Uma melhor compreensão da Consolidação da Paz (Peacebuilding;
Peacemaking; Peacekeeping)
Pedro Daniel Pereira VazResumo
O presente trabalho corresponde à atividade concernente à Unidade Curricular Teorias e Meios de Resolução de Conflitos Internacionais da Pós-Graduação em Relações Internacionais e Diplomacia Política e Económica no Centro Universitário Lusófona
Porto.
Neste trabalho analisamos a Consolidação da Paz, que consideramos um processo fundamental na construção de um ambiente pacífico e estável em contextos pós-conflito. Procuramos explorar as suas estratégias, desafios e resultados da consolidação da paz, bem como as lições apreendidas a partir de experiências passadas. A consolidação da paz é um processo abrangente que pretende superar as raízes estruturais dos conflitos, abordando as suas causas subjacentes e estabelecer as bases para uma paz duradoura. No entanto, a consolidação da paz não será uma luz ao fundo do túnel no que diga respeito a prevenir conflitos pois, esta ainda enfrenta diversos desafios que resultam na persistência de tensões, nomeadamente a imposição de um sistema ocidental como núcleo de qualquer sistema futuro. Este artigo analisará inicialmente os conceitos fundamentais relacionados à Consolidação da Paz (Peacebuilding) incluindo Peacemaking e Peacekeeping. Em seguida, serão analisadas experiências passadas com o intuito de identificar os desafios enfrentados por este conceito e que perspetivas poderá ter para o futuro.
Palavras-Chave: Consolidação da Paz; Resolução de Conflitos; Peacebuilding; Peacemaking; Peacekeeping; Agenda para a Paz; Nações Unidas
Sumário: I. Introdução; II. A paz na ótica de Johan Galtung; III. A Consolidação da Paz: Rumo a uma Paz Duradoura e Justa; IV. Desafios à Consolidação da Paz: Uma análise dos obstáculos a percorrer; V. Considerações Finais
Introdução
A procura pela paz e estabilidade dessa são um objetivo fundamental na comunidade internacional. No entanto, alcançar essa paz duradoura e sustentável em regiões pós-conflito tem se mostrado uma tarefa mais complexa do que inicialmente poderia ser interpretada. Ao longo das últimas décadas, diversos conceitos e abordagens têm sido desenvolvidos para enfrentar esse desafio1, entre eles, a Consolidação da Paz, que se tornou “num princípio norteador do intervencionismo internacional na periferia desde a sua inclusão na Agenda para a Paz da Organização das Nações Unidas, em 1992”. (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017).
É imprescindível reconhecer que o objetivo crucial deste princípio está longe de ser considerado um sucesso, devendo-se em parte pelos desafios enfrentados, principalmente, a sua imposição como Paz Liberal. A imposição de uma visão específica de paz, baseada em modelos e valores ocidentais, tem o potencial de resultar num aumento de tensões, o que inevitavelmente dificulta o processo de Consolidação da Paz. Essa imposição de um paradigma restrito de paz pode gerar resistências, hostilidades e conflitos adicionais, prejudicando a construção de uma paz direta, estrutural e cultural como nos indica Johan Galtung2 .
Com este trabalho, temos como objetivo realizar uma análise crítica aprofundada da Consolidação da Paz, levando em consideração a definição de paz proposta por Johan Galtung, questionando as abordagens convencionais da Consolidação da Paz, refletindo a sua eficácia à luz da definição de paz de Galtung.
Para isso, dividimos o nosso artigo em três partes: começamos por fazer uma análise da definição de paz, fornecida por Johan Galtung, analisando as suas vertentes: Paz Negativa e Paz Positiva, bem como a sua definição de Violência (Direta; Cultural; Estrutural) para posteriormente entendermos melhor o conceito da Consolidação da Paz, olhando para os seus pressupostos contidos na Agenda para a Paz (1992) e, entendermos
1 Nas palavras de Gilberto Carvalho de Oliveira: “Há uma quantidade incontável de tópicos que alimentam a agenda dos estudos da paz, incluindo aspectos tão diversos quanto as causas da guerra; o problema das armas nucleares, do desarmamento e do controle de armas; as técnicas de resolução de conflitos; as operações de paz; a desmobilização, reconciliação e reconstrução pós-bélica; as migrações e os deslocamentos internos; a resistência não-violenta; as variadas formas de violência estrutural e cultural; a educação para a paz; as condições para uma paz positiva (redução das desigualdades econômicas, promoção da justiça social, redução da exploração e da opressão)” (Oliveira, 2017)
2 (Galtung, Cultural Violence, 1990)
como estes são apresentados na prática. Por fim, realizaremos uma reflexão abrangente acerca dos desafios enfrentados pela Consolidação da Paz e pelo intervencionismo internacional, abordando tanto os aspetos ideológicos como os desafios práticos enfrentados por essas abordagens Analisaremos criticamente as limitações e as restrições ideológicas que podem afetar a eficácia da Consolidação da Paz, questionando como os princípios subjacentes podem moldar e influenciar a implementação das estratégias de paz Além disso, examinaremos os obstáculos concretos enfrentados na prática, como a falta de recursos, as dinâmicas de poder complexas, as dificuldades de coordenação e comunicação, entre outros.
