o nome real dos autores, pois as obras foram submetidas sob pseudónimo. Só depois da decisão final

se ficou a saber os nomes verdadeiros. Faço questão de registar este pormenor para deixar claro que se trata de perfeita coincidência o facto de o meu marido ter sido membro de um júri que premiou o livro de um antigo colega meu.

Ao fim de apenas umas trinta páginas de leitura de Irmã, já não me restava dúvidas de que iria procurar fazer a justiça de que fosse capaz ao apurado trabalho do seu autor. Mesmo a dedicatória à mãe, Mercês, que, cito, “se estivesse conosco diria: -P’ra que foi agora isso, filho?”, desde logo me tocou.

Lembrou-me muitas mães do nosso tempo, bem mais habituadas a dar do que a receber, que deixavam soçobrar a alegria por uma qualquer atenção dos filhos perante o cuidado em não causar incómodo, dispêndio material ou simplesmente de energia, à vista de qualquer inesperada oferta.

A essa dedicatória segue-se a primeira epígrafe do livro, evocando uma “ilha imaculada”, “deixando-se entranhar” por “homens procurando o destino”. Nela a “vegetação cerrada”, os “rolos de lava”, as “grotas de fendas virgens”, os “fetos descomunais” e os “tufos de musgão” e até “o milhafre vigiando os recémchegados” denunciam a sua pertença ao arquipélago açoriano. Logo confirmada na primeira página do primeiro capítulo, onde é identificada como “a ilha de Jesus Cristo”, nome atribuído no século XV àquela que viria a ser pouco mais tarde denominada ilha Terceira. Considero que o romance onde figura Irma como personagem principal se presta a ser lido como hino ao arquipélago; a Terceira, porém, ocupa nele um lugar de irrefutável centralidade. (Abro parêntesis por não resistir a apontar aqui mais um fator que tornou irrecusável o convite do António: a Terceira, ilha de nascimento da minha mãe, e de toda a minha família por via materna, faz desde sempre parte da minha própria identidade). O espaço onde ocorrerá a trama é, pois, o de diferentes pontos dessa ilha, e o tempo é o dos seus povoadores iniciais.

Não tenho conhecimento de outras narrativas ficcionais que se ocupem dessas eras remotas dos primeiros povoadores dos Açores. O que de mais próximo disso li chama-se A Capitoa, de João Paulo de Oliveira Costa que, mesmo assim, se refere a um período posterior. Nele projeta-se muito claramente o cuidado na reconstituição histórica mas, ao contrário do que sucede em Irma, um tal cuidado parece superar a possibilidade de criação de figuras verdadeiramente análogas de seres humanos, com vida interior, enervada e credível, capazes de inspirar emoções autênticas em quem lê a história das suas vidas.

Como disse já, a personagem que dá título ao livro de António Avelar é a sua protagonista central. Acrescento agora que o autor lhe confere uma existência que o/a leitor/a acompanha com vivo interesse, pelas suas vicissitudes e pelo papel que Irma representa na comunidade a que pertence. Pormenor digno de nota é o facto de nos fazermos testemunha do seu crescimento desde tenra idade. Não menos notável será a concomitância desse crescimento com o nascer e florescer da vila de Angra, até além do momento da sua elevação a cidade circa 1534, por ordem do rei D. Manuel I.

Na verdade, o “tio” Lourenço (que no final do romance é identificado como pai) torna explícitas a coincidência do nascimento de Irma com o de Angra e a simultânea meninice de ambas: “ocorreu-me agora que Angra, há quinze primaveras, que são as que tu tens, estava também a nascer. Quando aqui viémos pela primeira vez, ainda eras uma menina, Angra não teria mais do que trinta fogos alcantilados neste outeiro, ao longo da ribeira. Uma menina, portanto”. Mais do que isso, porém, verifica-se na sintonia entre Irma e Angra um significado porventura de mais-valia nesta narrativa, expresso na cumplicidade de ambas no culto do Espírito Santo –tópico nuclear do romance. Após uma bem-sucedida celebração pentecostal na vila, à revelia da vontade e ação das autoridades eclesiásticas da época, cabe a Lourenço declarar: “-Ficai sabendo, Irmãos, que esta vila há-de receber a graça de El-Rei e será cidade. Nesse dia, nós que estamos aqui presentes, saberemos que, verdadeiramente, o primeiro dia de Angra enquanto cidade, foi este, e não qualquer outro. Para sempre!”

