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Cinco por uma
from OsmusikéCadernos 1
by osmusike
Rui Galiano (Técnico de Ideias Gerais)
ruiviana@live.com
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Lixívia
Ia na cidade e uma mulher, a lavar a varanda com lixívia, despejou prá rua o balde, um pouco à minha frente, quando eu ia a passar. O cheiro a lixívia era muito intenso e uma pinga grossa, ou talvez mais, caiu-me na roupa. Fiquei furioso, colérico... a estupidez da mulher... não olhar a ver se estava alguém a passar… claro, não eram horas do gocha, de quem quer namorar com o leproso, ou a casa da Borgonha... antes estivesse colada a isso... Podre... No entanto, isto é Portugal, ainda vai acontecer isto mais cinco vezes até chegar ao Café, nem piei. Cheguei à frente, olhei melhor para a t-shirt e calças, que eram brancas e uma mancha de pêssego, castanha, que vivia na t-shirt desde o Verão do ano passado, abaixo do nariz, tinha desaparecido… na verdade, tinha sido trabalho profissional da lixívia. Estupefacto, sorri de mim, vi que, afinal, a estupidez tinha-me por proprietário, estava em julgar a pessoa em primeiro e, depois, antes de olhar, ver, pensar, contemporizar, compreender, agradecer tudo o que acontece só porque acontece. Mas está cara a lixívia... com isto do vírus...
Groselha
Havia um rapaz que desenvolveu um sumo de umas bolinhas que cresciam ao fundo da quinta, nem sabia que era groselha, juntando-lhe raspas de limão, ervas aromáticas e o resto era segredo, dizia ele. O sumo era de facto extraordinário, ao ponto de ser comprado por uma grande marca mundial. Vivia no campo e era muito curioso. Também metia canela. A poucos quilómetros de sua casa, numa povoação vizinha realizavase, anualmente, uma festa popular de grande expressão. O rapaz apetrechou-se, pôs-se a caminho, tirou a licença na Câmara Municipal de Guimarães e foi vender o divino líquido, cheio de fulgor. Finda a festa, o rapaz soltava lágrimas em fio como o quadro do menino a chorar, ninguém lhe comprou sequer um copo. O motivo, comentava-se, era o de que, naquela povoação, todas as pessoas gostavam apenas de vinho. Passado um ano e carregado de moral pelos amigos e familiares, tendo apurado ainda mais a receita e o líquido, um ano mais velho, e um cartaz para plano b, dizendo que se oferecia um copo a quem desejasse provar o sumo,
cheio de fé, abalou ao seu destino. O líquido parecia, agora, obra dos Deuses… algo diferente e sublime. Acreditava que, desta vez, ia vender o sumo, mas não vendeu… nem um copo, novamente. Comentavam todos perante o choro compulsivo do rapaz, que relevasse, pois, aquelas pessoas só gostavam de vinho. Talvez até o vinho nem fosse bom e, até, prejudicasse a saúde, mas… era o que as pessoas gostavam. E ninguém lhe devolveu o dinheiro da licença. Agora pergunto: ''Deve continuar o rapaz a fazer a groselha? E
uma Cidade que tenha vinho e groselha vale mais do que uma que só tenha vinho ou só tenha groselha?
''. Moral da história: As cidades que tenham vinho e groselha têm duas opções, diversidade. São Diver Cidades. Mais tarde, a marca que comprou o sumo e o segredo transformou o Mundo. E o segredo era: ''Faças o que fizeres, o que nos derrete é o que é verdadeiramente nosso e… se dá aos outros. A grandeza está no carácter das coisas”.
Tempo
Eu. Ia no caminho de casa e uma senhora idosa, muito idosa, à porta da rua, mas ainda no interior, de robe e olhar vago, na noite, parada, cristalizada, focava para o chão cinco metros adiante, mesmo que as rugas nem deixassem ver os seus olhos, talvez cinzentos… não sei se ela esperava ou se era o próprio tempo. Passei no passeio no meu passo e, desde longe, habituei-me a vê-la à distância no seu modo de cera, não havia diferença entre a velha vivenda e a espera. Apesar do meu passar não passei, porque àquela porta, com a senhora quase morta, era como se o tempo viesse ter comigo. Eu próprio não sei que tempo sou. A senhora, essa, parecia ser o tempo todo e, tal como eu, passando não passei, ela continuou a ser o tempo e eu o que não sei. Talvez ela esperasse apenas tempo ou a falta dele, talvez nem ela soubesse o tempo…
Amarra
Há uma pequena corda que amarra o navio ao cais. Ela é suficiente para suster a força dos dois monstros: navio e mar. É assim a corrupção. Pequenas coisas, ronha, mantêm presa a Liberdade que não desamarra do cais da vergonha.
Democracia
Às vezes, cortamos fios de ouro com tesouras de prata.
Nota final: aos desatentos, como a diferença entre arte e lampejo, estive a falar de Liberdade e o coiso que eu vejo. Uma coisa é uma coisa e, outra coisa é outra coisa. Há bichos para todos os medos.