A paz na ótica de Johan Galtung
A nossa análise da Consolidação da Paz começa com a definição do conceito da Paz. A definição da paz é um tema complexo, “embora o pensamento sobre a paz remonte à antiguidade, estando presente em diversas tradições religiosas, correntes filosóficas e vertentes do movimento pacifista, os estudos da paz constituem um empreendimento relativamente novo” (Oliveira, 2017). Procuramos, pois, analisar esse conceito de paz, explorando a visão de Johan Galtung3, destacando as suas principais contribuições teóricas e conceptuais.
O próprio tem “sido incansável em chamar a atenção para o fato de a paz ser um tópico demasiadamente complexo para ter a sua compreensão limitada a um quadro unidimensional de análise, geralmente orientado por disciplinas tradicionais como a história ou o direito internacional” (Oliveira, 2017) Ele defende que o conceito de paz deve ser constantemente questionado e que a pesquisa sobre as condições para a paz deve conectar diferentes disciplinas como, psicologia, sociologia e as ciências políticas.
Nesse sentido, Galtung define a paz como ausência da violência, afirmando que este termo “é simples e que está de acordo com o uso comum, e define uma ordem social
3 Johan Galtung é um sociólogo e teórico da paz norueguês, considerado como uma das referências dessa área de estudos. As suas contribuições para o campo dos estudos da paz incluem as suas teorias sobre a paz negativa e a paz positiva, bem como a identificação do triângulo da violência e o respetivo triângulo da paz: direta; estrutural; cultural, bem como a introdução do conceito da Consolidação da Paz. Temas estas que nós iremos analisar ao longo deste trabalho.
pacífica não como um ponto, mas como uma região - como a vasta região de ordens sociais em que a violência está ausente” (Galtung, Violence, Peace, and Peace Research, 1969), por outro lado, entende que a “violência está presente quando os seres humanos estão a ser influenciados de forma a que as suas realizações somáticas e mentais estejam abaixo das suas realizações potenciais” (1969, p. 168), mas entende que este conceito poderá trazer mais problemas do que aqueles que pretende resolver. Rejeitando assim o conceito restrito de violência – “segundo o qual a violência é apenas a incapacitação somática ou privação da saúde (com o homicídio como forma extrema), nas mãos de um agente que pretende que essa seja a consequência. Se isso fosse tudo o que a violência envolve, e se a paz fosse vista como sua negação, então muito pouco seria rejeitado quando a paz é apresentada como um ideal. Ordens sociais altamente inaceitáveis ainda seriam compatíveis com a paz. Portanto, um conceito ampliado de violência é indispensável, mas esse conceito deve ser uma extensão lógica, e não apenas uma lista de indesejáveis” (Galtung, Violence, Peace, and Peace Research, 1969).
Num sentido de tentar esclarecer o conceito da Paz, Galtung desdoba a paz “em duas perspetivas epistemológicas distintas: uma negativa e outra positiva” (Oliveira, 2017). Define a Paz Negativa de uma “forma estreita a partir do que ela não é ou do que ela nega: a violência física e a guerra” (2017), assim esta, traduz-se numa “conceção minimalista de paz, restrita à ausência das manifestações diretas e aparentes da violência” (2017), ou seja, é a ausência da violência e da guerra4 .
No outro lado, a paz define-se de uma forma maximalista a partir de tudo o que ela pode agregar: “a mudança de mentalidades, o contato e o intercambio entre os grupos sociais, a educação, a pesquisa, a comunicação e o diálogo, as transformações sociais e econômicas, a cooperação institucional entre grupos e nações, e quaisquer outras propostas que se comprometam com “a integração humana” (2017), não se definindo a paz como a mera ausência da violência mas amplia o conceito para incluir todas as iniciativas que possam promover a integração humana. Ele acredita que a paz não é apenas a ausência de violência, mas também um estado em que as pessoas vivem
4 Dentro desta epistemologia, os pesquisadores da paz devem-se envolver em áreas relacionadas com as manifestações explícitas da violência, procurando compreender as razões, causas e formas de lidar com os efeitos diretos do conflito, explorando temas como a diplomacia, negociação, mediação e outros instrumentos para lidar com conflitos (Oliveira, 2017)
harmoniosamente, com justiça, igualdade e cooperação, superando conflitos e, trabalhando em conjunto para criar uma sociedade mais integrada e pacífica5 .
Porém, a meio de um intenso debate estimulado por críticas de jovens pesquisadores com orientação marxista, que acusavam a disciplina dos estudos da paz de se tornar uma espécie de ciência aplicada, direcionada para os interesses daqueles que detêm o poder de aplicá-la. Argumentando ainda que os estudos da paz estavam a ser utilizados como uma forma de controlo, manipulação e integração do sistema internacional pelos grupos dominantes. Levaram Galtung a introduzir o triângulo da violência e o respetivo triângulo da paz.