Este parece, pois, o momento azado para nos determos sobre um tema que atravessa praticamente todas as linhas

deste romance, cujo autor se debruça sobre as origens nos Açores de um culto (já à época em declínio no retângulo português), veementemente contrariado pela ortodoxia eclesial mas, apesar disso, sobrevivente até aos nossos dias.

Irma, diminutivo de Irmengarda mas também, discutivelmente, de Irmandade ou Irmandades – as organizações de seguidores da doutrina e das práticas pentecostais – é apresentada como fiel devota do Espírito Santo. Lembre-se que a filiação deste culto à Rainha Santa Isabel é até corporizada pela própria Irma, no momento em que, interrogada por um tal Sebastião Garcia, realiza uma nova versão do milagre das rosas. Escondendo no seio um pergaminho clandestino e intimada a mostrá-lo, cito, “com o gesto submisso do condenado, Irma abriu lentamente o regaço de onde caíram, perante a estupefação de Lourenço e o desespero de Sebastião Garcia, membro do clero, dois lenços de alcova [...] Nos quatro cantos de cada lenço, sobreposta a um raminho verde, havia uma rosa [...] Flores, portanto, nada mais”.

Irma não desfalece nunca na sua lealdade a um culto cujo “sentido primordial leva [segundo o seu mentor Lourenço] à prática natural da harmonia e da comunhão”. São múltiplas as alusões à filosofia de vida que lhe subjaz, nomeadamente em termos de ideais de solidariedade, equidade e justiça social. Refere-se a sua origem no espiritualismo franciscano, bem como a sua alegada conexão posterior com a doutrina de Erasmo. Repetidamente se mencionam os conflitos que trava, na defesa dos mais fracos, com o poder instituído das hierarquias religiosa e civil.

e expropriação dos verdadeiros arroteadores da ilha, aqueles que trabalharam a terra virgem e a tornaram fértil. Não é decerto por acaso que se ressalta a importância do Espírito Santo na Terceira quinhentista, quando à ilha aportavam “ondas de visitantes, de novos residentes, e de acontecimentos ao ritmo do trânsito das embarcações de e para a Europa, Ásia e Brasil”. Numa atmosfera de rápidas e múltiplas mudanças sociais, digladiam-se forças antagónicas, umas de tendência progressista em prol da igualdade e da liberdade, próximas da ideologia matricial dos seguidores do Espírito Santo, outras repressivas e reacionárias propagadas por pregadores e outros defensores da ortodoxia romana e, a partir de certo ponto, violentamente impostas pelo Santo Ofício.

Os que praticam este culto posicionam-se, em geral, contra a prepotência do clero e da nobreza conluiados na intimidação

A propósito da visibilidade e resiliência do culto do Espírito Santo na Terceira e das suas alegadas raízes numa visão do mundo onde predomina a ideia de partilha com os elos mais fracos da sociedade, volto a não resistir a mais uma incursão pessoal nestes meus comentários sobre o livro de António Avelar. Estou a lembrar-me de como já em criança eu reparava na pouca atenção que a minha mãe dava às hierarquias sociais, por oposição ao respeito que o meu pai, embora muito discretamente, lhes concedia. Ela era, como atrás disse, uma terceirense de gema que só com perto de trinta anos se mudou para Lisboa. Ele era produto de Trásos-Montes, de um meio conservador. Creio ter sido por isso que me habituei a pensar a Terceira como lugar mais propenso a uma certa democracia avant-la-lettre. Daí eu me ter revisto na ilha reinventado pelo criador de Irma.

Muito mais haveria a dizer sobre o seu livro. Seria, por exemplo, interessante demonstrar como é exaltado o papel das mulheres – representadas em particular por Irma e a sua amiga Calita – na luta pela liberdade do culto religioso e pela defesa dos injustiçados. Outro aspeto a merecer atenção seria a delicadeza com que é tratado o tema da sexualidade não-binária, embora ele não assuma grande relevo na narrativa. De realçar também a preocupação do autor com questões de rigor histórico e o seu cuidado em esclarecer detalhes de toponímia. Nomes antigos e a sua evolução secular são referidos em notas de rodapé, o que contribui para criar verosimilhança e manter nos leitores a suspensão da descrença.

