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Criaturas da Noite

“Criaturas da Noite”

Composição: Flávio Venturini / Luiz Carlos Sá.

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DA CANÇÃO NASCE UM CONTO

https://www.youtube.com/watch?v=SuPn-lHqPJY

Noite de inverno. Mabel sai do trabalho no mesmo horário em que os estudantes terminam suas aulas. Faz muito frio. Todos os que estão na rua provavelmente gostariam de estar em outro lugar. Um colega a deixa perto do ponto de ônibus. Despedidas cordiais e mecânicas. Atravessa a praça escura, atrás da luz que não acha. Resiste ao desejo absurdo de correr até a avenida menos sombria, como se tivesse 10 anos novamente. Se fizer isso, vai ser vista como louca e chamar atenção de todos.

Pessoas na calçada formam um pequeno grupo. Quase ninguém conversa. Há as luzes das telas de celulares, filtradas pelo branco da neblina fina que começa a cair. Ela se sente, por alguns segundos, num filme noir francês. Mas logo volta à realidade. É uma trabalhadora cansada, ainda usando o uniforme do supermercado, longe de casa, numa noite incomumente gelada. Nesse momento, a visão do paraíso é um prato de sopa quente, um cobertor macio e a chance de dormir algumas horas, depois de ver TV. Há alguns anos, na adolescência, jamais imaginaria que o Éden poderia ser construído com tão pouco.

Observa as criaturas ao seu redor. Casacos, blusas grossas, gorros, cachecóis. Por alguma razão, fica evidente que quase nunca usam essas peças, que aquela paisagem e aquele momento é uma exceção na vida de todos, apesar de serem pessoas comuns, terminando uma terça-feira igual a tantas outras... Seu ônibus enfim surge ao longe...Mabel se sente aliviada, ao mesmo tempo com a incompreensível sensação de estar perdendo algo, deixando para trás uma preciosidade que jamais será recuperada.

No ônibus, olhares de alívio e cansaço, a doce paz da missão cumprida. Mabel se senta ao fundo, perto da janela.

Observa as lâmpadas das ruas, a névoa formando um halo em seu entorno. O ônibus para noutro ponto, mais pessoas agasalhadas, encolhidas. Vê um casal jovem que parece discutir, com gestos incisivos. Imagina tratar-se de outra cena de filme, de personagens que depois chegarão a um final feliz, previsível. Um rapaz alto, carregando uma mochila pesada, senta-se a seu lado, mas parece nem a perceber, absorto naquilo que ouve pelos fones. O romance que Mabel imagina, iniciado numa estranha noite de inverno, não vai acontecer...

As ruas da cidade vão ficando para trás. As criaturas da noite descem uma a uma, com enorme expressão de alívio.

Chega a vez de Mabel. O coletivo se aproxima do ponto. Mabel refaz mentalmente o roteiro que segue todas as noites: andar depressa, carregar a bolsa junto ao peito, fazer uma oração silenciosa, ter as chaves nas mãos antes de chegar ao portão de casa. Carrega um celular barato, o batom cereja, um bombom amassado e uma nota de 10. E tem a cópia do RG. Se for roubada, os prejuízos serão pequenos, pois foram calculados e preparados com antecedência.

A moça sobe a viela, quase correndo. Pensa nos pais, no irmãozinho. Falta pouco agora. E, por um segundo, ela tem a inexplicável sensação de que perderá algo para sempre...

Diante do portão, Mabel vê Diego, o irmão menor. Abre o portão. Antes de entrar e fechar a porta, olha pela última vez para a noite gelada lá fora, como para um sonho que logo vai se dissipar.

Professora e poetisa: Vera Figueiredo

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