Triângulos da Violência e da Paz – Galtung:
Direta
Violência / Paz
Estrutural Cultural
Neste triângulo, Galtung, distingue três vértices: Direta; Estrutural e Cultural. Referindo que só se alcança a Paz se verificarmos a Paz Negativa (Direta – ausência de violência) em conjunto com a Paz Positiva (Ausência de violência: Estrutural + Cultural)
Assim, oferece-nos um novo entender de Violência e por sua vez, de Paz. Galtung distingue a violência: direta: que é o “ato intencional de agressão, com um sujeito, uma ação visível e um objeto” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e
5 Nesta perspetiva, os pesquisadores agora estudam temas relacionados com os “direitos humanos; questões de gênero; desigualdades sociais e econômicas, desenvolvimento, redução da pobreza e combate à fome; bem-estar social; participação política; justiça social; transformações sociais não violentas; educação para a paz; reconstrução pós-conflito, reconciliação e justiça de transição; questões ambientais; pluralismo e diversidade cultural; diálogo e compreensão em todos os níveis, do interpessoal, ao intersocial, ao internacional” (2017)
Críticas, 2017); estrutural: Galtung define a violência estrutural como uma forma indireta que tem as suas origens na “distribuição desigual do poder e de recursos nas sociedades ou entre as sociedades” (Oliveira, 2017). Diferente da violência direta, que envolve ações físicas visíveis, a violência estrutural refere-se a um tipo de violência que é frequentemente latente, invisível ou disfarçada, “que resulta das desigualdades sociais, das injustiças, da pobreza da exploração e da opressão” (2017); por fim, introduziu ainda a violência cultural: “é o sistema de normas e comportamentos subjacentes a – e legitimador das – violências estrutural e direta; ou seja, a cosmologia social que nos permite olhar para a repressão e a exploração como normal ou natural e, por isso, mais difícil de desenraizar” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017), o autor observou que “alguns aspetos próprios da esfera simbólica da existência humana (religião, ideologia, arte, linguagem, ciência, etc.) podem reforçar as formas diretas e estruturais de violência, legitimando-as ou fazendo com que elas sejam percebidas como corretas ─ ou pelo menos pareçam não erradas ─ aos olhos da sociedade” (Oliveira, 2017), a isto, considerou como violência cultural6 .
Esta reorientação na compreensão da paz levou o autor a fazer uma comparação com a prática do intervencionismo internacional (Peacekeeping7 e Peacemaking8), reconhecendo a necessidade de desenvolver um novo conceito: A Consolidação da Paz (Peacebuilding) que viria a ser adotada na Agenda para a Paz das Nações Unidas.
6 O racismo, o machismo, as superstições, os fundamentalismos religiosos, os nacionalismos, o militarismo, as ideologias, o colonialismo, a meritocracia, as etnias e outras construções simbólicas geralmente fundadas em relações binárias do tipo bom/ mau, escolhido/não escolhido, superior/inferior, amigo/inimigo ou racional/ emocional ilustram esse tipo de violência cultural, servindo como mecanismo de justificação ou legitimação de outras formas de violência direta e estrutural” (Oliveira, 2017) são todas consideradas causas de violência cultural.
7 Galtung entendia que o objetivo do Peacekeeping era de “manter a paz entre as partes em conflito através da interposição de uma terceira parte” (Oliveira, 2017), no entanto, “pecava por entender o conflito como uma interrupção do status quo e por prescrever o retorno ao status quo ante como solução” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017), esta abordagem não abordava as questões subjacentes ao conflito e limitava-se a manter a Paz Direta.
8 O Peacemaking também foi objeto de críticas por parte de Galtung. Sendo um processo de resolução de conflitos refletia os esforços diplomáticas de negociação, podendo surgir entre as partes ou com a ajuda de um terceiro. Galtung criticava-o por se limitar também à violência direta, dependendo do empenho e compromisso das partes envolvidas em conflito, além de que os acordos propostos por uma terceira parte podem não refletir as posições das partes beligerantes, nesse sentido, criou uma terceira abordagem, o Peacebuilding.
Consolidação da Paz: Rumo a uma Paz Duradoura e Justa
Neste segmento, iremos explorar o conceito de consolidação da paz, as suas origens nos trabalhos de Johan Galtung até ao estabelecimento dessa como princípio norteador da Agenda para a Paz de 1992, das Nações Unidas9 , onde Boutros-Ghali “defende o envolvimento mais ativo da comunidade internacional na prevenção e na gestão dos conflitos violentos” (Oliveira, 2017). Este princípio pretende abordar as causas estruturais dos conflitos, indo além da simples resolução imediata de crises (Violência Direta) procurando transformar as estruturas sociais e culturais para promover uma paz duradoura.