Gostaria ainda de poder vos brindar com a leitura de algumas passagens de Irma, só para provar que tenho razão em achar que a beleza literária desta obra não é de modo algum despicienda. Mas já me ouviram demasiado e confio que hãode ler este livro logo que o adquiram. Resta-me, portanto, concluir, reiterando o quanto ganhei de prazer estético com a minha própria leitura, e o que aprendi na contemplação dos primórdios da modernidade no cenário idílico de uma ilha nos começos do seu contato com o poder humano de transformação, para o melhor e para o pior, do universo natural.

Parabéns ao autor, a quem deixo os votos de que continue aproveitando o seu talento para dar vida ao passado, ou ao presente, das nossas ilhas maravilhosas. (texto lido na apresentação do livrona Praia da Vitória)

BRUMA READS

Echoes in Silence: Aging and Resistance in Paula de Sousa

Lima’s The Elderly

In The Elderly (Os Velhos in its original Portuguese version), Paula de Sousa Lima offers readers an unflinching, lyrical meditation on aging, loneliness, and memory. The novel centers on the residents of a long-term care facility, particularly Maria de Fátima, an 88-yearold woman whose interior life is as rich as the institutional world around her is barren. But to reduce this work to the story of a single protagonist would be to miss its broader, more haunting achievement: The Elderly is a choral novel, a tapestry of muted voices and silenced selves, where each resident—drooling, stumbling, dreaming, forgotten—contributes to a collective elegy for those whom society has set aside.

As Maria de Fátima reflects, “We are all alone, although quite a few of us exist.” That devastating paradox captures the emotional core of the novel: a place full of people who have become invisible, even to themselves. There is no melodrama here. De Sousa Lima eschews sentimentality in favor of quiet, cumulative sorrow delivered in precise, unadorned prose. What emerges is a deeply human story about what it means to age in a world without time for the aged. It is not a call for pity. It is a demand to be seen.

The nursing home is described less as a refuge and more as a whitewashed

purgatory. The walls are neutral, the temperature regulated, and the meals repetitive. The days unfold in relentless routine—tea at eleven, soup at noon, soft cookies at four. Time flattens. Every hour resembles the last. And yet, within this monotony, the residents’ inner lives flicker with intensity, marked by fragmented memories, anxiety, longing, and moments of startling clarity.

Among them, Maria de Fátima remains the emotional anchor. A once-proud, devout woman who has now forgotten how to pray, she mutters through rosaries that no longer offer comfort, out of habit rather than faith. Her sense of self has begun to dissolve. Words she once cherished—God, hope, home—no longer resonate. But she is not alone in her unraveling. Around her are others: Mrs. Ernestina, tied upright in her armchair by a bedsheet so she doesn’t fall forward; Mr. Alcino, humiliated by incontinence; Mrs. Alzira, endlessly burping and spitting into a cloth. Each character carries not only the weight of age but also of societal erasure.

Though not cruel, the home staff treat the residents with mechanical detachment. Dr. Helena, the facility’s director, favors efficiency over empathy and order over human connection.

A trained sociologist, she enforces rules with clinical zeal: lights out at nine-thirty, prescribed pills for every emotion, visitors restricted to hours that do not disrupt “the routine.” The elderly

are considered problems to be managed, not people to be engaged. They are referred to in shorthand—deaf, senile, incontinent—as if the body’s decline were a moral failing.

Still, The Elderly is not a novel of helplessness. There is resistance here— quiet, persistent, and often poetic. Maria de Fátima resists not by shouting but by remembering. Or trying to. Her dreams are vivid, unruly, frequently terrifying, and more alive than her waking life. In one, her dead brother returns with three arms and hollow eyes to free her from a suffocating wall of yellow roses.

In another, she soars over rooftops with Luís, her first love, their hands bloodied and joined before crashing back into the reality of age and grief. These dreams are grotesque, surreal, sometimes absurd— but they are hers. They are where her life continues, even as it dissolves elsewhere.

