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A vila de Raul Brandão, abreviatura do mundo

António Amaro das Neves

amarodasneves@esfh.pt

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Já passaram mais de 120 anos sobre a data em que Raul Brandão, feito alferes, se apresentou no Regimento de Infantaria 20, que estava aquartelado no “casarão negro e em osso” do Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães. Quem lesse a História de um Palhaço, que se publicou no mesmo ano de 1896, facilmente perceberia que aquele modo de vida quadrava mal à personalidade do escritor. O coronel Mário Cardoso, que sabia do que falava, atestou que Brandão errara absolutamente no caminho que empreendera, “por inadaptação à vida militar”. Era manifesto que se sentia deslocado em tal carreira, que se forçara a seguir “por vontade do pai, e para não desgostar a mãe” que, segundo Aquilino Ribeiro, fazia gosto em ver “o seu menino fardado, taful, cintadinho em correias de anta, pisgado pelas carochinhas das janelas”. Quando arribou a Guimarães, embora ainda longe da fama que viria a ter, Raul Brandão não era um ilustre desconhecido. À chegada, teve direito a uma nota de boas vindas nas páginas de O Comércio de Guimarães do dia 8 de junho daquele ano de 1896, onde se lê: Apresentou-se no 1.º batalhão de infantaria 20 aqui estacionado o sr. Raul Brandão, ilustrado alferes de infantaria, primoroso escritor e literato lisbonense. Este nosso talentoso colega, muito digno redactor do “Correio da Manhã”, estava em Lisboa fazendo parte duma comissão, e tinha a seu escrever a história da guerra peninsular. Como actualmente nenhum oficial pode passar ao posto imediato sem ter feito dois anos de serviço efectivo, eis a razão porque o snr. alferes Raul Brandão se encontra nesta cidade, retirando-se para Lisboa logo que terminar o seu tempo de serviço, voltando a ocupar o seu lugar naquela comissão, Cumprimentamos o nosso estimadíssimo colega e brioso militar. Vinha para Guimarães por imposição administrativa, para passar uma temporada. Acabaria por ficar. Ainda cá está, por escolha sua. O que Raul Brandão encontrou em Guimarães, no que tocava aos andamentos da vida militar, era bem diferente daquilo que já conhecera na sua curta carreira nas fileiras do Exército, como se percebe pela leitura

das suas Memórias, onde pintou a traços negros os dias da Escola do Exército e do estágio na Escola Prática de Infantaria de Mafra: Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (era o Cibrão na secretaria); castigo para um lado, castigos para o outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O Inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior… A vida no regimento de Guimarães nada tinha a ver com a experiência militar anterior de Raul Brandão, de acordo com a descrição do alferes-escritor: Outra louça. Achei-me numa casa de campo sem conforto nenhum, mas a parada da guarda era às onze – entrada – e tocava à ordem à uma – saída. Meia dúzia de soldados no velho casarão negro e em osso, e oficiais a jogar o gamão, numa sala, ali encantados desde o princípio do Mundo. De quinze em quinze dias uma inspecção: ficava-se no quartel, mas eu, como noivo, fechava os soldados à chave, metia esta no bolso e ia dormir a casa. Das suas obrigações castrenses em terras vimaranenses, Brandão guardou memória de dois acontecimentos anuais em que a tropa tinha que participar: a romaria de S. Torcato e a procissão de S. Jorge, a que os vimaranenses batizaram carinhosamente de procissão do caga-ratos: Estou a ver-me na Oliveira, com o Flores a comandar uma companhia: – Abrir fileiras! Apresentar armas! – Era o simpático boneco que aparecia lá no fundo, em cima do cavalo, de lança, elmo e plumas, seguido por todas as alimárias que os fidalgos de Guimarães mandavam naquele dia para o acompanhar. – Marche! – Uma rua mergulhada em sombra húmida. Um ziguezague muito azul lá no alto, entre os beirais. Chiada de ferreiros no céu e pelo chão punhados de funcho aromático, que exalavam mais cheiro calcados. As meninas debruçavam-se sobre as colchas de seda. – Marche! – A música a tocar e nós a rompermos, de espada alta, sorrindo para as janelas atrás do bonifrate. Em Guimarães, o alferes Brandão levou uma “vida de abade”, como confidenciaria ao seu amigo Columbano Bordalo Pinheiro, numa carta de meados de 1898. Aí nos deixou uma descrição da cidade que o acolheu:

Guimarães é uma cidade perfeitamente Idade Média, com palácios, igrejas e casas minhotas curiosíssimas. Tudo isto tem um aspecto de que você deve gostar muito. Os arredores, a paisagem, até nos dias de chuva, são admiráveis. Lindas raparigas e vinho verde magnífico a cinco mil réis a pipa; acrescentado isto, fica você percebendo que esta terra basta para a minha felicidade. Estou, portanto, contente. Não vejo à minha volta senão gente feliz, corada e palreira — e a alegria é, como sabe, comunicativa. Aluguei uma casa fora da cidade com um enorme quintal e um telheiro. De lá, nestas duas últimas tardes de calor, amodorrado olho a Penha — uma montanha eriçada de penedia e as árvores que separam os campos, cobertas de vinha. Trabalho da uma às quatro e meia. Depois passeio, como e durmo. Uma vida de abade. Uma das razões que ajudam a perceber porque é que, na memória local, a presença de Raul Brandão em Guimarães se ficou mais por uma dimensão erudita e comemorativa, do que por uma apropriação do seu nome e da sua obra como património integrante da identidade vimaranense, decorre da ideia de que o escritor da Casa do Alto pouco terá escrito sobre Guimarães. Essa perceção, sendo injusta, porque ignora que as obras maiores da produção ficcional de Raul Brandão têm Guimarães como pano de fundo, resulta de serem muito escassos e muitos breves os textos em que o escritor da Casa do Alto toma Guimarães como tema explícito da sua escrita. Destes, o mais nítido é o texto que inseriu numa obra coletiva que assinou com D. João da Câmara e Maximiliano de Azevedo, com o título Pátria Portuguesa, editado em 1906 e que se destinava a ser entregue como prémio aos “alunos mais distintos nas escolas primárias portuguesas”, onde lhe coube descrever a cidade onde se acolheu: Guimarães foi a primeira corte de Portugal, e ainda hoje a cidadezinha laboriosa conserva vestígios da antiga muralha, que teve sete torres, e do esplendor do passado: a igreja gótica, a colegiada, os conventos, as ruínas do Paço do conde D. Henrique e da rainha D. Teresa, e principalmente o pequenino e humilde templo de São Miguel do Castelo, que o povo chama igreja de Santa Margarida. […] Guimarães é hoje uma cidadezinha tranquila, de ruas estreitas, com as suas casas tão características de beiral saliente e gelosias, ainda célebre no fabrico da cutelaria, que teve nomeada em todo o país, nos tecidos de linho e no curtume dos coiros. […]

Seria também das mais lindas e características de Portugal se a moderna febre de demolição, sem necessidade nem critério, não tivesse derrubado tantas coisas belas e históricas: ainda assim, cada pedra denegrida pelo tempo nos lembra o passado, um homem, uma data gloriosa. No folheto O Padre, que publicou em 1901, Raul Brandão atribui ao território um carácter simbólico repartido por três espaços físicos e metafóricos: o campo, lugar da “vida recolhida e severa pelo contacto com as coisas simples e imensas da natureza”, que se despreza e despovoa; a vila, “onde se intriga”; a cidade, “onde se goza”. A vila será o cenário das duas obras ficcionais maiores do escritor de Nespereira, A Farsa e Húmus. Jacinto Prado Coelho descreveria a vila de Raul Brandão como “uma abreviatura do mundo”, cujos habitantes representam “a humanidade inteira”. A vila de Raul Brandão tem uma dimensão mais simbólica do que real, operando como território metafórico e assumindo-se como uma paisagem imaginária, impossível de identificar e de localizar no espaço geográfico do mundo concreto. No entanto, da leitura da obra do escritor da Casa do Alto, é possível perceber que há uma vila concreta por trás da vila brandoniana. A vila da obra de Raul Brandão foi delineada a partir da Guimarães que ele conheceu e que, apesar do título de cidade que já ostentava quando o escritor a conheceu, mantinha a configuração de vila, que sempre tivera. Para afastar dúvidas na identificação da povoação com que Raul Brandão montou o cenário da sua narrativa, bastam as primeiras linhas do primoroso quadro com que abre A Farsa. Uma nuvem desce da serra: arrastam-se os rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Quando lemos a descrição duma serra de encostas pedregosas e duma “praça solitária”, cujo granito “revê água” e onde se ergue uma sé, com a sua torre, se desenham arcarias, onde há “um Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais” e se percute o “telingue-telingue eterno duma fonte”, percebemos que Raul Brandão descreve um espaço familiar, povoado de elementos de fácil identificação: a Penha, a praça da Oliveira, a igreja da Colegiada, com a sua torre e a fonte que nela se encostava, e o monumento icónico e único que continuámos, erradamente, a chamar de Padrão do Salado. Alguém mais cético ainda poderá argumentar que, no que fica dito, não se encontra qualquer referência explícita a Guimarães na obra ficcional de Raul Brandão. Avancemos então até ao terceiro capítulo de A Farsa.