O Peacebuilding implica identificar as estruturas responsáveis pelo conflito e substituí-las por estruturas que promovam a paz. Nesse contexto, Galtung destaca a importância de adotar medidas de desenvolvimento social mais abrangentes e radicais. Isso implica abordar as desigualdades sociais, promover a justiça distributiva, garantir a participação política e econômica de todos os grupos sociais e eliminar as relações de poder opressivas. O objetivo é construir uma sociedade mais equitativa e inclusiva, onde as bases estruturais da violência foram substituídas por uma estrutura que promova a paz de forma sustentável.
Galtung afirma que o Peacebuilding vai além das abordagens do Peacekeeping e do Peacemaking. Enquanto o Peacekeeping se concentra em manter a paz através da separação das partes em conflito e o Peacemaking procura resolver de forma temporária as manifestações superficiais do conflito, o Peacebuilding envolve a construção de uma estrutura social mais horizontalizada onde “as disparidades de desenvolvimento entre os indivíduos, classes, grupos, nações e regiões sejam reduzidas” (Oliveira, 2017). Assim, as condições para uma paz positiva só podem ser alcançadas por um meio de transformações estruturais e de justiça social pelo Peacebuilding.
9 Introduzida por Boutros-Ghali, Secretário-Geral das Nações Unidas, entre 1 de janeiro de 1992 a 31 de dezembro de 1996.
Esta visão foi incorporada na Agenda para a Paz, de 1992 ao lado de mais três estratégias interligadas: Diplomacia Preventiva10; Restabelecimento da Paz11; Manutenção da Paz12 . Estas estratégias abrangem abordagens complementares que têm como objetivo prevenir conflitos, restabelecer a paz bem como garantir a sustentação da paz a longo prazo13 . Em primeiro lugar, entende que se pode prevenir o conflito antes que este se transforme numa situação de violência generalizada (Violência Direta), isto é a Diplomacia Preventiva. Perante o restabelecimento da paz este focará na paragem da violência direta, do conflito, tendo “como objetivo apoiar as partes em conflito nas negociações de paz tendentes a um acordo, fazendo uso dos instrumentos pacíficos contidos no Capítulo VI da Carta das Nações Unidas” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017)14 . Como próximo passo, será a manutenção da paz após a celebração de um acordo, que poderá envolver o envio de forças das Nações Unidas (Capacetes Azuis), para “estabilizar as zonas de tensões e assegurar que o processo de paz é efetivamente cumprido” (2017). E por fim, consolidar a paz15, numa fase pós-conflito, que visa garantir a estabilidade da paz alcançada, não apenas através da resolução imediata dos conflitos e da cessação da violência, mas também “através de mudanças estruturais necessárias ao bem-estar das pessoas e à redução das desigualdades sociais, contribuindo assim para evitar novas ondas de violência no futuro” (Oliveira,
10 Estando definida na Agenda para a Paz, como: “action to prevent disputes from arising between parties, to prevent existing disputes from escalating into conflitcts and to limit the spread of the latter when they occur” (Nations, 1992). Estando depois regulada nos artigos 23 a 33.
11 “Peacemaking is action to bring hostile parties to agreement, essentially through such peaceful means as those foreseen in Chapter VI of the Charter of the United Natios” (Nations, 1992). As suas particularidades encontram-se previstas no artigo 34 a 45.
12 “Peace-keeping is the deployment of a United Nations presence in the field, hitherto with the consent ofall the parties concerned, normally involving United Nations military and/or police personnel and frequently civilians as well. Peace-keeping is a technique that expands the possibilities for both the prevention of conflict and the making of peace” (Nations, 1992) Os seus detalhes encontram-se nos artigos 46 a 54.
13 Assim, a Diplomacia Preventiva refere-se a uma abordagem proativa adotada para prevenir o surgimento de conflitos violentos. Em vez de responder a crises já estabelecidas, a diplomacia preventiva pretende identificar e abordar precocemente as causas subjacentes dessa crise, com o objetivo de evitar que eles se intensifiquem e se transformem em situações de violência generalizada.
14 Artigo 33º - “As partes numa controvérsias, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacional, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, via judicial, recurso a organizações ou acordo regionais, ou qualquer outro meio pacífico à sua escolha” (Unidas, 1945) Podendo em situações excecionais utilizar-se o uso da força militar (peace-enforcement), segundo a Agenda para a Paz, artigos 42 a 45 (Nations, 1992)
15 “The present report in addition will address the critically related concept of post-conflict peace-buildingaction to identify and support structures which will tend to strengthen and solidify peace in order to avoid a relapse into conflict. Preventive diplomacy seeks to resolve disputes before violence breaks out; peacemaking and peace-keeping are re- quired to halt conflicts and preserve peace once it is attained. If successful, they strengthen the opportunity for post-conflict peace-building, which can prevent the recurrence of violence among nations and peoples” (Nations, 1992). Por fim, esta encontra-se prevista nos artigos 55 a 59
2017), assim aparece definida na Agenda como “ações para identificar e apoiar estruturas que fortaleçam e solidifiquem a paz, de forma a evitar um retorno ao conflito” (Nations, 1992).