The novel is deeply interested in language—not just the spoken kind, but the inner monologues we use to assemble meaning. Words are slowly abandoned by the elderly, not by choice but neglect. “Words cannot resist living apart,” Maria de Fátima reflects, having lost the ability to communicate with her children, doctors, and herself. As memory deteriorates, so does language—and with it, dignity.

De Sousa Lima masterfully captures this disintegration through prose that becomes increasingly elliptical, echoing the broken rhythms of thought.

Yet even here, there are moments of profound humanity. When a new resident arrives—an older man whom Maria eventually recognizes as Luís, the boy she once adored—her heart stirs. But she hides her face, afraid of being seen in her decay. “Don’t look at me,” she thinks. “Don’t look for anything in me that could

remind you of the girl I was.” The shame of aging—internalized from a youth-driven culture—becomes a final cruelty. And yet, this recognition, even if unspoken, restores something that was thought lost: the sense that a full life and a full self still reside beneath the surface.

The Elderly is also a meditation on time— how it is experienced and lost.

In the home, time no longer moves forward. It circles itself, diluting identity and stripping experience of significance. “Today is the same as yesterday,” Maria reflects. “Tomorrow will be the same as today.” But her past—the time she spent in the Azores, in a household filled with music, embroidery, and silent longings— is preserved in memory, and it is there that she and the other residents truly live. The past is not merely nostalgia; it is resistance. It is a refusal to accept the flattening of their lives into mere logistics and schedules.

For Portuguese-speaking readers, especially the Azorean diaspora, The Elderly resonates with even deeper cultural significance. Traditionally, elders were the backbone of the household— storied, respected, and deferred to. Their displacement into institutions is not only a practical shift but a cultural rupture.

De Sousa Lima’s novel is not simply an elegy for individual lives. It is an elegy for a social structure where elders once had centrality and now are peripheral, silenced, and managed.

At a time when aging populations are expanding globally, this novel arrives as both literature and a mirror. It invites readers to confront how we treat the elderly, not just in nursing homes but in our homes, policies, and imagination. Do we still see them as living? As a feeling?

Do they need beauty, variety, and connection? Or do we, like Clara—the efficient, impatient daughter-in-law— see them as liabilities to be “placed” somewhere safe and out of sight?

Paula de Sousa Lima does not answer these questions. She poses them with gentle insistence, trusting the reader to feel the implications. Her gift is not only her language—though that, too, is remarkable—but her ability to breathe life into characters whose lives the world has deemed finished. She grants them not just memory but presence, grief, and grace.

The Elderly is a novel about many things: the erosion of memory, the politics of elder care, the terror of dreams, the persistence of identity, and the quiet heroism of those who keep living after they’ve been forgotten. But above all, it is a novel about dignity—the struggle to retain, recognize, and extend it to others.

In its muted chorus, we are reminded that every life—even when reduced to silence— is still saying something. We must be willing to listen.

What I should have told my father before he died: A Reflection on loss and redemption: a leaving (Azores) and an arrival (Canada)

My father, now that you are gone forever, I feel your absence; now that you have left us for more time than I thought possible, I miss you.

While you were alive, I was never able to understand you.I hid myself from you and you were never able to find me after the day you emigrated when I was still a mere child. On that day, you disappeared from my life and, being little, I didn’t understand the reason why; all I knew is thatyou had left me alone with my mother: you had abandoned me. How was I, a child, to understand why you had to emigrate?There were reasons which only the adults knew and could understand. My mother told me, after I woke up without you by my side, that you had gone and, my world of childhood crumbled in disillusion. You didn’t tell me goodbye, you simply vanished.

And when you returned, after a long absence of three years, I was older; no longer the six year old boy you left behind; I was now nine years old.I had not seen you for so long that you appeared like a stranger returning from a faraway place, and instead of welcoming you back, I kept my distance.A few months later, you brought me and my mother to Canada. But only six weeks after arriving in our new country, my mother received a letter to inform her that my grandmother was very ill and needed her daughter.