Aí, Raul Brandão transporta-nos até à noite de 5 de dezembro, véspera de S. Nicolau. Na Vila, está “toda a populaça na rua”, quando Os tambores rufam sem interrupção – dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil – e do nada, iluminados a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo sem aparência de realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada, o Cristo, as colunatas e os fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra. O único lugar do mundo onde, ano após ano, acontecia, e continua a acontecer (aconteceu ontem), a festividade que Raul Brandão descreve, é Guimarães. São as Posses, um dos atos dos festejos que os estudantes vimaranenses dedicam ao seu padroeiro, S. Nicolau, e cuja origem se perde na poeira dos séculos. No programa das festividades, esse é, como o nota Raul Brandão, “o dia das posses, em que desde tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore”. Raul Brandão concluiu a escrita de A Farsa em Maio de 1903 e, a crer na data que inscreveu no início da obra, terá começado a escrever a sua obra-prima, Húmus, no dia 13 de novembro de 1915. Entre essas duas datas, passou mais de uma dúzia de anos sem que, aparentemente, o mestre de Nespereira tenha produzido prosa ficcional. É certo que, em 1906, publicou Os Pobres, mas esse livro já estava escrito desde 1900, tendo ficado três anos a aguardar a carta-prefácio de Guerra Junqueiro e outros tantos à espera de entrar no prelo. Nos doze anos que transcorreram entre o momento em que Brandão escreveu a última frase de A Farsa – “É uma água frígida e límpida que apetece sempre beber.” – e aquele em que começou a compor Húmus, o escritor não deixou de escrever: dedicou-se ao jornalismo e à escrita da história, centrada nos anos conturbados que antecederam a implantação do liberalismo em Portugal, em Agosto de 1820, tendo publicado El-Rei Junot, em 1912, A Conspiração de 1817, em 1914, e O Cerco do Porto, contado por uma testemunha, o Coronel Owen, que prefaciou, anotou e publicou em 1915. Com Húmus, Raul Brandão regressa à escrita de ficção, quebrando um longo interregno, para dar continuidade a uma obra inaugurada com a História dum Palhaço e onde já se inscreviam Os Pobres e A Farsa. Com ele, regressa também à vila que já lhe servira de pano de fundo e que agora servirá de palco às

maquinações da mesquinha, perversa e hipócrita Candidinha. A afirmação de que vila de A Farsa é a mesma de Húmus é consensual entre os especialistas que se têm dedicado ao estudo da obra de Raul Brandão. Húmus é o melhor livro que Raul Brandão escreveu. Assim o consideram críticos e historiadores da literatura, assim o considerava o próprio Raul Brandão. Trata-se de uma obra literária singular, tanto pela mensagem que transmite, como pelo modo como corta com as convenções e com os preconceitos formais até aí em uso na escrita romanesca e proclama a sua independência em relação aos processos tradicionais, introduzindo um método de escrita que se liberta das peias de um esquema preconcebido, dando livre curso à imaginação e à inspiração imediata, transportando a sua prosa para territórios que se suporiam exclusivos da poesia. É uma das obras maiores da literatura em língua portuguesa do século XX. A narrativa situa-se numa vila onde decorre um drama cujas personagens são reflexos das angústias, dos sentimentos e do pensamento do próprio autor. Uma povoação fantasmática que revisita a vila de A Farsa, réplica lúgubre da Guimarães que Raul Brandão bem conhecia, cuja identidade se desvenda logo nas linhas iniciais, datadas de 13 de Novembro:

Uma vila encardida – ruas desertas – pátios de lajes soerguidas pelo único esforço da erva – o castelo – restos intactos de muralha que não têm serventia: uma escada encravada nos alvéolos das paredes não conduz a nenhures. Só uma figueira brava conseguiu meter-se nos interstícios das pedras e delas extrai suco e vida. A torre – a porta da Sé com os santos nos seus nichos – a praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco. Sobre isto um tom denegrido e uniforme: a humidade entranhou-se na pedra, o sol entranhou-se na humidade. Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando tudo. Vi não sei onde, num jardim abandonado – Inverno e folhas secas – entre buxos do tamanho de árvores, estátuas de granito a que o tempo corroera as feições. Puíra-as e a expressão não era grotesca, mas dolorosa. Sentia-se um esforço enorme para se arrancarem à pedra. Na realidade, isto é, como Pompeia um vasto sepulcro: aqui se enterraram todos os nossos sonhos... Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar.