Essa função faz-se em duas tarefas fundamentais na consolidação da paz. A primeira de evitar o retorno ao conflito, que envolve a implementação de medidas e estratégicas para manter essa estabilidade e segurança. Essas medidas podem incluir o desarmamento de grupos armados, desmobilização de ex-combatentes, reintegrados na vida civil ou nas forças armadas nacionais, além do reforço da segurança e a implementação de um Estado de Direito (“o regime político que subjaz a estas transformações é a democracia liberal” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017)). A segunda, será uma tarefa positiva de enfrentar as causas profundas ao conflito. Isso implica abordar as questões subjacentes que levaram ao surgimento do conflito, como desigualdade socioeconómicas, injustiça, exclusão social, falta de acesso a recursos e serviços básicos, entre outros. Para isso, são necessárias mudanças estruturais que promovam a inclusão social, a justiça e o desenvolvimento sustentável. Isso pode envolver a reforma de instituições políticas, econômicas e sociais, a promoção da igualdade de gênero, a proteção dos direitos humanos e a melhoria das condições de vida das comunidades afetadas. Ao enfrentar as causas profundas do conflito e promover mudanças estruturais, a consolidação da paz pretende evitar a recorrência do conflito e evitar a emergência de novas ondas de violência no futuro.
Estas estratégias, previstas na Agenda para a Paz, estão intimamente interligas, demonstrando o compromisso da ONU em promover ativamente a resolução pacífica de conflitos, com foco nos conflitos internos nos “novos territórios não autónomos”, como designados por Helman & Ratner (Helman & Ratner, 1992-1993).
Vários fatores contribuíram para este aumento do envolvimento da ONU. com origens no final da década de 1990. Em primeiro lugar, houve um entendimento generalizado de que essas guerras internas eram disseminadas, desestabilizadoras e imorais16 Além disso, percebeu-se que estas novas guerras raramente ficavam restritas às suas fronteiras, além de envolver os países vizinhos e afetar a sua região, também
16 Embora o número de guerras civis tenha aumentado desde a Segunda Guerra Mundial, foi somente após o fim da Guerra Fria que esses conflitos foram percebidos como a maior ameaça à paz e à segurança internacionais (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013)
desafiavam o regime de normas internacionais estabelecido pela comunidade de Estados17 . Um terceiro fator importante foi o triunfo do liberalismo com o fim da Guerra Fria, a “ênfase liberal nos indivíduos18 , nos direitos humanos e na democracia, o surgimento do conceito de segurança humana, e o consequente entendimento da soberania enquanto expressão de responsabilidade aumentou drasticamente o papel dos atores externos em situações onde o Estado era incapaz ou não queria proteger os seus nacionais” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013).
Estes fatores levaram as guerras intraestatais dos anos 1990 a tornarem-se num problema da comunidade internacional. Diante da necessidade de garantir a paz e a segurança internacional, houve uma clara preferência por uma presença mais forte da ONU, nesses contextos instáveis. A ONU adotou assim, uma abordagem mais ousada e proeminente na promoção da paz em regiões periféricas, utilizando a Agenda para a Paz de 1992 como base. A implicação desta agenda marcou um ponto de virada importante na compreensão da organização face à forma como deveria agir, de maneira coerente e dinâmica, diante os conflitos internos. A ONU passa a estimular o diálogo “continuado entre as frações opostas, acompanhando de perto as negociações dos acordos políticos e comprometendo-se a apoiar a implementação dos processos de paz resultantes desses acordos negociados. Atuando enquanto garante externo que assegura a responsabilização das partes ao longo do processo, a organização comprometeu-se com o pós-acordo de paz, enviando operações de manutenção da paz para variados contextos e em diferentes continentes – da Bósnia a Angola, do Camboja a El Salvador – criando, assim, as condições para o envolvimento da organização em todas as fases do conflito, da prevenção à consolidação da paz pós-conflito” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013).
Numa tentativa de dar resposta a estes novos problemas surge a Agenda para a Paz e a sua ênfase na Consolidação, que se materializar no “terreno com uma
17 As práticas de abuso de direitos humanos e o terror eram características centrais dessas guerras, indo contra o direito internacional que procurava limitar o impacto dos conflitos armados, especialmente sobre os não-combatentes. Isto despertou uma consciência global, especialmente no Ocidente, que favorecia a punição e a dissuasão desse tipo de comportamento. A globalização dos meios de comunicação, como o "efeito CNN", no qual mostraram imagens de violência e desastres humanitários, influenciou a opinião pública e as decisões governamentais (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013).
18 Ênfase liberal que vai influenciar os próprios ideais da Consolidação da Paz
multiplicidade de atores e de tarefas que podem ser dividas em quatro dimensões interdependes: (1) militar e segurança; (2) político-constitucional; (3) económico-social e, (4) psico-social” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013). No entanto, esta prática está rodeada de problemas estruturais que levam a eficácia da Consolidação a ficar aquém das expectativas. Problemas esses que iremos abordar de seguida.