Very quickly plans were made for me and my mother to return toSão Miguel.I was heartbroken.I had spent three years without a father and now I was being taken away from you again.I know that you cried inconsolably watching us leave but in my mind it felt like abandonment all over again. By the time my mother and I returned to Canada three months later, it felt like it was too late for you and for me, and I just couldn’t forgive you for the perceived betrayal of letting me go for a second time. I rejected you and could not look into your fatherly eyes.

It was only when I turned sixteen that I was able to make some peace with you. Still, during all the time that I grew up and became a man, I never understood that you were right there by my side; that you had returned after your three year absence.I imagined it as if you had never returned at all because the child in me had never forgiven your absence: the child that I was believed that he had lost his father forever. It is only now, five years

author emanuel melo

after your death; five year without your presence, that I start to see the truth about what happened on that fateful day when you left.I believed that you didn’t love me because you hadn’t even said goodbye.But I had never known your side of the story.

Recently, I asked my mother to explain what happened on the day you left.She told me how you embraced me and cried over me, while I still slept.You didn’t want to let go of me, on that morning that changed my life forever.Yet I thought that you had abandoned me by choice.If only I had seen your tears and felt the warmth of your tight embrace, perhaps then I could have understood and forgiven your leaving; but it wasn’t so, and you paid a heavy price for that act of emigration.You lost your son who did not understand how you could have just disappeared from his life.

Now that you aren’t with us, I want to tell you that I miss you, that I now seethat you had never really abandoned me; that you loved me.I kept myself emotionally distant from you because I never got over that experience of you leaving me without showing me your sorrow in having to go away.The child inside of me believed that hehad lost his father, but like a good father, you remained by my side, watching me in silence, resigned to pay the price for a crime which you had not committed: the crime of abandoning your son.

I want to thank you for all that you did for me.Had you not come to Canada, how different my life would have been back there on our island of São Miguel. You brought me to a land where I was able to have a life full of comfort and opportunities and all of it because of your sacrifice. Forgive me for not recognizing what you did for me while you were with us; forgive me my foolish impression

that you had stopped loving me.I now see that you never abandoned me but, sadly, I distanced myself emotionally from you for most of my life based on a misunderstanding.

Your illness, however, brought me to you in ways that nothing else had before. When you got sick with cancer, it was me who you wanted to take you to all those tedious doctor’s appointments, each one bringing less and less hope that you would survive. I sat with you for countless hours in Princess Margaret Hospital, waiting in silence; you never complained or showed fear about your future. You sat there reading your Portuguese newspapers as if everything was normal.

When the therapy stopped working and there was no further hope of your recovery, in those last months when you lay on the sofa, unable to walk, I came to see you often. I sat with you and you smiled warmly and it brought me comfort. You became like a helpless child and I helped you get dressed, I held a urinal container in my hand while you held on to me so that you would not fall; when you no longer had the strength to get up, I wheeled you into the bedroom.You were always quiet and never complained.

Once, in the middle of the night, my mother called for help while I slept in the next room.You had soiled yourself and she needed help in cleaning you. We undressed you together in silence.I removed your grey undershirt, soaked at the back.I looked down on your naked body, helplessly flat on thebed, unable to move.It killed me to see you so vulnerable.I watched my mother try to make you comfortable but your face betrayed a pain you would not speak so

that she would not worry about you.

I hated having to do your chores. It should have been you taking care of your recycling and garbage night.I didn’t want to shovel your driveway or your front steps, I didn’t want to do your grocery shopping; I didn’t want to plan my life around your dying.I was angry at having to watch you die.The hurt was infinitesimal.It was tied up with my feeling for you all my life; our silences, our differences.I didn’t even know who I was to you.Do you love me?I remember thinking as I looked at your fading body. And all the doubts of my childhood came back to haunt me, confusing my adult mind once again.

You then took for the worst during Holy Week and we prepared for your imminent dying.The doctor gave me the brochure to read so that I’d know the stages of death. But you did not die that quickly.On Good Friday you became conscious again and lucid of mind.You called everyone to come and say goodbye. On Easter Sunday, I held you from behind while the homecare worker washed you.When she left, I was alone with you for a few moments.You asked me to bring you the statue of O Senhor Santo Cristo from the dresser.You held it in your hands and you kissed the Suffering Christ; and I heard you whisper your remarkable prayer:Dai-me a Vossa Graça. (Giveme your grace).This was your only prayer in your time of need.And I still remember it today as a testament to your deep and simple faith. This was to be your last day at home.