Uma vila com pátios lajeados; um castelo; restos intactos de muralha sem serventia; a Sé, a que também chamará de Colegiada, com uma porta com santos nos seus nichos; uma praça com árvores raquíticas e um coreto de zinco, que o escritor não necessita de nomear para nós sabermos que é o Toural. Um pouco mais adiante, sob a data de 20 de novembro, lemos: Não se passa nada! não se passa nada! No Verão o calor sufoca, de Inverno a mesma nuvem impregna o granito, e apega-se, amolece, dissolve pilares das janelas, casebres e a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas. Em volta um círculo de montanhas, descarnadas e atentas, espera a tragédia – e as montanhas não desistem. De quando em quando, na solidão que à noite redobra, caem do alto da Sé as badaladas, uma a uma, pausa a pausa. E percebemos que “a oliveira da praça, só tronco e duas folhinhas cinzentas”, é a árvore que dá nome à Praça Maior de Guimarães, onde antigamente se concentravam o poder político, na Casa da Câmara, o poder judicial, na Casa das Audiências que lhe era contígua, e o poder religioso, na Colegiada, e que as montanhas em volta são os montes que cercam o vale onde Guimarães está implantada, entre os quais sobressai a serra, então granítica e descarnada, que é a Penha. Datado de 18 de dezembro, encontrámos o seguinte trecho: Os padres clamam num coro desesperado: – Acabou o inferno! acabou tudo! Descompõem-se na sala da colegiada que deita para o passado – o claustro com um pé de oliveira, e dois túmulos encravados na parede, cenografia para o Hamlet – ser ou não ser eis a questão... cheiram a urina e a ranço. A religião sem inferno está perdida. A colegiada onde se proclama o fim do inferno é a que conhecemos. Era lá que estava, e ainda está, uma oliveira velha de muitos séculos. Assim como os dois túmulos a que Brandão alude — duas arcas tumulares cravadas na fachada lateral voltada a Sul da igreja, debaixo de arcossólios, que acolheram os restos mortais do morgado de Sezim e da sua mulher. Continuam no mesmo sítio e, para os encontrar, basta entrar no Museu de Alberto Sampaio. A vila de Húmus é feita de granito rude, tem uma montanha descarnada a vigiá-la, uma praça com uma oliveira e outra com um coreto de zinco e árvores raquíticas, um castelo e restos de muralha, com ou sem ameias, e uma igreja com um portal encimado por nichos com estátuas de santos talhadas em pedra que se

esboroa e onde se encosta um claustro com uma oliveira e dois túmulos de pedra encravados na parede. A vila de Húmus, como a de A Farsa, é Guimarães. A Vila da obra de Raul Brandão é triste, encardida, pobre, enegrecida, onde a humidade se entranha na pedra e o sol se entranha na humidade. Olhámos em volta e temos dificuldade em reconhecer nela a Guimarães de hoje, bela e acolhedora. Mas esta cidade, onde só a espaços somos capazes de reconhecer a vila de Raul Brandão, apesar dos seus muitos séculos de história, é uma cidade nova de poucas décadas. Em meados do século XX, não seria muito diferente da vila que Brandão descreveu, como o mostra um texto que Manuel Mendes, um dos estudiosos e divulgadores da obra de Brandão publicou no Notícias de Guimarães em 1961: Por toda a parte, os bairros pobres das cidades, dão a mesma sensação desoladora, confrange a miséria, parece que irremediável, que se patenteia nas coisas e nas criaturas. O quadro repetese com uma uniformidade impressionante. Aqui, porém, só me fazia saltar à lembrança certos cenários, certas personagens da obra de Raul Brandão, escritor que para estas bandas por largos anos viveu. A atmosfera dir-se-ia exactamente a mesma, o quadro idêntico, as cores sombrias de igual modo pesadas e húmidas, de uma opacidade mortal, e os vultos que via esgueiraremse pelas portas, feridos da mesma agonia, ou a transcender no seu sonho simultaneamente trágico e grotesco. A sensação que me envolvia tornava-se obsidiante, invencível, e olhava para cada um, murmurando para mim mesmo o seu nome — o Gebo, o Pita, a Candidinha, a Luísa, o Gabiru... E se, por entre as portas ou as janelas, lobrigava, à luz mortiça dos candeeiros, algum trecho de casa, com os seus miseráveis trastes, a sensação tornava-se ainda mais pungente e desgarradora, como se de imprevisto lhes entrasse na intimidade. O texto, de onde transcrevemos este excerto, responde a uma questão que o autor epigrafou em título: “Donde surgem as figuras e os cenários da obra de Raul Brandão”. É de Guimarães, como claramente percebeu Manuel Mendes. É nesta “abreviatura do mundo”, cujos habitantes representam “a humanidade inteira”, que, ainda hoje, na véspera de S. Nicolau, acontece o ato que preenche o terceiro capítulo de A Farsa. A vila brandoniana é Guimarães.

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