Desafios à Consolidação da Paz: Uma análise dos obstáculos a percorrer
A Consolidação da Paz está presa a uma prática liberal, que tem as suas origens na vitória do Ocidente, no contexto da guerra fria. Esta prática é um reflexo dessa vitória, onde os vencedores (Estados Ocidentais) procuraram restruturar o sistema internacional de acordos com as suas ideologias19, aparecendo a democracia liberal e a economia de mercada como soluções universais para “o desenvolvimento, a paz e a estabilidade” (Yannis, 2002). Esta abordagem liberal na consolidação da paz é impulsionada não apenas pelos Estados democráticos ocidentais, mas também pelas suas sociedades civis, organizações não-governamentais e instituições internacionais sob sua influência. Mais, esta abordagem, como refere Roland Paris, corresponde “a uma enorme experiência de engenharia social – uma experiência que envolve a transplantação de modelos ocidentais de organização social, política e económica para países devastados pela guerra de forma a controlar o conflito civil: por outras palavras, a pacificação através da liberalização política e económica” (Paris, Peacebuilding and the Limits of Liberal Internationalism , 1997). O mesmo, refere ainda que a liberalização é o elemento central que orienta as operações da paz (Paris, At War´s End: Building Peace After Civil Conflict , 2004) Com a ausência de uma proposta concorrente, o modelo de paz liberal ganhou ampla aceitação e legitimidade, estabelecendo-se como a principal referência para a promoção da paz pela ONU. A consolidação da Paz fica assim restrita à Paz Liberal, à matriz ocidental e à visão do mundo liberal, limitando assim a consideração e a adoção de outras experiências e abordagens, sendo estas marginalizadas ou mesmo ignoradas, diminuindo a diversidade e a pluralidade na procura por soluções pacíficas.
19 Fortalecida ainda mais pela completa queda do Bloco Socialista, não havendo nenhuma alternativa plausível à paz liberal, consolidando-se como a forma dominante no cenário global.
Nesta visão liberal da Consolidação da Paz, a prática vai andar em volta de ideologias e valores ocidentais/liberais, com o objetivo de “criação de democracias pluripartidárias com economias de mercado e sociedades civis mais fortes, assim como de promoção das práticas e dos valores liberais ocidentais, tais como a autoridade secular, a governação centralizada, o Estado de direito ou o respeito pelos direitos humanos” (Cravo, A Consolidação da Paz: Pressupostos, Práticas e Críticas, 2017)
Este objetivo vai-se materializar, como já referimos, em quatro operações: militar e de segurança; político-constitucional; socioeconómica; psicossocial.
Na primeira operação, implica à ONU, a reconstrução da autoridade estatal envolve a restauração do monopólio legítimo do uso da força e o controle do território como um todo, neste sentido, será necessário estabelecer garantias institucionais (de segurança) que neutralizem o sentimento compreensível de insegurança presente tanto na população como noutros atores, que temem a exclusão e a centralização do poder políticomilitar em detrimento dos seus interesses. Assim, esta operação aparece com dois objetivos nucleares: primeiro, haverá a necessidade de equilibrar as partes beligerantes e, em segundo lugar, restringir as capacidades dos combatentes de retornar ao conflito. Para alcançar estes objetivos, é implementado um programa específico voltado para a área militar, denominado "DDR" (Desmobilização, Desarmamento e Reintegração na vida civil ou nas forças armadas nacionais). Este programa visa facilitar a transição dos combatentes para a vida civil ou para o serviço nas forças armadas nacionais por meio da desmobilização, desarmamento e reintegração.
Nas alterações político-constitucionais, pretende-se levar a cabo a transição política da região. Transição essa que resultará na imposição de uma democracia liberal, que na ótica do intervencionismo internacional efetuado pela ONU, é a mais propensa à paz. A implementação do modelo democrático em contextos pós-conflito pode ser realizada de diferentes maneiras: realização rápida de eleições multipartidárias, levando em consideração os diferentes grupos envolvidos no conflito; através da formação de governos de coligação, nos quais atores políticos de diferentes partes se unem; e por fim, através do protetorado internacional, em que a administração é assumida por um ator externo20 Na prática, esta imposição de uma democracia liberal, pode “acirrar tensões
20 Um exemplo emblemático de protetorado internacional é o caso de Timor-Leste. A ONU estabeleceu a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET) e, posteriormente, a Missão de Apoio das Nações
que existiram até o momento da assinatura do acordo de paz” (Oliveira, 2017). Por exemplo, nos governos de coligação, governo em que as partes até à pouco tempo estavam em conflito, o grau de tensão entre as partes ainda existe, não é apenas por agora fazerem parte do governo, que as discordâncias estruturais/ideológicas/religiosas desapareceram Juntando-se a desconfiança pelo novo sistema político, a situação terá tudo para fomentar um novo conflito.