The next day, I had to accompany you by ambulance to Grace Hospital where you were to die a few weeks later.We went alone; you and I, in that ambulance passing the streets you would never walk or see again.My knees were shaken as they wheeled the stretcher into the room where

you would spend your last days.For the remainingweeks that you lingered, I came every morning on my way to work to feed you.Sometimes you were aware of me.

Once you gave me a big happy smile.On the last days, you kept your eyes closed while I fed you porridge. I don’t think you felt pain.You were resigned with your death the way that you were resigned to your life’s joys and disappointments; the joy of having two granddaughter’s that my brother gave you; the disappointment that I didn’t.

When we received the late night call to say that the time had come, we rushed to be with you. I watched your breathing become shallower and shallower until you took your last breath.It felt unreal to watch you, the man who was my father, die as simply and quietly as you had lived your life:without fuss.

It’s been five years since that day you died.I am still trying to recover from the loss of you.I had lived my life with the belief, false as it was that you didn’t really love me. The impressionable young boy that I was misunderstood your leaving. But as much as I may have reserved my judgment on your love for me and my love for you, in the end, I think we lived that love, not through words but through the quiet actions and silences of a lifetime, especially those of your last years.

In my mind, I now returnto that fateful morning when you left the island.I close my eyes and think of you again.I am six years old and you haven’t left.Now I can smile.

Emanuel Melo writer Inspired by reading José Luís Peixoto’s Morreste-me. You can read the works of Emanuel Melo on his magnificent blog:https:// thetorzorean.com/

Poesia nas nossas duas línguas

Poetry in our two languages

RoseAngelina Baptista

(poetisa lusófona residente nos EUA)

CERTIDÃO

Hoje, longe de mim— um coração que flui como rio de dúvida, dividindo a dádiva da vida em espelho e espelhado, em mirador e mirado. A dádiva da vida, por natureza universal, una e completa, engenhosa, serene, independente.

Hoje, léguas de longe de mim querer aquilo que não é do pertencer desse coração livre. Hoje, destemida de perder o que não é do seu poder. Hoje, longe, bem longe do coração braço-morto dum rio— endividado, devedor de si mesmo por mero esquecimento de sua pura incessante, benevolente, imediata realidade

SETTLED IN CERTAINTY

Today, far from me, a heart adrift, a river of doubt, splitting the gift of life into mirror and mirrored, the seer and the seen. That gift: indivisible,clever in its design,whole, boundless,free by nature. Today, I’ve drifted beyond the reach of wanting what is not, of clinging to what was never mine to hold. Unafraid now to lose what never belonged. Far, so far from that heart, a dead branch of the river, in debt, only to itself for forgetting its quiet, constant, generous truth.

author rose angelina baptista

Um Horizonte Sereno — A Serene Horizon / Poesia pela Paz — Poetry for Peace”

Palestina

Não são donos sequer da sombra

Que no chão projectam ao passar.

Tudo ou quase tudo lhes foi tirado

A terra, os ribeiros, as ovelhas dispersas pela terra

Os títulos de posse das pequenas quintas.

Tudo ou quase tudo

Menos o futuro amarrotado num bolso

Menos a esperança, menos o olhar.

José do Carmo Francisco, poeta

Um Horizonte Sereno

Hoje escrevemos pela paz — vozes universais, ecos diaspóricos, palavras a atravessar oceanos rumo a um horizonte de justiça, compaixão e esperança.

Palestine

They don’t even own the shadow

They cast on the ground as they pass by.

Everything or almost everything has been taken from them

The land, the streams, the sheep scattered across the land

The title deeds to their small farms.

Everything or almost everything

Except for the future crumpled in a pocket

Except for hope, except for their gaze.

Translated by Diniz Borges

A Serene Horizon

Today we write for peace—universal voices, diasporic echoes, words crossing oceans toward a horizon of justice, compassion, and hope.

José do Carmo Francisco

Desert of Fools reflects the feeling of never being in one place

You have just released your latest album, “Desert of Fools,” which you describe as your most mature album yet. What can you tell us about this work?