A nível económico, as políticas introduzidas, também seguem o modelo económico liberal, em que aconselham a liberalização, privatização e desregulação da economia (Consenso de Washington), sendo “pautada na ideia de que livre comércio e integração económica contribuem para a estabilidade em regiões propensas a conflitos por meio da promoção do crescimento económico e, subsequentemente, da redução da pobreza e das desigualdades” (Oliveira, 2017) No entanto, é crucial destacar que a implementação dessas políticas, embora tenha como objetivo estimular um impulso económico, acarreta consequências negativas, como o agravamento da pobreza. Isso ocorre devido à natureza desigual do sistema económico liberal, onde as políticas de liberalização, privatização e desregulação podem beneficiar predominantemente os setores mais privilegiados da sociedade, bem como grupos económicos internacionais, enquanto deixam os grupos vulneráveis em maior desvantagem.
Este modelo liberal (e único) tendo sido criticado por não levar em consideração as especificidades locais e não permitir o surgimento de soluções alternativas mais compatíveis com as realidades diversas. Ao reproduzir um padrão ocidental em países, que a maioria não ocidentais, esta abordagem reflete uma perspetiva eurocêntrica predefinida, que estava fechada para experiências multiculturais e para um maior envolvimento dos atores locais21 na definição da agenda de reconstrução de seus próprios países (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013).
Evitando aprofundar muito mais as críticas ideológicas da Consolidação da Paz, já amplamente estudadas e debatidas por outros atores como (Paris, 1997); (Richmond,
Unidas em Timor-Leste (UNTAET), que desempenhou um papel fundamental na criação das instituições governamentais do país e na promoção da paz e do desenvolvimento sustentável. A presença de uma força de paz internacional foi crucial para garantir a segurança e proteção dos timorenses durante esse período crítico. No entanto, este também encontrou vários desafios.
21 “O conceito de Paz Hibrida reflete o papel ativo dos atores locais em relação às intervenções internacionais” (Oliveira, 2017)
2005); (Oliveira, 2017); (Cravo, 2017), iremos agora abordar os demais desafios enfrentados pela Consolidação da Paz e, por sua vez, o intervencionismo internacional (como o Peacemaking; Peacekeeping) durante a sua implementação.
O intervencionismo internacional tem sido marcado por fracassos notáveis como das missões em Angola, Bósnia, Somália e no Ruanda. Nessas situações, as intervenções não alcançaram os resultados esperados e enfrentaram sérias dificuldades na busca pela paz e estabilidade. Esses fracassos destacados colocaram em evidência as limitações e desafios enfrentados pela Nações Unidas, levantando questões sobre a eficácia dessas intervenções e a necessidade de repensar abordagens e estratégias para a promoção da paz em cenários complexos e conflituosos. Com particular importância o caso de Angola e Ruanda, onde a violência, após a missão das Nações Unidas, acabou por ser ainda mais intensa do que os próprios conflitos que antecederam a intervenção22 Mesmo em casos em que não houve um retorno ao conflito armado, a materialização da paz formal foi gradualmente perdendo terreno, e as alegações de sucesso inicial das missões foram sendo contestadas por estudos acadêmicos e organizações no terreno. Exemplos como Moçambique, El Salvador e Camboja mostraram que a realidade era mais complexa e desafiadora do que o retratado inicialmente.
Nesse sentido, a Organização das Nações Unidas (ONU) foi alvo de diversas críticas relacionadas a várias questões. Entre elas, destacam-se as restrições financeiras que limitaram sua capacidade de atuação, a falta de recursos humanos qualificados para lidar com os desafios complexos da paz e segurança, as dificuldades de comunicação e coordenação entre as missões no terreno e a sede em Nova Iorque, bem como a ausência de critérios de seleção claros para os países contribuintes.
Esses problemas revelaram-se obstáculos significativos para a efetividade das ações da ONU. A escassez de recursos financeiros dificultou o planejamento e a implementação de operações de paz abrangentes. Além disso, a falta de pessoal qualificado e experiente comprometeu a capacidade da organização de cumprir os mandatos estabelecidos pelo Conselho de Segurança.
22 Nas palavras de Teresa Almeida Cravo: “As estatísticas sobre a reincidência de conflitos violentos em sociedades previamente devastadas pela guerra eram devastadoras – cerca de 50% nos primeiros cinco anos que se seguem à assinatura do acordo de paz” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013)
A dificuldade de comunicação e coordenação entre as equipes no terreno e a sede em Nova Iorque resultou em atrasos na tomada de decisões e na resposta eficiente aos desafios emergentes. Essa desconexão afetou a capacidade de adaptação e de antecipação das condições locais, tendo um impacto direto no sucesso das missões de paz.
Outro aspeto crítico foi a falta de critérios claros na seleção dos países contribuintes para as operações de paz. Essa lacuna permitiu que interesses individuais dos Estados interferissem na imparcialidade e isenção da intervenção, comprometendo a legitimidade das ações da ONU. Além disso, a diversidade de países contribuintes resultou em disparidades de experiência e formação dos contingentes, afetando a eficiência e a coordenação entre os membros das missões.
Esses problemas identificados revelaram-se como desafios significativos para a ONU no desempenho de seu papel como ator central do intervencionismo internacional. Mas não foram os únicos problemas apontados ao intervencionismo das Nações Unidas.
A estes juntam-se ainda problemas relacionados com a calendarização das missões previstas em acordos de paz, que geralmente eram excessivamente curtos, o que resultava numa corrida contra o tempo, comprometendo a adequada preparação da missão. Em muitos casos, isso levava ao envio tardio das tropas e outros componentes das missões, deixando um período volátil entre a assinatura do acordo de paz e a presença de um garante externo. Além disso, foram observados arranjos ad hoc, improvisações e influências pessoais que afetavam a tomada de decisões no seio das missões. Também ligado ao problema da calendarização ocorria o problema da retirada, onde havia uma ausência de uma estratégia eficaz de saída. A retirada dos contingentes internacionais frequentemente ocorria de maneira abrupta logo após as eleições, sem um planejamento adequado para a transição e a continuidade das atividades de paz. Isso comprometia a estabilidade alcançada e criava condições propícias para o ressurgimento dos conflitos.
A falta de controle e responsabilização do comportamento das tropas e dos funcionários internacionais também se mostrou um problema grave. Foram relatados casos de abuso de poder, falta de sensibilidade em relação à cultura e aos costumes locais, além de escândalos como o aumento da prostituição e a disseminação de doenças, como a AIDS, associados à presença das missões. Infelizmente, esses comportamentos nem sempre foram devidamente sancionados, pois a responsabilidade recaía sobre os países
contribuintes, o que dificultava a responsabilização dos agressores. Essas situações prejudicaram a reputação das missões e geraram um ressentimento da população local, comprometendo a credibilidade e a capacidade de intervenção da organização mundial.
Por fim, o envio de soldados para sociedades já excessivamente militarizadas apresentou um desafio adicional. Os contingentes militares enviados não estavam preparados adequadamente para lidar com a complexidade da construção da paz e operações de estabilização, pois estes eram treinados para o combate e não para questão de pacificação, havendo uma falta de treinamento “pacífico” para os soldados em missões de paz.
Tropas treinadas para o combate e com experiência em situações de guerra foram enviadas sem uma formação adicional adequada para lidar com as nuances culturais e contextos específicos dessas sociedades. Essa falta de preparação adicional ressaltava a escassez de produção teórica sobre o tema, tanto por parte da organização como dos próprios países contribuintes.
No entanto, aconteceram circunstâncias, como em Ruanda, onde o poder militar presente não era suficiente para corresponder ao poder das partes hostis, ficando a missão claramente limitada no seu papel. Mas, a solução não seria fácil, como retrata Teresa Almeida Cravo: “a sugestão de um incremento da forca musculada da missão chocava, porém, com a necessidade de preservar a distinção entre manutenção e imposição da paz (peace enforcement), e garantir o consentimento entre as partes antes do envio das tropas” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013)
As críticas levantadas evidenciaram a necessidade de reformas e aprimoramentos na organização, visando superar essas limitações e fortalecer sua capacidade de promover a paz e a segurança global de maneira mais eficaz. Reformas essas que resultaram na criação do Departamento de Operações de Paz, em 1992, da Comissão de Consolidação da Paz em 2005 e da Divisão de Política, Avaliação e Treino em 2007 que, embora permitam uma “melhor coordenação da entrada, permanência e retirada dos atores internacionais dos cenários de conflito e pós-conflito, as melhorias institucionais não têm conseguido resolver efetivamente os problemas de maior integração e coerência no seio das NU” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações
Unidas, 2013). Além de dar formação aos peacekeepers, com a aprovação do Serviço de Treino Integrado em 2008, ainda surgem relatórios de comportamentos desumanos por parte dos membros das nações unidas.
As Nações Unidas também procuraram fortalecer os laços de cooperação e parceria com instituições regionais, como a NATO e a União Africana, reconhecendo a importância de envolver esses atores regionais no processo de consolidação da paz. Abordagem essa, que, procura aproveitar o conhecimento, os recursos e a influência dessas instituições para auxiliar os esforços de construção da paz em diferentes regiões do mundo.
No entanto, ao longo do tempo, não foram realizadas mudanças significativas nos fundamentos liberais que se encontram na Consolidação da Paz, resultando na preservação do “paradigma original com sua matriz ocidental e sua natureza hierárquica, centralizada e elitista” (Cravo, Duas décadas de consolidação da paz: as críticas ao modelo das Nações Unidas, 2013). Isso significa que, apesar de algumas adaptações metodológicas e incorporação de retórica crítica, o modelo em si continua a refletir os princípios e valores ocidentais predominantes. Essa dinâmica pode resultar em desigualdades e limitar a participação significativa de atores locais e outras vozes não ocidentais na definição e implementação de estratégias de consolidação da paz. É importante reconhecer essa questão para promover um debate mais amplo e inclusivo sobre os fundamentos ideológicos subjacentes à Consolidação da Paz e explorar abordagens alternativas que sejam mais sensíveis e adaptadas às realidades locais e culturais das sociedades afetadas por conflitos.