It is an album that combines 11 songs written throughout 2023 and 2024. It was recorded in Australia and produced by fellow singer-songwriter Tim Hart. The title and concept of “Desert of Fools” came from one of the songs on the album that shares the same name. This song reflects a duality that is very present in my life, which results from the decision to make music professionally from the Azores. This choice brings with it a constant need to travel to work, and the feeling of never being completely in one place comes from this. When I am in the Azores, I always feel the urge to leave, because it is outside that my career takes place. Still, when I am away, I think the desire to return, because it is in the Azores that my family, my friends, the sea, nature, and everything that defines me as an Azorean are. I like to think of albums as time capsules that capture who I am at a given moment, and I feel that, in recent years, this duality has been an essential part of my life and my artistic identity.

How has your music evolved since you launched your solo career in 2016 to this “Desert of Fools”?

Every day I learn something new, but it’s inevitable to look back at my first album, “Hopes & Dreams,” and realize how much I’ve matured since then, not only as an artist and composer, but also as a person. I was very young, and it was an album where I took on practically all the reins of production, which made it a huge learning experience. I made a lot of choices that I might make differently today, but the whole process was fundamental in helping me understand what worked and what didn’t. I worked with very experienced musicians and learned a lot at every stage. On the second album, produced by Tim Hart, this time remotely, with him in Australia and me in Portugal, I grew a lot again. I felt I had matured as a songwriter on that album and developed a more critical eye on my work. Over the years, I have always been very demanding of myself, and I believe that every song I have written and every album I have recorded has been another step on that path of growth. “Desert of Fools” is a natural reflection of that journey: a more mature album, in which I approached the songwriting with a completely different background, more aware of what I wanted to say and how I wanted to express it.

The album was recorded in Australia. How did this opportunity come about and what did you get out of the experience?

In 2017, I opened for two Australian artists in Portugal, Stu Larsen and Tim

Hart. During those days, we talked a lot about producers , albums, and favorite artists, and we realized we had a lot of tastes in common. Tim, also the Australian band Boy & Bear drummer, had already worked with some of my biggest production references, such as Ethan Johns and Joe Chiccarelli, so the conversation flowed naturally. At the end of those three days, the idea, still quite remote, of one day recording an album of mine with him as the producer had already emerged. Two simple concerts gave rise to two great friendships. A year later, Stu Larsen invited me to be the opening act on a European tour, and Tim became a close friend with whom I talk almost daily, and ended up recording my last two albums. The experience of recording in Australia was a dream come true. I took only the rough drafts of the songs with me and decided to finish them there, precisely so that this energy and context would be reflected in the sound and direction of the album. Working in person with Tim Hart was incredible, and I feel I learned a lot from the experience.

The album was produced and mixed by Australian musician Tim Hart. How did this partnership come about?

The partnership with Tim was already in place. When I recorded “Songs On a Wire” in 2021, our intention was already to work together. Still, as we were in the middle of a pandemic and Australia had closed its borders, we had to work remotely, inspiring the name of that album. Doing that project with Tim only increased my desire to record an album in person one day. As soon as I had a set of songs that was cohesive enough to record a new album, I wanted to get on a plane and go to Australia so we could work side by side on the production and

mixing of the album.

After Porto and Lisbon, you will present this new work at the Teatro Angrense on the 24th, in a show that is already practically sold out. Is it good to perform at home? Do you feel the recognition of the Terceira audience?

Performing at home is always very special, no matter how many beautiful venues I’ve been lucky to play in. I feel that presenting my albums at Teatro Angrense has become a tradition. I love our theater and consider it one of the most beautiful in the country. I have always felt great support and a special affection from people since the beginning of my career. These are memorable nights that I experience with a great sense of responsibility and with the mission of continuing to deserve the support of all those who take a little of their time to accompany me whenever I have something new.

You have performed in several European countries, such as France, the Netherlands, Germany, Poland, and Belgium. Do you hope to consolidate this international career with this new album?

This is a path I have been following every day since the beginning of my music career. My current record label is Dutch, and I started playing in Central Europe in 2013. I want to take this album to those countries; we are actively working towards that.

Interview published originally in Portuguese by the newspaper Diário Insular, from Terceira island – José Louenço, director.

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.